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Gênero, sexualidade e violência: percepção de adolescentes mobilizadas em um jogo online

RESUMO

Objetivo:

Identificar e analisar a percepção de estudantes de ensino médio sobre a violência nas relações de intimidade no âmbito da adolescência, à luz da categoria Gênero.

Método:

Estudo qualitativo, descritivo e exploratório, realizado a partir de comentários de 27 adolescentes participantes do jogo online Papo Reto. Os discursos foram submetidos à análise de conteúdo temática e discutidos à luz da categoria Gênero.

Resultados:

Os adolescentes naturalizam a violência nas suas relações de intimidade, porém, quando a reconhecem, reagem de várias formas: com agressões, dialogando com o parceiro ou buscando apoio de terceiros.

Considerações finais:

Houve percepções discordantes em relação ao fenômeno, a maior parte reiterando os estereótipos de gênero. Contudo, revelam atitudes favoráveis à superação principalmente relacionadas à conquista de autonomia.

Descritores:
Gênero e Saúde; Violência; Adolescente; Sexualidade; Tecnologia Educacional

ABSTRACT

Objective:

To identify and analyze the perception of high school students about violence in intimacy relations in adolescence, in the light of the category Gender.

Method:

A qualitative, descriptive and exploratory study, based on the comments of 27 adolescents participating in the online game, Papo Reto. The discourses were submitted to the analysis of thematic content and discussed in the light of the category Gender.

Results:

Adolescents naturalize violence in their relationships of intimacy, but when they recognize it, they react in several ways: with aggressions, dialoguing with the partner or seeking support from third parties.

Final considerations:

There were discordant perceptions regarding the phenomenon, most of which reiterated gender stereotypes. However, they reveal attitudes favorable to overcoming mainly related to the attainment of autonomy.

Descriptors:
Gender and Health; Violence; Adolescent; Sexuality; Educational Technology

RESUMEN

Objetivo:

Identificar y analizar la percepción de estudiantes de Secundaria sobre la violencia en las relaciones de intimidad en el ámbito de la adolescencia, a la luz de la categoría Género.

Método:

Estudio cualitativo, descriptivo y exploratorio, realizado a partir de comentarios de 27 adolescentes participantes del juego online Papo Reto. Los discursos fueron sometidos al análisis de contenido temático y discutidos a la luz de la categoría Género.

Resultados:

Los adolescentes naturalizan la violencia en sus relaciones de intimidad, pero cuando la reconocen, reaccionan de varias formas: con agresiones, dialogando con el compañero o buscando apoyo de terceros.

Consideraciones finales:

Hubo percepciones discordantes en relación al fenómeno, la mayor parte reiterando los estereotipos de género. Sin embargo, revelan actitudes favorables a la superación principalmente relacionadas a la conquista de autonomía.

Descriptores:
Género y Salud; Violencia; Adolescente; Sexualidad; Tecnología Educativa

INTRODUÇÃO

Na área da saúde, frente ao desafio de formação de profissionais críticos e reflexivos, os jogos vêm sendo cada vez mais utilizados de modo a facilitar processos de aprendizagem. Neste estudo, ressalta-se o uso de um jogo online para o favorecimento da abordagem sobre sexualidade com adolescentes de forma lúdica e interativa. O jogo Papo Reto foi idealizado como um dispositivo pedagógico centrado na promoção do protagonismo de adolescentes, do pensamento crítico-reflexivo e da construção do conhecimento, subsidiados pela ludicidade e pela interação. Vislumbra a mobilização da reflexividade crítica por meio de um ambiente livre de respostas pré-concebidas(11 Oliveira RNG, Gessner R, Souza V, Fonseca RMGS. Limites e possibilidades de um jogo online para a construção de conhecimento de adolescentes sobre a sexualidade. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2016 [cited 2017 Jul 03]; 21(8):2383-92. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csc/v21n8/1413-8123-csc-21-08-2383.pdf
http://www.scielo.br/pdf/csc/v21n8/1413-...
).

Fundamentado na perspectiva de gênero, o jogo Papo Reto considera a construção social da sexualidade, na articulação com os construtos sociais que possibilitam as diferentes concepções e expressões da masculinidade e da feminilidade. Parte-se do pressuposto que a abordagem da sexualidade na adolescência é permeada e determinada por questões de gênero. A partir dessa concepção, a iniquidade de gênero apresenta-se como elemento determinante da violência que permeia a vivência da sexualidade na adolescência. Assim, a vivência das relações de intimidade neste grupo social está relacionada com a significativa vulnerabilidade em relação à experiência de vitimização ou perpetração da violência, o que determina outras vulnerabilidades no campo sexual e reprodutivo(22 Oliveira RNG, Gessner R, Brancaglioni BCA, Fonseca RMGS, Egry EY. Preventing violence by intimate partners in adolescence: an integrative review. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2016 [cited 2017 Jul 03]; 50(1):134-43. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v50n1/0080-6234-reeusp-50-01-0137.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v50n1/00...
).

