Consolidação do gerencialismo na educação universitária em enfermagem: repercussões para o Sistema Único de Saúde

RESUMO

Objetivos:

analisar os modos como o neoliberalismo tem se consolidado na universidade pública e na docência universitária em enfermagem; e que interferências tem produzido nas concepções e práticas pedagógicas de professores-enfermeiros.

Métodos:

trata-se de uma pesquisa qualitativa fundamentada na Análise Institucional e realizada em uma universidade pública.

Resultados:

os dados produzidos com os docentes enfermeiros revelaram a consolidação da Nova Gestão Pública na docência universitária do professor-enfermeiro, o que se manifesta em contradição com os pressupostos formativos para o Sistema Único de Saúde.

Considerações Finais:

é perceptível o quanto a universidade e a docência universitária em enfermagem já estão impregnados pela lógica neoliberal. Isso possivelmente repercutirá na formação de profissionais para o Sistema Único de Saúde.

Descritores:
Docentes; Enfermagem; Educação; Sistema Único de Saúde; Gestão em Saúde

ABSTRACT

Objectives:

to analyze the ways in which neoliberalism has consolidated itself in the public university and in university teaching in nursing; and what interferences it has produced in the pedagogical conceptions and practices of nurse educators.

Methods:

this is a qualitative research based on Institutional Analysis and conducted in a public university.

Results:

the data produced with the nursing teachers revealed the consolidation of the New Public Management in the university teaching of the professor-nurse, which is in contradiction with the formative assumptions for the Unified Health System.

Final Considerations:

it is noticeable how the university and the university teaching in nursing are already impregnated by neoliberal logic. This will possibly have repercussions on the training of professionals for the Unified Health System.

Descriptors:
Faculty, Nursing, Education, Unified Health System, Health Management

RESUMEN

Objetivos:

analizar los modos como el neoliberalismo se ha consolidado en la universidad pública y en la docencia universitaria en enfermería; y que interferencias ha producido en las concepciones y prácticas pedagógicas de profesores enfermeros.

Métodos:

se trata de una investigación cualitativa fundamentada en el Análisis Institucional y realizada en una universidad pública.

Resultados:

los datos producidos con los docentes enfermeros revelaron la consolidación de la Nueva Gestión Pública en la docencia universitaria del profesor enfermero, lo que se manifiesta en contradicción con los presupuestos formativos para el Sistema Único de Salud.

Consideraciones Finales:

es perceptible lo cuanto la universidad y la docencia universitaria en enfermería ya han impregnados por la lógica neoliberal. Eso posiblemente repercutirá en la formación de profesionales para el Sistema Único de Salud.

Descriptores:
Docentes; Enfermería; Educación; Sistema Único de Salud; Gestión en Salud

INTRODUÇÃO

É inegável a consolidação acelerada da ideologia neoliberal no mundo nas últimas décadas, se disseminando para os mais diversos setores sociais e implementando sua lógica de mercadologização e mercantilização de tudo aquilo que é possível na vida humana⁽¹⁾. No Brasil, a consolidação de fato do neoliberalismo começa a se intensificar a partir da Emenda Constitucional (EC) n.º 19, de 04 de junho de 1998 (EC 19/1998), efetuada pelo ministro Bresser-Pereira, no governo de Fernando Henrique Cardoso, por meio de um dispositivo de gestão chamado de Nova Gestão Pública, notadamente implementada no país pela vertente gerencialista^(2-3).

O neoliberalismo tem como princípio a entrega de todas as formas e produtos da sociedade humana para a iniciativa privada e, para isso, incentiva o individualismo e a individualização da sociedade, por meio de vários dispositivos que tornam os indivíduos prestadores de serviços; e estes serviços, passíveis de terem sua “eficiência” e “excelência” mensuradas por índices e métricas^(1,4-5).

O Estado brasileiro, que vinha se consolidando pelos fundamentos da Constituição Cidadã de 1988, apoiado principalmente sobre a Declaração dos Direitos Universais do Ser Humano e sobre a democracia participativa deliberativa direta, estava se institucionalizando por uma série de dispositivos que os participantes dos movimentos constituintes haviam construído. Entretanto, outra força instituinte, a EC 19/1998, foi estabelecida pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE)⁽⁶⁾. Seria isso uma contrarreforma do Estado?

