Acessibilidade / Reportar erro

Educação participativa com enfermeiros: potencialidades e vulnerabilidades no rastreamento do câncer de mama e colo

RESUMO

Objetivos:

sistematizar experiência de educação permanente participativa com enfermeiros da Atenção Primária sobre rastreamento do câncer de mama e colo, identificando potencialidades e vulnerabilidades.

Métodos:

relato sistematizado conforme Holliday, em cinco tempos: ponto de partida, perguntas iniciais, recuperação do processo vivido, reflexão de fundo e pontos de chegada. Foi produto de duas oficinas com 96 enfermeiros e analisado à luz das diretrizes ministeriais e conceito de vulnerabilidade de Ayres.

Resultados:

as potencialidades relacionam-se ao trabalho do enfermeiro implementando os princípios do Sistema Único de Saúde. As dificuldades são complexas e expõem vulnerabilidades individuais, contextuais e programáticas na prática do rastreamento.

Considerações Finais:

a educação permanente e as estratégias pedagógicas participativas permitiram troca ampla e lúdica de aprendizagens e participação de número expressivo de profissionais. Sinaliza-se necessidade de estudos sobre institucionalidade das diretrizes programáticas e espaço do enfermeiro para ser instituidor de novas práticas no âmbito da Atenção Primária.

Descritores:
Educação Permanente; Vulnerabilidade em Saúde; Programas de Rastreamento; Neoplasias da Mama; Neoplasias do Colo do Útero

ABSTRACT

Objectives:

to systematize permanent participatory education experience with Primary Care nurses on breast and cervical cancer screening, identifying potentialities and vulnerabilities.

Methods:

systematic account according to Holliday, in five stages: starting point, initial questions, recovery of the lived process, background reflection and arrival points. It was the product of two workshops with 96 nurses and analyzed in the light of the ministerial guidelines and Ayres’ concept of vulnerability.

Results:

the potentialities are related to the nurse’s work implementing the principles of the Unified Health System. The difficulties are complex and expose individual, contextual and programmatic vulnerabilities in the practice of screening.

Final Considerations:

permanent education and participatory pedagogical strategies allowed a wide and playful exchange of learning and the participation of a significant number of professionals. There is a need for studies on the institutionality of programmatic guidelines and nurses’ space to be the initiator of new practices within the scope of Primary Care.

Descriptors:
Education Nursing Continuing; Vulnerable Population; Mass Screening; Breast Neoplasms; Uterine Cervical Neoplasms

RESUMEN

Objetivos:

sistematizar experiencia de educación permanente participativa con enfermeros de la Atención Primaria sobre rastreo del cáncer de mama y colon, identificando potencialidades y vulnerabilidades.

Métodos:

relato sistematizado conforme Holliday, en cinco tiempos: punto de partida, preguntas iniciales, recuperación del proceso vivido, reflexión de fondo y puntos de llegada. Ha sido producto de dos talleres con 96 enfermeros y analizado a la luz de las directrices ministeriales y concepto de vulnerabilidad de Ayres.

Resultados:

las potencialidades se relacionan al trabajo del enfermero implementando los principios del Sistema Único de Salud. Las dificultades son complejas y exponen vulnerabilidades individuales, contextuales y programáticas en la práctica del rastreo.

Consideraciones finales:

la educación permanente y las estrategias pedagógicas participativas permitieron cambio amplio y lúdico de aprendizajes y participación de número expresivo de profesionales. Se señala la necesidad de estudios sobre institucionalidad de las directrices programáticas y espacio del enfermero para ser instituidor de nuevas prácticas en el ámbito de la Atención Primaria.

