Acessibilidade / Reportar erro

Cuidado a famílias após perda por suicídio: experiência de acadêmicos de enfermagem

RESUMO

Objetivo:

Compreender como os acadêmicos de enfermagem vivenciam o processo de cuidar de famílias enlutadas após uma perda por suicídio, identificar os significados da experiência e construir um modelo teórico.

Método:

Estudo qualitativo que utilizou interacionismo simbólico e teoria fundamentada nos dados. Foram realizadas entrevistas abertas com 16 acadêmicos de enfermagem. Os dados foram analisados conforme o método comparativo constante.

Resultados:

O fenômeno buscando sua própria restauração para ajudar a família enlutada a seguir em frente é representado pelo modelo teórico composto pelas categorias: deparando-se com a tragédia na família, avaliando o cenário da assistência, mobilizando seus recursos internos, conduzindo o cuidado e refletindo sobre as repercussões da experiência.

Considerações finais:

O processo representa esforços empreendidos pelos estudantes na busca de sua restauração para oferecer o melhor cuidado à família, por meio de acolhimento, escuta, sensibilidade e flexibilidade, de modo a oportunizar que ela se fortaleça para planejar seu futuro.

Descritores:
Suicídio; Família; Pesar; Educação em Enfermagem; Atitude Frente à Morte

ABSTRACT

Objective:

To understand how the nursing academics experience the process of taking care of bereaved families after a suicide loss, to identify the meanings of the experience and to build a theoretical model.

Method:

Qualitative study that used symbolic interactionism and grounded theory. Open interviews were held with 16 nursing academics. Data were analyzed according to the constant comparative method.

Results:

The phenomenon seeking his/her own restoration to help the bereaved family to move on is represented by the theoretical model composed by the categories: facing the tragedy in the family, evaluating the caring scenario, mobilizing his/her internal resources, performing the care and reflecting on the repercussions of the experience.

Final considerations:

The process represents efforts undertaken by students in the pursuit of the family’s restoration to provide the best care toward them, through embracement, listening, sensitivity and flexibility, so it creates opportunities for the family to strengthen and plan their future.

Descriptors:
Suicide; Family; Grief; Education, Nursing; Attitude to Death

RESUMEN

Objetivo:

Comprender cómo los académicos de enfermería vivencian el proceso de cuidar de familias enlutadas después de una pérdida por suicidio, identificar los significados de la experiencia y construir un modelo teórico.

Método:

Estudio cualitativo que utilizó interaccionismo simbólico y teoría fundamentada en los datos. Se realizaron entrevistas abiertas con 16 académicos de enfermería. Los datos se analizaron según el método comparativo constante.

Resultados:

El fenómeno buscando su propia restauración para ayudar a la familia enlutada a seguir adelante, es representado por el modelo teórico compuesto por las categorías: enfrentándose con la tragedia en la familia, evaluando el escenario de la asistencia, movilizando sus recursos internos, conduciendo el cuidado y reflexionando sobre las repercusiones de la experiencia.

Consideraciones finales:

El proceso representa esfuerzos emprendidos por los estudiantes en la búsqueda de su restauración para ofrecer el mejor cuidado a la familia, por medio de acogida, escucha, sensibilidad y flexibilidad, de modo que se fortalezca para planificar su futuro.

Descriptores:
Suicidio; Familia; Pesar; Educación en Enfermería; Actitud Frente a la Muerte

INTRODUÇÃO

Crise suicida pode ser definida como uma situação de intensa perturbação emocional em decorrência de um acontecimento gerador de profunda dor psíquica no indivíduo(11 Botega NJ. Crise suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed; 2015.), sobressaindo-se o desejo de morrer e fazendo-o atentar contra sua vida. Desse modo, o suicídio trata-se de uma violência autoprovocada intencionalmente para que o indivíduo termine com sua própria vida(22 Organización Panamericana de la Salud. Prevención de la conducta suicida. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 2016.), enquanto a tentativa de suicídio diferencia-se somente pelo desenlace, que não ocasiona a morte(33 Bertolote JM, Mello-Santos C, Botega NJ. Detecting suicide risk in psychiatric emergency services. Rev Bras Psiquiatr[Internet]. 2010[cited 2016 May 17];32(2):87-95. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbp/v32s2/en_v32s2a05.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rbp/v32s2/en_v3...
).

No ano de 2012, ocorreram 800 mil mortes por suicídio no mundo, o que representa uma morte a cada 45 segundos e um coeficiente de 11,4 mortes para cada 100 mil habitantes(44 World Health Organization-WHO. Preventing suicide: a global imperative. Geneva: WHO; 2014.).

Os coeficientes mais elevados de suicídio encontram-se na Europa Oriental, Ásia e em alguns países da África e América Latina(11 Botega NJ. Crise suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed; 2015.). Entre 2000 e 2012, observou-se uma queda de 28% no coeficiente global de mortalidade por suicídio. Todavia, o Brasil faz parte dos 29 países dos 172 listados pela Organização Mundial da Saúde em que se constatou aumento neste índice, ocupando o 8º lugar entre os que registram maiores números absolutos de mortes por suicídio(44 World Health Organization-WHO. Preventing suicide: a global imperative. Geneva: WHO; 2014.).

Fatores de risco como sexo masculino, adultos jovens e idosos, transtornos mentais, desesperança, desamparo, história familiar de suicídio, instabilidade familiar e perda afetiva recente aumentam a probabilidade de alguém cometer suicídio(11 Botega NJ. Crise suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed; 2015.).

Em contrapartida, vários estudos recentes demonstram existir relação inversa entre comportamento suicida e fatores de proteção familiar como apoio, coesão e adaptação na família diante de momentos de crise(55 Rojas IG, Saavedra JE. Cohesión familiar e ideación suicida en adolescentes de la costa peruana en el año 2006. Rev Neuropsiquiatr[Internet]. 2014[cited 2015 Dec 13];77(4):250-61. Available from: http://www.scielo.org.pe/pdf/rnp/v77n4/a08v77n4.pdf
http://www.scielo.org.pe/pdf/rnp/v77n4/a...

6 Chau K, Kabuth B, Chau N. Gender and family disparities in suicide attempt and role of socioeconomic, school, and health-related difficulties in early adolescence. BioMed Res Int[Internet]. 2014[cited 2015 Dec 13];ID314521. Available from: https://www.hindawi.com/journals/bmri/2014/314521/
https://www.hindawi.com/journals/bmri/20...