A violência por parceiro íntimo (VPI) afeta uma proporção significativa da população mundial. No âmbito global, 30% das meninas, com idade entre 15 e 19 anos experienciam VPI em seus relacionamentos(33 World Health Organization (WHO). Preventing intimate partner and sexual violence against women: taking action and generating evidence [Internet]. Geneva: WHO. 2010 [cited 2017 Jun 20]. Available from: http://www.who.int/violence_injury_prevention/publications/violence/9789241564007_eng.pdf
http://www.who.int/violence_injury_preve...
). Estudo realizado em nove países com 24.000 mulheres sugere que a VPI acomete, em maior número adolescentes e mulheres jovens, quando comparadas às de idade adulta(44 Stöckl H, March L, Pallitto C, Garcia-Moreno C. Intimate partner violence among adolescents and young women: prevalence and associated factors in nine countries: a cross-sectional study. BMC Public Health [Internet]. 2014 [cited 2017 Jun 10];14(751). Available from: https://doi.org/10.1186/1471-2458-14-751
https://doi.org/10.1186/1471-2458-14-751...
). O maior estudo desenvolvido sobre a violência nas relações afetivo-sexuais entre adolescentes brasileiros abrangeu 10 centros urbanos, distribuídos pelas cinco regiões geopolíticas, com jovens de escolas públicas e privadas. Os resultados apontaram que 86,9% dos adolescentes sofreram e 86,8% cometeram algum tipo de violência durante um relacionamento afetivo(55 Minayo MCS, Assis SG, Njaine K. Amor e violência: um paradoxo das relações de namoro e do “ficar” entre jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011.).

Uma revisão integrativa da literatura verificou que a VPI é vivenciada por ambos os sexos, porém há divergência entre os tipos de violência perpetrados. A maioria dos estudos evidencia que os meninos cometem mais agressão física e as meninas mais violência psicológica. Salienta-se que os estudos acerca da temática, em geral, não analisaram os resultados a partir da perspectiva de gênero. Embora alguns definam a VPI como um fenômeno social, a perspectiva de abordagem da problemática apresenta-se desgenerificada(22 Oliveira RNG, Gessner R, Brancaglioni BCA, Fonseca RMGS, Egry EY. Preventing violence by intimate partners in adolescence: an integrative review. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2016 [cited 2017 Jul 03]; 50(1):134-43. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v50n1/0080-6234-reeusp-50-01-0137.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v50n1/00...
).

É importante ressaltar que a vulnerabilidade à violência nas relações de intimidade sofre influência e é determinada pelas normas e papéis de gênero socialmente construídos. Esses aspectos influenciam o reconhecimento da problemática e podem naturalizar e caracterizar as situações de violência como próprias desta geração(66 Brancaglioni BCA, Fonseca RMGS. Intimate partner violence in adolescence: an analysis of gender and generation. Rev Bras Enferm [Internet]. 2016 [cited 2017 Jun 10]; 69(5):890-8. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v69n5/en_0034-7167-reben-69-05-0946.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reben/v69n5/en_...
). O presente artigo apresenta um recorte de análise acerca das questões relacionadas à desigualdade de gênero e à violência nas relações de intimidade dos adolescentes que foram mobilizados na experiência de utilização do Jogo Papo Reto por estudantes de uma escola pública de ensino médio, em São Paulo.

O estudo desta temática é fundamental para a área da Saúde Coletiva, pois entender como os adolescentes percebem e vivenciam situações que remetem à iniquidade de gênero e à violência na vivência das suas relações de intimidade permitirá vislumbrar estratégias de intervenção direcionadas para esse público, objetivando a vivência da sexualidade de forma não violenta e com equidade.

OBJETIVO

O objetivo deste estudo foi identificar e analisar a percepção de estudantes de ensino médio sobre sexo, sexualidade e violência nas relações de intimidade, à luz da categoria gênero.

MÉTODO

Aspectos éticos

O estudo seguiu as exigências da Resolução 466/12(77 Brasil. Resolução no. 466 de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília: Conselho Nacional de Saúde; 2012.), do Ministério da Saúde e teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Todos os adolescentes menores de 18 anos assinaram o Termo de Assentimento, e os pais, mães, responsáveis legais e adolescentes maiores de 18 anos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Salienta-se que, para preservar o anonimato, os comentários foram identificados por meio do sexo dos participantes, com a letra “M” representando o sexo masculino e “F” o sexo feminino, seguidos de algarismo arábico atribuído aleatoriamente.

Referencial teórico-metodológico

O estudo utilizou como referencial teórico-metodológico a categoria social Gênero, ancorada no materialismo histórico e dialético. Essa categoria está baseada na diferença entre os sexos. É componente das relações sociais, representando um elemento primordial para a elaboração de significados sobre as relações de poder. Enquanto componente básico das relações sociais, o gênero está associado a quatro elementos presentes na sociedade: aos símbolos culturalmente disponíveis, aos conceitos normativos, às instituições e organizações sociais, e à construção de identidades subjetivas, que compreendem as relações complexas construídas no processo de interação humana(88 Scott JW. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. 1995; 20(2):71-99.).