Descriptores:
Educación Permanente; Vulnerabilidad en Salud; Programas de Rastreo; Neoplasias de la Mama; Neoplasias del Cuello Uterino

INTRODUÇÃO

O câncer é doença multifatorial, de visibilidade nacional e internacional pela sua magnitude epidemiológica, social e econômica. Morbidade não transmissível, ocupa lugar de destaque nas recomendações científicas para o desenvolvimento de métodos de diagnóstico, detecção e tratamento precoce, além daqueles de avaliação dos programas de prevenção primária(11 Ministério da Saúde (BR). Departamento de Ciência e Tecnologia. Agenda nacional de prioridades de pesquisa em saúde [Internet]. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2015[2019 Mar 12]. 68 p. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/agenda_nacional_prioridades_2ed_4imp.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
). A Agenda de Saúde Sustentável para as Américas 2018-2030 estabelece como meta reduzir em um terço, até 2030, a mortalidade prematura por doenças não transmissíveis via prevenção e tratamento, incluindo o câncer de mama e colo do útero(22 Organização Pan-Americana da Saúde. Organização Mundial da Saúde. Agenda de saúde sustentável para as Américas 2018-2030: um chamado à ação para a saúde e o bem-estar na região [Internet]. 2017 [2019 Mar 12]. Available from: http://iris.paho.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/49172/CSP296-por.pdf?sequence=1&isAllowed=y
http://iris.paho.org/xmlui/bitstream/han...
).

Estimativas do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva - INCA, para os anos de 2020 - 2022, apontam o câncer de mama como o mais incidente e o câncer de colo do útero ocupando o quarto lugar, desconsiderando o de pele não melanoma. A estimativa anual no referido biênio para o câncer de mama é de 66.280 casos novos e um risco estimado de 81,06 casos a cada 100 mil mulheres. O câncer do colo, a estimativa anual é de 16.590, com risco estimado de 15,43 casos em 100 mil mulheres(33 Ministério da Saúde (BR). Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Estimativa 2020: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA[Internet]. 2019 [2020 Apr 20]. 120 p. Available from: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files/media/document/estimativa-2020-incidencia-de-cancer-no-brasil.pdf
https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.in...
).

Atividades de prevenção são necessárias para impactar positivamente nos indicadores dos cânceres feminino de mama e colo do útero. A detecção dessas doenças se dá através do diagnóstico precoce e rastreamento. O primeiro, realizado em pessoas com sinais e sintomas da doença para identificar o agravo em fase inicial; o segundo se refere à realização de testes, em pessoas sadias, com o intuito de identificar doenças em sua fase assintomática ou pré-clínica(44 Ministério da Saúde (BR). Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Diretrizes para a detecção precoce do câncer de mama no Brasil. Rio de Janeiro: INCA [Internet] 2015 [2019 Mar 12]. Available from: http://www.saude.pr.gov.br/arquivos/File/Deteccao_precoce_CANCER_MAMA_INCA.pdf
http://www.saude.pr.gov.br/arquivos/File...
).

O trabalho do enfermeiro na atenção básica em saúde é essencial para a prevenção primária e secundária dos cânceres femininos de mama e colo uterino. Mas, observa-se divergências na atuação destes profissionais em relação às diretrizes ministeriais(44 Ministério da Saúde (BR). Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Diretrizes para a detecção precoce do câncer de mama no Brasil. Rio de Janeiro: INCA [Internet] 2015 [2019 Mar 12]. Available from: http://www.saude.pr.gov.br/arquivos/File/Deteccao_precoce_CANCER_MAMA_INCA.pdf
http://www.saude.pr.gov.br/arquivos/File...
) para a detecção dessas doenças decorrentes de aspectos relacionados a gestão municipal, ao conhecimento e adesão dos enfermeiros às diretrizes(55 Santos ROMl, Ramos DN, Migowski A. Barreiras na implementação das diretrizes de detecção precoce dos cânceres de mama e colo do útero no Brasil. Physis: Rev Saúde Coletiva. 2019;29(4):e290402. doi: 10.1590/S0103-73312019290402
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201929...
).

A formação contínua destes trabalhadores de saúde pode contribuir para melhorar o rastreamento, ordenada pela Portaria MS/GM nº 1.996 de 20/08/2007, oferece as bases normativas para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS)(66 Ministério da Saúde (BR). Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? [Internet]. 2018 [2019 Mar 12]. 1ª ed revisada. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_educacao_permanente_saude_fortalecimento.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
).Em sua condução, a PNEPS conta com as Comissões de Integração Ensino-Serviço (CIES) que congregam profissionais de diferentes setores e instituições ligados à gestão, formação e controle social do trabalho no Sistema Único de Saúde (SUS). As Instituições de Ensino Superior (IES) que formam trabalhadores para a área de saúde, no âmbito de abrangência da CIES, participam de sua composição.