7 You A, Chen M, Yang S, Zhou A, Qin P. Childhood adversity, recent life stressors and suicidal behavior in chinese college students. PLoS ONE[Internet]. 2014[cited 2015 Nov 6];9(3):e86672. Available from: http://journals.plos.org/plosone/article/file?id=10.1371/journal.pone.0086672&type=printable
http://journals.plos.org/plosone/article...
-88 Ortiz-Hernández L, Valencia-Valero RG. Disparidades en salud mental asociadas a la orientación sexual en adolescentes mexicanos. Cad Saúde Pública[Internet]. 2015[cited 2016 Sep 13];31(2):417-30. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csp/v31n2/0102-311X-csp-31-02-00417.pdf
http://www.scielo.br/pdf/csp/v31n2/0102-...
), inclusive envolvendo tentativas de suicídio entre crianças constantemente expostas a conflitos familiares que poderiam ser evitados ou abordados de maneira adequada(99 Santos RPM, Melo MCB. Tendencia suicida en niños accidentados. Psicol Ciênc Prof[Internet]. 2016[cited 2017 Mar 9];36(3):571-83. Available from: http://www.scielo.br/pdf/pcp/v36n3/1982-3703-pcp-36-3-0571.pdf
http://www.scielo.br/pdf/pcp/v36n3/1982-...
). Isso sinaliza a importância de maiores esforços preventivos considerando as famílias como contexto de atenção e cuidado(55 Rojas IG, Saavedra JE. Cohesión familiar e ideación suicida en adolescentes de la costa peruana en el año 2006. Rev Neuropsiquiatr[Internet]. 2014[cited 2015 Dec 13];77(4):250-61. Available from: http://www.scielo.org.pe/pdf/rnp/v77n4/a08v77n4.pdf
http://www.scielo.org.pe/pdf/rnp/v77n4/a...
), já que esse tipo de morte acarreta sofrimento mental intenso na família, podendo aumentar sua própria predisposição ao suicídio.

Dessa maneira, é importante reforçar que a morbimortalidade associada ao comportamento suicida, inclusive por parte de familiares, reflete impacto negativo sobre a saúde pública. No entanto, apesar de a Estratégia Nacional para Prevenção do Suicídio(1010 Brasil. Ministério da Saúde. Prevenção do Suicídio: manual dirigido a profissionais da atenção básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2009.) recomendar qualificação profissional para o manejo do impacto do evento na família, nota-se que os profissionais ainda se sentem limitados e inseguros ao lidar com essa situação(1111 Moraes SM, Magrini DF, Zanetti ACG, Santos MA, Vedana KGG. Attitudes and associated factors related to suicide among nursing undergraduates. Acta Paul Enferm[Internet]. 2016[cited 2017 Mar 9];29(6):643-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ape/v29n6/en_1982-0194-ape-29-06-0643.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ape/v29n6/en_19...
-1212 Carmona-Navarro MC, Pichardo-Martínez MC. Attitudes of nursing professionals towards suicidal behavior: influence of emotional intelligence. Rev Latino-Am Enfermagem[Internet]. 2012[cited 2015 Nov 6];20(6):1161-8. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n6/19.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n6/19.p...
).

Apesar desse panorama, até o momento não foram localizados estudos que focalizem a formação profissional em relação ao cuidado da família enlutada após o suicídio de um ente. Especificamente em relação às experiências de acadêmicos de enfermagem, pesquisas internacionais identificaram dificuldades inerentes à interação com o paciente suicida, como medo e falta de habilidade para coletar informações sobre o comportamento suicida e para desenvolver o raciocínio clínico a fim de fornecer intervenções terapêuticas(1313 Scheckel MM, Nelson KA. An interpretative study of nursing students’ experiences of caring for suicidal persons. J Prof Nurs[Internet]. 2014[cited 2015 Nov 6];30(5):426-35. Available from: http://www.professionalnursing.org/article/S8755-7223(14)00061-1/pdf
http://www.professionalnursing.org/artic...
), e verificaram a influência positiva de métodos ativos de ensino baseados em simulações no desempenho da avaliação do risco de suicídio(1414 Pullen JM, Gilie F, Tesar E. A descriptive study of baccalaureate nursing students’ responses to suicide prevention education. Nurs Educ Pract[Internet]. 2016[cited 2017 Feb 15];16(1):104-10. Available from: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1471595315001638
http://www.sciencedirect.com/science/art...
-1515 Luebbert R, Popkess A. The influence of teaching method on performance of suicide assessment in baccalaureate nursing students. J Am Psychiatr Nurses Assoc[Internet]. 2015[cited 2017 Mar 9];21(2):126-33. Available from: http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/1078390315580096
http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1...
).

Considerando o potencial do enfermeiro para oferecer cuidado às famílias – visto que é o profissional que mais tempo costuma passar com elas – e ponderando sobre a importância da adequada formação de acadêmicos de enfermagem para desempenhar esse papel, enfatiza-se a lacuna de conhecimento existente em relação à interação dos estudantes de enfermagem e a família que se encontra nessa situação, o que possibilitaria traçar estratégias de ensino/aprendizagem para melhor preparo desses estudantes.

Assim, questiona-se: Como ocorre o processo de cuidado oferecido por estudantes de enfermagem a famílias enlutadas após uma perda por suicídio?

OBJETIVO

Compreender como os acadêmicos de enfermagem vivenciam o processo de cuidar de famílias enlutadas após uma perda por suicídio, identificar os significados da experiência e construir um modelo teórico.

MÉTODO

Aspectos éticos

O projeto de pesquisa foi iniciado somente após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu, reconhecido pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) via Plataforma Brasil.

Os participantes foram convidados pessoalmente por uma das pesquisadoras e, em atendimento às normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos constantes na Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde(1616 Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 466/2012. Normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos[Internet]. 2012[cited 2017 Mar 9]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
), esclareceram-se os objetivos e procedimentos do estudo, a garantia de sigilo, o direito ao anonimato, o acesso livre às gravações e transcrições das entrevistas concedidas (sendo possível acrescentar ou corrigir informações) e sobre a liberdade em participar ou não da pesquisa. Cada participante assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, recebendo uma via do referido documento.

