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Círculo de cultura de Paulo Freire: contribuições para pesquisa, ensino e prática profissional da enfermagem

RESUMO

Objetivos:

compartilhar sobre as contribuições do círculo de cultura para o ensino, pesquisa e prática profissional da enfermagem, tendo como referencial o Itinerário de Pesquisa freireano.

Métodos:

relato de experiência de um círculo de cultura, com a participação de três docentes e dez discentes, matriculados em uma disciplina de um Programa de Pós-Graduação em Enfermagem no sul do Brasil. No círculo de cultura, foi construída uma árvore em que as raízes formaram a investigação temática, o caule, codificação e decodificação, e as folhas, o desvelamento crítico do Itinerário de Pesquisa.

Resultados:

os participantes demonstraram empoderamento dos pressupostos freireanos, e a construção da árvore possibilitou discutir, de maneira prazerosa e lúdica, a utilização do círculo de cultura no ensino, pesquisa e prática profissional da enfermagem.

Considerações Finais:

o círculo de cultura promoveu reflexão e ação sobre a práxis da enfermagem, tornando os pensamentos freireanos em algo concreto e transformador de realidades.

Descritores:
Enfermagem; Pesquisa em Enfermagem; Ensino de Enfermagem; Prática Profissional; Círculo de Cultura

ABSTRACT

Objectives:

to share the contributions of culture circles for teaching, research, and professional nursing practice, having as framework Paulo Freire’s Research Itinerary.

Methods:

this is an experience report of a culture circle, with participation of three professors and ten students, enrolled in a course of a Graduate Program in Nursing in southern Brazil. In this culture circle, a tree was built in which the roots formed the thematic investigation, the stem, coding and decoding, and the leaves, the Research Itinerary critical unveiling.

Results:

participants demonstrated empowerment of Paulo Freire’s assumptions, and building a tree made it possible to discuss in a pleasant and playful way culture circle use in teaching, research, and professional nursing practice.

Final Considerations:

the culture circle promoted reflection and action on nursing praxis, turning Freirean thoughts into something concrete and transforming realities.

Descriptors:
Nursing; Nursing Research; Professional Practice; Culture Circle

RESUMEN

Objetivos:

compartir acerca de las contribuciones del círculo cultural a la docencia, la investigación y la práctica profesional de la enfermería, tomando como referencia el Itinerario de Investigación Freireano.

Métodos:

relato de experiencia de un círculo cultural, con la participación de tres profesores y diez estudiantes, matriculados en una disciplina de un Posgrado en Enfermería en el sur de Brasil. En el círculo cultural se construyó un árbol en el que las raíces formaron la investigación temática, el tallo, codificación y decodificación, y las hojas, la develación crítica del Itinerario de Investigación.

Resultados:

los participantes demostraron empoderamiento de los supuestos freireanos, y la construcción del árbol permitió discutir, de manera amena y lúdica, el uso del círculo cultural en la docencia, la investigación y la práctica profesional de enfermería.

Consideraciones Finales:

el círculo cultural promovió la reflexión y la acción sobre la praxis de la enfermería, convirtiendo el pensamiento freireano en algo concreto y transformando realidades.

Descriptores:
Enfermería; Investigacíon en Enfermería; Educación en Enfermería; Práctica Profesional; Circulo Cultural

INTRODUÇÃO

A enfermagem tem à sua frente desafios que precisam ser refletidos, pois a formação dos enfermeiros influencia enfaticamente a sua prática profissional, podendo contribuir para uma reprodução do modelo biologicista, clínico e individual ou para um modelo baseado na integralidade do cuidado, que considera as necessidades sócio históricas e culturais dos indivíduos. Portanto, os processos pedagógicos e a ação do educador e educando no ensino da enfermagem têm impacto na prática profissional(11 Mattia BJ, Kleba ME, Prado ML. Nursing training and professional practice: an integrative review of literature. Rev Bras Enferm. 2018;71(4):2039-49. doi: 10.1590/0034-7167-2016-0504
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).