Para tanto, Bresser-Pereira se lança a estudar diretamente na fonte, na Inglaterra, os movimentos que culminariam em algo chamado New Public Management (Nova Gestão Pública), trazendo tal modalidade de gestão para editarem essa EC que daria outro rumo à consolidação do Estado brasileiro — um movimento instituinte para atualizar o Estado de Bem-Estar Social e de Direitos para um Estado neoliberal, ou ultraliberal como dito por alguns autores^(2,7).

A principal característica abordada pela EC supracitada se refere à separação das atividades do Estado em exclusivas e não exclusivas. As atividades exclusivas do Estado ficariam a cargo dos funcionários de alto escalão, diretamente relacionados aos três poderes, aos quais foi dado treinamento massivo para se apropriarem da perspectiva da Nova Gestão Pública. As atividades não exclusivas do Estado foram definidas como aquelas que poderiam ser oferecidas não apenas pelo setor público, mas também pela iniciativa privada, pelo terceiro setor e pela especulação financeira, dentre as quais se encontram a educação, a saúde, a assistência social, transporte público etc.⁽²⁾.

Nesse ensejo, quanto ao setor educação, além da grande expansão de estabelecimentos de ensino superior financiados e movidos pelo capital especulativo (financeirização da educação), somase a implementação/estimulação de modelos do tipo empresarial, tomando conta da gestão e organização estrutural das universidades públicas^(8-9). Acredita-se, ainda, que um dos dispositivos que também apoiou a transformação das lógicas de funcionamento e a raison d’être das universidades foi o produtivismo acadêmico⁽¹⁰⁾.

Alguns autores já comentam que a docência no ensino superior em enfermagem, assim como a docência universitária em geral, vem sofrendo transformações causadas pelo neoliberalismo: no setor privado, a precarização das relações de trabalho; e, no setor público, o produtivismo acadêmico, que, de certo modo, também intensifica e precariza o trabalho docente e a produção de conhecimentos^(8-9,11-13), justamente por alterar a finalidade última da produção de conhecimentos e por ter grande potencial de modificar profundamente os objetivos e as finalidades outras da formação de profissionais de saúde que não para o Sistema Único de Saúde (SUS).

Vê-se um dilema no processo de institucionalização da formação para a atuação de profissionais de saúde. Pode-se perceber a formação em saúde de pelo menos dois modos. Um deles seria um dos dispositivos apoiadores da consolidação do SUS, visto que é possível aproximar dos locais de saúde os profissionais durante o processo formativo para aprenderem juntos suas atribuições específicas e comuns da equipe⁽¹⁴⁾; com isso, se conseguiria fazer desenvolver ainda mais conceitos e práticas fundamentais do SUS, tais como integralidade do cuidado e da assistência, acolhimento, transversalidade e trabalho em equipe, dentre outros. O outro modo é aquele que responde aos anseios neoliberais de formação de trabalhadores para a consecução de determinado tipo de trabalho que visa atender às necessidades de profissionais com competências pré-estabelecidas pelo mercado de trabalho, respondendo às demandas do capital financeiro em mundialização⁽¹⁵⁾.

Desse modo, a lacuna do conhecimento apresentada até aqui se resume na seguinte questão: Quais são as pistas de que o neoliberalismo tem se institucionalizado na universidade pública brasileira e o que isso tem ocasionado à docência universitária em enfermagem?

OBJETIVOS

Analisar os modos como o neoliberalismo tem se consolidado na universidade pública e na docência universitária em enfermagem; e que interferências tem produzido nas concepções e práticas pedagógicas de professores enfermeiros.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Este artigo é originário de uma tese de doutorado defendida em 2018⁽¹⁶⁾, sobre consolidação do gerencialismo na docência universitária em enfermagem. Para representar os professores e garantir o anonimato, foi utilizada a letra P para trechos advindos de entrevistas, diário de pesquisa e encontros com professores-enfermeiros. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e atendeu à Resolução CNS n.º 466/2012, assim como aos preceitos da Declaração de Helsinki.

Referencial teórico-metodológico e tipo de estudo

O quadro teórico-metodológico desta pesquisa qualitativa foi a Socioclínica Institucional, uma das vertentes do movimento francês da Análise Institucional (AI). A AI é uma abordagem que visa desnaturalizar as cristalizações das instituições e se fundamenta na ideia de que é por meio do movimento histórico-social que tudo se institucionaliza. A AI compreende instituição como o que comporta suas regras próprias de existir, indo para além da organização social, “inter-vindo” na essência grupal da vida, atualizando as atitudes e comportamentos dos indivíduos em constante produção de sentidos e significados^(17-19). A instituição comporta o jogo de contradições evolutivas nos campos, sobretudo, do saber e do poder⁽²⁰⁾.