Tipo de estudo e referencial teórico-metodológico

Trata-se de um estudo analítico, de abordagem qualitativa, iluminado sob a perspectiva teórica do Interacionismo Simbólico, cujo pressuposto enfatiza a natureza interativa das experiências humanas(1717 Charon JM. Symbolic interactionism: an introduction, an interpretation, an integration. 10th ed. New Jersey: Pearson Prentice Hall; 2010.). Dessa forma, o referencial teórico auxiliou na compreensão da experiência de acadêmicos de enfermagem sobre o processo de cuidado oferecido às famílias enlutadas após uma perda por suicídio, uma vez que esta envolve significados e estratégias que facilitam ou dificultam a interação dos estudantes com a família.

Como método, utilizou-se a Teoria Fundamentada nos Dados, que possibilita coletar e analisar dados simultaneamente. A exploração detalhada de dados sistematicamente reunidos gera um conjunto de categorias bem desenvolvidas e inter-relacionadas para formar um modelo teórico capaz de otimizar a compreensão sobre a experiência e fornecer diretrizes para ação(1818 Strauss A, Corbin J. Basics of qualitative research: techniques and procedures for developing grounded theory. Thousand Oaks, CA: Sage; 2015.).

Procedimentos metodológicos

Para assegurar o rigor e a credibilidade da pesquisa utilizou-se o checklist que compõe o Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ), constituído por 32 itens que auxiliam a descrição de aspectos importantes referentes à equipe de pesquisadores, ao desenho do estudo e à análise de dados em pesquisas qualitativas(1919 Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ):a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care[Internet]. 2007[cited 2015 Dec 13];19(6):349-57. Available from: https://academic.oup.com/intqhc/article-lookup/doi/10.1093/intqhc/mzm042
https://academic.oup.com/intqhc/article-...
), conforme descrição subsequente.

Cenário do estudo e fonte de dados

O estudo foi realizado em uma instituição de ensino superior privada localizada no interior do estado de São Paulo, que oferece, dentre outros, o curso de graduação em enfermagem com duração de quatro anos. No ano em que foi iniciada a coleta de dados, 64 alunos estavam matriculados no 1º ano, 48 alunos no 2º, 33 alunos no 3º e 30 alunos no 4º ano da graduação.

Participaram da pesquisa alunos de graduação em enfermagem que atenderam aos critérios de inclusão: ter idade a partir de 18 anos, estar matriculado no 3º ou 4º ano do curso e ter vivenciado situações de cuidado à família após suicídio de um ente, seja por meio de práticas realizadas durante os estágios curriculares ou ao longo do projeto de extensão na área de assistência a famílias após crise suicida de um ente mantido pela instituição de ensino em parceria com o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) de Botucatu, município com taxas de tentativas e de suicídio mais elevadas em relação à média nacional(2020 Bertolote JM. Why is Brazil losing the race against youth suicide? Rev Bras Psiquiatr[Internet]. 2012[cited 2015 Dec 13];34(3):245-6. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbp/v34n3/v34n3a03.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rbp/v34n3/v34n3...
).

Todos os 16 alunos convidados intencionalmente (dez matriculados no 3º ano e seis matriculados no 4º ano do curso), conforme os critérios de inclusão apresentados, concordaram em participar e compuseram a amostra da pesquisa, sendo seis homens e dez mulheres, com idades entre 22 e 35 anos. Onze eram católicos, dois evangélicos, dois espíritas e um budista. Essa amostra foi definida pelo critério da saturação teórica, quando os conceitos e as categorias identificadas foram melhor clarificadas e à medida que mais nenhum novo dado foi descoberto(1818 Strauss A, Corbin J. Basics of qualitative research: techniques and procedures for developing grounded theory. Thousand Oaks, CA: Sage; 2015.).

O primeiro grupo amostral foi formado por nove alunos que tinham experiência profissional prévia na área da saúde, ou seja, trabalharam na área antes de ingressar no curso de graduação em enfermagem (sete técnicos de enfermagem, um fisioterapeuta e um agente de saúde), buscando maior aproximação com o fenômeno estudado e a formação de categorias que direcionariam o segundo grupo amostral, formado por sete alunos sem qualquer tipo de experiência profissional prévia na área da saúde ao ingressar na graduação.

Coleta e organização dos dados

Os dados foram coletados no período compreendido entre maio de 2014 a abril de 2015 na própria instituição pesquisada, em períodos que antecediam as atividades acadêmicas, conforme preferência dos participantes. As pesquisadoras que conduziram o estudo eram doutoras na área de enfermagem, com experiência e capacitação na temática e na metodologia adotada.

Foram conduzidas entrevistas audiogravadas, com duração entre 25 e 50 minutos, a partir da questão disparadora: Conte-me uma situação na qual você teve a oportunidade de cuidar de uma família após uma perda por suicídio. Como foi para você cuidar dessa família?

Cada participante foi entrevistado uma única vez e, após toda entrevista, foram elaboradas notas de observação com pensamentos analíticos, questões a serem melhor compreendidas e reações emocionais dos participantes.

Análise dos dados

Todas as entrevistas foram transcritas integralmente e analisadas conforme o método comparativo constante entre categorias, preconizado pela Teoria Fundamentada nos Dados, buscando-se similaridades e diferenças que evidenciaram propriedades e dimensões, possibilitando a conceitualização teórica(1818 Strauss A, Corbin J. Basics of qualitative research: techniques and procedures for developing grounded theory. Thousand Oaks, CA: Sage; 2015.). Esse método é formado por três etapas analíticas. Na primeira, codificação aberta, o texto transcrito foi fragmentado em trechos e examinado linha por linha, gerando códigos que agrupados formaram categorias e subcategorias. Na segunda, codificação axial, as categorias foram relacionadas às suas subcategorias para explicar de modo preciso e completo os fenômenos. Nessa etapa, adotou-se o esquema denominado paradigma para organizar e classificar as conexões emergentes entre as categorias, apresentando como componentes básicos: condições causais, contexto, condições interventoras, estratégias de ação/interação e consequências. Já na terceira etapa, codificação seletiva, houve integração e refinamento da teoria(1818 Strauss A, Corbin J. Basics of qualitative research: techniques and procedures for developing grounded theory. Thousand Oaks, CA: Sage; 2015.). A partir daí, identificou-se o fenômeno, representado por uma categoria central, e a teoria fundamentada nos dados foi apresentada por meio da redação de um enredo, no qual as categorias e subcategorias foram exibidas em itálico para explicar o modelo teórico representativo do processo. O diagrama que representa o modelo teórico foi validado por dois alunos participantes da pesquisa, um de cada grupo amostral, escolhidos aleatoriamente, e foi considerado expressivo em relação à experiência de cuidar de famílias enlutadas após o suicídio de um ente.