Autoras deste relato participaram de uma capacitação sobre rastreamento do câncer de mama e colo do útero, promovida pela Associação Brasileira de Enfermagem Obstétrica (ABENFO/RJ e ABENFO/PI) e International Society of Nurses Cancer Care (ISNCC) e, como contrapartida, se comprometeram a em multiplicá-la em seus locais de trabalho. Como professoras e pesquisadoras de IES, uma delas representante na CIES, considerou-se oportuno replicar a capacitação aos enfermeiros da atenção primária da baixada litorânea do Rio de Janeiro, através de oficinas, utilizando abordagens metodológicas participativas condizentes com a PNEPS(66 Ministério da Saúde (BR). Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? [Internet]. 2018 [2019 Mar 12]. 1ª ed revisada. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_educacao_permanente_saude_fortalecimento.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
).

Propôs-se que as oficinas discutissem o trabalho dos enfermeiros no rastreamento, orientadas pelos seguintes questionamentos: Que aprendizagens uma prática de educação permanente, baseada em abordagens participativas com enfermeiros, podem ser geradas para o enfrentamento de vulnerabilidades do rastreamento do câncer de colo de útero e mama? Que dificuldades e potencialidades foram observadas na prática assistencial dos enfermeiros?

A análise do produto das oficinas pauta-se por diretrizes ministeriais e o conceito de vulnerabilidade proposto por Ayres et al(77 Ayres JRCM, Calazans GJ, Filho HCS, França-Jr I. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde: p 375 417. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Jr M, Carvalho YM (Org.). Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: HUCITEC/FIOCRUZ; 2009. 871 p.). O autor afirma que a percepção do adoecimento não se restringe ao conjunto de aspectos individuais, mas também, de forma inseparável, daqueles coletivos e contextuais. A complexidade dos fatores que operam no rastreamento dos cânceres de mama e colo do útero foi evidenciada por outros estudos sobre o tema(55 Santos ROMl, Ramos DN, Migowski A. Barreiras na implementação das diretrizes de detecção precoce dos cânceres de mama e colo do útero no Brasil. Physis: Rev Saúde Coletiva. 2019;29(4):e290402. doi: 10.1590/S0103-73312019290402
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201929...
).

OBJETIVOS

Sistematizar uma experiência de educação permanente participativa com enfermeiros da atenção primária à saúde centrada no rastreamento do câncer de mama e colo do útero, identificando as potencialidades e vulnerabilidades que permeiam este cuidado.

MÉTODOS

Caminho metodológico: entrecruzamentos da educação, pesquisa e assistência

Relato de experiências sistematizado que se aproxima de uma possibilidade metodológica da Pesquisa-ação participativa em saúde, amplamente experimentada na América Latina no campo da educação popular, mas pouco explorada no campo da saúde. Para Oscar Jara Holliday(88 Holiday OJ. Para sistematizar experiências[Internet]. 2ªed. Brasília: Ministério do Meio Ambiente;. 2006 [2019 Mar 12]. 128 p. Available from: https://www.mma.gov.br/estruturas/168/_publicacao/168_publicacao30012009115508.pdf
https://www.mma.gov.br/estruturas/168/_p...
), sistematizar experiências é um desafio político pedagógico com bases na relação dialógica e na busca da interpretação crítica dos processos vividos, utiliza a própria experiência como objeto de estudo e interpretação teórica, possibilitando a formulação de lições e a disseminação.

A potência em sistematizar experiências vai além da documentação de um evento ou fato pontual, mas reside na possibilidade de transformar processos de trabalho dos sujeitos, através da reflexão sobre o significado de suas práticas, da análise dos resultados esperados e inesperados que vão surgindo e das relações e reações entre os participantes. Para descrever o processo, Holliday(88 Holiday OJ. Para sistematizar experiências[Internet]. 2ªed. Brasília: Ministério do Meio Ambiente;. 2006 [2019 Mar 12]. 128 p. Available from: https://www.mma.gov.br/estruturas/168/_publicacao/168_publicacao30012009115508.pdf
https://www.mma.gov.br/estruturas/168/_p...
) aponta cinco tempos: o ponto de partida, perguntas iniciais, recuperação do processo vivido, reflexão de fundo e os pontos de chegada.