A AI nasce na década de 1960, na França, em meio aos movimentos sociais. René Lourau e Georges Lapassade são os principais expoentes dos estudos sociais concernentes à análise das instituições, sendo, principalmente, responsáveis pela produção e manutenção da corrente de intervenção socioanalítica. A Intervenção Socioanalítica contempla estudos menos duradouros, com intervenções curtas e breves, e foi concebida a partir da articulação da Socioanálise, proposta por Jacques e Maria van Bockstaele na década de 1950, bem como da Sociologia da Intervenção, em especial da perspectiva de Alain Touraine, elaborada na década de 1960. Nesse sentido, Gilles Monceau propõe a Socioclínica Institucional, revisitando os princípios propostos por René Lourau e indicando oito características para balizar as intervenções, sendo elas: atenção aos contextos e interferências institucionais; análise das encomendas e demandas; análise das implicações primárias e secundárias; trabalho dos analisadores; análise das transformações conforme o trabalho avança; a realização de restituições; intenção de produção de conhecimentos; e participação dos sujeitos no dispositivo⁽²⁰⁾.

Pode-se dizer que a socioclínica se refere às intervenções mais duradouras, as quais provocam as instituições, os instituídos e que tomam proveito dos efeitos produzidos nesse ensejo para produzir a análise institucional⁽²⁰⁾.

Nesta pesquisa, os princípios e dispositivos da socioclínica institucional ajudaram a provocar análises, autoanálises em um grupo de professores-enfermeiros universitários com relação a concepções e práticas pedagógicas. Estas são entendidas como prática profissional, desenvolvida na perspectiva de análise de práticas profissionais que vão se atualizando ao longo do tempo a partir da dialética dos instituídos, instituintes e de institucionalização (universalização, particularização e singularização), estando intimamente relacionadas às implicações profissionais⁽¹⁷⁾.

Por fim, vale dizer que a intervenção realizada com este grupo participante foi duradoura, se estendendo por quatro anos de pesquisa.

Procedimentos metodológicos

Os participantes advindos do local de estudo foram convidados, inicialmente, para integrarem a pesquisa pelo contato por e-mail institucional disponibilizado no site do local de estudo. Foram contatados 84 docentes enfermeiros, dos quais apenas 22 responderam. Dentre estes, 14 aceitaram participar da pesquisa, e 8 referiram não ter disponibilidade de tempo. Outros participantes foram convidados pessoalmente em ocasião de eventos da área da formação em enfermagem, selecionados ao acaso, desde que contemplassem os critérios de inclusão, quais sejam: ser docente universitário enfermeiro, atuante em universidade pública (ensino, pesquisa e extensão) na formação de enfermeiros. Profissionais docentes de outros campos do saber não foram incluídos neste estudo. Após aceite e consentimento, foram agendadas entrevistas, observações e restituições.

Cenário do estudo

O cenário de estudo foi um estabelecimento público de educação superior em enfermagem, mas o nome do local estudado foi omitido propositadamente para preservar o anonimato dos participantes.

Fonte de dados

Os dados foram obtidos de docentes do ensino superior em enfermagem participantes da pesquisa, sendo 18 professores-enfermeiros, todos de estabelecimentos públicos: 13 destes, do mesmo estabelecimento (todos doutores, com tempo médio de 10 anos de atuação no estabelecimento, variação de 2 a 29 anos de docência), dos quais 12 perduraram na produção de dados ao longo de toda a pesquisa, sendo que 1 encerrou a participação antes das restituições individuais e encontros coletivos por falta de tempo; os outros cinco participantes foram professores-enfermeiros de diferentes estabelecimentos públicos de educação superior de quatro regiões do país (Nordeste, Norte, Sudeste e Sul). Documentos oficiais tanto do estabelecimento estudado como de agências de pesquisa também foram fonte de dados.