RESULTADOS

A análise dos dados guiada pelo referencial teórico-metodológico possibilitou a compreensão de como os acadêmicos de enfermagem vivenciam o processo de cuidar de famílias enlutadas após uma perda por suicídio. O fenômeno foi retratado pela categoria central buscando sua própria restauração para ajudar a família enlutada a seguir em frente e pelas cinco categorias que se inter-relacionam e foram organizadas conforme os passos da Teoria Fundamentada nos Dados(1818 Strauss A, Corbin J. Basics of qualitative research: techniques and procedures for developing grounded theory. Thousand Oaks, CA: Sage; 2015.), representando os significados simbólicos da experiência: deparando-se com a tragédia na família (causa), avaliando o cenário da assistência (contexto), mobilizando seus recursos internos (condições interventoras), conduzindo o cuidado (estratégias) e refletindo sobre as repercussões da experiência (consequências).

O processo de cuidar de famílias enlutadas após o suicídio de um ente envolve a dinâmica entre a constatação de que o acadêmico está diante de uma situação trágica, o questionamento sobre a assistência oferecida à família no momento da crise, as ações idealizadas e empreendidas para prestar o melhor cuidado à família e as considerações sobre as consequências desse cuidado para o estudante.

No modelo teórico proposto (Figura 1) é possível analisar a integração entre as categorias e a articulação com a categoria central, representando a experiência de acadêmicos de enfermagem nessa situação específica.

Figura 1
Diagrama representativo do modelo teórico buscando sua própria restauração para ajudar a família enlutada a seguir em frente

Buscando sua própria restauração para ajudar a família enlutada a seguir em frente é o fenômeno apreendido e acontecimento central no qual as ações e interações empreendidas pelo estudante de enfermagem no cuidado à família estão conectadas. Durante a experiência de cuidar de famílias enlutadas após uma perda por suicídio, o estudante sente necessidade de buscar sua própria restauração, pois também se percebe impactado pela tragédia familiar, para então ser capaz de cuidar adequadamente dessas famílias.

A experiência se inicia com o estudante deparando-se com a tragédia na família, refletindo as causas que ocasionaram o aparecimento do fenômeno. A princípio, o estudante vai reconhecendo o impacto do suicídio sobre a família conforme verifica que este é, de fato, uma situação real e definitiva: a família perdeu seu ente após o suicídio. Diante dessa circunstância, o estudante avalia que a família está abalada e isso ocasiona, além de intenso sofrimento emocional expresso pela perda e pelo sentimento de culpa, repercussões na saúde física dos familiares. Percebendo as singularidades de cada família diante da tragédia, o estudante identifica que enquanto algumas famílias reagem a partir da necessidade de verbalizar seu sofrimento, outras sentem o desejo de atravessar esse momento inicial com períodos de introspecção e reflexão, impulsionadas pelo sentimento de vergonha devido à conjuntura da morte e pela raiva por terem perdido seu ente querido.

Nessa ocasião, o estudante vai se sentindo impressionado ao se aproximar da história da família. Sente-se perplexo à medida que a família lhe relata as circunstâncias da morte de seu ente, bem como os meios utilizados para acabar com a vida.

O impacto ao se aproximar da história da família conduz o estudante a buscar justificativas para o ocorrido e, para tanto, ele realiza seu próprio julgamento, procurando identificar padrões do funcionamento familiar que possam estar relacionados à tragédia. Quando identifica uma família como disfuncional, por exemplo, por apresentar padrões inadequados de comunicação entre seus integrantes, reflete sobre a relação desse comportamento com o suicídio ocorrido.

Contudo, o estudante ainda vivencia o início da experiência avaliando a necessidade de cuidar profissionalmente da família, para fortalecer o potencial de apoio mútuo entre seus integrantes: está consciente de que houve uma perda importante para a família e que esta apresenta dificuldades em aceitar essa morte trágica. As dificuldades são observadas por meio da expressão de sentimentos de revolta e negação na família, identificados pelo estudante como pertencentes ao processo de luto familiar.

Buscando sua própria restauração para ajudar a família enlutada a seguir em frente, o estudante tem consciência que sofreu grande impacto não somente pelo conhecimento das circunstâncias da morte por suicídio, mas também avaliando o cenário da assistência, contexto hostil no qual o fenômeno de cuidar da família enlutada acontece. Em relação a isso, o estudante percebe que sua interação com a família enlutada ocorre em um cenário marcado por uma agressividade além daquela própria da morte por suicídio. Percebendo a falta de uma diretriz para a assistência à família, apesar de ter conhecimento de que tentativas e suicídio são um fenômeno cada vez mais crescente, ele observa nos serviços de saúde, inclusive nos de emergência, que os profissionais desconhecem como conduzir a assistência aos familiares após a constatação da morte de seu ente.

Observa a atuação dos profissionais enquanto ainda buscam, sem sucesso, salvar a vida do paciente que tentou suicídio e, reconhecendo haver mais preocupação com os aspectos biológicos e burocráticos da assistência, percebe que são priorizados os cuidados clínicos ao paciente. Em termos de assistência às famílias, o estudante observa que quando o profissional nota sua presença realiza a aferição da pressão arterial e, se necessário, administra algum anti-hipertensivo ou antidepressivo, fornece informações referentes à liberação do corpo para a funerária ou solicita a avaliação do psiquiatra e, em seu entendimento, esta seria uma oportunidade para oferecer algum tipo de cuidado, mais humano e acolhedor, voltado aos familiares.

O estudante ainda evidencia uma assistência fragmentada à família, pois no contexto do serviço de emergência percebe que apenas o psiquiatra, quando solicitado, se responsabiliza por conversar com os familiares após a morte do ente. Além disso, acredita que no âmbito da atenção primária à saúde os profissionais não conheçam integralmente o caso e não saibam nem se a família pode estar precisando de algum tipo de assistência.

