Opiniões de estudantes de saúde sobre a doação de órgãos e tecidos para transplante

RESUMO

Objetivos:

analisar as opiniões de estudantes de cursos da saúde sobre a doação de órgãos e tecidos para transplante.

Métodos:

estudo qualitativo, com desenho de análise documental, a partir de registro de um banco de dados, analisados sob duas óticas: 1) Análise lexical, com o software IRAMUREQ, e 2) Análise temática de conteúdo.

Resultados:

da análise, geraram-se 3 categorias principais: 1) Doação de órgãos e tecidos como ato de amor ao próximo e oportunidade de recomeço; 2) Desmistificação e conscientização sobre doação de órgãos e tecidos; e 3) Importância de comunicar a família e divulgar a doação de órgãos e tecidos.

Considerações Finais:

apesar dos estudantes demonstrarem opiniões favoráveis à doação, também reconhecem a presença de tabus sociais, sendo importante a discussão em núcleo familiar, a divulgação da temática e a conscientização da sociedade. Além disso, a educação dos discentes torna-se uma das possibilidades de intervenção na problemática.

Descritores:
Opinião Pública; Estudantes de Ciências da Saúde; Obtenção de Tecidos e Órgãos; Educação em Saúde; Pesquisa Qualitativa

ABSTRACT

Objectives:

to analyze the opinions of healthcare students on organ and tissue donation for transplantation.

Methods:

qualitative document analysis study, using the records of a database and analyzing data from two perspectives: 1) Lexical analysis, with the IRAMUTEQ software, and 2) Thematic content analysis.

Results:

from the analysis, 3 main categories were generated: 1) Organ and tissue donation as an act of love for others and an opportunity of a new beginning; 2) Clarification and awareness on organ and tissue donation; and 3) Importance of communicating the family and promoting organ and tissue donation.

Final Considerations:

despite being in favor of donation, students also recognize the presence of social taboos; the discussion in the family nucleus, promoting the theme and raising awareness in society are considered important. Additionally, the education of students is one of the possibilities of intervention for the issue.

Descriptors:
Public Opinion; Students; Health Occupations; Tissue and Organ Procurement; Health Education; Qualitative Research

RESUMEN

Objetivos:

analizar las opiniones de estudiantes de cursos de la salud sobre la donación de órganos y tejidos para trasplante.

Métodos:

se trata de un estudio cualitativo, con diseño de análisis documental, a partir del registro de un banco de datos, considerado bajo dos ópticas: 1) Análisis lexical, con el software IRAMUREQ, y 2) Análisis temático de contenido.

Resultados:

del análisis se generaron 3 categorías principales: 1) Donación de órganos y tejidos como acto de amor al prójimo y oportunidad de recomenzar; 2) Desmitificación y concienciación sobre la donación de órganos y tejidos; e 3) Importancia de comunicar a la familia y divulgar la donación de órganos y tejidos.

Consideraciones Finales:

a pesar de que los estudiantes hayan mostrado opiniones favorables hacia la donación, reconocen, también, la existencia de tabúes sociales, haciéndose necesaria la discusión en el núcleo familiar, la divulgación de la temática y la concienciación de la sociedad. Una de las posibilidades de intervención en la problemática es la educación de los alumnos.

Descriptores:
Opinión Pública; Estudiantes del Área de la Salud; Obtención de Tejidos y Órganos; Educación en Salud; Investigación Cualitativa

INTRODUÇÃO

Mundialmente, o número de pacientes na fila de transplante tem aumentado com os anos, principalmente, devido às doenças crônicas não transmissíveis e ao hábito de vida da população. Desse modo, o número de doações vem se tornando insuficiente para cobrir a demanda(¹-²). Essa realidade é, também, vista no Brasil, onde em 2020 foram notificados 10.618 potenciais doadores, mas apenas 3.323 (31,29%) se tornaram efetivos(³).

O número insuficiente de doações pode estar relacionado a alguns fatores: desconhecimento do protocolo e dificuldade de diagnosticar a morte encefálica; subnotificações; manutenção de potencial doador; contraindicações clínicas, como infecções(⁴); falta de habilidade profissional em conduzir entrevistas familiares; profissionais contrários à doação, que atuam com obstinação terapêutica e/ou transmissão de informações incoerentes aos parentes; momento da entrevista, como local, equipe, comunicação verbal e não verbal(⁴-⁵); e a recusa famílias(⁶-⁷).