No que se refere à dimensão ensino e pesquisa, ou seja, o fazer docente, é importante refletir que os enfermeiros geralmente se tornam professores a partir de sua prática assistencial, tendo pouca ou nenhuma formação pedagógica para tal(22 Fernandes CNS, Souza MCBM. Docência no ensino superior em enfermagem e constituição identitária: ingresso, trajetória e permanência. Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(1):e64495. doi: 10.1590/1983-1447.2017.01.64495
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-33 Correa AK, Sordi MRL. Educação profissional técnica de nível médio no Sistema Único de Saúde e a política de formação de professores. Texto Contexto Enferm. 2018;27(1):e2100016. doi: 10.1590/0104-07072018002100016.
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). A formação profissional em enfermagem não oferece preparo específico para atuação como professor, o que evidencia a necessidade de investir no aprimoramento profissional docente. Neste âmbito, muitos docentes enfermeiros buscam replicar ações de professores que foram marcantes em sua jornada acadêmica, a fim de buscar êxito no processo ensino-aprendizagem(22 Fernandes CNS, Souza MCBM. Docência no ensino superior em enfermagem e constituição identitária: ingresso, trajetória e permanência. Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(1):e64495. doi: 10.1590/1983-1447.2017.01.64495
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).

Diante dos desafios na prática profissional para atuação no Sistema Único de Saúde (SUS), a enfermagem vem se apropriando dos pensamentos de Paulo Freire, em busca de novos modelos de ensino que respondam aos anseios da profissão e que possibilitem a qualificação na formação acadêmica. Na pesquisa em enfermagem, os pressupostos freireanos, por meio da aplicabilidade de estudos participativos, têm proporcionado avanços no envolvimento da sociedade e a atuação dos sujeitos, que são os verdadeiros autores e condutores de pesquisas, que, em uma sequência lógica de ações de investigação, aproximam interesses tanto acadêmicos quanto sociais(44 Waterkemper R, Prado ML, Reibnitz KS. Paulo Freire: ideias que desacomodam. In: Prado ML, Schmidt KR. Paulo Freire: a boniteza de ensinar e aprender na saúde. Florianópolis: NFR/UFSC; 2016. 195 p.).

Neste sentido, torna-se importante aproximar os sujeitos pelo diálogo, propondo autonomia e reflexões diante das situações concretas de existência, não excluindo as diversas experiências e conhecimentos, mas valorizando as contradições e procurando superá-las e resolvê-las. Assim, conforme os pressupostos de Paulo Freire, se faz necessário “o empoderamento do sujeito”, que é a “libertação do oprimido”(44 Waterkemper R, Prado ML, Reibnitz KS. Paulo Freire: ideias que desacomodam. In: Prado ML, Schmidt KR. Paulo Freire: a boniteza de ensinar e aprender na saúde. Florianópolis: NFR/UFSC; 2016. 195 p.). Mas o diálogo, seja entre docente e discente, ou entre enfermeiro e usuário, ou entre a equipe interprofissional, precisa ser horizontalizado, pois não existe quem mais sabe ou menos entende, mas sim saberes diferentes que necessitam ser compartilhados, havendo uma responsabilidade em quem está no papel de ensinar/aprender, pois educar é um ato político(55 Streck DR, Redin E, Zitkoski JJ. Dicionário Paulo Freire. 4 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2018. 512 p.).

A faceta política do educar se apresenta quando os sujeitos analisam criticamente a sua vida, sua realidade e seus problemas, o que leva à transformação. A crítica de Freire à educação bancária se traduz em entender que cada qual possui um saber, não sendo uma página em branco a ser moldada, um vazio onde o docente deposita o que é preciso memorizar e reproduzir. Em suma, a educação precisa ser emancipadora, amorosa, libertária, conquistada a partir da participação, com consequente empoderamento(55 Streck DR, Redin E, Zitkoski JJ. Dicionário Paulo Freire. 4 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2018. 512 p.-66 Heidemann ITSB, Dalmolin IS, Rumor PCF, Cypriano CC, Costa MFBNA, Durand MK. Reflexões sobre o itinerário de pesquisa de Paulo Freire: contribuições para a saúde. Texto Contexto Enferm. 2017;26(4):e0680017. doi: 10.1590/0104-07072017000680017
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).