Produção e organização dos dados

Vários dispositivos analíticos, entendidos como tudo aquilo que ajuda na ampliação e/ou produção de análises e de dados, inclusive análise dos próprios dispositivos^(21-24), foram utilizados para produção e restituição dos dados nesta pesquisa, dentre eles: entrevistas, observações, análises documentais, restituições individuais e coletivas, utilização de diário de pesquisa e de novas entrevistas para continuar produzindo dados, reflexões, análises e interpretações, assim como seguir na provocação/produção de efeitos. As entrevistas foram realizadas, transcritas e analisadas pelo doutorando, que se encarregou também das observações de campo. Em seguida, as narrativas analíticas foram apresentadas e discutidas em reunião privativa específica de grupos de pesquisas com outros pesquisadores e estudantes de pós-graduação. Os grupos de pesquisa que deram suporte ao aprofundamento dos estudos e realização de treinamentos para esta pesquisa eram referentes à pesquisa qualitativa, à socioclínica institucional, à saúde coletiva e à educação. Desse modo, pôde-se levar para os momentos de restituição individual e coletiva um material extensamente refletido e analisado, a ser apreciado e discutido com os participantes.

Tanto as entrevistas quanto as observações compuseram, ao mesmo tempo, o dispositivo de pesquisa enquanto estratégias provocadoras de reflexões pedagógico-formativas e capazes de fazer aparecer as contradições do pensar-fazer pedagógico do professor universitário enfermeiro. As observações ocorreram nas atividades de sala de aula, em laboratórios, atividades práticas em serviços de saúde e na própria imersão no local estudado e foram compreendidas nesta pesquisa como movimentos de “estar com” o outro na produção de dados e informações, colocando em análise as contradições em ato, portanto intimamente imbricadas aos princípios da pesquisa intervenção e da análise institucional. Todas as estratégias provocadoras utilizadas nesta pesquisa também foram atravessadas pela diversidade de tipos, modos e formas de participação dos professores universitários enfermeiros, os quais têm agendas repletas de atividades. Por isso, a participação nesta pesquisa foi compreendida como algo produzido ao longo do processo, flexível, cíclica e diretamente relacionado com as implicações.

Ao longo da pesquisa, também houve encontros de análise de implicação, em que os participantes e o doutorando, com assessoria de um pesquisador-observador, analisaram suas implicações em relação à pesquisa, colocando em análise as dimensões histórico-existencial, psicoafetiva e estrutural-profissional. A análise de implicação ajuda os participantes e o pesquisador a desvelarem as interferências institucionais no decorrer da produção metodológica, analítica e epistemológica, devendo ser, inegável e imanentemente, realizada no seio do coletivo⁽²⁴⁾.

Assim, foram realizadas 13 entrevistas audiogravadas e transcritas, com 104 horas de observações em salas de aula, de atividades de laboratório, de estágios e imersões; e análise de 63 documentos (1 documento com autorização, 18 cedidos e 44 disponíveis on-line), dentre os quais resoluções da universidade e do estabelecimento estudado, planos de aula, planos de disciplinas, pareceres, projetos pedagógicos, grades horárias e um compilado sobre a avaliação institucional, além de documento de agência reguladora de pesquisa. Nas restituições individuais e coletivas, foram apresentadas e discutidas com os participantes as sínteses, análises e interpretações produzidas a partir das entrevistas, análises documentais e imersão no cenário de estudo. Foi usado um diário de pesquisa no qual foram feitas anotações que deram continuidade à produção de dados em todos os momentos desta pesquisa, contendo anotações de reflexões, descrições e outras informações. O período de produção de dados e análises foi de janeiro de 2014 a setembro de 2018.

Para a produção deste artigo, os 32 itens do COREQ foram considerados como constituidores de um roteiro pertinente a esta pesquisa qualitativa fundamentada na Socioclínica Institucional.

Análise dos dados

A análise levou em conta momentos de transcrição/tradução (transcrição de entrevistas; produção de observações, análise de documentos); transposição/rearranjo (‘re’produção dos dados por meio de: restituições individuais; imersão constante no cenário; retomada permanente das anotações do diário de pesquisa; encontros de discussão coletiva); e reconstituição/narração (produção de um texto que busca representar todo o processo de pesquisa, produção, análise e interpretação dos dados: a tese)⁽²⁵⁾.

RESULTADOS

Pela análise de implicação realizada ao longo desta pesquisa, foi possível destacar que a maioria dos participantes compartilhava origens e histórias de vida similares, notadamente da classe operária, apresentando entusiasmo em relação à transformação da docência e da formação de enfermeiros na educação superior, por meio de educação crítica. Isso, de certo modo, apresenta o contexto com base no qual a produção de dados pôde ser tecida.

Para a produção dos resultados, três analisadores da “docência universitária e o professorenfermeiro” foram fundamentais: “relação tempo-dinheiro”, “discutir concepções pedagógicas” e “resistência”. Os analisadores, a partir da socioclínica institucional, são tudo aquilo que provoca as instituições a se desvelarem e mostrarem suas contradições, influências e atualizações em processo.