Apesar de parte da sociedade ver a doação como um ato de solidariedade e amor(⁸), há crenças negativas frente à temática, relacionadas ao desconhecimento do processo, que influenciam na predisposição dos indivíduos a desejar doar ou não seus órgãos e tecidos e/ou de parentes(¹,⁹-¹⁰). No Brasil, a lei n° 10.211/2001(¹¹) traz que, para ser doador, há a necessidade de, além do diagnóstico confirmado de morte encefálica, consentimento informado por familiares de até segundo grau. Estes, frequentemente, negam a doação, por não compreenderem o quadro, por crenças religiosas, medo da mutilação e ameaça a integralidade do corpo, comércio de órgãos, negligência profissional, impossibilidade de conhecer os receptores, medo da reação dos outros membros da família ou em razão da entrevista ser realizada de forma inadequada(⁵,⁷,¹⁰,¹²-¹³).

A atuação de profissionais de saúde, principalmente durante a entrevista familiar, pode potencializar ou desmistificar crenças negativas frente à doação, por serem o elo essencial entre a sociedade e o sistema de saúde, além de terem credibilidade perante a sociedade(²,⁵,¹⁴). Entretanto, a literatura demonstra um despreparo desses profissionais na execução de todo o processo de doação, que pode estar associado com a sua formação(¹⁵), por existir uma lacuna do tema nas grades curriculares, principalmente nos cursos de enfermagem(¹,¹⁵-¹⁸).

A pouca abordagem do tema na graduação é evidenciada em um estudo mexicano com 331 discentes de cursos da saúde, no qual, dos 143 (43,2%) que cursavam enfermagem, apenas 13 (9%) tiveram algum treinamento sobre a doação de órgãos e tecidos. Dentre os 188 (56,8%) alunos da medicina, apenas 75 (39,8%) tiveram contato com a temática, o que demonstra o desafio presente em ambas as formações(¹).

Os alunos da área da saúde serão os futuros profissionais e possuem papel relevante no processo de doação de órgãos e tecidos para transplante. Desse modo, emerge a seguinte inquietação: qual é a opinião de estudantes da área da saúde sobre a temática? Conhecer e analisar as opiniões desses discentes sobre a temática da doação de órgãos e tecidos para transplante torna-se relevante, a fim de identificar lacunas em seu processo de formação, além de preocupações, atitudes, crenças e conhecimentos prévios, os quais podem ser reforçados, corrigidos ou ressignificados ainda na universidade, para que, na vida profissional, possam contribuir, de modo significativo, no ensino e na assistência, para a redução de pessoas em lista de espera por um transplante.

OBJETIVOS

Analisar as opiniões de estudantes de cursos da saúde sobre a doação de órgãos e tecidos para transplante.

MÉTODOS

Aspectos Éticos

O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, conforme determina a Resolução nº 466 de 2012, do Conselho Nacional de Saúde.

Tipo de Estudo

Trata-se de estudo qualitativo, com desenho de análise documental. Foi utilizado o instrumento Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research - COREQ(¹⁹) para nortear a metodologia deste estudo.

Cenário do Estudo

O estudo foi realizado em uma instituição pública de ensino superior da região Sudeste do Brasil.

Fonte de Dados

Os dados foram provenientes de um banco de registros pertencente a um projeto de extensão. Os documentos arquivados foram coletados previamente a uma ação educativa realizada na Campanha Nacional de Doação de Órgãos, em 2019, com a comunidade universitária de uma instituição de ensino superior pública, formada, entre outros, por discentes dos cursos da área da saúde - fonoaudiologia, fisioterapia, nutrição, medicina e enfermagem - que foram convidados, voluntariamente, a responder, de maneira anônima, em um pedaço de papel, a seguinte pergunta: “Qual é a sua opinião sobre a doação de órgãos e tecidos para transplante?”. Na época, essa ação teve como objetivo, exclusivamente, coletar as opiniões dos estudantes e, com o aval desses, projetá-las ao público no evento final da campanha, não sendo aplicado, por essa razão, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Coleta e Organização dos Dados

Após concordância do coordenador do projeto de extensão, os registros foram transcritos na íntegra e organizados no Microsoft Word 2013. Foram incluídos todos os registros disponíveis no arquivo e excluídos aqueles que estavam ilegíveis ou comprometidos por algum dano decorrente do seu armazenamento. Posteriormente, foi feita a leitura, com retirada dos vícios de linguagem e organização dos arquivos para a análise. As opiniões são identificadas ao longo do texto como O (opinião) e número arábico para designar os respondentes.

