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Novo coronavírus: o que a enfermagem tem a aprender e ensinar em tempos de pandemia?

RESUMO

Objetivo:

Promover uma análise teórico-reflexiva sobre o que a enfermagem tem a aprender e ensinar à sociedade global em tempos de pandemia da COVID-19.

Métodos:

Ensaio teóricoreflexivo que visa contribuir com novos conhecimentos e suscitar novos questionamentos, com base nos pressupostos do pensamento da complexidade de Edgar Morin, subsidiado por leituras de textos extraídos de bases de dados eletrônicas, bem como de discursos de profissionais de saúde disponíveis em ferramentas de comunicação aberta.

Resultados:

A COVID-19 reitera que a guerra biológica da pandemia em curso não se combate com armas nucleares ou de fogo, mas com o cuidado em suas múltiplas dimensões: física, emocional, espiritual, familiar, social, política e econômica.

Considerações finais:

A enfermagem tem a aprender e ensinar à sociedade global que seu principal objeto de trabalho, o cuidado, está relacionado à ampliação das interações e associações sistêmicas e à capacidade de fortalecer a interlocução com a realidade complexa.

Descritores:
Enfermagem; Cuidados de Enfermagem; Papel do Profissional de Enfermagem; Coronavirus; Pandemias

ABSTRACT

Objective:

To promote a theoretical reflective analysis of what nursing has to learn and teach to global society in times of OVID-19 pandemic.

Methods:

Reflective theoretical essay aimed at contributing new knowledge and raising new questions, based on the assumptions of Edgar Morin’s complexity thinking, subsidized by readings of texts extracted from electronic databases, as well as speeches by health professionals available in open communication tools.

Results:

COVID-19 reiterates that the biological warfare of the current pandemic is not fought with nuclear or fire weapons, but with care in its multiple dimensions: physical, emotional, spiritual, family, social, political and economic.

Final considerations:

Nursing has to learn and teach global society that its main object of work, care, is related to the expansion of systemic interactions and associations and the capacity to strengthen the interlocution with complex reality.

Descriptors:
Nursing; Nursing Care; Nurse’s Role; Coronavirus; Pandemics

RESUMEN

Objetivo:

Promover un análisis teórico-reflexivo sobre lo que la enfermería tiene que aprender y enseñar a la sociedad global en tiempos de la pandemia/COVID-19.

Métodos:

Ensayo teórico-reflexivo que apurta nuevos conocimientos y plantear nuevas interrogantes, basado em supuestos del pensamiento de complejidad de Edgar Morin, subvencionado por la lectura de textos extraídos de bases de datos electrónicas, así como discursos de profesionales de la salud disponibles en herramientas de comunicación abierta.

Resultados:

El COVID-19 reitera que la guerra biológica en curso de la pandemia no se libra con armas nucleares o de fuego, sino con cuidado en sus múltiples dimensiones: física, emocional, espiritual, familiar, social, política y económica.

Consideraciones finales:

La enfermería tiene que aprender y enseñar a la sociedad global que su principal objeto de trabajo, el cuidado, está relacionado con expansión de las interacciones y asociaciones sistémicas y capacidad de fortalecer el diálogo con la realidad compleja.

Descriptores:
Enfermería; Cuidado de Enfermería; Papel del Profesional de Enfermería; Coronavirus; Pandemias

INTRODUÇÃO

A doença causada pelo novo coronavírus (síndrome respiratória aguda grave coronavírus 2, SARS-CoV-2), RNA vírus envelopados, comumente encontrados em humanos, surgiu na cidade de Wuhan, em dezembro de 2019 e se espalhou, em poucos dias, por toda a China, demonstrando amplo espectro de gravidade e letalidade, inclusive em pacientes sem sintomas aparentes. Esses e outros fatores contribuíram para a sua rápida disseminação no mundo e a sua configuração em pandemia(11 Li R, Pei S, Chen B, Song Y, Zhang T, Yang W, et al. Substantial undocumented infection facilitates the rapid dissemination of novel coronavirus (SARS-CoV2). Science. 2020; 368(6490):489-93. doi: 10.1126/science.abb3221
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-22 Stoecklin SB, Rolland P, Silue Y, Mailles A, Campese C, Simondon A, et al. First cases of coronavirus disease 2019 (COVID-19) in France: surveillance, investigations and control measures, January 2020. Euro Surveill. 2020;25(6):pii=2000094. doi: 10.2807/1560-7917.ES.2020.25.6.2000094
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).

