Acessibilidade / Reportar erro

Pé caído: uma complicação iatrogênica da anestesia espinhal

Resumo

Justificativa e objetivos

Pé caído no período pós-operatório é muito raro após a anestesia espinhal. Avaliação clínica e intervenções diagnósticas precoces são de primordial importância para estabelecer a etiologia e iniciar o tratamento adequado. Um acompanhamento atento é justificado no pós-operatório imediato nos casos em que o paciente se queixa de parestesia ou dor durante a inserção da agulha ou da injeção de fármacos.

Relato de caso

Paciente do sexo masculino, 22 anos, submetido a cirurgia ortopédica de membros inferiores sob anestesia espinhal. Durante a transferência para a sala de recuperação pós-operatória, houve suspeita de pé caído durante a avaliação rotineira da regressão do nível espinhal. O paciente foi imediatamente enviado ao neurologista e uma ressonância magnética foi feita, mas não foi conclusiva. O manejo conservador foi iniciado e o estudo de condução nervosa foi feito no 4° dia de pós-operatório, o que confirmou a neuropatia motora pura do nervo fibular direito. O paciente foi dispensado com imobilizador de tornozelo e fisioterapia após ligeira melhoria da força motora (2/5).

Conclusões

Pé caído é muito raro após a anestesia espinhal. Qualquer paciente suspeito deve ser submetido à consulta neurológica de emergência e ressonância magnética para excluir o principal achado e a necessidade de intervenção cirúrgica precoce.

PALAVRAS-CHAVE
Anestesia espinhal; Parestesia; Imagem de ressonância magnética; Fisioterapia

Abstract

Background and objectives

Foot drop in postoperative period is very rare after spinal anesthesia. Early clinical assessment and diagnostic interventions is of prime importance to establish the etiology and to start appropriate management. Close follow-up is warranted in early postoperative period in cases when patient complain paresthesia or pain during needle insertion or drug injection.

Case report

A 22-year-old male was undergone lower limb orthopedic surgery in spinal anesthesia. During shifting from postoperative ward footdrop was suspected during routine assessment of regression of spinal level. Immediately the patient was referred to a neurologist and magnetic resonance imaging was done, which was inconclusive. Conservative management was started and nerve conduction study was done on the 4th postoperative day that confirmed pure motor neuropathy of right peroneal nerve. Patient was discharged with ankle splint and physiotherapy after slight improvement in motor power (2/5).

Conclusions

Foot drop is very rare after spinal anesthesia. Any suspected patient must undergo emergent neurological consultation and magnetic resonance imaging to exclude major finding and need for early surgical intervention.

KEYWORDS
Spinal anesthesia; Paresthesia; Magnetic resonance imaging; Physiotherapy

Introdução

A anestesia espinhal contribui significativamente para a prática atual da anestesia, é a modalidade anestésica de escolha em pacientes submetidos a cirurgias abdominais, ginecológicas e de membros inferiores. Embora a segurança do paciente seja muito alta, a anestesia espinhal ainda não é totalmente livre de complicações. Embora muito raros, os déficits neurológicos no pós-operatório podem ser muito perturbadores, tanto para os pacientes quanto para os anestesiologistas. Entre eles podemos incluir paraplegia, hemiplegia, síndrome da cauda equina e sintomas neurológicos transitórios.11 Scott DB, Tunstall ME. Serious complications associated with epidural/spinal blockade in obstetrics: a two-year prospective study. Int J Obstet Anesth. 1995;4:133-9.

2 Auroy Y, Benhamou D, Bargues L, et al. Major complications of regional anesthesia in France. Anaesthesiology. 2002;97:1274-80.

3 Kane RE. Neurologic deficits following epidural or spinal anesthesia. Anesth Analg. 1981;60:150-61.
-44 Selander D, Dhuner KG, Lundborg G. Peripheral nerve injury due to injection needles used for regional anaesthesia. An experimental study of the acute effects of needle point trauma. Acta Anaesthesiol Scand. 1997;21:182-8. O pé caído é um resultado adverso muito raro pós-anestesia espinhal. Apenas alguns poucos casos foram relatados em literatura anterior.55 Nirmala BC, Kumari G. Foot drop after spinal anaesthesia: a rare complication. Indian J Anaesth. 2011;55:78-9.

6 Ghai A, Hooda S, Kumar P, et al. Bilateral foot drop following lower limb orthopedic surgery under spinal anesthesia. Can J Anesth. 2005;52:550.
-77 Ahmad FU, Pandey P, Sharma BS, et al. Foot drop after spinal anesthesia in a patient with a low-lying cord. Int J Obstet Anesth. 2006;15:233-6.

Relato de caso

Paciente jovem do sexo masculino, 22 anos, apresentou-se para redução fechada e fixação interna com haste intramedular devido a fratura no terço distal da tíbia esquerda após acidente rodoviário. Durante a consulta no pré-operatório, a história e o exame físico não sugeriram doença neurológica, muscular ou hematológica anterior. Os parâmetros hemodinâmicos do paciente eram normais para sua idade, bem como os testes de rotina, inclusive perfil de coagulação. A prescrição para o paciente foi de comprimidos de pantoprazole (40 mg) e lorazepam (2 mg) na noite anterior à cirurgia e às 6 h com pouca ingestão de água.