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo descrito e exploratório, de abordagem qualitativa, desenvolvido a partir de comentários discursivos de adolescentes jogadores registrados na plataforma online o jogo Papo Reto. O jogo corresponde a um dispositivo pedagógico desenvolvido para abordagem do tema sexualidade entre adolescentes. Ancora-se na problematização da realidade, no protagonismo dos sujeitos sociais, na livre expressão e na interação entre os jogadores, com vistas a motivar a criatividade e a construção do conhecimento no campo da sexualidade, sob a perspectiva de gênero(99 Oliveira RNG, Gessner R, Fonseca RMGS, Souza V. Avaliação da construção do conhecimento no campo sexual e reprodutivo de adolescentes por meio do jogo online. Atas do Congresso Ibero Americano em Investigação Qualitativa [Internet]. 2015 [cited 2017 Jul 03]; 1:403-08. Available from: http://proceedings.ciaiq.org/index.php/ciaiq2015/article/view/95
http://proceedings.ciaiq.org/index.php/c...
).

O jogo simula situações reais vivenciadas pelos adolescentes, tendo como cenário o mapa de uma cidade, na qual os espaços Casa, Escola, Internet, Balada e Rua são acessados progressivamente. Nesses territórios, os adolescentes se deparam com diferentes situações-problemas estruturadas para fomentar a problematização de temas que dizem respeito à sexualidade, como: discussões sobre o corpo, diálogo com os pares e com os pais, iniciação e orientação sexual. Na medida em que o jogador responde as situações-problemas e completa as missões definidas para cada uma delas, acumula pontos e, assim, ganha posições no ranking de todos os jogadores.

No que se refere à sexualidade, a elaboração do jogo buscou estimular questionamentos sobre a problemática das iniquidades de gênero vivenciada entre os pares, possibilitando uma interface com a problemática da VPI. Esse enfoque foi adotado considerando os padrões de relacionamento próprios dos adolescentes como determinados pela construção de gênero que, por sua vez, permeiam a construção da sexualidade.

Cenário do estudo

O estudo foi desenvolvido em uma escola municipal de ensino médio localizada no município de São Paulo. O convite para os adolescentes participarem do estudo foi feito formalmente pelas pesquisadoras para 308 estudantes, pessoalmente, nas salas de aula. Entre os convidados, 62 demonstraram interesse em participar do jogo e da pesquisa, tendo recebido autorização da mãe, do pai ou do responsável legal. A participação de adolescentes com idade superior a 18 anos dispensou autorização.

No mês de agosto de 2014 foi realizado o processo de cadastramento dos participantes na plataforma online, por meio da criação de login e senhas individuais. Nos meses de setembro e outubro de 2014, o jogo foi disponibilizado aos adolescentes. Ao final desse período, 27 adolescentes acessaram e jogaram regularmente, constituindo os participantes finais da pesquisa. Em geral, os adolescentes acessaram o jogo pelo período médio de um mês e um tempo médio de 40 minutos de conexão, mesmo o acesso ficando disponível durante todo o período de implementação deste estudo.

Coleta e análise dos dados

Em julho de 2015, os dados foram coletados a partir de um banco de dados composto pelas respostas às situações-problemas em formato de questão discursiva e dos comentários dos adolescentes, frente às respostas dos pares. O material empírico foi exportado do ambiente online do jogo para uma base de dados no Programa Microsoft Excel. Os discursos foram submetidos à análise de conteúdo temática proposta por Bardin(1010 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.) e a discussão embasou-se na categoria analítica Gênero.

RESULTADOS

A análise dos comentários possibilitou a emergência de três categorias empíricas: “Naturalização da violência nas relações de gênero”, “Reconhecimento de direitos sexuais como potencial de fortalecimento” e “Enfrentamento da violência pelos adolescentes”.

Naturalização da violência nas relações de gênero

A naturalização da violência, sobretudo no discurso das adolescentes, foi evidenciada em situações que remetiam a comportamentos entendidos como aceitáveis em um dado relacionamento. Tais comportamentos não foram identificados como violência, mas como integrantes naturais da relação.

Os discursos revelaram que as relações de intimidade entre adolescentes podem ser marcadas por disputas de poder que influenciam a determinação de situações de violência. Nesse sentido, a prática sexual pode representar um instrumento de dominação - em geral masculina - visto que em alguns comentários emitidos por adolescentes do sexo masculino, a relação sexual foi considerada uma forma de agressão à mulher, por meio do emprego do órgão sexual masculino.

É bom pra você ter o pênis torto [por] que é melhor pra machucar as mulheres! (M1)

Não importa se a espada [pênis] é torta, mas sim se ele fere o oponente. (M4)

Outro aspecto evidenciado nas respostas dos adolescentes às situações do jogo foi a subalternidade de gênero, como argumento dos participantes para justificar a violência nos seus relacionamentos. Destacou-se o uso de termos que estereotipam e inferiorizam a condição feminina no relacionamento, como pode ser evidenciado a seguir:

Tacava o piru nas novinhas. (M2)

As falas de algumas participantes do sexo feminino revelaram uma relação desigual de poder no que se refere aos direitos e preferências de cada um dos pares. Observou-se que o fato de estar em um relacionamento permite aceitação de comportamentos dominantes, sobretudo de caráter sexual, compreendidos como próprios de uma relação afetiva, a fim de agradar o outro.