O impacto do caos que essa pandemia tem apresentado pode ser demonstrado representativamente pelo número de pessoas infectadas e pelo número de mortes já registrado. Considerando os registros oficiais até o momento (03/07/2020), ocorreram no mundo 10.710.005 casos e 517.877 mortes; o país com o maior número de casos é os Estados Unidos (2.671.220 casos e 127.858 mortes) e, em segundo lugar, encontra-se o Brasil, considerado o atual epicentro da pandemia, com um total de 1.448.753 casos e 60.632 mortes(33 World Health Organization (WHO). Coronavirus disease 2019 (COVID-19) Situation Report - 165. Data as received by WHO from national authorities by 10:00 CEST, 3 July 2020 [Internet]. 2020[cited 2020 Apr 10]. Available from: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200703-covid-19-sitrep-165.pdf?sfvrsn=b27a772e_2
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). Entretanto, esses números, possivelmente, são ainda maiores se considerarmos o baixo número de testagens realizadas e as subnotificações.

O novo coronavírus (COVID-19) é uma doença infecciosa causada por um novo vírus, nunca antes identificado em humanos. Ele causa uma doença respiratória semelhante à gripe e tem sintomas como tosse seca, febre, dispneia, mialgia ou fadiga e, em casos mais graves, pneumonia; além disso, tem alta transmissibilidade. Uma pessoa infectada espalha a doença, em média, para duas ou três outras, o que representa uma taxa de aumento exponencial em poucos dias. A COVID19 representa, sob esse enfoque, uma ameaça à saúde pública mundial e à vida humana, pois pode vitimar idosos com problemas de saúde prévios, como também causar a morte de adultos saudáveis; e, como se isso não bastasse, ainda não existe uma terapêutica medicamentosa ou vacinas comprovadas para a prevenção e tratamento específico da doença(44 Cui J, Li F, Shi ZL. Origin and evolution of pathogenic coronaviruses. Nat Rev Microbiol. 2019; 17(3):181-92. doi: 10.1038/s41579-018-0118-9
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-55 Belasco AGS, Fonseca CD. Coronavirus 2020. Rev Bras Enferm. 2020;73(2):e2020n2. doi: 10.1590/0034-7167-2020730201
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). Ademais, as medidas não farmacológicas como o isolamento físico/social e os cuidados como a higiene das mãos são medidas profiláticas para mitigar a transmissibilidade da doença.

Portanto, encontramo-nos diante do caos, que é definido por Edgar Morin, um dos pensadores mais importantes da atualidade, como fenômeno irreversível ou instável, não reduzível à uma realidade matemática. Significa dizer que, conforme o mundo se globaliza e se torna mais complexo e caótico, as mentes humanas se expandem mais e mais para acompanhar esse desenvolvimento, o qual, por sua vez, possibilita o surgimento de fenômenos ainda mais caóticos. Na visão do autor, é preciso superar um pensamento que reduz e fragmenta por outro que distingue, une e integra, isto é, por um pensamento complexo, dinâmico e evolutivo, que não paralisa. O autor reconhece que não há problemas que não sejam complexos e, consequentemente, não há lugar para o saber simplificado neste mundo(66 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2014.).

Diante desse cenário incerto, vulnerável e caótico, encontram-se os profissionais de saúde, que têm, de modo intensivo e exemplar, trabalhado na linha de frente. Aqui destaca-se especialmente os profissionais de enfermagem, que são os protagonistas na organização e gestão do cuidado, bem como no combate e controle da propagação da COVID-19. Eles atuam diuturnamente no cuidado direto aos pacientes, colocando a própria saúde em risco, muitas vezes com sobrecarga de trabalho e, frequentemente, em condições precárias. Além disso, ainda necessitam enfrentar o temor e a frustração de terem de presenciar pessoas morrendo aos milhares por falta de suporte ventilatório, cabendo-lhes apoiar escolhas em relação a quem deve ou não continuar vivendo(77 Rosenbaum L. Facing Covid-19 in Italy - ethics, logistics, and therapeutics on the epidemic’s front line. N Engl J Med. 2020; 382:1873-5. doi: 10.1056/NEJMp2005492
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).