Nesse cenário de cuidado, a pouca aproximação da equipe de saúde à família é permeada por certa agressividade e, incomodando-se com a falta de sensibilidade dos profissionais, o estudante presencia comentários provocativos em relação aos pacientes que atentaram contra a própria vida: durante os cuidados clínicos realizados na tentativa de que não morram, os profissionais sugerem o que os pacientes poderiam ter feito para, de fato, obterem êxito em seu desejo de morrer. Para o estudante, a família sente esse clima de desrespeito e falta de compromisso com seu sofrimento. Quando mesmo após as manobras de investimento para salvá-lo, o paciente morre, o estudante, sentindo-se constrangido com as atitudes dos profissionais, reconhece que não há muito a ser feito enquanto aluno de graduação em estágio diante dos comentários jocosos e da falta de consideração com a família diante da perda de um ente, só lhe restando acatar com muito constrangimento essa hostil situação no momento.

A agressividade que permeia a morte por suicídio e o cenário de hostilidade onde comumente ocorre a interação com a família impactam profundamente o estudante. A tragédia familiar propicia ao estudante entrar em contato com suas próprias vivências trágicas e, mobilizando seus recursos internos, ele expressa sua história, experiências anteriores, sentimentos e crenças que funcionam como condições interventoras capazes de influenciar o impacto sobre a experiência de cuidar da família enlutada. Esse é o componente do processo que habilita o estudante a vivenciar o fenômeno buscando sua própria restauração para ajudar a família enlutada a seguir em frente.

O estudante ainda se reconhece como um sobrevivente de suicídio, tendo vivenciado no passado a perda de um familiar ou uma pessoa próxima de seu convívio por essa causa. Essa experiência possibilita uma atividade mental intensa na qual o estudante interage consigo mesmo, o que lhe oportuniza colocar-se no lugar da família que acabou de perder um ente, expressando medo diante de seus próprios pensamentos de morte e suicídio e se amparando em suas crenças religiosas para entender melhor suas tragédias e as tragédias da família. Diante dessa atividade mental, o estudante reage apresentando divergências entre seus pensamentos, já que em alguns momentos censura a morte por suicídio e em outros o reconhece como consequência de um adoecimento mental.

Buscando sua própria restauração para ajudar a família enlutada a seguir em frente, o estudante, mesmo impactado, em resposta às suas reflexões, acredita ser capaz de empreender estratégias de ação e interação conduzindo o cuidado, ainda que nesse processo se depare com barreiras que podem influenciar sua ação. Delineando o melhor cuidado, apesar de valorizar o trabalho em equipe, o estudante ressalta o enfermeiro como o profissional mais capacitado para interagir com a família, por suas habilidades de acolhimento, escuta, sensibilidade e flexibilidade e por normalmente estar mais próximo desta, sendo capaz de prevenir um sofrimento maior, o que pode facilitar o planejamento da vida familiar após a perda.

No entanto, ao constatar a proximidade do momento de agir e interagir com a família, o estudante vai admitindo suas barreiras pessoais ao passo que se percebe apreensivo no início da interação por não saber ao certo como agir, reconhecendo que ainda não teve muitas oportunidades de cuidar de famílias nessa situação específica. Ainda assim, movido pelo desejo genuíno de ajudar e a fim de cumprir os requisitos do estágio, o estudante age cuidando para que a família siga em frente por meio de ações que visam fortalecê-la e garantir que se mantenha física e mentalmente saudável, vislumbrando um futuro mesmo após a perda de seu ente. O estudante considera importante apoiar a família, mantendo um relacionamento de confiança a fim de ampará-la na busca de um sentido para o ocorrido e para a vida após o suicídio de um de seus integrantes. A partir daí, identifica o apoio emocional como a principal necessidade da família, procurando então agir com compaixão e solidariedade perante seu sofrimento.

Buscando sua própria restauração para ajudar a família enlutada a seguir em frente, o estudante reconhece as consequências do processo de cuidar de famílias enlutadas após uma perda por suicídio e se vê refletindo sobre as repercussões de sua experiência. Durante o processo em que o estudante encontra-se muito próximo à tragédia familiar, ele vai elaborando ideias de horror sobre a morte trágica em seus pensamentos, principalmente após desempenhar o cuidado, revivendo os relatos da família e imaginando como teria acontecido a morte, o que o deixa profundamente angustiado. Ainda assim, ele é capaz de avaliar seu desempenho junto à família e reconhece que, apesar de ter sido possível desempenhar o cuidado, gostaria de se sentir mais preparado, sugerindo melhorias para sua formação profissional. Perante a sensação de angústia e despreparo, o estudante assume sua própria necessidade de cuidado para se restaurar diante desse processo, sinalizando a necessidade de suporte emocional, espiritual e apoio permanente do docente, antes, durante e após a experiência. É importante salientar que apenas mediante essa restauração é possível oferecer o melhor cuidado às famílias enlutadas após o suicídio de um ente.

DISCUSSÃO

O modelo teórico construído permite visualizar a interação entre as categorias de modo contínuo durante o processo, possibilitando diferentes caminhos para o estudante em sua trajetória de cuidar de famílias enlutadas após o suicídio de um ente, a depender das mudanças no contexto ou nas condições presentes. Com isso, as reflexões sobre a morte por suicídio podem ocorrer após a aproximação da tragédia, quando o estudante passa a conhecer a história familiar. No entanto, ele também pode realizar essas reflexões continuamente, durante toda a experiência.

Buscando sua própria restauração para ajudar a família enlutada a seguir em frente, o estudante tem consciência de que necessita se restaurar, pois a tragédia da família o aproxima de suas próprias adversidades – vivências, sentimentos e crenças que fazem com que se sinta amedrontado e apreensivo. Sob seu ponto de vista, consegue restaurar-se por meio de suporte emocional, espiritual e apoio docente e acredita que somente assim é capaz de cuidar adequadamente da família, de modo que ela consiga seguir em frente, apesar da morte de seu ente querido.

O primeiro impacto evidenciado na experiência diz respeito não somente ao fato de o estudante conhecer as circunstâncias da morte, mas também ao funcionamento familiar percebido como inadequado, o que faz com que o estudante, internamente, culpe a família pelo suicídio. Esse julgamento por parte do estudante pode ser justificado pelo fato de culturalmente, entre todos os tipos de morte, o suicídio ser o que com mais intensidade questiona o funcionamento familiar(2121 Imaz JAG. Familia, suicidio y duelo. Rev Colomb Psiquiat[Internet]. 2013[cited 2015 Feb 13];43(S1):71-9. Available from: http://www.scielo.org.co/pdf/rcp/v42s1/v42s1a10.pdf
http://www.scielo.org.co/pdf/rcp/v42s1/v...
).