Acho que não tem por que [tirar a mão dele dos seios], afinal, estou namorando com ele. (F1)

[...] se ele [namorado] gosta de você, não vai querer só uma coisa, vai querer você por completo. (F3)

Em alguns casos, os participantes referiram o comportamento feminino como desencadeador de situações violentas nos relacionamentos afetivo-sexuais. Supostas características sedutoras e provocantes das mulheres adolescentes costumam justificar as situações de violência por parceiro íntimo. Desta maneira, as meninas são culpabilizadas pelas situações de violência, tidas como provocadas por elas. Na fala a seguir, constata-se a desqualificação do comportamento da vítima e a valorização da postura do agressor.

Ela é safada por estar brincando disso [amasso] com o namorado. Ela devia ter a consciência que o namorado dela iria fazer isso [MENINA BURRA]. (F2)

Os relatos também expressaram a culpabilização das adolescentes pela violência vivida no ambiente virtual, como por exemplo, a divulgação de fotos íntimas sem a autorização do parceiro.

Para começar, a namorada nem deveria ter mandado fotos desse tipo [íntimas] para quem não tem 100% de confiança. (M3)

Embora as adolescentes tenham sido culpabilizadas pelas situações de violência presentes nos relacionamentos afetivos-sexuais, destaca-se o fato de alguns discursos terem feito uma leitura do comportamento feminino baseada na autonomia das mulheres sobre seus corpos, o que remete a uma concepção acerca da vivência dos direitos sexuais, conforme revelado na categoria a seguir.

Reconhecimento de direitos sexuais como potencial de fortalecimento

Nessa categoria identificou-se a valorização do sexo feminino por meio da expressão das vontades das meninas em relação à vivência da sexualidade. A autonomia da adolescente em decidir quando e como iniciar a vida sexual mostrou-se importante para os participantes, sobretudo, do sexo feminino.

Se você acha que ainda não é a hora certa [de ter a primeira relação sexual] não faça absolutamente nada! [...] Analise todas as condições e não deixe que o menino te force a nada. Vá pelas suas próprias vontades. (F3)

Ela deve ter certeza de que é isso que quer, para que não se arrependa depois. Afinal, é um passo muito importante começar uma vida sexual e ela não deve fazer apenas por fazer e sim por querer. (F4)

Apesar de essas falas revelarem a valorização da autonomia na tomada de decisão sobre a sexualidade e o corpo, parte das adolescentes apresentou uma visão romântica e idealizada das relações de intimidade, sobretudo no que tange à primeira relação sexual. Dentre os aspectos mencionados como relevantes para as adolescentes refletirem e decidirem iniciar a vida sexual, salienta-se o momento julgado por elas como oportuno a escolha de um parceiro de sua confiança.

Poucos foram os participantes do sexo masculino que fizeram menção a uma postura de maior liberdade por parte das adolescentes em decidir sobre a iniciação sexual. Contudo, quando eles se posicionaram, enfatizaram a necessidade de ser respeitado o direito de escolha do outro.

[...] se ela não quer ficar com ele, ela não quer. Não tem porque insistir. (M5)

Algumas participantes relataram pressões exercidas socialmente pelo grupo de amigos no sentido da concretização do início das relações sexuais. Contudo, corroboraram a autonomia feminina na decisão sobre quando deve ocorrer, salientando a necessidade de confiança e preparação emocional com a finalidade de evitar arrependimentos.

Acho que ela só deveria ter a sua primeira vez quando se sentisse preparada e confortável, e não fazer por pressão de um grupo de amigas ou do namorado. Ela tem que transar quando ela quiser, e quando ela se sentir bem! (F5)

Não faça suas escolhas com base no que os outros vão pensar, o que importa é você se sentir bem. (F6)

Apesar de a autonomia se mostrar evidente nos discursos como uma necessidade relacionada ao início das relações sexuais, também foi percebida como um aspecto que pode influenciar o enfrentamento da violência de gênero nas relações de intimidade estabelecidas entre os adolescentes.

Enfrentamento da violência nas relações de gênero entre adolescentes

Os adolescentes da pesquisa relataram diferentes formas de enfrentamento da violência de gênero nas relações de intimidade. Diante de uma situação-problema apresentada no jogo e comentada pelos participantes, na qual era abordado o desconforto de um dos parceiros diante uma carícia sexual não desejada, foram elencadas duas reações: a primeira está relacionada ao diálogo com o parceiro e a segunda está associada à resposta por meio de agressões verbais e físicas.

Falaria que ficasse mais calmo, pois está muito excitado, e estava me machucando. (M6)

Falaria “para” e se ele não parasse eu partiria pra agressão. (F9)

Daria um tapa na cara dele, pois deveria ter responsabilidade antes de agir. (M7)

Em situações-problema do jogo que abordavam a temática da violência em ambientes virtuais, as respostas e comentários dos adolescentes expressaram a perpetração da violência psicológica nesses ambientes como vivência comum desse grupo social, a exemplo do acesso às mensagens e ao perfil do parceiro ou da parceira nas redes sociais sem autorização, com consequente invasão de privacidade. Neste contexto, alguns participantes indicaram como forma de enfrentamento para essas violações, a busca por apoio da polícia.