Como lidar com tamanha complexidade global e, ao mesmo tempo, local e existencial? Quais lições podem ser aprendidas e ensinadas nesse cenário caótico? O que a enfermagem tem a aprender e a ensinar à sociedade global em tempos de pandemia? O que mesmo a distingue no ser e fazer profissional no Brasil e no mundo?

OBJETIVO

Promover uma análise teórico-reflexiva sobre o que a enfermagem tem a aprender e a ensinar à sociedade global em tempos de pandemia causada pelo coronavírus/COVID-19, na perspectiva do pensamento da complexidade.

REFERENCIAL TEÓRICO DA COMPLEXIDADE E MOTIVAÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO DESTE ESTUDO

Trata-se de um ensaio teórico-reflexivo que visa contribuir com novos conhecimentos sobre a COVID-19 e, sobretudo, suscitar novos questionamentos com base nos pressupostos do pensamento da complexidade de Edgar Morin, subsidiado por leituras de textos extraídos em bases de dados eletrônicas. O pensamento de Morin tem influenciado os mais diversos campos do conhecimento e tem sido empregado como referencial teórico nas pesquisas de enfermagem. A partir da crítica à ciência clássica, caracterizada pelo determinismo e linearidade dos fenômenos, ele aponta novos caminhos e possiblidades à humanidade, sobretudo em tempos de incertezas e caos.

Revisão integrativa realizada em 2014 evidenciou um crescimento na produção científica relacionada ao pensamento complexo na gestão em enfermagem e saúde(88 Copelli FHS, Oliveira RJT, Oliveira CMS, Meirelles BHS, Mello ALSF, Magalhaes ALP. O pensamento complexo e suas repercussões na gestão em enfermagem e saúde. Aquichan. 2016; 16(4):501-12. doi: 10.5294/aqui.2016.16.4.8
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). Segundo os autores, o pensamento complexo é empregado de duas maneiras, principalmente: enquanto referencial teórico para as discussões de gerência do cuidado; e como modelo de gestão para as organizações vivas e imprevisíveis de enfermagem e saúde, por abranger a integralidade, a atenção às redes de apoio, a muldisciplinaridade e a articulação dos saberes para promover a organização dos sistemas complexos adaptativos nas organizações de uma forma mais profunda e contextualizada.

Busca-se retratar, na composição deste ensaio, conexões entre uma visão tradicional da ciência e o entendimento da complexidade do real — a pandemia em curso não afasta a clareza, a ordem e o determinismo, mas considera que estes são insuficientes para a compreensão do cuidado de enfermagem em sua multidimensionalidade. A complexidade se encontra no âmago da relação entre o simples e o complexo, dado seu caráter simultaneamente antagônico e complementar. O pensamento complexo incorpora a incerteza e é capaz de conceber a organização, de contextualizar e globalizar, mas pode, ao mesmo tempo, reconhecer o que é singular e concreto(66 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2014.,99 Morin E. Introdução ao pensamento complexo / Edgar Morin; tradução Eliane Lisboa. 5.ed., Porto Alegre: Sulina; 2015.).

O presente artigo parte da reflexão pautada em relatos de profissionais de enfermagem do cenário nacional, extraídos de meios de comunicação diversos. Dada a característica do trabalho e o fato de os discursos utilizados estarem disponibilizados em meios de comunicação abertos, não foi necessária a apreciação deste estudo pelo Comitê de Ética em Pesquisa. No entanto, foi mantido o anonimato dos nomes dos sujeitos.

As variadas expressões de profissionais de enfermagem mobilizam reflexões, indagações e o desejo de contribuir, de alguma forma, para o avanço da ciência, especialmente em tempos de pandemia. Para exemplificar tais instigações, relatam-se, a seguir, enunciados de enfermeiros (P1, P2, P3, P4) selecionados aleatoriamente, que servirão de fonte de inspiração para a discussão teórico-reflexiva sobre o diferencial do cuidar/cuidado de enfermagem na perspectiva do pensamento da complexidade.