Para tanto, Paulo Freire pensou em um itinerário para a elaboração desse saber compartilhado, até porque não gostava de que se pensasse em método, partindo da situação presente e concreta, para, assim, refletir as situações que envolvem os sujeitos e organizar o conteúdo programático da educação ou da ação política, propondo, por meio de certas contradições básicas, a sua situação existencial como problema que o desafia e que exige respostas intelectuais e práticas(66 Heidemann ITSB, Dalmolin IS, Rumor PCF, Cypriano CC, Costa MFBNA, Durand MK. Reflexões sobre o itinerário de pesquisa de Paulo Freire: contribuições para a saúde. Texto Contexto Enferm. 2017;26(4):e0680017. doi: 10.1590/0104-07072017000680017
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). O Itinerário de Pesquisa compreende três fases diferentes, que são interligadas dialeticamente, a saber: investigação temática; codificação e descodificação; desvelamento crítico, em que acontece uma reflexão sistemática e interdisciplinar dos saberes despontados no processo, recebendo os mais diversos enfoques, tais como da sociologia, ciência política e psicologia social(44 Waterkemper R, Prado ML, Reibnitz KS. Paulo Freire: ideias que desacomodam. In: Prado ML, Schmidt KR. Paulo Freire: a boniteza de ensinar e aprender na saúde. Florianópolis: NFR/UFSC; 2016. 195 p.,66 Heidemann ITSB, Dalmolin IS, Rumor PCF, Cypriano CC, Costa MFBNA, Durand MK. Reflexões sobre o itinerário de pesquisa de Paulo Freire: contribuições para a saúde. Texto Contexto Enferm. 2017;26(4):e0680017. doi: 10.1590/0104-07072017000680017
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).

O Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire, repleto de seus conceitos e pensamentos, pode ser uma opção metodológica, sendo que o círculo de cultura se apresenta a partir da possibilidade de auxiliar os sujeitos a entenderem sua realidade, por meio de sua experiência e troca de saberes em um espaço em que transitam diferentes seres e práticas, em que os participantes assumem a experiência do diálogo em busca de discutir seus problemas e planejar ações concretas e de interesse coletivo(44 Waterkemper R, Prado ML, Reibnitz KS. Paulo Freire: ideias que desacomodam. In: Prado ML, Schmidt KR. Paulo Freire: a boniteza de ensinar e aprender na saúde. Florianópolis: NFR/UFSC; 2016. 195 p.).

OBJETIVOS

Compartilhar as contribuições do círculo de cultura para o ensino, pesquisa e prática profissional da enfermagem, tendo como referencial teórico-metodológico o Itinerário de Pesquisa freireano.

PERCURSO METODOLÓGICO

Participaram do círculo de cultura todos os docentes e discentes envolvidos em uma disciplina de um Programa de Pós-Graduação em Enfermagem no sul do Brasil, em junho de 2019. Tal disciplina abordava sobre os fundamentos teóricos e filosóficos do pensamento de Paulo Freire. Os participantes eram enfermeiros, sendo três professores e dez estudantes de mestrado ou doutorado em enfermagem. Entre os enfermeiros estudantes haviam bolsistas e outros que atuavam em serviços de saúde. O círculo de cultura ocorreu no próprio espaço universitário, na sala de aula onde se desenvolvia a disciplina referida, com duração de, aproximadamente, duas horas.