Análise dos Dados

As opiniões transcritas foram analisadas sob duas ópticas. A primeira foi a análise lexical, com o uso do software Interface de R pour les Analyse Multidimensionnielles de Textes et de Questionnaires (IRAMUTEQ), versão 0.7 Alpha 2 e R Versão 3.2.3, que permite um olhar quantitativo para dados essencialmente qualitativos, sendo relevante para o estudo sobre pensamentos, crenças, experiências, percepções e opiniões(²⁰). Para tal, os relatos transcritos compuseram o corpus textual e a partir da análise foram identificados os Segmentos de Texto (ST) e o agrupamento das palavras estatisticamente significativas(²¹). Os resultados do uso da ferramenta podem ser organizados de diversas formas. Neste caso, os autores optaram por duas formas que melhor respondem ao objetivo do estudo: 1) Classificação Hierárquica Descendente (CHD), na qual as palavras com significância estatística, identificadas pelo teste qui-quadrado (X²), apresentando valor maior que 3,84, são organizados em classes(²⁰); e 2) Análise ou Árvore de Similitude, que se sustenta na teoria dos grafos e é realizada com base nas ocorrências das palavras presentes nos segmentos de texto(²¹), demonstrando, de forma visual, a origem e a conexão das palavras.

Após a organização das análises, definiram-se os nomes das classes por meio da leitura exaustiva dos segmentos do texto, realizando a correlação com a frequência dos termos contidos no vocabulário, a fim de desvelar, com rigor e profundidade, o real significado das opiniões. Em seguida, foi realizada a análise temática de conteúdo, na qual as opiniões foram lidas inúmeras vezes, etapa conhecida como leitura flutuante. Após domínio dos dados, foi realizada a extração de significados, codificação, categorização e uma correlação das informações coletadas com o objetivo da pesquisa(²²). Desse modo, foram geradas as seguintes categorias principais e subcategorias: 1) Doação de órgãos e tecidos como ato de amor ao próximo e oportunidade de recomeço, 1.1) Ato de amor ao próximo e 1.2) Oportunidade de recomeço; 2) Desmistificação e conscientização sobre a doação de órgãos e tecidos, 2.1) O tabu social sobre a doação de órgãos e tecidos para transplante e 2.2) Comunicação ineficiente da doação de órgãos e tecidos em meio social; 3) Importância de comunicar a família e divulgação sobre a doação de órgãos e tecidos, 3.1) Importância da comunicação familiar sobre a doação de órgãos e tecidos 3.2) Importância da divulgação da temática. A análise lexical e a análise temática de conteúdo foram organizadas de forma a se complementarem para melhor compreensão dos dados. Assim, as classes e categorias foram nomeadas de formas semelhantes.

RESULTADOS

No arquivo, foram identificados 100 registros com opiniões dos discentes, porém, 1 foi excluído por estar ilegível. Assim, 99 opiniões escritas compuseram o banco de dados e integraram este estudo, constituindo o corpus geral. Esses foram separados em 103 segmentos de texto (ST), com aproveitamento de 81 STs (78,64%). Geraram-se 2.017 ocorrências (palavras, formas ou vocabulários), sendo 625 palavras distintas e 398 com uma única ocorrência. O conteúdo analisado foi categorizado em 3 classes: classe 1, com 33 ST (40,74%); classe 2, com 17 ST (20,99%); e classe 3, com 31 ST (38,27%).

Figura 1
Dendograma da classificação hierárquica descendente do

corpus das opiniões dos estudantes da saúde sobre a doação de órgãos e tecidos, São Paulo, São Paulo, Brasil, 2021

Figura 2
- Árvore de similitude, São Paulo, São Paulo, Brasil, 2021

Nota: *p < 0,0001; **p < 0,05;

As três classes da Classificação Hierárquica Descendente (CHD) possuem duas ramificações: o subcorpus A e B do corpus total analisado. O subcorpus A integra a Classe 3 (“Doação de órgãos e tecidos como ato de amor ao próximo e oportunidade de recomeço”), que se refere à opinião do estudante de que a doação de órgãos é um ato solidário e que fornece uma nova oportunidade. O subcorpus B é composto pela Classe 1 (“Importância de comunicar a família e divulgar a doação de órgãos e tecidos”), que destaca a importância de manifestar o desejo em ser doador para família e a divulgação da temática, e a Classe 2 (“Desmistificação e conscientização sobre a doação de órgãos e tecidos”), que expressa os tabus e a necessidade de conhecimento a respeito da doação de órgãos e tecidos (Figura 1).