De fato, é difícil a família não se sentir responsável pela morte de seu ente(1111 Moraes SM, Magrini DF, Zanetti ACG, Santos MA, Vedana KGG. Attitudes and associated factors related to suicide among nursing undergraduates. Acta Paul Enferm[Internet]. 2016[cited 2017 Mar 9];29(6):643-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ape/v29n6/en_1982-0194-ape-29-06-0643.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ape/v29n6/en_19...
,2121 Imaz JAG. Familia, suicidio y duelo. Rev Colomb Psiquiat[Internet]. 2013[cited 2015 Feb 13];43(S1):71-9. Available from: http://www.scielo.org.co/pdf/rcp/v42s1/v42s1a10.pdf
http://www.scielo.org.co/pdf/rcp/v42s1/v...
) e a culpa é vivenciada por ela de forma dilacerante, por sentir que deveria ter feito algo para evitar a morte e não o fez(2121 Imaz JAG. Familia, suicidio y duelo. Rev Colomb Psiquiat[Internet]. 2013[cited 2015 Feb 13];43(S1):71-9. Available from: http://www.scielo.org.co/pdf/rcp/v42s1/v42s1a10.pdf
http://www.scielo.org.co/pdf/rcp/v42s1/v...
). Nesse sentido, a adequada formação deve focalizar habilidades que visem uma abordagem integral, segura e terapêutica, isenta de julgamentos morais(1111 Moraes SM, Magrini DF, Zanetti ACG, Santos MA, Vedana KGG. Attitudes and associated factors related to suicide among nursing undergraduates. Acta Paul Enferm[Internet]. 2016[cited 2017 Mar 9];29(6):643-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ape/v29n6/en_1982-0194-ape-29-06-0643.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ape/v29n6/en_19...
,1313 Scheckel MM, Nelson KA. An interpretative study of nursing students’ experiences of caring for suicidal persons. J Prof Nurs[Internet]. 2014[cited 2015 Nov 6];30(5):426-35. Available from: http://www.professionalnursing.org/article/S8755-7223(14)00061-1/pdf
http://www.professionalnursing.org/artic...
,2222 Botti NCL, Araújo LMC, Costa EE, Machado JSA. Nursing students attitudes across the suicidal behavior. Invest Educ Enferm[Internet]. 2015[cited 2017 Mar 9];33(2):334-42. Available from: http://www.scielo.org.co/pdf/iee/v33n2/v33n2a16.pdf
http://www.scielo.org.co/pdf/iee/v33n2/v...
).

No entanto, ao entrar em contato com o cenário hostil do cuidado, o estudante se incomoda com a falta de preparo e sensibilidade dos profissionais ao abordarem não somente a família, mas o paciente, na tentativa de reverter as lesões autoflingidas.

Constata-se também na literatura que profissionais apresentam com frequência falta de habilidades interpessoais e atitudes estigmatizantes perante crises suicidas(1212 Carmona-Navarro MC, Pichardo-Martínez MC. Attitudes of nursing professionals towards suicidal behavior: influence of emotional intelligence. Rev Latino-Am Enfermagem[Internet]. 2012[cited 2015 Nov 6];20(6):1161-8. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n6/19.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n6/19.p...
). Nesse sentido, a formação acadêmica voltada para trabalhar o preconceito e a visão negativa que cercam o suicídio na sociedade é uma ferramenta fundamental para facilitar o conhecimento sobre a temática(2222 Botti NCL, Araújo LMC, Costa EE, Machado JSA. Nursing students attitudes across the suicidal behavior. Invest Educ Enferm[Internet]. 2015[cited 2017 Mar 9];33(2):334-42. Available from: http://www.scielo.org.co/pdf/iee/v33n2/v33n2a16.pdf
http://www.scielo.org.co/pdf/iee/v33n2/v...
), com potencial para transformar esse cenário marcado pelo despreparo profissional.

Outro ponto a ser destacado é o fato de o estudante, após intensa atividade mental que lhe possibilita interagir com seu self(1616 Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 466/2012. Normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos[Internet]. 2012[cited 2017 Mar 9]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
), identificar-se com a experiência da família. É importante o docente trabalhar os sentimentos de identificação de modo consciente, já que essa contratransferência apresenta significado importante dentro do contexto de cuidar, ajudando-o a entender as experiências mais obscuras da família. No entanto, se essa identificação não estiver na consciência, pode acarretar sentimentos e ações destrutivas(11 Botega NJ. Crise suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed; 2015.).

Essa atividade mental ainda coloca o estudante diante de seus próprios pensamentos suicidas. Estudos que buscaram identificar conduta suicida ao longo da vida entre estudantes de nutrição(2323 Perales A, Sánchez E, Parhuana A, Carrera R, Torres H. Conducta suicida en estudiantes de la escuela de nutrición de una universidad pública peruana. Rev Neuropsiquiatr[Internet]. 2013[cited 2015 Dec 15];76(4):231-5. Available from: http://www.upch.edu.pe/vrinve/dugic/revistas/index.php/RNP/article/view/1172
http://www.upch.edu.pe/vrinve/dugic/revi...
) e enfermagem(2424 Leal SC, Santos JC. Suicidal behaviors, social support and reasons for living among nursing students. Nursing Educ Today[Internet]. 2016[cited 2017 May 22];36:434-8. Available from: http://www.nurseeducationtoday.com/article/S0260-6917(15)00398-6/pdf
http://www.nurseeducationtoday.com/artic...
) apontam não apenas a ocorrência de pensamentos suicidas, mas também ideação e tentativas de suicídio. Isso sinaliza a importância da preocupação constante com a formação e também com a restauração do bem-estar desses futuros profissionais, durante e após a experiência intensa de cuidar no contexto da crise suicida.