Para dialogar e refletir acerca do círculo de cultura, percorreu-se o Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire, que apresenta as seguintes etapas: investigação temática, codificação e descodificação, e desvelamento crítico(77 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 67 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019. 256 p.-88 Garzon AMM, Silva KL, Marques RC. Liberating critical pedagogy of Paulo Freire in the scientific production of Nursing 1990-2017. Rev Bras Enferm. 2018;71(Suppl 4):1751-8. [Thematic issue: Education and teaching in Nursing] doi: 10.1590/0034-7167-2017-0699
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). Foi utilizado o arcabouço do pensamento de Paulo Freire, que, como educador brasileiro, estimulou o fortalecimento da criticidade no processo de ensino-aprendizagem(44 Waterkemper R, Prado ML, Reibnitz KS. Paulo Freire: ideias que desacomodam. In: Prado ML, Schmidt KR. Paulo Freire: a boniteza de ensinar e aprender na saúde. Florianópolis: NFR/UFSC; 2016. 195 p.), que ocorre a partir da práxis, que é a reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. É teoria e prática, mas sem verbalismos e sem ativismo, mas com reflexão e ação incidindo sobre as organizações a serem modificadas(77 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 67 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019. 256 p.). Diversos conceitos permeiam as obras de Paulo Freire, dentre eles estão o círculo de cultura, a conscientização, a práxis, a educação bancária/libertadora(77 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 67 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019. 256 p.-88 Garzon AMM, Silva KL, Marques RC. Liberating critical pedagogy of Paulo Freire in the scientific production of Nursing 1990-2017. Rev Bras Enferm. 2018;71(Suppl 4):1751-8. [Thematic issue: Education and teaching in Nursing] doi: 10.1590/0034-7167-2017-0699
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).

Para tanto, empregou-se o esquema do Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire a partir de uma adaptação elaborada pelas autoras, que sistematizaram as etapas por meio da construção de uma árvore reflexiva, conforme Figura 1.

Figura 1
Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire na construção da árvore reflexiva

A ideia de construir uma árvore reflexiva surgiu diante da necessidade de tornar a discussão acerca do círculo de cultura mais concreta, criativa, interativa e dialógica, o que oportunizou a realização de todas as fases do Itinerário de Pesquisa em um único encontro. Para tanto, foi construída a base de uma árvore de papel, que foi exposta no chão da sala de aula, no centro do círculo composto pelos participantes, para que todos pudessem visualizá-la.

Nascimento das raízes: investigação temática

As raízes auxiliam a firmar a árvore ao solo e são responsáveis pela absorção de substâncias essenciais, como água e sais minerais. Além disso, de modo geral, há uma raiz primária principal e várias ramificações, que são as raízes laterais(99 Crichyno J. Árvore e imaginário simbólico como lugar poético de memória na paisagem. Rev NUFEN [Internet]. 2017 [cited 2020 Sep 09];9(2):124-37. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-25912017000200009
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). As raízes foram elaboradas a partir das vivências relatadas antecipadamente pelos participantes via e-mail, sendo que foi solicitado para os discentes e docentes escreverem um breve relato sobre suas experiências com o círculo de cultura na enfermagem, sem realizar nenhum comentário prévio na disciplina sobre tal temática. Uma semana antes do encontro, os relatos encaminhados por e-mail foram lidos e organizados pela mediadora do círculo de cultura, repercutindo em três grandes temas, sendo: círculo de cultura, diálogo e educação problematizadora.

As três grandes raízes foram apresentadas no início do encontro para os participantes, contendo descrito os três temas. Em seguida, pequenas raízes de papel com descrição de um termo retirado dos relatos enviados por e-mail foram distribuídas ao grupo, e cada sujeito foi convidado a colocar estas em cima das raízes principais, expostas ao chão, com o intuito de descrevê-las, organizando e validando os temas na fase da investigação temática, em que todos discutiram em conjunto sobre o local ideal para cada termo ficar, para melhor definição das três raízes (temas).

No entanto, o grupo se deu conta de que ainda faltavam importantes palavras/termos para descrever as três raízes e foi oportunizado outros papéis com as pequenas raízes não preenchidas, para que pudessem transcrever, para que todos se sentissem representados nos três temas que abordavam sobre as vivências do círculo de cultura na enfermagem. Após ampla discussão, as três raízes principais ficaram da seguinte forma representadas:

- Educação problematizadora: contexto, autonomia, opressor-oprimido, participação ativa, empoderamento, ética, espaço compartilhado, protagonismo, facilitador/mediador, educador/educando.