A Figura 2 expõe a árvore de similitude, na qual se observa a relação entre o segmento “doação de órgãos” com palavras que envolvem a opinião dos discentes, sobre ser um ato que salva a “vida” de quem precisa (“precisar”), destacando-se a “importância” de divulgação do “assunto” em ser um “doador” e falar com a “família”, além do “tabu” frente à temática.

Doação de órgãos e tecidos como ato de amor ao próximo e oportunidade de recomeço

Na subcategoria Ato de amor ao próximo, observa-se que os discentes vêem a doação de órgãos e tecidos para transplante como uma possibilidade de mostrar solidariedade, empatia, amor e de transformar um momento difícil em um momento de esperança que pode ser gratificante. A doação também é vista como uma chance do outro poder se recuperar dos impactos de doenças prévias, o que pode proporcionar a melhora da qualidade de vida e a chance de continuar a sua história, observadas na subcategoria Oportunidade de recomeço.

Desmistificação e conscientização sobre a doação de órgãos e tecidos

A subcategoria O tabu social sobre a doação de órgãos e tecidos para transplante expõe o reconhecimento dos discentes sobre os mitos existentes, dentro do meio social, quanto ao processo de doação, que pode ser consequência do desconhecimento da população e da sua vinculação com a morte e o morrer, fato que fornece indícios de que a educação é uma forma de desmistificar as crenças prévias. O desconhecimento é citado, também, na subcategoria Comunicação ineficiente da doação de órgãos e tecidos em meio social, envolvendo uma baixa conscientização e divulgação sobre a temática, o que impacta diretamente nas crenças da população.

Importância de comunicar a família e divulgar a doação de órgãos e tecidos

Na subcategoria Importância da comunicação familiar sobre a doação de órgãos e tecidos, observa-se que os discentes sentem a necessidade de ter a abertura dentro do núcleo familiar para manifestar a sua vontade em ser doador e conversar sobre o assunto. No entanto, alguns relataram não ter esse espaço, devido ao medo de diálogo, por fatores relacionados à religião, à reação negativa e aos estigmas da família com a morte encefálica. Apesar disso, reconhecem a importância de as pessoas terem essa conversa junto aos seus parentes, como forma de conscientizá-los sobre a doação. Para tal, relatam que os profissionais de saúde e a população devem integrar esforços para atingir esse objetivo (subcategoria Importância da divulgação da temática).

Quadro 1
Opiniões dos discentes de saúde sobre a doação de órgãos e tecidos para transplante: categorias e subcategorias, São Paulo, São Paulo, Brasil, 2021

CATEGORIA PRINCIPAL	SUBCATEGORIAS	OPINIÕES
Doação de órgãos e tecidos como ato de amor ao próximo e oportunidade de recomeço	Ato de amor ao próximo	A importância da doação de órgãos vai além do desapego da carne, do corpo, ou figura de nossos entes queridos. Ela é sobre amor ao próximo, é idealizar o bem sem saber a quem, é dar vida a quem tem motivos para viver [...]. (O16) Eu acho que é um gesto de amor, porque, além de salvar uma vida, pode-se devolver a qualidade de vida, devolver a oportunidade de viver a vida em plenitude.(O49)
	Oportunidade de recomeço	Doação de órgãos para mim, além de representar um gesto muito altruísta, significa também criar possibilidades e oportunidades de vida para quem precisa. Tanto doação em vida quanto após a morte são igualmente nobres e com potencial. (O44)
Desmistificação e conscientização sobre a doação de órgãos e tecidos	O tabu social sobre a doação de órgãos e tecidos para transplante	A doação de órgãos é um tema de extrema importância para a saúde pública. Infelizmente, a população não tem clareza desse fato, existindo diversos tabus sobre o tema.(O20) Eu percebo que esta temática ainda é um tabu porque está muito vinculada ao processo de morte e morrer. Penso que, quanto mais popularizar o tema e deixar claro nossa vontade, podemos contribuir com a vida do próximo.(O63)
	Comunicação ineficiente da doação de órgãos e tecidos em meio social	Acredito que a temática de doação e transplante de órgãos, assim como no geral da esfera da saúde, é pouco disseminada à população brasileira a respeito da importância e contribuição à manutenção da saúde [...]. (O41) As minhas percepções sobre doação de órgãos são que ainda há pouca divulgação sobre sua importância [...]. (O60)
Importância de comunicar a família e divulgar a doação de órgãos e tecidos	Importância da comunicação familiar sobre a doação de órgãos e tecidos	Acho muito importante. Sempre falo à minha família sobre a importância e o meu desejo de ser doadora. Infelizmente, as pessoas falam muito pouco sobre doação e morte, assuntos tão relevantes. (O47) [...] Não sei se minha família se daria bem com isso, pois por ser algo pouco difundido talvez eles tenham receio. (O74) Eu gostaria muito de propor à minha família, mas não sei bem como falar, já que são bem religiosos. (O62)
	Importância da divulgação da temática	A doação de órgãos é essencial e a ideia deveria ser mais difundida e as pessoas serem mais educadas sobre o assunto, para que o número de doadores possa aumentar. (O94) A divulgação da doação de órgãos precisa ter maior ênfase. Muitas pessoas desconhecem o processo[...]. (O46)