A apresentação dos resultados se deu com base na origem de produção dos dados, organizados da seguinte maneira: “consolidação da Nova Gestão Pública na universidade e na docência universitária do professor-enfermeiro a partir de documentos”; “consolidação da Nova Gestão Pública na universidade e na docência universitária do professor-enfermeiro a partir de dados de observação”; “consolidação da Nova Gestão Pública na universidade e na docência universitária do professorenfermeiro a partir de entrevistas com participantes do local de estudo”; e “consolidação da Nova Gestão Pública na universidade e na docência universitária do professor-enfermeiro a partir de entrevistas com participantes de outros centros formadores”.

Consolidação da Nova Gestão Pública na universidade e na docência universitária do professorenfermeiro a partir de documentos

Identificou-se uma mudança de direção na gestão e gerenciamento do Estado brasileiro, em documentos oficiais, produzindo as brechas para a financeirização de setores como o da Educação, principalmente, e o da Saúde, que são as duas áreas-foco desta pesquisa. O seguinte trecho anuncia esta questão com a palavra “eficiência” incluída no Art. 37 da Constituição Federal⁽²⁶⁾:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]. (documento analisado – Art. 37 da Constituição Federal).

Os relatórios de gestão mais recentes da universidade estudada começam a incluir terminologias e ideologias típicas do gerencialismo (Nova Gestão Pública), tais como “eficiência”, “excelência”, “produtividade”, “melhor aproveitamento dos recursos”, “cortar gastos”, “reduzir custos”, “prestação de contas” (accountability), “praticidade”, dentre outros, tal como apresentado nos seguintes trechos de análise:

[...] a prestar contas de maneira mais transparente, [...]. (Trecho analítico do relatório de gestão da universidade estudada)

[...] universidade que valoriza a excelência [...] incluída em todos os rankings [...]. (Trecho analítico do relatório de gestão da universidade estudada)

[...] ensino de graduação [...] ações práticas [...] modificações curriculares [...] mais simples e rápidas [...] recuperação e modernização de espaços didáticos. (Trecho analítico do relatório de gestão da universidade estudada)

A universidade estudada começou a implementar regimes diferentes de trabalho e processos avaliativos das atividades docentes. Iniciou-se também um processo de contratação de docentes temporários com salários mais baixos, cujos vencimentos são cerca de dois salários mínimos vigentes (se refere ao parâmetro do início de 2019), para trabalharem 12 horas/semana de dedicação ao ensino, ao passo que os cargos efetivos não são repostos de acordo com a necessidade. Os excertos a seguir, cujas citações e referências foram omitidas por questão ética, anunciam essa questão:

[regime um] regime preferencial do corpo docente da [universidade estudada] tem a finalidade de estimular a excelência e favorecer o aprimoramento contínuo das atividades de ensino, pesquisa, extensão e cultura. [...] [regime dois] é um regime especial de trabalho no qual o docente se obriga a trabalhar na [universidade estudada] por 24 [vinte e quatro] horas semanais [...] de ensino, pesquisa e extensão. [...] [regime três] [...] trabalhar na [universidade estudada] por 12 [doze] horas semanais em atividades de ensino. (Trecho analítico de resolução da universidade estudada)

[...] inadequação do docente ao regime de trabalho estabelecido [...] recomendar a sua alteração [...]. (Trecho analítico de resolução da universidade estudada)

No caso da enfermagem, o relatório da Capes para a área de enfermagem de 2017, já comporta elementos predominante ou prioritariamente quantitativos, conforme ilustram os excertos analíticos a seguir:

Neste quadriênio ocorreram 5.444 titulações na Área, dos quais 3.446 mestres acadêmicos, 1.309 doutores e 631 mestres profissionais, representando um crescimento relativo de 44%, 64% e 407%, respectivamente, em relação às titulações ocorridas até 2012. Permanece o desafio de expandir a titulação de doutores em Enfermagem, pois seu crescimento tem sido insuficiente para atender a necessidade do mercado de trabalho e está aquém da meta de duplicar o número de pesquisadores qualificados, em 10 anos, estabelecida no PNPG 2011-2020. (Trecho analítico do relatório Capes Enf. 2017)