Sobrecarga de trabalho, falta de equipamentos de proteção individual, número reduzido de profissionais, estresse, mortes, incertezas e o medo do que ainda pode vir… um caos diário. Mas, somos Enfermagem, somos os profissionais do cuidado. Este vírus nos faz lembrar que a minha existência está interligada à existência do outro e que neste momento não existem fronteiras profissionais, mas profissionais do cuidado. (P1)

A complicação deste vírus é a pneumonia. Ela gruda o pulmão. É como se fosse um saquinho de plástico que gruda… a crise respiratória evolui em duas ou quatro horas. Embora de forma mais leve, eu estou fazendo esta experiência na prática. Eu vi, morreu nas minhas mãos! Gente que estava bem, pessoas de 60 anos. Aqui está tudo parado, um caos. É um caos para todo o mundo. Aqui não tem mais leitos de hospitais e estão mandando pacientes para outros países. (P2)

Quando você vê na televisão, quando você lê as notícias na internet, não é a mesma coisa… eu vejo que esses pacientes não melhoram. De todos esses pacientes que a gente entubou, a gente não conseguiu tirar ninguém da entubação ainda. Isso é difícil porque você não vê o paciente evoluir de uma forma positiva… Aconteceu uma situação muito triste e que mexeu bastante comigo. Ele estava consciente, e a gente precisou avisar para ele que ele ia ser entubado, e ele fez uma chamada de vídeo com a família. Então, a gente estava no quarto enquanto ele estava se despedindo dessa família. Se despediu do filho, da esposa, chorou, ficou muito emocionado… Acho que ninguém estava preparado para isso. E eu fico mais preocupada porque acho que ainda vai piorar muito antes de começar a melhorar. (P3)

Estamos todos com medo. Estamos com medo da doença, da falta de possibilidade de acesso ao tratamento para todos, da falta de respiradores, de ter que optar entre quem deve continuar vivendo. Temos medo da perda de entes queridos… que o medo aumente a nossa empatia e nos deixe menos juízes e mais cuidadosos. Que o medo nos ajude a entender o verdadeiro sentido do cuidado. (P4)

A ENFERMAGEM NO BRASIL E NO MUNDO: O QUE A DISTINGUE?

A Campanha Nursing Now de 2020 e a pandemia causada pela COVID-19: O que esta combinação, aparentemente antagônica de fenômenos, tem a dizer para o mundo e para a própria enfermagem? Os profissionais de enfermagem são reconhecidos, mundialmente, como os profissionais do cuidado, os profissionais da linha de frente em qualquer situação; sobretudo em épocas de pandemia, são via de regra os primeiros a terem contato com os pacientes que apresentam sinais e sintomas característicos.

Os órgãos mundiais de saúde e as ações de combate reiteram, de forma notória, que esta guerra biológica da pandemia não se combate com armas nucleares ou de fogo, mas pelo cuidado em suas múltiplas dimensões: física, emocional, espiritual, familiar, social, política e econômica. Ou seja, a resposta se dá por meio do cuidado integral e integrador, uma vez que tais dimensões são complementares e por isso precisam ser compreendidas nas suas inter-relações.

No depoimento “Estamos com medo... que o medo nos ajude a entender o verdadeiro sentido do cuidado”, ficou evidente que o profissional de enfermagem também é um ser humano como qualquer outro. É um profissional que sente medo, vibra com a melhora do paciente, sonha com melhores condições de saúde, mas que, neste tempo de pandemia, frequentemente se angustia e teme as incertezas do porvir. Se, por um lado, os depoimentos carregam um sentimento de impotência e frustração, expressando a vulnerabilidade do profissional de enfermagem diante das adversidades para as quais não há respostas, por outro lado evidenciam a visão tradicional e determinista do cuidar/cuidado enquanto reflexo de um saber cartesiano que precisa encontrar respostas favoráveis para todas as situações e promover a cura a qualquer preço, considerando que a sociedade não está preparada para “perder”(99 Morin E. Introdução ao pensamento complexo / Edgar Morin; tradução Eliane Lisboa. 5.ed., Porto Alegre: Sulina; 2015.-1010 Backes DS, Zamberlan C, Siqueira HCHD, Backes MTS, Sousa FGMD, Lomba MDLLDF. Quality nursing education: a complex and multidimensional phenomenon. Texto Contexto Enferm. 2018;27(3):e4580016. doi: 10.1590/0104-070720180004580016
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).