No dia da cirurgia, já no centro cirúrgico, um cateter intravenoso (IV) de calibre 18G foi fixado na mão esquerda e a solução de Ringer com lactato foi iniciada a uma taxa de 15 mL·kg-1·h-1. O monitoramento padrão da anestesia, inclusive eletrocardiograma de cinco derivações, oximetria de pulso e pressão arterial não invasiva (PANI), foi iniciado e os parâmetros hemodinâmicos basais foram registrados. Sob todos os cuidados assépticos, uma agulha Quincke de calibre 25G foi inserida no interespaço L3-L4, em abordagem pela linha média na posição sentada, com o bisel voltado lateralmente. À medida que a agulha avançou, o paciente queixou-se de contração muscular no membro inferior direito. Imediatamente, a agulha foi ligeiramente retraída. Ao fluxo livre de líquido cefalorraquidiano, bupivacaína hiperbárica a 0,5% (2,5 mL) foi injetada no espaço subaracnóideo e o paciente foi posicionado em decúbito dorsal. Durante a injeção do anestésico local, o paciente não reclamou de dor ou parestesia. Aos cinco minutos após a injeção dos fármacos o nível sensitivo estava em T10 e a escala de Bromage modificada em 3; o cirurgião foi informado para iniciar a cirurgia. O período intraoperatório transcorreu sem incidentes, exceto por um único episódio de hipotensão (PA 90/46 mmHg) facilmente tratado com dose única de efedrina IV. No fim da cirurgia, o paciente foi transferido para a unidade de recuperação pós-anestesia, com nível de sensitivo em T12 e classificação da função motora em 3. Após três horas, o paciente foi transferido para a enfermaria de ortopedia e, durante a rotina da avaliação sensitivo e motora, observamos que não conseguia fazer dorsiflexão do pé direito. Naquele momento, nível sensitivo estava em S1, enquanto o escore de Bromage estava em 0 em ambos os membros.

Um neurologista foi consultado e diagnosticou o caso como pé direito caído com perda completa da flexão dorsal do tornozelo (1/5). Os reflexos do tendão profundo estavam normais (2+) em ambos os membros inferiores. Uma ressonância magnética de emergência foi feita, mas foi inconclusiva para os achados clínicos, sem evidência de hematoma. O paciente foi mantido sob observação neurológica para detecção precoce da progressão dos sintomas e tratado com esteroides intravenosos, analgésicos orais e multivitamínicos, juntamente com fisioterapia intensa.

No quarto dia de pós-operatório, fez-se estudo da condução nervosa que mostrou neuropatia motora pura do nervo fibular direito (tabelas 1-3). Após confirmar a natureza não progressiva dos sintomas e a ligeira melhoria da força motora (2/5), o paciente foi dispensado no oitavo dia de pós-operatório com imobilizador de tornozelo e recomendação de fisioterapia regular. Um mês depois, durante o exame de acompanhamento, o paciente apresentou melhoria adicional da força motora (flexão dorsal do tornozelo 3/5). O paciente foi aconselhado a manter a fisioterapia e o imobilizador de tornozelo.

Tabela 1
Estudo dos nervos motores: membro inferior
Tabela 2
Estudo dos nervos sensoriais: membro inferior
Tabela 3
Estudo da onda F: membro inferior

Discussão

Pé caído é definido como a incapacidade de fazer a dorsiflexão do pé. O pé caído no período perioperatório tem múltiplas etiologias, tais como lesões nervosas ciáticas ou fibulares (comuns ou profundas), trauma ou compressão da raiz lombossacra, entre outras. A probabilidade de lesão dos nervos ciático e fibular é mais óbvia em cirurgias feitas na posição de litotomia para ressecção transuretral da próstata, cirurgia anorretal ou procedimentos ginecológicos.88 Warner MA, Martin JT, Schroeder DR, et al. Lower-extremity motor neuropathy associated with surgery performed on patients in a lithotomy position. Anesthesiology. 1994;81:6-12.

9 Sahai-Srivastava S, Amezcua L. Compressive neuropathies complicating normal childbirth: case report and literature review. Birth. 2007;34:173-5.
-1010 Radawski MM, Strakowski JA, Johnson EW. Acute common peroneal neuropathy due to hand positioning in normal labor and delivery. Obstet Gynecol. 2011;118:421-3. A lesão do nervo fibular é mais comum devido ao seu curso superficial e à fácil compressão do nervo fibular na cabeça da fíbula. Posicionamento inadequado, acolchoamento inadequado e tempo longo de cirurgia são fatores predisponentes associados à neuropatia compressiva.