A expansão dos programas de pós-graduação, em quantidade e qualidade, refletiu em um aumento expressivo da produção científica ao longo do tempo, especialmente no quadriênio 2013-2016, com a publicação de 16.321 artigos em 1.579 periódicos, configurando um crescimento relativo de 77% em relação ao triênio passado. Tal crescimento contribuiu para o processo crescente de internacionalização da Área [...]. [...] fomentar o desenvolvimento de centros de excelência em ensino e pesquisa de Enfermagem de padrão internacional, para contribuir efetivamente com o desenvolvimento de tecnologias e inovação para o cuidado e gerenciamento de serviços de saúde. (Trecho analítico do relatório Capes enfermagem 2017)

A primeira etapa foi realizada cinco a seis semanas antes da semana de avaliação na Capes, em Brasília. Essa etapa foi organizada em torno de vários passos iniciados pela avaliação dos quesitos 2, 3 e 4, com geração de indicadores quantitativos de todos os programas e preenchimento de planilhas construídas para essa finalidade. Ao receber as planilhas preenchidas por todos os avaliadores, os dados foram importados para uma planilha única que permitiu uma visão panorâmica da Área. (Trecho analítico do relatório Capes enfermagem 2017)

Deram ainda subsídios para se pensar no desempenho da Área nos quesitos e nos cortes/métricas que seriam revistos em sequência. Feito isso, após a revisão de alguns dados auditados pela Coordenação, foram definidos os cortes de cada um dos indicadores de avaliação e devolvidas as planilhas para os consultores elaborarem os seus pareceres, contendo programação de funções estatísticas para emissão de conceitos [Muito Bom, Bom, Regular, Fraco e Insuficiente], baseada nas métricas revistas nesta quadrienal a partir do desempenho dos programas. (Trecho analítico do relatório Capes enfermagem 2017)

Consolidação da Nova Gestão Pública na universidade e na docência universitária do professorenfermeiro a partir de dados de observação

Este estudo mostra que tais medidas afetaram as disciplinas de graduação, uma vez que estas estão tendo que se reinventar/se adaptar para continuarem a existir, pois o número de professores foi reduzido, impulsionando o corpo docente a regressar a modelos teórico-expositivos de ensino, tal como apresentado no seguinte trecho analítico:

Em encontro informal com P03, a professora afirma que, por conta dos cortes e não recontratações docentes, sua disciplina terá que repensar suas estratégias e métodos de ensino-aprendizagem, uma vez que trabalhavam em quatro professores para uma turma de 50 estudantes, sendo pequenos grupos entre 10-12 estudantes por professor, conforme as exigências do referencial pedagógico utilizado para a formação de profissionais críticos, e agora terão que trabalhar com um grupo maior por professor, aproximadamente 17 estudantes, ou mesmo fazer dois grupos de estudantes para cada professor, o que ampliaria muito a carga horária docente de dedicação ao ensino de graduação. (Trecho de anotação em diário de pesquisa)

Consolidação da Nova Gestão Pública na universidade e na docência universitária do professorenfermeiro a partir de entrevistas com participantes do local de estudo

Outro aspecto importante é o modo como a docência no ensino superior em enfermagem vem sendo adaptada ou cooptada à lógica produtivista a fim de que mais tempo esteja disponível para dedicação às atividades que geram produtos quantificáveis pela avaliação Capes — a pesquisa:

Muito complicado na nossa vida na Universidade [...] devido à pesquisa, à cobrança quanto ao nosso envolvimento na pesquisa e, principalmente, com a divulgação do produto de nossas pesquisas, principalmente, em termos de publicações extremamente exigentes, que demanda um tempo muito grande e a grande cobrança da produção científica! [...] Então, o ensino fica bastante complicado, porque eu entendo que ele devia ser sagrado na Universidade. E, particularmente, a graduação, que é a base de tudo, eu acho que [...] deveria ter um grande investimento. E a docência, realmente, ter um tempo maior para isso tudo. Mas, não é! O tempo maior não é destinado para o ensino, particularmente da graduação, infelizmente. [...] Porque as exigências da Universidade são outras! Não são voltadas ao ensino de graduação. Faz, faz e faz [...]. Então, eu acho que a Universidade devia ser mais cuidadosa nesse sentido de realmente o docente investir seu tempo no ensino de graduação, na base. Infelizmente, isso não ocorre, e parece que não é a tendência futura. Aliás, eu acho que a tendência futura é o inverso disso, é investir menos na graduação. (P11 – trecho analítico de entrevista individual)

Consolidação da Nova Gestão Pública na universidade e na docência universitária do professorenfermeiro a partir de entrevistas com participantes de outros centros formadores

Esta situação também foi confirmada quando de novas entrevistas com outros participantes de outras universidades:

[...] É uma lógica de produtivismo, produzir mais do mesmo mais com o intuito de pontuar do que com a relevância social, muitas vezes não dá um retorno para os sujeitos que não, não tem um tópico de recomendações né, o que que você pode sugerir. Porque o meio acadêmico é muito nocivo, só crítica por crítica dos serviços de saúde, dos cenários, mas não contribui né assim de forma efetiva, não produz evidências, produz evidência para a própria academia, mas não produz, ele não [...] é [...] não transforma essas evidências para os serviços, para os usuários. [...] É uma cultura estabelecida e um círculo vicioso né, que é perpassado de orientador de geração a geração. (PC01 trecho analítico de nova entrevista com professor-enfermeiro da região Norte do país)

DISCUSSÃO

Os analisadores “relação tempo-dinheiro”, “discutir concepções pedagógicas” e “resistência”, associados ao conjunto de dispositivos analíticos produtores de dados, produziram efeitos provocados pela atualização neoliberal que, principalmente, as instituições Estado, Universidade, Docência na Educação Superior e Formação sofreram nos últimos anos, o que possivelmente interfere de modo direto na formação da enfermagem para o trabalho no SUS.

A mudança de direção na gestão e gerenciamento do Estado brasileiro é identificada, sobretudo, com a EC 19/1998, da reforma do Estado brasileiro, o que é observável por meio da inserção de termos referentes à eficiência, avaliação por desempenho, fixação de metas etc. Some-se a isso que os servidores públicos foram treinados pelo governo da época, na década de 1990, para atenderem a tais mudanças desejadas de reforma.

Nesse contexto, os processos avaliativos das atividades docentes passam a ter um formato caracterizado pela possibilidade de punições/sanções, como a alteração do regime de trabalho caso o docente não atinja os parâmetros de produtividade pré-estabelecidos por comissão de avaliação docente e por seus pares na unidade credenciada.

O relatório da Capes para a área de enfermagem de 2017 também propicia reflexões nesse sentido, uma vez que porta elementos como: avaliação indireta dos docentes universitários por meio dos relatórios dos programas de pós-graduação; avaliação quantitativa mediante indicadores quantitativos ou quantificadores pré-estabelecidos; pontuações estabelecidas com base em quantidades numéricas de produtos (artigos, internacionalização) e qualidade avaliada por meio de números de citações (quantitativas).

Nesta universidade estudada, foi nítido o impacto de tais medidas. Houve disciplinas que possuíam número maior de professores para serem oferecidas em formatos adequados à formação de trabalhadores voltados para o SUS, com imersão/estágios nos cenários de saúde (contato direto com a prática social como preconizado à formação para o SUS) desde o início do curso, em que professores acompanhavam os estudantes de enfermagem (em número de 10 para cada professor) nos cenários de exercício profissional, buscando alinhamento com a consolidação do SUS. Essas disciplinas estão sendo forçadas/induzidas a mudarem suas conformações pedagógicas para atenderem aos ideais neoliberais.

No local pesquisado, existe uma forte cultura de produtivismo acadêmico, voltado para atender às demandas de produtividade segundo os critérios da Capes, no intuito de consolidar os programas de pós-graduação, mantendo ou elevando suas notas. Para tanto, os professores estão sendo “motivados” a elaborarem mais “produtos” dessa natureza, encomendados pela Capes e reafirmados por meio de suas resoluções e decisões. Isso tem causado certa redução da dedicação ao ensino e à extensão ou ainda a assunção de processos formativos e extensionistas com maior praticidade de execução/gestão pelos professores.

A partir dos resultados deste estudo, é possível perceber que tanto a universidade estudada como o tipo de trabalho docente estão se alinhando cada vez mais com os ideais neoliberais. Isso se deve, principalmente, às medidas tomadas que buscaram a institucionalização dessa perspectiva, atualizando o modelo de Estado, que fora constituído com a intenção de um Estado de Bem-Estar Social e de Direitos, para o de um Estado-Empresa aos moldes neoliberais.

Desse modo, sabendo o poder de influência e indução do Estado sobre as atividades-fim, percebe-se como o “Estado-Empresa” tem induzido a atualização da “universidade-empresa” e também uma profissionalização docente gerencialista (moldada às características da NGP, vertente gerencialista), tal como discutido por alguns pesquisadores desse assunto^{(1-3,7,9-10,27)}.