Ir na polícia de crimes cibernéticos. (M8)

Denunciar o namorado para a polícia e fazê-lo pagar por isto. (M5)

Os participantes também destacaram como forma de enfrentamento da violência a busca da ajuda de profissionais, como psicólogos e a sua rede de apoio, geralmente constituída pelos pais e amigos. Os relatos destacaram que as intervenções precisam ser direcionadas tanto aos adolescentes em situação de violência, quanto aos perpetradores das agressões.

Para que ele [perpetrador] procure um profissional para aprender a se controlar e a agir como uma pessoa normal. Nem tudo se resolve na porrada. (F7)

[...] Converse com alguém íntimo da sua família ou até uma amiga mais sensata! (F8)

Os discursos dos adolescentes reconhecem as situações de violência que podem ser vivenciadas nas relações de intimidade, da mesma forma que apontam possibilidades de enfrentamento para a superação desses conflitos presentes na adolescência.

DISCUSSÃO

Os resultados revelam uma interface entre as problemáticas da VPI e da sexualidade na população adolescente. No jogo Papo Reto, evidenciaram-se fenômenos que precisam ser problematizados, interpretados e compreendidos à luz da categoria gênero, visto serem permeados por construtos sociais que reproduzem uma ideologia de naturalização da violência e de conservação das normas socialmente estabelecidas para os sexos feminino e masculino.

As normas vigentes em cada contexto social e a construção de gênero determinam, geralmente, as relações afetivas e sexuais que se iniciam durante a adolescência, determinando também vulnerabilidades, com repercussões a curto, médio e longo prazo(1111 Martsolf DS, Draucker CB, Brandau M. Breaking up is hard to do: how teens end violent dating relationships. AM Psychiatr Nurses Assoc [Internet]. 2013 [cited 2017 Jun 20]; 19(2):71-7. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23564747
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/2356...
). Essas mesmas normas sociais que influenciam as relações de poder estabelecidas entre homens e mulheres adultos, também foram identificadas nos relacionamentos afetivos e sexuais na adolescência. Nos discursos dos adolescentes, verificou-se que o órgão sexual masculino e o ato sexual aparecem como símbolos que representam instrumentos de dominação das meninas.

Observou-se, também, o reforço da posição de subalternidade feminina e a culpabilização das adolescentes pelas situações de violência. O papel social atribuído às mulheres é hegemonicamente estigmatizado, sendo responsável por determinar o controle e a condenação da sexualidade(1212 Peculero MA. “Prostitutas, infieles y drogadictas”: juicios y prejuicios de género en la prensa sobre las víctimas de feminicidio: el caso de Guerrero, México. Antipod Rev Antropol Arqueol [Internet]. 2014 [cited 2017 Jul 03];20:97-118. Available from: http://dx.doi.org/10.7440/antipoda20.2014.05
http://dx.doi.org/10.7440/antipoda20.201...
). Deste modo, as mulheres costumam ser culpabilizadas quando não apresentam um comportamento considerado socialmente adequado(1313 Araújo MJO, Simonetti MCM. Direitos Humanos e Gênero [Internet]. Curitiba: Terra Direitos; 2013 [cited 2017 Jun 20]. Available from: http://global.org.br/wp-content/uploads/2014/03/980_publicacao_questoes_genero.pdf
http://global.org.br/wp-content/uploads/...
).

Do mesmo modo, reconhece-se que também são atribuídos, socialmente, comportamentos específicos aos homens. Dentre as diversas características deles, destacam-se a força e a virilidade, sendo esta última vinculada a uma compreensão da relação sexual como necessidade biológica inerente ao masculino. Essa concepção constitui um solo fértil para a violência sexual, pois justifica e naturaliza esse tipo de violência, associando-a com um suposto instinto sexual dos homens(1414 Schleiniger CS, Strey MN. Violência & Gênero nas relações afetivo-sexuais entre adolescentes: enfrentamento intersetorial. Porto Alegre: PUCRS; 2016.).

Além de os papéis sociais masculinos e femininos serem determinantes para a VPI entre adolescentes, em alguns casos, as diferentes formas de violência são naturalizadas e romantizadas, pois atitudes e comportamentos violentos podem ser interpretados como uma expressão de romance e paixão(1515 Assis CL. “Entre tapas e beijos”: representações sociais sobre a violência de gênero para adolescentes. Psicol Saber Social [Internet]. 2013 [cited 2017 Jun 15]; 2(2):229-42. Available from: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/psi-sabersocial/article/view/8796
http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.p...
). Ao basear suas relações de intimidade no ideário do amor romântico, os adolescentes tendem a considerar atitudes violentas como demonstração de afeto e amor, acarretando em não percepção da violência, que passa a ser naturalizada nos seus relacionamentos(1414 Schleiniger CS, Strey MN. Violência & Gênero nas relações afetivo-sexuais entre adolescentes: enfrentamento intersetorial. Porto Alegre: PUCRS; 2016.).