O Quadro 1 apresenta as opiniões dos discentes em relação às subcategorias citadas anteriormente.

DISCUSSÃO

Neste estudo, a doação de órgãos e tecidos para transplante foi vista pelos discentes como um ato de amor ao próximo que pode oportunizar uma nova vida ao receptor. Esses achados são corroborados por um estudo espanhol(¹⁷) com 9.275 alunos do curso de medicina, dos quais 7.420 (80%) manifestaram-se favoráveis à doação e justificaram a atitude como uma forma de demonstrar solidariedade e amor ao próximo. No Brasil, uma investigação realizada com 57 estudantes de enfermagem constatou que 17 (30%) demonstraram opiniões favoráveis, com manifestação do interesse em ser doador, citando, também, a oportunidade de ajudar o próximo como uma justificativa à escolha(²³).

Os estudantes desta investigação, também, creem que a doação salva vidas. Essa percepção foi identificada, ainda, em estudos realizados na Malásia e na Turquia com a população em geral(²,⁹). Essa ideia parece estar difundida e permeia a representação da doação de órgãos e tecidos na sociedade da qual os discentes da área da saúde também fazem parte.

Vale ressaltar que o fato de perceber a doação como um ato de amor ao próximo, de solidariedade ou que possibilita salvar vidas contribui para uma decisão favorável, mas não é determinante na escolha dos indivíduos em ser doador ou em consentir a extração em algum de seus familiares. O sujeito pode ter percepções positivas, mas isso não significa que há o desejo real de ser doador(⁹-¹⁰,²⁴). Nessa direção, encontra-se um estudo espanhol que identificou que 1.855 (20%) alunos de medicina entrevistados se declararam indecisos ou negariam a doação, número elevado considerando a área de formação(¹⁷). Percentual semelhante foi encontrado em estudo no Brasil com estudantes de enfermagem, no qual 17,5% se declaram não doadores, apoiados em crenças negativas sobre o tema(²³).

Entre os profissionais de saúde, estudos realizados na Etiópia(¹⁴), na Nigéria(²⁵) e na Malásia(²⁶) encontraram taxas de recusa quanto à doação de órgãos e tecidos semelhantes e até mesmo superiores aos identificados nas pesquisas com estudantes da área. Esses dados são intrigantes e demonstram que mesmo indivíduos com maior esclarecimento passam por dúvidas em relação a doar ou não os órgãos. No entanto, não podemos esquecer que esses posicionamentos podem ser influenciados por aspectos socioculturais, religiosos, econômicos e políticos. Achados como esses nos levam a refletir que, “se os discentes e/ou profissionais da saúde apresentam insegurança e dúvidas quanto à doação, imaginem as pessoas leigas e os familiares recém impactados pela perda de um parente”.

Estudo realizado na Malásia, com 383 indivíduos, evidenciou que 189 (49%) eram contrários ou estavam indecisos quanto à doação. Já na Turquia, uma pesquisa com 4.000 pessoas demonstrou que 988 (24,7%) apresentavam atitudes negativas em relação à doação em decorrência de crenças marcadas pelo tabu sobre a temática na sociedade(⁹).

