Contextos da investigação qualitativa em saúde

Quando o tema é a abordagem qualitativa na investigação, surgem os famosos clichês: pretende-se profundidade e não generalização, é uma investigação particularística. Mas, o que é isso de particularística?

A princípio, a investigação qualitativa pode ser entendida como aquela que produz achados não provenientes de quaisquer procedimentos ou formas de quantificação. Por meio desta modalidade de investigação, é possível compreender sobre o universo simbólico e particular das experiências, comportamentos, emoções e sentimentos vividos, ou ainda compreender sobre o funcionamento organizacional, os movimentos sociais, os fenômenos culturais e as interações entre as pessoas, seus grupos sociais e as instituições^(1-2).

Têm-se em consideração os contextos naturais em que os indivíduos ou grupos funcionam para proporcionar uma compreensão profunda dos problemas do mundo real. É particular e específica porque considera o fenômeno estudado no seu contexto dentre as dimensões espacial, temporal, socioeconômica, política e qualquer outra que condicione as perspetivas da população, como viver em tempos de pandemia com restrições à liberdade. Perspectivas que variam de acordo com o contexto que se vivencia, com o grupo social a que pertence, com fenômenos extemporâneos, observando-se, por exemplo, repentinas alterações por contágio social.

No olhar da investigação qualitativa, acredita-se na unicidade dos fenômenos, pelo que a generalização se contrapõe a muito intricada transferabilidade, que só poderá ocorrer perante a similitude de contextos, e mesmo esta pode ser sempre contestada.

Em outras palavras, reconhece-se a inseparabilidade dos fenômenos do seu contexto à medida em que não é possível analisar as percepções e significados dos indivíduos, silenciando o contexto⁽³⁾. O contexto deve ser encarado como algo fluido, como um conjunto não estático de circunstâncias influentes⁽⁴⁾, de variáveis que, em ciclo, se organizam, ou antes, que se reorganizam perante a variabilidade do contexto que, por sua vez, reage às variáveis que ele próprio influencia em uma sequência de ação-reação-reação.

A investigação qualitativa não acrescenta somente um conjunto de métodos aos grupos de controlo e experimentais, posiciona-se em um paradigma investigativo diferente. Traz novas justificativas para fazer investigação, tem diferentes crenças e valorizações sobre tipologia de coleta de dados e sua análise. São essas assunções fundamentais que crivam o debate ontoepistemológico da investigação em saúde e em ciências sociais⁽⁵⁾.

Temos observado um forte incremento do volume de textos publicados sobre investigação qualitativa mais focados na seleção de técnicas e implicações de diferentes estruturas concetuais, análise e usabilidade dos achados^(6-7). Suscita-nos a questão: porque esse investimento em investigação qualitativa no campo da saúde foi anteriormente alicerçado quase exclusivamente em ensaios clínicos?

Ora, socorremos-mos nas palavras de Ribeiro, Souza e Costa⁽³⁾, quando justificam que este investimento se deve à necessidade de construir conhecimento sobre o foco principal da saúde... os receptores e os prestadores de cuidados “Indubitavelmente, a saúde é das pessoas, para as pessoas e pelas pessoas”. Conhecer as perspetivas dos envolvidos no processo saúde-doença, entender as emoções e comportamentos dos doentes, famílias e profissionais de saúde concorrem para a melhoria e valorização de cuidados de saúde prestados, fomentando a colaboração em ações de saúde implementadas individual e coletivamente⁽³⁾.

A metodologia qualitativa permite ao investigador adentrar ao pensamento e às significações do fenômeno por dar voz ao sujeito e conhecer as percepções e os sentimentos de profissionais de saúde sobre o cotidiano do trabalho nos aspetos que lhes dão prazer ou sofrimento. Do mesmo modo, torna-se fundamental conhecer as experiências vividas dos receptores de cuidados de saúde e suas famílias através de estudos de natureza fenomenológica, tornando o processo de coleta de dados interativo, que acompanha o progresso da pesquisa⁽⁸⁾ sobre, entre outros, percepções e expetativas de cuidados, mudanças de atitude face ao binômio saúde-doença e percepção de habilidades do próprio receptor de cuidados na satisfação das suas necessidades.

Perante o momento atual dos sofrimentos e sacrifícios impostos pela crise pandêmica, urge a necessidade do surgimento e desenvolvimento de novas estratégias para identificação, compreensão e enfrentamento do fenômeno⁽⁹⁾. Atentos às restrições impostas no acesso direto aos receptores de cuidados e suas famílias, é importante recriar os métodos de coleta de dados no decorrer do processo de pesquisa.

Os desafios são enormes para os investigadores da área da saúde. O cenário de emergência sanitária de escala planetária exige ajustes na conceção dos planos de investigação. No tocante à investigação qualitativa, o ajustamento vai do planeamento à coleta e análise dos dados, métodos, técnicas, quadro ético e segurança dos investigadores. Não obstante, este contexto representa um quadro de oportunidades para a investigação qualitativa.

REFERENCIAS

• ¹
  Strauss AL, Corbin JM. Basics of qualitative research?: techniques and procedures for developing grounded theory. 2nd ed. Thousand Oaks, CA: Sage Publications; 1998.
• ²
  Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 27th ed. Petrópolis: Vozes; 2008.
• ³
  Ribeiro J, Souza DN, Costa AP. Qualitative research in the area of health: the whys and wherefores. Cienc Saúde Coletiva. 2016;21(8):2325. doi: 10.1590/1413-81232015218.15612016
  » https://doi.org/10.1590/1413-81232015218.15612016
• ⁴
  Brandão C, Ribeiro J. A importância do contexto na investigação qualitativa. Rev Psicol Divers e Saúde. 2018;7(1):169-73. doi: 10.17267/2317-3394.v7i1.1897
  » https://doi.org/10.17267/2317-3394.v7i1.1897
• ⁵
  Willis JW. Foundations of qualitative research: interpretive and critical approaches. Thousand Oaks, CA: Sage Publications; 2007.
• ⁶
  Berg BL. Qualitative research methods for the social sciences. 7th ed. Boston: Allyn and Bacon; 2008.
• ⁷
  Silverman D. Doing qualitative research: a practical handbook. 3rd ed. Thousand Oaks, CA: Sage Publications; 2009.
• ⁸
  Korstjens I, Moser A. Series: Practical guidance to qualitative research. part 2: Context, research questions and designs. Eur J Gen Pract. 2017;23(1):274-9. doi: 10.1080/13814788.2017.1375090
  » https://doi.org/10.1080/13814788.2017.1375090
• ⁹
  Cabral Filho JE. Covid-19 Desafios e oportunidades para artigos qualitativos. Rev Bras Saúde Mater Infant. 2020;20(1):5-6. doi: 10.1590/1806-93042020000100001
  » https://doi.org/10.1590/1806-93042020000100001

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  24 Mar 2021
• Data do Fascículo
  2021