Estudo desenvolvido em Curitiba, Brasil, junto a adolescentes com idade entre 15 e 19 anos, revelou que eles sofrem e perpetram violência, porém não a reconhecem como tal. Essa ausência de reconhecimento fundamenta-se em estereótipos de gênero que estabelecem, socialmente, os papéis de homens e mulheres nas relações de intimidade, compreendidos pelos adolescentes como intrínsecos a supostas naturezas feminina e masculina(22 Oliveira RNG, Gessner R, Brancaglioni BCA, Fonseca RMGS, Egry EY. Preventing violence by intimate partners in adolescence: an integrative review. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2016 [cited 2017 Jul 03]; 50(1):134-43. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v50n1/0080-6234-reeusp-50-01-0137.pdf
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).

Assim, a naturalização da violência revela-se nos discursos dos adolescentes na medida em que situações que remetem a comportamentos violentos não são problematizadas e são entendidas como aceitáveis em um relacionamento. Esse aspecto foi evidenciado, sobretudo, no discurso das meninas. Destaca-se, ainda, a aceitação de relações desiguais referentes aos direitos e preferências de cada um dos pares. Esse aspecto pode ser evidenciado nos discursos que abordam uma suposta autoridade concedida ao sexo masculino para tocar o corpo da parceira, sem permissão. Ao mesmo tempo, esses discursos negam às meninas o direito de expressar ou vivenciar seus desejos e preferências nos relacionamentos.

A submissão de gênero revelada nas falas das adolescentes é reforçada nos discursos das meninas, sendo caracterizada pela maior valoração das meninas quanto mais novas elas forem. A ideia da mulher “novinha”, apresenta-se no imaginário dos homens como alguém virgem, pura, intocável e frágil, sendo objeto de desejo masculino conquistá-la para valorizar sua masculinidade e virilidade. Esta ideação reafirma os estereótipos de gênero e as relações de poder e dominação entre mulheres e homens, imputando as adolescentes uma posição subalterna, a qual as torna mais vulneráveis à vitimização nas relações de intimidade.

Essa maior vulnerabilidade feminina pode ser evidenciada em resultado de pesquisa realizada com 1377 adolescentes em oito escolas públicas do Reino Unido. O estudo verificou que três quartos dos casos de violência sexual nos relacionamentos de intimidade sofridos por meninas foram perpetrados por parceiros mais velhos(1616 Barter C, McCarry M. Love, power and control: girl’s experiences of relationship exploitation and violence. In: Lombard N, McMillan L (Eds.). Violence against women: current theory and practice in domestic abuse, sexual violence and exploitation. London: Jessica Kingsley; 2013.).

Embora os comentários dos participantes reiterarem questões de gênero - que naturalizam as relações violentas e subalternizam as adolescentes - foi possível constatar, em parte dos discursos, um posicionamento voltado à autonomia das mulheres sobre seus corpos, o que remete à vivência dos direitos sexuais. Nos relatos, as adolescentes foram identificadas como responsáveis por decidirem acerca da iniciação sexual, porém, precisando ponderar diversos aspectos ao fazerem suas escolhas, visando evitar arrependimentos. No entanto, a valorização dos direitos sexuais das adolescentes se mostrou contraditória entre os participantes da pesquisa, fato associado a uma visão idealizada e pouco problematizada dos relacionamentos de intimidade.

A iniciação sexual é considerada, pelos adolescentes, como um marco nas suas histórias de vida, tendo motivações distintas de acordo com o gênero. Enquanto para as meninas a experiência sexual revela-se idealizada, devendo ocorrer no momento e na idade certos como consequência de um vínculo amoroso duradouro, para os meninos vincula-se a uma necessidade sexual que precisa ser saciada(1717 Borges ALV, Nakamura E. Social norms of sexual initiation among adolescents and gender relations. Rev Bras Enferm [Internet]. 2009 [cited 2017 Jun 15]; 17(1):94-100. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v17n1/15.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v17n1/15.p...
).

Salienta-se que a tomada de decisão para iniciar a vida sexual, além de sofrer interferência das questões de gênero, é influenciada e estimulada pelos pares, sobretudo quando a rede de amigos é formada por adolescentes que já mantém vida sexual ativa(1717 Borges ALV, Nakamura E. Social norms of sexual initiation among adolescents and gender relations. Rev Bras Enferm [Internet]. 2009 [cited 2017 Jun 15]; 17(1):94-100. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v17n1/15.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v17n1/15.p...
-1818 Santos TCMB, Albuquerque LBB, Bandeira CF, Colares VSA. Fatores que contribuem para o início da vida sexual de adolescentes: revisão integrativa. Rev Atenc Saúde [Internet]. 2015 [cited 2017 Jun 15]; 13(44):64-70. Available from: http://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_ciencias_saude/article/view/2668
http://seer.uscs.edu.br/index.php/revist...
). Considerando que “autonomia é a capacidade e as condições concretas que permitem às mulheres tomar livremente as decisões que afetam as suas vidas e o poder de agir segundo tais decisões”(1919 Guedes RN, Fonseca RMGS. Autonomy as a structural need to face gender violence. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2017 Jun 15];45(Esp.2):1730-4. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45nspe2/en_16.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45nspe2...
) questiona-se se, de fato, as adolescentes exercem autonomia na tomada de decisões quanto à iniciação sexual e à sexualidade. Apesar de na atualidade as mulheres possuírem maior liberdade para fazer suas escolhas sexuais e reprodutivas, estas ainda são pautadas pelas marcas identitárias de gênero, histórica e socialmente construídas.