Reconhece-se que a ciência clássica dissolveu a complexidade dos fenômenos para revelar a simplicidade oculta das leis da natureza. Esse comportamento se justificava pelo fato de que a melhor hipótese era a mais simples ou a que apelava para um menor número de entidades explicativas(66 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2014.). Demonstra-se, hoje, no entanto, que a ciência tem necessidades não apenas de um conhecimento apto a considerar a complexidade do real, mas de transformar esse conhecimento da complexidade em pensamento sistêmico, conforme descrito por dois depoentes: “Este vírus nos faz lembrar que a minha existência está interligada à existência do outro e que neste momento não existem fronteiras profissionais, mas profissionais do cuidado...”; “... que o medo aumente a nossa empatia e nos deixe menos juízes e mais cuidadosos”.

Todavia, o que mesmo entendemos por cuidar/cuidado de enfermagem? O que mesmo distingue o cuidado de enfermagem de qualquer outro cuidado? Baseando-se em uma análise ampliada e sistêmica, o cuidado de enfermagem pode/deve ser definido como um fenômeno complexo, sistematizado por meio das múltiplas relações, interações e associações, com vistas a promover e recuperar a saúde do ser humano em sua forma integral e articulada com tudo que o cerca(1111 Backes DS, Zamberlan C, Colomé J, Souza MT, Marchiori MT, Erdmann AL, et al. Systemic interactivity between Interdependent concepts of nursing care. Aquichan. 2016; 16(1):24-31. doi: 10.5294/aqui.2016.16.1.4
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).

Em períodos de distanciamento físico/social, a sociedade sente e sofre as consequências dessas medidas adotadas e que repercutem na saúde física, social e mental das pessoas. Compreende-se, com mais veemência, o real significado do (des)cuidado, ou seja, há pessoas que evitam ir aos hospitais quando adoecem por medo de contrair a COVID-19 e acabam morrendo em casa em função de um infarto; o cuidado das crianças na fase escolar em casa; as ações preventivas no cuidado aos idosos e outros grupos de risco para COVID-19; o cuidado com as etiquetas sociais fundamentais; e outros. Destaca-se, nessa direção, o cuidado com a higienização frequente das mãos, o uso correto dos equipamentos de proteção individual, tanto no momento da paramentação como na desparamentação, que são cuidados essenciais para os profissionais de enfermagem, mas repetidamente são relegados a um segundo plano. Fala-se, então, de cuidado, mas não de um cuidado qualquer.

Enfatiza-se o cuidado profissional da enfermagem, que, embora dinâmico e sistêmico, reiteradamente não encontra respostas para a modificação do curso dos fatos e dos domínios da vida, isso porque viver é imprevisível e toda a noção do equilíbrio em movimento está na lógica da vida(99 Morin E. Introdução ao pensamento complexo / Edgar Morin; tradução Eliane Lisboa. 5.ed., Porto Alegre: Sulina; 2015.).

É reconhecido que o profissional de enfermagem tem, comumente, a necessidade de encontrar e dar respostas aos diferentes questionamentos ou situações do dia a dia, atitude esperada também pela sociedade, que, dificilmente, se sente provocada a novas indagações. À medida que o profissional de enfermagem não encontra as respostas em si ou no outro, por vezes se frustra, se isola, se deprime e se vê como incompetente para a função, visto que se considera “formado para salvar vidas”. Tais reações ficam evidentes conforme os profissionais percebem que os pacientes não evoluem mediante o tratamento instituído, de acordo com o expresso: “De todos esses pacientes que a gente entubou, a gente não conseguiu tirar ninguém da entubação ainda. Isso é difícil porque você não vê o paciente evoluir de uma forma positiva...”.

A realidade social está em constante evolução, mas não necessariamente em sua dimensão humana. Promove-se, facilmente, conexões com os distantes, mas encontra-se dificuldades para promover conexões saudáveis com os mais próximos. Logo, advêm os questionamentos: O que mesmo diferencia e distingue o cuidado de enfermagem de qualquer outro cuidado não profissional? Que competências e habilidades são necessárias para promover o cuidado de enfermagem em tempos de incerteza e caos? Que atitudes necessitam ser desenvolvidas para manter a integração dinâmica e não “naufragar” entre as possíveis correntezas da travessia? Como salvar vidas e promover a saúde em tempos de pandemia, quando não se tem ainda um tratamento efetivo (“resposta certa”) nem mesmo clareza e segurança em relação ao dia de amanhã? Enfim, por que necessitamos de certezas absolutas ou receitas prontas de cuidado, sabendo que a criatividade emerge das possibilidades interativas e de situações aparentemente adversas e contraditórias?