- Diálogo: criticidade, respeito, reciprocidade, reflexão, debate, amorosidade, resolutividade, opinião, horizontalidade e organização.

- Círculo de cultura: organização, diferentes saberes, definição em conjunto, ação-reflexão-ação, libertação, pensamento, ensino-aprendizagem, grupo de pessoas e compartilhar.

É importante destacar que o grupo não conseguiu inserir quatro palavras em apenas uma única raiz. A partir de então, após discussão, decidiram colocá-las de forma transversal nas raízes, por acreditarem que todas transpassavam as três temáticas, sendo: emancipação, transformação, conscientização e cultura.

Salienta-se, ainda, que a investigação temática foi norteada pela dialogicidade e a educação libertadora, em que os temas geradores foram discutidos e o pensamento crítico-reflexivo dos participantes pôde ser amplamente compartilhados(66 Heidemann ITSB, Dalmolin IS, Rumor PCF, Cypriano CC, Costa MFBNA, Durand MK. Reflexões sobre o itinerário de pesquisa de Paulo Freire: contribuições para a saúde. Texto Contexto Enferm. 2017;26(4):e0680017. doi: 10.1590/0104-07072017000680017
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,88 Garzon AMM, Silva KL, Marques RC. Liberating critical pedagogy of Paulo Freire in the scientific production of Nursing 1990-2017. Rev Bras Enferm. 2018;71(Suppl 4):1751-8. [Thematic issue: Education and teaching in Nursing] doi: 10.1590/0034-7167-2017-0699
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). Desta forma, o encontro se tornou um espaço dinâmico de aprendizagem que possibilitou a reflexão sobre as situações existenciais.

Reflexões dialógicas na construção do caule: codificação e descodificação

A etapa de codificação, que não é indissociada da descodificação, inaugurou a segunda fase do Itinerário de Pesquisa, em que a codificação dos temas geradores contemplou as contradições e as representações das situações vividas pelos participantes(66 Heidemann ITSB, Dalmolin IS, Rumor PCF, Cypriano CC, Costa MFBNA, Durand MK. Reflexões sobre o itinerário de pesquisa de Paulo Freire: contribuições para a saúde. Texto Contexto Enferm. 2017;26(4):e0680017. doi: 10.1590/0104-07072017000680017
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-77 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 67 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019. 256 p.). Ao adentrar na descodificação e no transcurso do diálogo entre os participantes, houve o reconhecimento da realidade e a tomada de consciência a partir da reflexão das ações, considerando-se como seres capazes de transformar o mundo(77 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 67 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019. 256 p.) da enfermagem.

Para realizar a etapa da codificação e descodificação, utilizou-se a estratégia da construção do caule da árvore reflexiva. O caule sustenta a planta e faz o transporte dos nutrientes produzidos na fotossíntese, das folhas até as raízes. É no caule que são produzidos os hormônios vegetais, auxiliando no crescimento e desenvolvimento da planta(99 Crichyno J. Árvore e imaginário simbólico como lugar poético de memória na paisagem. Rev NUFEN [Internet]. 2017 [cited 2020 Sep 09];9(2):124-37. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-25912017000200009
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). No mesmo sentido, optou-se em dividir o caule em três partes para o desenvolvimento da codificação e descodificação, no intuito de buscar os significados e ampliar o conhecimento dos temas geradores, organizados nas raízes da árvore. Para instigar o diálogo, três questões norteadoras foram lançadas, sendo uma para cada parte do caule: 1) Como o círculo de cultura pode contribuir para o ensino na enfermagem? 2) Como o círculo de cultura pode contribuir para a pesquisa em enfermagem? 3) Como o círculo de cultura pode contribuir para o exercício profissional da enfermagem?