RESULTADOS

O ponto de partida

O primeiro tempo tem como propósito a participação e o registro da experiência(88 Holiday OJ. Para sistematizar experiências[Internet]. 2ªed. Brasília: Ministério do Meio Ambiente;. 2006 [2019 Mar 12]. 128 p. Available from: https://www.mma.gov.br/estruturas/168/_publicacao/168_publicacao30012009115508.pdf
https://www.mma.gov.br/estruturas/168/_p...
). A experiência foi gestada a partir da participação de membros desta equipe no “Curso de capacitação e aprimoramento da assistência de enfermagem às mulheres na prevenção e rastreamento do câncer de mama e colo do útero - Capacite o multiplicador”, realizado em Teresina (PI) em outubro de 2017, promovido pela ABENFO/RJ/PI e ISNCC. Após o Curso, uma das pesquisadoras foi contemplada com um subsídio financiado pela ISNCC, com o intuito de multiplicar localmente aqueles saberes. Concomitantemente, foi concebido o projeto “Pesquisa-ação participativa e educação permanente com enfermeiros da atenção básica: prevenindo o câncer de colo do útero e mama” vinculado à Universidade Federal Fluminense (UFF) de Rio das Ostra/RJ, no âmbito do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Saúde Coletiva (GEPESC/CNPQ).

Neste sentido, os esforços de implementação das Oficinas de Capacitação foram somados aos trabalhos iniciais da pesquisa. A participação na CIES/BL do estado do Rio de Janeiro facilitou a discussão da proposta nesta instância colegiada, bem como a sua parceria, intermediando o contato com a Comissão de Intergestores Bipartite da baixada litorânea. A partir desses contatos foram pactuadas as duas oficinas voltadas aos enfermeiros dos nove municípios da baixada litorânea do estado do Rio de Janeiro.

Realizar uma intervenção de educação permanente, com foco na assistência, e realizar um projeto de pesquisa, exigiu uniformizar o conhecimento da equipe em metodologias ativas e participativas. Dessa forma, foi realizada a “Oficina de Pesquisa ação Participativa em Saúde (PaPS): uma aproximação com as metodologias participativas”, em abril de 2018, que contemplou toda a equipe executora da pesquisa. Propôs-se uma prática de formação capaz de potencializar as oficinas de educação permanente como momentos de construção partilhada de saberes. O objetivo desta oficina preliminar de PaPS era instrumentalizar a equipe da pesquisa com a abordagem da pesquisa ação participativa em saúde, metodologias convergentes e atividades grupais utilizando a metodologia do World Café(99 Brito I, Precioso J, Correia C, Albuquerque C, Samorinha C, Cunha-Filho H. Fatores associados ao consumo de álcool na adolescência em função do gênero. Psicol, Saúde Doenças. 2015;16(3):392-410. doi: 10.15309/15psd1603010
https://doi.org/10.15309/15psd1603010...
), que consiste em uma técnica de conversação, muito próxima ao Grupo Focal e que simula o ambiente de um café, orientada a partir de um tema, facilitando o envolvimento construtivo em questões complexas. O World Café só foi utilizado nesta oficina com o grupo de pesquisadores e bolsistas.

Perguntas iniciais

O segundo tempo inicia-se propriamente com a sistematização, tendo como base o ponto de partida, e apresenta três questionamentos essenciais: para que queremos sistematizar, que experiências queremos sistematizar e quais aspectos centrais dessas experiências nos interessa sistematizar?(88 Holiday OJ. Para sistematizar experiências[Internet]. 2ªed. Brasília: Ministério do Meio Ambiente;. 2006 [2019 Mar 12]. 128 p. Available from: https://www.mma.gov.br/estruturas/168/_publicacao/168_publicacao30012009115508.pdf
https://www.mma.gov.br/estruturas/168/_p...
)

Nesse sentido, experienciar as oficinas de educação permanente com os enfermeiros, abordando o rastreamento dos cânceres de mama e colo do útero, aplicando as metodologias ativas e sistematizando-as, oportunizava à equipe de pesquisa vivenciar o aprendizado construído na etapa anterior (PAPS), analisando a sua viabilidade para a capacitação e produção do conhecimento a partir das potencialidades e dificuldades expressas pelos trabalhadores em seus locais de trabalho.