MEDO E CAOS: QUAIS AS SUAS LIÇÕES?

A capacidade humana para imaginar o pior não tem limites. Sabemos que o tema da catástrofe natural não é novo. É, aliás, tão antigo quanto o do medo. A pandemia não é tratada como invenção, mas como algo que acontece em longos intervalos de tempo. Da mesma forma, a catástrofe, vivida em todos os tempos, se revela ora pela ação do fogo ora pela ação da água. Esses fenômenos servem para que a Terra e a humanidade possam se (re)organizar e aprender que no caos podem surgir as melhores possibilidades de transformação. A ordem apresenta-se entrelaçada, simultaneamente, à desordem e ao caos(66 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2014.). No entanto, como visualizar uma nova ordem em meio às incertezas, às desordens e ao caos provocados pela COVID-19?

A expressão “estamos todos com medo” e outras tantas manifestações mobilizam uma série de indagações que não se limitam aos profissionais de enfermagem. De que ou qual medo está se falando? Medo de contrair a doença? Medo de morrer? Medo de perder algum ente querido? Medo de não ter acesso a um ventilador mecânico? Medo de ter de decidir, diante da falta de equipamentos como o ventilador mecânico, sobre quem tem prioridade, se o mais jovem ou o mais idoso? Medo de ter de optar entre quem vai continuar vivendo e quem vai acabar morrendo tendo em vista a escassez de recursos, como falta de leitos, de respirador e de unidade de terapia intensiva? Medo da solidão? Medo do desemprego? Medo de redução da renda? Medo do colapso do sistema de saúde e da economia? Medo de faltar alimentos e de não ter onde comprá-los? Medo, simplesmente medo, mas do que e de quem?

O medo é um constitutivo emocional do ser humano, ou seja, é uma emoção essencialmente subjetiva. Mesmo que envolva o coletivo, parte do pressuposto de que é um sentimento individual ou, mais apropriadamente, intersubjetivo. Trata-se, portanto, de uma emoção recorrente, cotidiana e implica a percepção de tudo o que nos cerca, sendo apreendida em fenômenos concretos. O medo, em seu caráter afirmativo, mobiliza novos modos de ser e agir e move o ser humano em busca de si mesmo e do outro. Sendo assim, tal emoção se estabelece na interação, sendo produto da relação entre os indivíduos, a cultura e a sociedade(1212 Heidegger M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes; 2009.).

O ser humano não tece a teia da vida, é antes um dos fios que compõem a unidade complexa. O que quer que faça a essa teia, faz a si próprio(99 Morin E. Introdução ao pensamento complexo / Edgar Morin; tradução Eliane Lisboa. 5.ed., Porto Alegre: Sulina; 2015.). Logo, o ser humano está contínua e integralmente conectado aos eventos que se originam de acontecimentos inesperados, como a pandemia da COVID19. E estes, por sua vez, se desdobram gerando emoções de maior ou menor densidade. Entre elas, a emoção associada ao medo é uma das mais recorrentes, conforme evidenciado nos depoimentos “estamos todos com medo”.

O pensamento da complexidade visa, entre outros objetivos, ao questionamento da oposição entre os fatos e a natureza, além da reflexão acerca do sentido, dos valores e das verdades concernentes à ciência. Para Morin, a própria ciência forjou, durante muito tempo, homogeneidades simplificadoras. Os objetos foram, com frequência, separados do seu contexto e do contexto dos observadores, de modo que as disciplinas foram fragmentadas e inviabilizaram o diálogo entre as ciências. Essas reduções unificaram, quantificaram e desprezaram o que era múltiplo e, mesmo reconhecendo que isso foi responsável pelos avanços no conhecimento (p.ex., sobre o átomo e sobre a molécula), deve-se também admitir a desconsideração do acaso e da contingência, como em tempo real referentes à pandemia em curso(66 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2014.,99 Morin E. Introdução ao pensamento complexo / Edgar Morin; tradução Eliane Lisboa. 5.ed., Porto Alegre: Sulina; 2015.).