Para a construção do caule, os participantes foram divididos em pequenos grupos por meio de sorteio, em que a mediadora reuniu todos os integrantes que tiraram o mesmo número em um grupo, ficando, no total, três grupos, contendo quatro participantes em cada um, o que permitiu o envolvimento de todos no processo, tendo o cuidado de manter uma docente em cada grupo. A mediadora não participou de maneira especifica em nenhum grupo, a fim de conduzir as atividades propostas. Cada grupo permaneceu por, aproximadamente, 10 minutos em cada parte do caule, discutindo e realizando anotações concernentes às questões norteadoras das partes do caule. Ao ouvirem um som musical, os participantes de cada grupo eram convidados a seguir para a outra parte do caule e debater sobre outra questão norteadora.

Todos os grupos passaram pelas três partes do caule, deixando nelas suas percepções acerca das contribuições do círculo de cultura para o mundo da enfermagem. Ao final do tempo destinado, os grupos socializaram as discussões levantadas. Após a apresentação de cada grupo, os pedaços do caule da árvore reflexiva foram sendo montados no chão, organizados e discutidos pelos participantes do círculo de cultura.

A construção do caule da árvore reflexiva partiu da situação existencial concreta (codificação) sobre as contribuições do círculo de cultura aplicadas ao ensino, à pesquisa e à prática profissional da enfermagem, possibilitando que os participantes realizassem a análise da práxis e obtivessem um novo conhecimento (descodificação)(66 Heidemann ITSB, Dalmolin IS, Rumor PCF, Cypriano CC, Costa MFBNA, Durand MK. Reflexões sobre o itinerário de pesquisa de Paulo Freire: contribuições para a saúde. Texto Contexto Enferm. 2017;26(4):e0680017. doi: 10.1590/0104-07072017000680017
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). Essa construção foi permeada pelo diálogo e a conscientização, uma vez que eles devem ser alicerces da prática educativa, que utiliza o referencial teórico-metodológico freireano.

Na primeira parte do caule, discutiu-se sobre o ensino da enfermagem. O grupo definiu que o círculo de cultura possibilita reflexão crítica dos participantes, envolvendo docentes e discentes, educador e educando no ensino-aprendizagem, em uma troca de saberes visando à formação/construção/ampliação do conhecimento, respeitando as diversidades e a autonomia dos sujeitos envolvidos. A partir de então, educadores e educandos podem ser transformados pela práxis da ação dialógica, considerando educador aquele que é o mediador no processo de ensino-aprendizagem e aprende junto com o educando, que, por sua vez, não é um depósito a ser preenchido pelo educador, mas que juntos podem aprender e descobrir novas possibilidades na realidade da vida(77 Freire P. Pedagogia do Oprimido. 67 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019. 256 p.).

A segunda parte do caule oportunizou refletir sobre o círculo de cultura na pesquisa em enfermagem. Para o grupo, o círculo de cultura oportuniza inovação e melhorias para a pesquisa na enfermagem, possibilitando não apenas pesquisar, mas também transformar a realidade por meio da pesquisa participante, atingindo as reais necessidades do indivíduo e do coletivo, deixando sementes de reflexão para os atores envolvidos no processo da pesquisa-ação. Além disso, a utilização do círculo de cultura na pesquisa qualitativa participativa viabiliza um direcionamento ao seguir as etapas do Itinerário de Pesquisa, com cunho libertador e emancipatório, ampliando o processo de reflexão não apenas do pesquisador, mas de todos os participantes.