Assim, consideramos que a instituição “docência no ensino superior e o professor-enfermeiro” está sendo atualizada no sentido gerencialista, como evidenciado por parte dos dados aqui apresentados. Por isso, tem prevalecido um tipo de universidade-empresa, pautada nos pressupostos neoliberais e gerencialistas, focadas em processo de produção de conhecimentos baseado em estatísticas e quantificações, responsabilizações dos indivíduos por meio de crescentes prestações de contas induzidas e quantificadas sobre seu trabalho^(9-10,28-32).

Esse movimento provoca atualizações reverberadas em outras instituições da vida humana (inclusive nela própria), para se pensar todas as coisas a partir de uma visão gerencialista, em que tudo vai se tornando passível de ser gerenciado e quantificado em índices. Nessa direção, as formações se alinham com a ótica da praticidade, passíveis de serem transformadas em índices, quantificadas e fáceis para se prestar contas, como produtos acabados^(10,33), ou, pelo menos, semiacabados.

Na universidade, têm ocorrido ações de transferência de responsabilidade pela aprendizagem para os estudantes, notadamente com uso das tecnologias duras à distância, que convergem com a universidade-empresa, pois ações dessa natureza tornam mais práticos tanto o trabalho do docente como a aprendizagem. Esse tipo de universidade-empresa tem potencial para aguçar práticas pedagógicas que promovem o individualismo, a competição e, no caso da saúde, o entendimento dela como bem privado, ou seja, uma mercadoria, indo contra os ideários e pressupostos legais do SUS, sobretudo no que tange à saúde como direito de cidadania. Essas perspectivas coadunam com a ideia de que o gerencialismo tem grande potencial indutor na definição curricular e na formação tanto básica quanto profissional^(8,34-36).

Esse modelo de universidade se distancia cada vez mais da formação em saúde encomendada pelo SUS para sua efetiva consolidação, isto é, significa que se afasta e não condiz com o que se espera da formação de profissionais de saúde no Brasil, a qual deve ter o SUS como o indutor. Esse achado sobre o atravessamento do gerencialismo na docência universitária em enfermagem converge e caminha junto com o desfinanciamento, desmonte e desresponsabilização na implementação da saúde como direito, tal como referido por pesquisadores do assunto⁽³⁶⁾.

Limitações do estudo

O estudo foi realizado em universidade pública e com professores universitários enfermeiros. Pode ser ampliado com outras investigações que considerem diferentes profissionais, o setor privado, gestores da educação e discentes de graduação e de pós-graduação, por exemplo.

Contribuições para a área da Enfermagem, Saúde ou Política Pública

Consideramos esses limites do estudo como relativos, pois permitem reflexões sobre os modos como o ensino de enfermeiros encontram-se entrelaçados/capturados pelo desenho de Estado neoliberal em institucionalização. Isso sinaliza reflexões e ações futuras a serem tomadas na enfermagem e na Saúde e/ou Políticas Públicas para a efetiva consolidação do SUS.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo, conduzido com docentes universitários enfermeiros, identificou o quanto a ideologia do neoliberalismo expressada pela lógica da Nova Gestão Pública/Gerencialismo tem interferido na docência universitária do professor-enfermeiro e, consequentemente, na formação para o SUS. Essa Nova Gestão Pública na universidade contribuiu para a produção de uma forte cultura de produtivismo acadêmico com a finalidade de consolidar os programas de pós-graduação nesse molde; assim, os professores são impelidos a elaborar mais “produtos” quantificáveis (p.ex., artigos nessa linha). A dedicação ao ensino de graduação perde espaço ante a pesquisa, e o mesmo acontece com atividades de cultura e extensão. Portanto, nota-se o potencial indutor da Nova Gestão Pública sobre a atualização das instituições “educação” e “saúde”, causando atualizações-rebote sobre a docência universitária, e isso repercute/reverbera sobre os atuais currículos e sobre a formação de profissionais de saúde.

Acrescenta-se, ainda, que o Sistema Único de Saúde se pauta na perspectiva da saúde como direito de cidadania e dever do Estado e necessitaria de formação profissional mais articulada, mas o modelo aqui abordado leva os docentes a atenderem às demandas institucionais alinhadas ao neoliberalismo para conseguirem se manter na profissão docente. Consideramos ser um desafio para a enfermagem brasileira questionar-se quanto à estreita relação entre os desenhos de Estado e as práticas de formação e de cuidado.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho

EDITOR ASSOCIADO: Fátima Helana Espírito Santo

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  24 Mar 2021
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  14 Jun 2020
• Aceito
  03 Set 2020