Embora a percepção das adolescentes como protagonistas na vivência da sua sexualidade tenha sido evidenciada nos discursos, a análise também mostrou a coexistência de padrões de feminilidade e masculinidade que reproduzem os estereótipos sexistas presentes nas relações de intimidade . Esses padrões influenciam a compreensão dos adolescentes acerca dos diferentes papeis assumidos pelas figuras feminina e masculina que tomam como referência e reproduzem nas suas relações afetivo-sexuais. Desse modo, apesar de essa geração apresentar, até certo ponto, um discurso superador, centrado na autonomia feminina e no protagonismo no campo sexual, ainda reproduz os padrões de comportamento sexistas com os quais convivem na família e na sociedade, aspecto esperado, visto que nas transformações históricas sociais convivem o progresso e o retrocesso, dialeticamente.

Outro aspecto mencionado pelos participantes da pesquisa evidencia potencialidades para o enfrentamento da VPI na adolescência, bem como para identificação de atitudes permissivas para a perpetração desse fenômeno. Os adolescentes indicaram diferentes modos de enfrentamento dessas violações, destacando-se o diálogo e a agressão.

Corroborando esse resultado, uma pesquisa realizada na cidade de Brasília, Brasil, com alunos do primeiro ano do ensino médio de uma escola pública, revelou que os adolescentes reconhecem como formas de enfrentamento da violência nas relações afetivo-sexuais o término do relacionamento, a negociação, a violência e a resignação(2020 Murta SG, Santos BRP, Nobre LA, Araújo IF, Miranda AAV, Rodrigues IO, et al. Prevenção à violência no namoro e promoção de habilidades de vida em adolescentes. Psicol USP [Internet]. 2013 [cited 2017 Jun 15]; 24(2):263-88. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642013000200005
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642013...
). Em se tratando da resposta à violência por meio da agressão, esse dado também foi evidenciado em estudo desenvolvido junto a adolescentes afro-americanos economicamente desfavorecidos, os quais revelaram presença de reciprocidade da VPI entre adolescentes(2121 Landor AM, Hurt TR, Futris T, Barton AW, McElroy SE, Sheats K. Relationship contexts as sources of socialization: an exploration on intimate partner violence experiences of economically disadvantaged African American adolescents. J Child Fam Stud [Internet]. 2017 [cited 2017 Jul 12];26:1274-84. Available from: https://link.springer.com/article/10.1007/s10826-016-0650-z
https://link.springer.com/article/10.100...
).

Outra forma de manejo relatada pelos participantes do presente estudo foi acionar a sua rede de apoio - representada pelos pais e amigos -, polícia, bem como psicólogos para ajudar no enfrentamento das situações de violência de seus relacionamentos. Esses mesmos mecanismos de apoio também foram apontados por outros autores, sendo os amigos os mais acionados pelos adolescentes(2222 Soares JSF, Lopes MJM, Njaine K. Violência nos relacionamentos afetivo-sexuais entre adolescentes de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil: busca de ajuda e rede de apoio. Cad Saúde Pública [Internet]. 2013 [cited 2017 Jul 08]; 29(6):1121-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2013000600009
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2013...

23 Moore A, Sargenton KM, Ferranti D, Gonzalez-Guarda RM. Adolescent dating violence: supports and Barriers in accessing services. J Community Health Nurs[Internet]. 2015 [cited 2017 Jun 15]; 31(1):39-52. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25674973
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/2567...
-2424 Helm S, Baker CK, Berlin J, Kimura S. Getting In, Being In, Staying In, and Getting Out: Adolescents Descriptions of Dating and Dating Violence. Youth Soc [Internet]. 2017 [cited 2017 Jun 15]; 49(3):318-40. Available from: http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/0044118X15575290
http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1...
). Destaca-se que a procura por amigos é justificada, sobretudo, pelas características de empatia, aconchego, manutenção de segredo e postura de não julgamento(2525 Madkour AS, Swiatlo A, LeSar K, Broussard M, Kendall C, Seal D. Sources of help for dating violence victims: a qualitative inquiry into the perceptions of African American teens. J Interpers Violence [Internet]. 2016 [cited 2017 Jul 08];1-17. Available from: http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0886260516675467
http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1...
).

Sobre a busca por profissionais especializados, como psicólogos, os participantes apontaram a importância desse apoio, tanto para a vítima, quanto para o perpetrador da violência. Referente à busca por ajuda para as vítimas, um estudo realizado com 518 adolescentes de diferentes etnias, residentes na Carolina do Sul, Estados Unidos da América, verificou que 50% dos participantes relataram elevada intenção para buscar o apoio informal e de serviços diante de uma situação de violência no namoro, sendo as adolescentes mulheres mais propensas à procura de ajuda(2626 Hedge JM, Flege MDH, McDonell JR. Promoting informal and professional help-seeking for adolescent dating violence. J. Community Psychol [Internet]. 2017 [cited 2017 Jul 08];45:500-12. Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/jcop.21862/abstract
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.10...
).