Já o pensamento da complexidade induz à ampliação do saber, do conectar, do interligar e compreender a parte no todo, assim como o todo em cada parte e, dessa forma, encontrar novos caminhos em meio ao incerto, ao complexo e ao caos(99 Morin E. Introdução ao pensamento complexo / Edgar Morin; tradução Eliane Lisboa. 5.ed., Porto Alegre: Sulina; 2015.). A fala “Temos medo da perda... que o medo aumente a nossa empatia e nos deixe menos juízes e mais cuidadosos. Que o medo nos ajude a entender o verdadeiro sentido do cuidado” indica que, durante a desordem e o caos, sempre emergem novas oportunidades. Conceber o caos sob esse enfoque não significa plasmar a crise no lamento de oportunidades perdidas, mas antes potencializá-las na liberdade da imaginação e das alternativas.

Perceber e acolher reações de medo, inerentes ou resultantes de situações de risco, e compreendê-las no contexto ao qual seu agente foi exposto, é garantir uma melhor adequação à nova realidade e possibilitar uma sociedade mais resiliente e mais consciente de sua responsabilidade na construção de uma nova organização social(99 Morin E. Introdução ao pensamento complexo / Edgar Morin; tradução Eliane Lisboa. 5.ed., Porto Alegre: Sulina; 2015.).

É justamente quando grandes fenômenos surgem, tais como as pandemias que abalam determinadas populações e quando tudo parece estar perdido, que a incrível capacidade das pessoas de se reorganizarem e enfrentarem as vicissitudes resulta em verdadeiras lições de vida. Assim, que lições a enfermagem tem a aprender e a ensinar à sociedade global em tempos de pandemia causada pelo novo coronavírus/COVID-19? O que precisa ser reorganizado na atuação da enfermagem? Como podemos evitar o adoecimento e a morte dos próprios profissionais de enfermagem? O que celebrar e comemorar na Campanha Nursing Now de 2020 em homenagem aos profissionais de Enfermagem?

As organizações de saúde têm se mobilizado com ações para a contenção da pandemia da COVID-19. Da mesma forma, os profissionais de enfermagem e saúde têm atuado na linha de frente, de forma exemplar, no combate da COVID-19; e, mesmo em face das dificuldades e precárias condições de trabalho, eles têm zelado e cuidado com dignidade da saúde e da vida humana. Tendo em vista esse cenário, o presente trabalho traz contribuições significativas e reflexões embasadas no referencial de Edgard Morin sobre a atuação da enfermagem diante dessa pandemia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise teórico-reflexiva sobre o que a enfermagem tem a aprender e a ensinar à sociedade global em tempos de pandemia causada pelo novo coronavírus/COVID-19, na perspectiva do pensamento da complexidade, não buscou dar respostas prontas, mas intentou (re)pensar o pensamento por meio de novos questionamentos, talvez um pouco mais complexos.

A enfermagem tem muito a aprender e a ensinar com e na sociedade global que o seu principal objeto de trabalho, o cuidado, está relacionado à ampliação das interações e associações sistêmicas e à capacidade de fortalecer a interlocução com a realidade complexa, sobretudo em tempos de pandemia cujo vilão é o novo coronavírus/COVID-19. É preciso, gradativamente, superar o paradigma da simplificação e considerar a complexidade enquanto indutora de novas possibilidades e oportunidades de (re)organização da enfermagem como ciência e profissão em destaque no momento.

O pensamento da complexidade, iluminador do cuidado multidimensional de enfermagem, transcende a soberania da ordem instituída e concebe a relação dialógica entre a ordem, a desordem e a organização. Sob esse enfoque, o profissional de enfermagem assume, além de protagonista, um papel mediador e interlocutor do cuidado, o que implica considerar as singularidades e as multidimensionalidades humanas. Para o alcance desse processo interativo e associativo, é preciso transcender o paradigma da simplificação, caracterizado por princípios de disjunção, de redução e de fragmentação e, gradativamente, considerar a complexidade do ser e fazer enfermagem.

  • FOMENTO
    Agradecemos à CAPES pelo fomento para a pós-graduação.

REFERENCES

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    Li R, Pei S, Chen B, Song Y, Zhang T, Yang W, et al. Substantial undocumented infection facilitates the rapid dissemination of novel coronavirus (SARS-CoV2). Science. 2020; 368(6490):489-93. doi: 10.1126/science.abb3221
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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Andrea Bernardes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2020
  • Aceito
    18 Jul 2020
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