Recuperação do processo vivido: uma encruzilhada de saberes e práticas

O terceiro tempo enfatiza os aspectos descritivos acerca da experiência com intuito de reconstruir a história, bem como ordenar e classificar as informações(88 Holiday OJ. Para sistematizar experiências[Internet]. 2ªed. Brasília: Ministério do Meio Ambiente;. 2006 [2019 Mar 12]. 128 p. Available from: https://www.mma.gov.br/estruturas/168/_publicacao/168_publicacao30012009115508.pdf
https://www.mma.gov.br/estruturas/168/_p...
). A primeira oficina, realizada em maio/2018, contou com 53 enfermeiros dos serviços de atenção primária à saúde e apresentou carga horária de oito horas. A programação contemplou uma parte teórica, com a presença de especialistas que ofereceram subsídios sobre o rastreamento dos cânceres e informações atualizadas de consensos técnicos sobre o tema, favorecendo a capacidade técnico-pedagógica de trabalhadores.

Abordou-se também os indicadores epidemiológicos e o rastreamento preconizado pelas atuais políticas públicas. Em nosso caso, houve esforço para superar estes limites empregando materiais visuais ilustrativos das práticas profissionais, estudos de caso como exemplos de diálogo teoria-prática e dados epidemiológicos da região, além da construção daquele espaço como possibilidade dialógica de saberes.

Após a exposição teórica, os enfermeiros foram separados em seis grupos, de oito a nove pessoas cada, para responder algumas questões que envolviam o cuidado do enfermeiro no rastreamento dos cânceres de mama e colo uterino. Nesse relato apresenta-se as respostas da seguinte questão disparadora para reflexão dos participantes: Fale sobre suas dificuldades e potencialidades no rastreamento do câncer de mama e do colo do útero. Para cada grupo foi designado um facilitador ou porta-voz (membro da equipe da capacitação), cujo papel era estimular as reflexões e discussões dos enfermeiros. Nessa etapa foi possível sondar de forma partilhada e dialogada as dificuldades, potencialidades e os desafios relacionados ao rastreamento que envolve o processo de trabalho do enfermeiro. Cada grupo anotava os pontos-chaves da discussão em folhas de papel craft. Ambas oficinas não foram gravadas e todo conteúdo foi registrado em papéis craft.

A segunda oficina, desenvolvida em setembro/2018, com carga horária de oito horas, contou com 43 enfermeiros que participaram da primeira oficina, juntamente com outros 10 novos profissionais. Seguindo a mesma metodologia da primeira, realizou-se uma atividade com conteúdos técnicos ministrados por especialistas em que foram discutidos a detecção precoce do câncer de colo do útero e mama e a reorganização da rede de oncologia da baixada litorânea. Na segunda oficina foi possível resgatar o trabalho produzido pela reflexão dos grupos da oficina anterior, com a releitura do material e realização da plenária com os resultados.

Através da análise do material produzido pelos enfermeiros nas duas oficinas, à luz das políticas públicas de saúde e diretrizes ministeriais, foi possível responder à questão orientadora desse relato organizando as respostas em grupos temáticos apresentados nos Quadro 1 e 2, aproximando os achados às categorias propostas por Ayres et al(77 Ayres JRCM, Calazans GJ, Filho HCS, França-Jr I. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde: p 375 417. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Jr M, Carvalho YM (Org.). Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: HUCITEC/FIOCRUZ; 2009. 871 p.) quando o autor analisa a vulnerabilidade.