Por outro lado, identificar-se com a família aproxima o estudante de sua experiência e faz com que acredite ser capaz de ajudá-la. A partir da atividade mental realizada, ele identifica as habilidades importantes para a ação(1616 Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 466/2012. Normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos[Internet]. 2012[cited 2017 Mar 9]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
) e reconhece o enfermeiro como fundamental na prestação do cuidado à família nessa situação. Estudos corroboram com a concepção de que tanto o enfermeiro como os outros profissionais da área da saúde são capazes de compreender e ajudar o paciente e a família, desde que sejam adequadamente preparados, saibam ouvir atenciosamente e forneçam suporte para minimizar o sofrimento e o desespero familiar(1111 Moraes SM, Magrini DF, Zanetti ACG, Santos MA, Vedana KGG. Attitudes and associated factors related to suicide among nursing undergraduates. Acta Paul Enferm[Internet]. 2016[cited 2017 Mar 9];29(6):643-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ape/v29n6/en_1982-0194-ape-29-06-0643.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ape/v29n6/en_19...
,2121 Imaz JAG. Familia, suicidio y duelo. Rev Colomb Psiquiat[Internet]. 2013[cited 2015 Feb 13];43(S1):71-9. Available from: http://www.scielo.org.co/pdf/rcp/v42s1/v42s1a10.pdf
http://www.scielo.org.co/pdf/rcp/v42s1/v...
), interagindo de modo a focalizar a atenção nos sentimentos e nas necessidades da família(11 Botega NJ. Crise suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed; 2015.).

Pesquisas recentes constatam ainda que o ensino de habilidades para a ação na crise suicida durante a formação acadêmica torna os estudantes mais confiantes e satisfeitos diante da possibilidade de oferecer esse cuidado(1414 Pullen JM, Gilie F, Tesar E. A descriptive study of baccalaureate nursing students’ responses to suicide prevention education. Nurs Educ Pract[Internet]. 2016[cited 2017 Feb 15];16(1):104-10. Available from: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1471595315001638
http://www.sciencedirect.com/science/art...
-1515 Luebbert R, Popkess A. The influence of teaching method on performance of suicide assessment in baccalaureate nursing students. J Am Psychiatr Nurses Assoc[Internet]. 2015[cited 2017 Mar 9];21(2):126-33. Available from: http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/1078390315580096
http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1...
).

Em relação ao processo de cuidar, é importante salientar que o estudante vivencia em seus pensamentos o regresso das histórias trágicas contadas pela família e das imagens mentais que elabora sobre como teria acontecido a morte por suicídio, causando-lhe angústia. Acredita-se que essa seja a maior constatação de sua real necessidade de reparação. O ideal seria que houvesse a possibilidade de discutir e refletir sobre os conflitos em relação ao suicídio com a supervisão de um profissional mais experiente(11 Botega NJ. Crise suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed; 2015.), nesse caso, o docente.

O desejo de conseguir ajudar a família enlutada a seguir em frente é reforçado pela literatura como uma ação importante por parte dos profissionais, que devem ter clareza de que a família como sistema é maior do que a soma de seus integrantes e o luto, quando trabalhado adequadamente, é capaz de funcionar oportunizando continuidade aos projetos futuros da família(2121 Imaz JAG. Familia, suicidio y duelo. Rev Colomb Psiquiat[Internet]. 2013[cited 2015 Feb 13];43(S1):71-9. Available from: http://www.scielo.org.co/pdf/rcp/v42s1/v42s1a10.pdf
http://www.scielo.org.co/pdf/rcp/v42s1/v...
).

Limitações do estudo

Ressalta-se que a pesquisadora principal atuava como docente na instituição estudada, o que poderia representar um fator limitante do estudo. Por outro lado, acredita-se que esse fato tenha possibilitado, de forma consciente, revelar sensibilidade para questões importantes nos dados.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou políticas públicas

O estudo possibilitou compreender como ocorre a interação dos estudantes de enfermagem com a família enlutada após o suicídio de um ente, apontando a importância da existência de oportunidades durante a formação de trabalharem seus próprios medos, inseguranças e estigmas em relação a esse cuidado específico.

Considerando-se o potencial transformador de alunos bem formados, será possível dispor de profissionais melhor qualificados para oferecer suporte a essas famílias, prevenindo o luto complicado e, consequentemente, o adoecimento por depressão, estresse pós-traumático e comportamento suicida entre os enlutados, contribuindo assim para a prevenção do suicídio e minimizando o impacto negativo desse evento sobre a saúde pública.

Ponderando ainda sobre o papel do docente na formação profissional do enfermeiro, novos caminhos de pesquisa podem ser traçados em relação às experiências de ensino e aprendizagem sobre a temática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A compreensão da experiência permitiu o desenvolvimento de uma teoria explicativa sobre o fenômeno buscando sua própria restauração para ajudar a família enlutada a seguir em frente. Cuidar de famílias enlutadas após suicídio de um ente significa o estudante buscar o enfrentamento de suas barreiras pessoais para ser capaz de oferecer o melhor cuidado à família por meio do acolhimento, escuta, sensibilidade e flexibilidade, de modo a oportunizar que ela se fortaleça e vislumbre projetos de vida mesmo após a perda de seu ente.

Para isso, é fundamental que os alunos sejam cuidadosamente assistidos durante sua formação profissional, sendo-lhes ofertados espaços para reflexão e verbalização de suas emoções, já que o docente pode ajudá-los a gerenciá-las com suporte adequado.