No caso de assistência psicológica para o perpetrador, nos relatos, esse apoio tinha o intuito de fazê-lo conhecer a si e, com isso, aprender a controlar sentimentos e impulsos capazes de desencadear atitudes violentas. Esse dado apresenta-se como relevante e pode estar associado com a ideia de buscar o enfrentamento dos determinantes e não somente das consequências da VPI.

A análise dos dados, em conjunto, revelou que alguns jogadores assumiram no jogo uma postura violenta e opressora em toda a interação, recebendo muitas avaliações negativas pelos pares. Esse aspecto, ao mesmo tempo em que revela um potencial de reconstrução de conhecimentos e atitudes pela interação, levanta a hipótese de que esta também poderia ser uma “estratégia de jogo” adotada por esses participantes, na qual assumem um personagem e simulam suas opiniões com o intuito de gerar polêmica e provocar os pares.

Por outro lado, a análise revelou que algumas respostas traziam conteúdos violentos explícitos - a exemplo de:

É bom pra você ter o pênis torto [por] que é melhor pra machucar as mulheres! (M1)

Tacava o piru nas novinha. (M4)

Estas não foram comentadas e nem avaliadas por outros jogadores até a data de término da análise desta fase da pesquisa. Esse aspecto leva a questionar se esse “silêncio” dos jogadores frente a tais atitudes seria a naturalização e aceitação da violência ou não refletiria um alto grau de incômodo e recusa a essas opiniões ou posturas.

Limitações do estudo

As limitações deste estudo dizem respeito ao fato de os resultados permitirem uma análise de um curto período de tempo, somente em uma escola. Além disso, os adolescentes acessaram o jogo em uma fase na qual havia poucos sujeitos cadastrados utilizando o dispositivo, o que pode ter comprometido a interação entre os jogadores e a sua evolução no jogo. Outro fator limitante foi que, apesar de o jogo permitir a interpretação das questões a partir de relações homoafetivas, nesse grupo de jogadores, não foi detectado esse resultado, impossibilitando a analisar VPI em relacionamentos entre adolescentes do mesmo sexo. Em futuros estudos de aplicação do jogo estima-se a interação entre grupos heterogêneos, provenientes de diferentes cenários e em um maior período de tempo.

Contribuições para área da saúde

A partir da análise apresentada, constatou-se que o jogo Papo Reto - enquanto dispositivo lúdico - traz como possibilidade a captação de temas que podem traduzir necessidades, vulnerabilidades e também potenciais de desgaste e fortalecimento da realidade dos adolescentes, sobretudo, nas relações de intimidade. O posicionamento contrário à violência e o reconhecimento dos direitos sexuais, apareceram como potencialidades nos discursos dos adolescentes e podem significar possibilidade de transformação, visto que esses discursos são compartilhados no jogo pela interação com os pares, mobilizando a construção do conhecimento nessa temática.

As vulnerabilidades que emergem da análise dos discursos revelam necessidades de intervenções nesse campo, principalmente relacionadas ao conhecimento em relação à determinação da violência. Essas intervenções devem possibilitar a superação de compreensões ideológicas que naturalizam a violência ou culpabilizam às vítimas, assim como o reconhecimento da violência e suas diferentes formas de manifestação e possibilidades de enfrentamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conteúdo discursivo produzido pelos comentários dos adolescentes que utilizaram o jogo online Papo Reto revelou posicionamentos sobre a VPI. Evidenciaram percepções contraditórias em relação ao fenômeno, uma vez que corroboraram estereótipos de gênero, ao mesmo tempo em que manifestaram atitudes e comportamentos que podem oportunizar a superação do problema e o direito à autonomia.

Apesar de os discursos apontarem para possibilidades de superação, os resultados evidenciam a necessidade de problematizar a temática sob a ótica de gênero, no sentido de promover a reflexão acerca da determinação histórica e social dos fenômenos que determinam a VPI entre adolescentes. A despeito da potencialidade do uso do jogo para permitir a construção do conhecimento e transformação de atitudes, entende-se que a diversidade de percepções dos adolescentes sobre a temática da VPI e a perpetuação de características, que demonstram a sua naturalização apontam para a necessidade de intervenções que, aliadas ao uso do jogo, podem promover a vivência da sexualidade de forma não violenta.

A compreensão da VPI dos adolescentes demanda da articulação das categorias sociais alquimizadas. Para a abordagem dessa problemática, deve-se privilegiar a inserção social desse grupo e as relações de poder estabelecidas pelas desigualdades de gênero veiculadas, vivenciadas e naturalizadas por essa geração, as quais determinam diferentes potencialidades e vulnerabilidades na vivência de relacionamentos saudáveis e livres de violência.

  • FOMENTO
    Este artigo é resultado de projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo 2013/06796-1.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2017
  • Aceito
    09 Nov 2017
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