Quadro 1
Categorização da produção dos grupos de enfermeiros, sobre suas práticas no rastreamento do câncer de mama e colo do útero, nos municípios da baixada litorânea do estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, maio e setembro de 2018

A reflexão de fundo e os Pontos de chegada

Os quarto e quinto tempos desta proposta metodológica tratam da ordenação, reconstrução e interpretação crítica das experiências sistematizadas. Nesta etapa pretende-se formular as conclusões e comunicar a aprendizagem(88 Holiday OJ. Para sistematizar experiências[Internet]. 2ªed. Brasília: Ministério do Meio Ambiente;. 2006 [2019 Mar 12]. 128 p. Available from: https://www.mma.gov.br/estruturas/168/_publicacao/168_publicacao30012009115508.pdf
https://www.mma.gov.br/estruturas/168/_p...
). No Quadro 1 observa-se que muitas das potencialidades relatadas estão relacionadas com os princípios do SUS, como criação de vínculo, realização de busca ativa, trabalho em equipe, acolhimento e intersetorialidade. Infere-se que a implementação da Política Nacional da Atenção Básica facilitou a inserção do enfermeiro na atenção primária como profissional que coordena a sua equipe, planeja, oferece cuidado direto e realiza atividades educativas. Todos participantes realizavam ações de rastreamento com alguma autonomia, mas com práticas diferenciadas.

Embora as dificuldades apresentem inúmeros desafios a serem superados, a necessidade de capacitação dos gestores foi ressaltada pelos participantes das oficinas. A aproximação de uma estratégia pedagógica mais participativa abordando a realidade dos participantes com a tradicional exposição dialogada dos aspectos normativos e técnicos dos programas também se mostrou relevante e promissora. Abordagens mais participativas na educação permanente visam transformar sistemas e incentivar o afastamento do foco tradicional de prestação de cuidados centrado nos indivíduos para iniciativas que promovam o envolvimento da comunidade(1010 Brito I. Participatory Health Research in the Education of Health and Social Work Professionals. In: Wright M, Kongats K. (eds) Participatory Health Research. Springer, Cham. 2018. doi: 10.1007/978-3-319-92177-8_4
https://doi.org/10.1007/978-3-319-92177-...
).

Aproximar as dificuldades relatadas no Quadro 1 com as dimensões da vulnerabilidade individual, social/contextual e programática(77 Ayres JRCM, Calazans GJ, Filho HCS, França-Jr I. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde: p 375 417. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Jr M, Carvalho YM (Org.). Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: HUCITEC/FIOCRUZ; 2009. 871 p.), Quadro 2, contribuiu para visualizar de forma mais clara os obstáculos de acesso das mulheres ao rastreamento deixando-as mais vulneráveis ao adoecimento e piores prognóstico da doença.

Quadro 2
Categorização das dificuldades relatadas por enfermeiros para realização do rastreamento do câncer de colo e mama, nas Oficinas de Capacitação, segundo as dimensões de vulnerabilidade propostas por Ayres et al., Rio das Ostras, Rio de Janeiro, Brasil, maio e setembro de 2018

Para além da facilidade de ter acesso às ações de rastreamento dos cânceres, a dimensão individual da vulnerabilidade apresenta aspectos relacionados com a cultura das usuárias como vergonha, medo, religiosidade e sofrimentos anteriores que demandam maiores estudos e tecnologias leves que facilitem a incorporação deles em abordagens educativas com as mulheres. Achados semelhantes foram identificados em estudo(55 Santos ROMl, Ramos DN, Migowski A. Barreiras na implementação das diretrizes de detecção precoce dos cânceres de mama e colo do útero no Brasil. Physis: Rev Saúde Coletiva. 2019;29(4):e290402. doi: 10.1590/S0103-73312019290402
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201929...
) que analisou as barreiras para a implantação das diretrizes para prevenção dessas doenças.

Por outro lado, a vulnerabilidade social/contextual aponta para a necessidade de aprimoramento na formação e mudanças no processo de trabalho gerencial do enfermeiro. Infere-se que reuniões das equipes que reflitam sobre estas dificuldades colocando em prática as premissas da educação permanente possam construir alternativas localizadas para melhorar o acesso das mulheres ao rastreamento. Já a programática, evidencia fragilidades específicas da gestão que demandam qualificação e sensibilização dos gestores, aspecto sugerido pelos enfermeiros participantes das oficinas.