Complicações neurológicas após a anestesia espinhal são muito raras. Os fatores predisponentes provavelmente são lesões diretas causadas ao nervo por agulha, injeção acidental de fármacos no nervo ou compressão do nervo por hematoma.1111 Symons JA, Palmer GM. Neuropathic pain and foot drop related to nerve injury after short duration surgery and caudal analgesia. Clin J Pain. 2008;24:647-9.,1212 Waldron JS, Oh MC, Chou D. Lumbar subdural hematoma from intracranial subarachnoid hemorrhage presenting with bilateral foot drop: case report. Neurosurgery. 2011;68:835-9. A dor ou parestesia durante o procedimento pode alertar o anestesiologista para a possibilidade de trauma agudo ou injeção acidental na raiz nervosa. A queixa do paciente deve ser considerada e uma leve retração da agulha é aconselhável antes da injeção de anestesia local. A incidência de hematoma espinhal é muito baixa e ainda precisa de considerações para ser definida como um fator causal de pé caído no pós-operatório imediato. A fisiopatologia é por compressão da medula espinhal ou da raiz do nervo por hematoma.

Acompanhamento e exame clínico atentos são necessários para estabelecer o diagnóstico precoce de pé caído no pós-operatório de pacientes suscetíveis. Uma ressonância magnética (RM) deve ser feita para confirmar a lesão medular detectável, enquanto o estudo da condução nervosa e a eletromiografia servem para estabelecer sua origem neurológica ou muscular, respectivamente. A RM é feita com urgência no momento da suspeita clínica, enquanto os estudos eletrodiagnósticos são feitos três semanas após a lesão aguda.1313 Oh SJ. Electromyographic studies in peripheral nerve injuries. South Med J. 1976;69:177-82.,1414 Campbell WW. Evaluation and management of peripheral nerve injury. Clin Neurophysiol. 2008;119:1951-65. Em casos médico-legais, os estudos eletrodiagnósticos devem ser feitos nos primeiros cinco dias desde a lesão. O tratamento do pé caído depende da etiologia. A descompressão cirúrgica precoce do hematoma é necessária em hematoma da coluna vertebral ou epidural, enquanto a neuropatia periférica exige um tratamento conservador com imobilizador de tornozelo, fisioterapia e acompanhamento regular.

Conclusão

Os pacientes com queixa de dor ou parestesia durante a anestesia espinhal devem ser cuidadosamente observados no pós-operatório e o diagnóstico e manejo precoces são justificáveis para evitar qualquer sequela permanente.

References

  • 1
    Scott DB, Tunstall ME. Serious complications associated with epidural/spinal blockade in obstetrics: a two-year prospective study. Int J Obstet Anesth. 1995;4:133-9.
  • 2
    Auroy Y, Benhamou D, Bargues L, et al. Major complications of regional anesthesia in France. Anaesthesiology. 2002;97:1274-80.
  • 3
    Kane RE. Neurologic deficits following epidural or spinal anesthesia. Anesth Analg. 1981;60:150-61.
  • 4
    Selander D, Dhuner KG, Lundborg G. Peripheral nerve injury due to injection needles used for regional anaesthesia. An experimental study of the acute effects of needle point trauma. Acta Anaesthesiol Scand. 1997;21:182-8.
  • 5
    Nirmala BC, Kumari G. Foot drop after spinal anaesthesia: a rare complication. Indian J Anaesth. 2011;55:78-9.
  • 6
    Ghai A, Hooda S, Kumar P, et al. Bilateral foot drop following lower limb orthopedic surgery under spinal anesthesia. Can J Anesth. 2005;52:550.
  • 7
    Ahmad FU, Pandey P, Sharma BS, et al. Foot drop after spinal anesthesia in a patient with a low-lying cord. Int J Obstet Anesth. 2006;15:233-6.
  • 8
    Warner MA, Martin JT, Schroeder DR, et al. Lower-extremity motor neuropathy associated with surgery performed on patients in a lithotomy position. Anesthesiology. 1994;81:6-12.
  • 9
    Sahai-Srivastava S, Amezcua L. Compressive neuropathies complicating normal childbirth: case report and literature review. Birth. 2007;34:173-5.
  • 10
    Radawski MM, Strakowski JA, Johnson EW. Acute common peroneal neuropathy due to hand positioning in normal labor and delivery. Obstet Gynecol. 2011;118:421-3.
  • 11
    Symons JA, Palmer GM. Neuropathic pain and foot drop related to nerve injury after short duration surgery and caudal analgesia. Clin J Pain. 2008;24:647-9.
  • 12
    Waldron JS, Oh MC, Chou D. Lumbar subdural hematoma from intracranial subarachnoid hemorrhage presenting with bilateral foot drop: case report. Neurosurgery. 2011;68:835-9.
  • 13
    Oh SJ. Electromyographic studies in peripheral nerve injuries. South Med J. 1976;69:177-82.
  • 14
    Campbell WW. Evaluation and management of peripheral nerve injury. Clin Neurophysiol. 2008;119:1951-65.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2017
  • Aceito
    29 Set 2017
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org