A terceira parte do caule foi destinada para discutir sobre o círculo de cultura no contexto da prática profissional da enfermagem. O grupo destacou que o círculo de cultura na prática da enfermagem, tanto na área hospitalar quanto na Atenção Primária à Saúde, promove interprofissionalidade, apontando que viabiliza a participação de todos os profissionais da equipe, em que aprendem uns com os outros e entre si para, juntos, discutir melhorias em prol da saúde dos indivíduos e coletividades, sendo que a vivência da interação por meio da interprofissionalidade é reconhecida como promotora do desenvolvimento de competências para a prática colaborativa(1010 Batista NA, Batista SHSS. Educação interprofissional na formação em Saúde: tecendo redes de práticas e saberes. Interface. 2016;20(56):202-4. doi: 10.1590/1807-57622015.0388
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). Também discutiram que o círculo de cultura possibilita a horizontalidade, ao respeitar os diferentes saberes pela troca de conhecimento na ação dialógica. Também foi evidenciado que a horizontalidade no exercício da enfermagem deve existir entre profissional e usuário, respeitando suas práticas e saberes, garantindo-lhes autonomia, em um cuidado humanizado, sensível e empático.

Criação das folhas: desvelamento crítico

A última etapa do Itinerário de Pesquisa é o desvelamento crítico, que visa à superação da visão mágica e ao desenvolvimento de uma realidade crítica, com vistas a uma ação transformadora(66 Heidemann ITSB, Dalmolin IS, Rumor PCF, Cypriano CC, Costa MFBNA, Durand MK. Reflexões sobre o itinerário de pesquisa de Paulo Freire: contribuições para a saúde. Texto Contexto Enferm. 2017;26(4):e0680017. doi: 10.1590/0104-07072017000680017
https://doi.org/10.1590/0104-07072017000...
,88 Garzon AMM, Silva KL, Marques RC. Liberating critical pedagogy of Paulo Freire in the scientific production of Nursing 1990-2017. Rev Bras Enferm. 2018;71(Suppl 4):1751-8. [Thematic issue: Education and teaching in Nursing] doi: 10.1590/0034-7167-2017-0699
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). Nessa etapa, os participantes construíram a copa da árvore reflexiva utilizando papeis em formato de folhas.

Para que os participantes pudessem construir a copa, foram distribuídos papéis em formato de folha e todos foram convidados a escrever sobre os significados do círculo de cultura. Posteriormente, cada sujeito apresentou seu significado descrito na folha, inseri na copa da árvore reflexiva. Surgiram, então, os seguintes significados: transformação; importante “método” de pesquisa; diálogo; crescimento pessoal e profissional; ir além; evolução; troca de saberes; ação – reflexão – ação; investigação temática, codificação – descodificação, desvelamento crítico; encontro de diferentes pessoas e diferentes saberes; reflexão e transformação da realidade. Subsequentemente, foram apresentadas ao grupo as etapas do Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire, e os participantes puderam compreender os momentos vivenciados no círculo de cultura.

A folha é a parte da planta responsável por realizar a fotossíntese, que é o processo pelo qual a planta produz o seu próprio alimento. Nas folhas, também acontece respiração e transpiração. Esses dois processos são possíveis, porque, na superfície da folha, existem estruturas que se abrem e fecham, permitindo a entrada e saída de gases e água da planta(99 Crichyno J. Árvore e imaginário simbólico como lugar poético de memória na paisagem. Rev NUFEN [Internet]. 2017 [cited 2020 Sep 09];9(2):124-37. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-25912017000200009
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). Da mesma maneira, ocorreu o desvelamento crítico, no qual todos se retroalimentaram das reflexões no grupo e, individualmente, puderam se abrir, fechar e se abrir novamente para novos conhecimentos, novos alimentos e assim saírem da vivência transformados e empoderados sobre círculo de cultura, com o desejo de germinar novas sementes em outros solos no mundo da enfermagem.

Durante a etapa de desvelamento crítico, o pesquisador deve ser um mediador para auxiliar o processo de compreensão da realidade, com o olhar crítico dos participantes, com vistas a uma ação transformadora(88 Garzon AMM, Silva KL, Marques RC. Liberating critical pedagogy of Paulo Freire in the scientific production of Nursing 1990-2017. Rev Bras Enferm. 2018;71(Suppl 4):1751-8. [Thematic issue: Education and teaching in Nursing] doi: 10.1590/0034-7167-2017-0699
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). Sendo assim, há a tomada de consciência da situação existencial, sendo desvelados os limites e as possibilidades da realidade. Para o fechamento do itinerário freireano, deve-se realizar uma avaliação da experiência vivenciada para que as transformações percebidas pelos participantes sejam clarificadas(66 Heidemann ITSB, Dalmolin IS, Rumor PCF, Cypriano CC, Costa MFBNA, Durand MK. Reflexões sobre o itinerário de pesquisa de Paulo Freire: contribuições para a saúde. Texto Contexto Enferm. 2017;26(4):e0680017. doi: 10.1590/0104-07072017000680017
https://doi.org/10.1590/0104-07072017000...
).