A aplicação da estratégia proposta pela PaPS, inovando a perspectiva pedagógica, pode maximizar a participação dos enfermeiros e permitir visualizar problemas que, na maioria das vezes, fogem às capacitações com enfoque meramente clínico e centrado em discutir a ação de única categoria profissional. Aliar a educação permanente participativa e a metodologia da PaPS ajudaria melhorar os processos de atendimento (assimetria entre as propostas programáticas e a prática)(1010 Brito I. Participatory Health Research in the Education of Health and Social Work Professionals. In: Wright M, Kongats K. (eds) Participatory Health Research. Springer, Cham. 2018. doi: 10.1007/978-3-319-92177-8_4
https://doi.org/10.1007/978-3-319-92177-...
) minimizando as vulnerabilidades individual, social e programática(77 Ayres JRCM, Calazans GJ, Filho HCS, França-Jr I. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde: p 375 417. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Jr M, Carvalho YM (Org.). Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: HUCITEC/FIOCRUZ; 2009. 871 p.) dos processos de saúde/adoecimento em busca do cuidado, sobretudo o preventivo, incrementando a produção de conhecimento para a aplicação em contextos específico. Estudo(55 Santos ROMl, Ramos DN, Migowski A. Barreiras na implementação das diretrizes de detecção precoce dos cânceres de mama e colo do útero no Brasil. Physis: Rev Saúde Coletiva. 2019;29(4):e290402. doi: 10.1590/S0103-73312019290402
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201929...
) pressupõe que a comunicação ineficiente possa impactar na prática à adesão dos profissionais e usuários às recomendações das diretrizes ministeriais sobre o câncer de mama e as barreiras que se relacionam a seu rastreamento se devem a condições interdependentes, que de forma sinérgica se potencializam nas dimensões práticas, sistêmicas e organizacionais.

Limitações do estudo

Por tratar-se de um relato de experiência, a profundidade e alcance deste estudo são limitados, além desta basear-se na participação exclusiva de uma única categoria profissional, o enfermeiro, uma vez que o trabalho em saúde na atenção primária prima pelo trabalho em equipe.

Contribuições do estudo

Vislumbra-se a potencialidade de envolver, além dos enfermeiros, outros trabalhadores, gestores e usuárias em qualificações futuras ampliando a capacidade de resolutividade dos nós críticos apresentados, com propostas de estratégias inovadoras e mais participativas a fim de aprimorar o rastreamento do câncer da mama e colo do útero. Percebe-se a necessidade de estudos sobre a institucionalização dos programas e diretrizes do Ministério da Saúde nos municípios e as possibilidades e limites para os enfermeiros instituírem novas práticas, sob pena de acreditar que a falta de conhecimento técnico é o único limite que precisa ser transposto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista as constantes atualizações dos saberes e desafios na área da saúde, torna-se indispensável a utilização da educação permanente em saúde com o intuito de empoderar profissionais da atenção primária, gestores e usuárias envolvidos no cuidado do rastreamento do câncer de mama e colo do útero, visando a efetivação das ações recomendadas pelas atuais políticas públicas de saúde. Ao final deste relato encontram-se algumas aprendizagens vivenciadas que merecem destaque. Primeiro, a importância da educação permanente, como política e concepção pedagógica para melhorar a formação e as práticas dos enfermeiros na atenção primária em saúde. Segundo, como os princípios do SUS se fazem perceber nas práticas dos profissionais, potencializando-as. Terceiro, a aproximação com o conceito de vulnerabilidade, iluminou outros temas para orientar novas capacitações envolvendo equipe, gestores e usuárias. Os problemas identificados podem sinalizar caminhos inovadores, ainda não percorridos, visando uma melhor qualidade do cuidado ao rastreamento destes cânceres e impactando positivamente nos indicadores de saúde locais. Espera-se que esse processo de qualificação auxilie os enfermeiros e gestores da atenção básica na dinamicidade do cuidado que envolve o rastreamento do câncer de mama e colo uterino no SUS, desde o planejamento até a avaliação das ações realizadas.

REFERENCES

Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Hugo Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2019
  • Aceito
    26 Jun 2020
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: reben@abennacional.org.br