REFERENCES

  • 1
    Botega NJ. Crise suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed; 2015.
  • 2
    Organización Panamericana de la Salud. Prevención de la conducta suicida. Washington: Organización Panamericana de la Salud; 2016.
  • 3
    Bertolote JM, Mello-Santos C, Botega NJ. Detecting suicide risk in psychiatric emergency services. Rev Bras Psiquiatr[Internet]. 2010[cited 2016 May 17];32(2):87-95. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbp/v32s2/en_v32s2a05.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/rbp/v32s2/en_v32s2a05.pdf
  • 4
    World Health Organization-WHO. Preventing suicide: a global imperative. Geneva: WHO; 2014.
  • 5
    Rojas IG, Saavedra JE. Cohesión familiar e ideación suicida en adolescentes de la costa peruana en el año 2006. Rev Neuropsiquiatr[Internet]. 2014[cited 2015 Dec 13];77(4):250-61. Available from: http://www.scielo.org.pe/pdf/rnp/v77n4/a08v77n4.pdf
    » http://www.scielo.org.pe/pdf/rnp/v77n4/a08v77n4.pdf
  • 6
    Chau K, Kabuth B, Chau N. Gender and family disparities in suicide attempt and role of socioeconomic, school, and health-related difficulties in early adolescence. BioMed Res Int[Internet]. 2014[cited 2015 Dec 13];ID314521. Available from: https://www.hindawi.com/journals/bmri/2014/314521/
    » https://www.hindawi.com/journals/bmri/2014/314521/
  • 7
    You A, Chen M, Yang S, Zhou A, Qin P. Childhood adversity, recent life stressors and suicidal behavior in chinese college students. PLoS ONE[Internet]. 2014[cited 2015 Nov 6];9(3):e86672. Available from: http://journals.plos.org/plosone/article/file?id=10.1371/journal.pone.0086672&type=printable
    » http://journals.plos.org/plosone/article/file?id=10.1371/journal.pone.0086672&type=printable
  • 8
    Ortiz-Hernández L, Valencia-Valero RG. Disparidades en salud mental asociadas a la orientación sexual en adolescentes mexicanos. Cad Saúde Pública[Internet]. 2015[cited 2016 Sep 13];31(2):417-30. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csp/v31n2/0102-311X-csp-31-02-00417.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/csp/v31n2/0102-311X-csp-31-02-00417.pdf
  • 9
    Santos RPM, Melo MCB. Tendencia suicida en niños accidentados. Psicol Ciênc Prof[Internet]. 2016[cited 2017 Mar 9];36(3):571-83. Available from: http://www.scielo.br/pdf/pcp/v36n3/1982-3703-pcp-36-3-0571.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/pcp/v36n3/1982-3703-pcp-36-3-0571.pdf
  • 10
    Brasil. Ministério da Saúde. Prevenção do Suicídio: manual dirigido a profissionais da atenção básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2009.
  • 11
    Moraes SM, Magrini DF, Zanetti ACG, Santos MA, Vedana KGG. Attitudes and associated factors related to suicide among nursing undergraduates. Acta Paul Enferm[Internet]. 2016[cited 2017 Mar 9];29(6):643-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ape/v29n6/en_1982-0194-ape-29-06-0643.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/ape/v29n6/en_1982-0194-ape-29-06-0643.pdf
  • 12
    Carmona-Navarro MC, Pichardo-Martínez MC. Attitudes of nursing professionals towards suicidal behavior: influence of emotional intelligence. Rev Latino-Am Enfermagem[Internet]. 2012[cited 2015 Nov 6];20(6):1161-8. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n6/19.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n6/19.pdf
  • 13
    Scheckel MM, Nelson KA. An interpretative study of nursing students’ experiences of caring for suicidal persons. J Prof Nurs[Internet]. 2014[cited 2015 Nov 6];30(5):426-35. Available from: http://www.professionalnursing.org/article/S8755-7223(14)00061-1/pdf
    » http://www.professionalnursing.org/article/S8755-7223(14)00061-1/pdf
  • 14
    Pullen JM, Gilie F, Tesar E. A descriptive study of baccalaureate nursing students’ responses to suicide prevention education. Nurs Educ Pract[Internet]. 2016[cited 2017 Feb 15];16(1):104-10. Available from: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1471595315001638
    » http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1471595315001638
  • 15
    Luebbert R, Popkess A. The influence of teaching method on performance of suicide assessment in baccalaureate nursing students. J Am Psychiatr Nurses Assoc[Internet]. 2015[cited 2017 Mar 9];21(2):126-33. Available from: http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/1078390315580096
    » http://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/1078390315580096
  • 16
    Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 466/2012. Normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos[Internet]. 2012[cited 2017 Mar 9]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
  • 17
    Charon JM. Symbolic interactionism: an introduction, an interpretation, an integration. 10th ed. New Jersey: Pearson Prentice Hall; 2010.
  • 18
    Strauss A, Corbin J. Basics of qualitative research: techniques and procedures for developing grounded theory. Thousand Oaks, CA: Sage; 2015.
  • 19
    Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ):a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care[Internet]. 2007[cited 2015 Dec 13];19(6):349-57. Available from: https://academic.oup.com/intqhc/article-lookup/doi/10.1093/intqhc/mzm042
    » https://academic.oup.com/intqhc/article-lookup/doi/10.1093/intqhc/mzm042
  • 20
    Bertolote JM. Why is Brazil losing the race against youth suicide? Rev Bras Psiquiatr[Internet]. 2012[cited 2015 Dec 13];34(3):245-6. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbp/v34n3/v34n3a03.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/rbp/v34n3/v34n3a03.pdf
  • 21
    Imaz JAG. Familia, suicidio y duelo. Rev Colomb Psiquiat[Internet]. 2013[cited 2015 Feb 13];43(S1):71-9. Available from: http://www.scielo.org.co/pdf/rcp/v42s1/v42s1a10.pdf
    » http://www.scielo.org.co/pdf/rcp/v42s1/v42s1a10.pdf
  • 22
    Botti NCL, Araújo LMC, Costa EE, Machado JSA. Nursing students attitudes across the suicidal behavior. Invest Educ Enferm[Internet]. 2015[cited 2017 Mar 9];33(2):334-42. Available from: http://www.scielo.org.co/pdf/iee/v33n2/v33n2a16.pdf
    » http://www.scielo.org.co/pdf/iee/v33n2/v33n2a16.pdf
  • 23
    Perales A, Sánchez E, Parhuana A, Carrera R, Torres H. Conducta suicida en estudiantes de la escuela de nutrición de una universidad pública peruana. Rev Neuropsiquiatr[Internet]. 2013[cited 2015 Dec 15];76(4):231-5. Available from: http://www.upch.edu.pe/vrinve/dugic/revistas/index.php/RNP/article/view/1172
    » http://www.upch.edu.pe/vrinve/dugic/revistas/index.php/RNP/article/view/1172
  • 24
    Leal SC, Santos JC. Suicidal behaviors, social support and reasons for living among nursing students. Nursing Educ Today[Internet]. 2016[cited 2017 May 22];36:434-8. Available from: http://www.nurseeducationtoday.com/article/S0260-6917(15)00398-6/pdf
    » http://www.nurseeducationtoday.com/article/S0260-6917(15)00398-6/pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2017
  • Aceito
    13 Set 2017
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: reben@abennacional.org.br