Neste sentido, ao finalizar a construção da árvore reflexiva, os participantes foram instigados a avaliar e compartilhar os significados da vivência do círculo de cultura, em que refletiram sobre ter sido um espaço de aprendizagem mútua, discussão, diálogo, troca de experiências, (re)conhecimento dos diversos cenários da enfermagem, bem como sobre as várias facetas e aplicabilidade do círculo de cultura de Freire. Também compartilharam que tiveram a oportunidade de aprender, de maneira prática, uns com os outros, sobre as etapas do itinerário de pesquisa freireano, tornando-se algo mais concreto e interativo, por meio da ludicidade da construção da árvore reflexiva, que os instigou a pensar de maneira coletiva, mas considerando e respeitando o saber individual de cada participante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O círculo de cultura nos possibilitou dialogar e refletir sobre a práxis da enfermagem acerca do ensino, da pesquisa e da prática profissional. Identificamos, em conjunto com o grupo participante, que, apesar da escassa experiência quanto ao círculo de cultura, foram revelados frutos, uma vez que várias sementes evoluíram ao serem realizadas as leituras de textos sobre a temática freireana, o que motivou o empoderamento sobre o assunto e a participação ativa nos diálogos para a construção da árvore reflexiva.

Os participantes desvelaram que o círculo de cultura contribui no processo de ensino da enfermagem ao possibilitar reflexão crítica entre o educador e o educando. Neste movimento, ocorre o compartilhamento de saberes, valorização da autonomia do educando, sendo o educador também transformado pela práxis da ação dialógica.

Na reflexão sobre a pesquisa na enfermagem, os participantes apontaram que o círculo de cultura possibilita realizar a pesquisa, mas também contribui para transformação da realidade. Por meio do Itinerário de Pesquisa, se viabiliza a compreensão das reais necessidades dos indivíduos e do coletivo, especialmente no caso de pesquisa qualitativa do tipo participativa, que promove a participação de todos os envolvidos.

Ao debater a prática profissional da enfermagem, tanto a nível de Atenção Primária à Saúde, como hospitalar, dialogou-se que o círculo de cultura promove horizontalidade, diálogo com compartilhar de saberes entre enfermeiros e usuários de forma interprofissional, ao respeitar as práticas e saberes, garantindo autonomia em um cuidado humanizado, emancipatório, empático e transformador. Ao parafrasear Paulo Freire, pode-se dizer que, para superar os desafios da enfermagem, faz-se necessário transformar a mentalidade dos enfermeiros, oprimidos, e não a situação que os oprime.

Assim, a construção da árvore reflexiva possibilitou discutir, amorosamente, de maneira prazerosa e lúdica sobre a utilização do círculo de cultura na área da enfermagem, por meio do pensamento teórico-filosófico de Paulo Freire como possibilidade de transformação da realidade. Essa vivência propiciou leitura crítica dos saberes e fazeres, trazendo frutos maduros de conhecimento e ricos de boniteza e possibilidades para os docentes e discentes envolvidos no processo. No interior dos frutos, são encontradas as sementes; portanto, espera-se que as sementes lançadas no partilhar dessa vivência possam encontrar condições apropriadas, e, assim, germinar em outros solos e originar novas pesquisas e experiências que discutam a utilização do círculo de cultura freireano na enfermagem e na saúde.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Alexandre Balsanelli

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2019
  • Aceito
    15 Set 2020
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