Neste estudo, os discentes reconhecem a presença de tabus sociais que dificultam o processo de doação. Em uma revisão da literatura realizada com 21 investigações, foram relatados fatores que influenciam as opiniões de estudantes da área da saúde quanto à doação: opinião de membros da família, religião, percepção de como o corpo fica após a doação e discussões prévias sobre o tema com amigos e/ou familiares(²⁷).

Os tabus são vistos em diferentes países e estão presentes em diferentes públicos. De modo geral, estão relacionados à crença da existência de um mercado e tráfico de órgãos, eutanásia provocada por profissionais da saúde e desconfiguração do corpo após a doação, percepções comumente encontradas e que contribuem para as atitudes contrárias(⁷,¹⁰,¹⁸,²⁴). Corroborando tais achados, um trabalho realizado no México, com 331 discentes de medicina e enfermagem, identificou essas crenças e, também, o medo de sentirem dor durante o procedimento cirúrgico e da negligência dos profissionais(¹), dados semelhantes aos encontrados em pesquisa com profissionais de saúde(¹⁴).

Sublinha-se que as percepções sobre o processo de doação de órgãos e tecidos para transplante são influenciadas pelo conhecimento sobre o tema. Portanto, no caso dos estudantes da área da saúde, o ensino na graduação tem papel primordial nesse aspecto, visando a formação de futuros profissionais. No entanto, em pesquisa realizada com estudantes de enfermagem na Espanha, foi relatado que o tempo dedicado para a abordagem da temática é limitado(¹⁵). Do mesmo modo, um estudo alemão evidenciou que 47,1% dos estudantes da área da saúde entrevistados acreditavam que as informações durante a sua formação foram insuficientes(¹⁸).

Os déficits na formação serão sentidos e podem ser observados na prática profissional. Esse fato é evidenciado em uma investigação com 264 profissionais da equipe de enfermagem na Sérvia, em que 4 (1,5%) acreditavam que a família não precisa de suporte após o óbito de um ente e início do processo de doação de órgãos(²⁸). Apesar do número ser pequeno, é importante apontar que indivíduos com formação superior e/ou técnica que deveria contemplar aspectos da doação também demonstram crenças que impactam negativamente no processo. A partir disso, pode-se questionar: Qual é o impacto causado na tomada de decisão das famílias, quando são abordadas por um profissional não capacitado para tratar do tema da doação de órgãos e tecidos para transplante?

Não há dúvidas de que profissionais treinados para tratar do tema podem facilitar a tomada de decisão dos responsáveis e elevar o número de doações por meio do acolhimento desses e dos esclarecimentos sobre o processo, além de eventuais dúvidas apresentadas pela família. Esse fato foi evidenciado em um estudo realizado na Holanda, o qual demonstrou que o consentimento das famílias foi maior nos atendimentos realizados por profissionais treinados em doação de órgãos(⁶). Por outro lado, existem aqueles que ainda agem no processo de forma inadequada e podem levar os parentes a recusarem a doação(⁴-⁵).

Quanto à relevância de comunicar a família e divulgar a doação de órgãos e tecidos, os discentes deste estudo reconhecem a importância da inclusão dos familiares em diálogos, em vida, sobre a doação, porém, alguns preferem não abordar o tema a fim de evitar conflito. Nesse sentido, identificam-se na literatura relatos sobre a dificuldade de se discutir o assunto com os parentes devido à falta de tempo, ao conhecimento, à experiência ou pela expressão prévia de posições contrárias dos familiares(¹).

Pesquisa realizada com 240 discentes de diferentes cursos da área da saúde da Turquia demonstrou que 170 (70,9%) não falaram sobre o tema com sua família. Do mesmo modo, um estudo realizado com americanos de origem asiática relata que, dos 64 entrevistados, apesar de metade demonstrar atitudes favoráveis sobre a doação, muitos não tinham falado sobre o tema com seus familiares(²⁴). Assim, fica evidente a importância de políticas públicas que esclareçam a população e incentivem o diálogo sobre o tema, principalmente, no núcleo familiar.

Nesse sentido, apesar da formação acadêmica na área da saúde pressupor que os indivíduos tenham maior clareza sobre o assunto, são necessárias, ainda assim, abordagens que, para além do conhecimento científico, também busquem entender quais os valores e agentes envolvidos no processo. Ressalta-se, ainda, que abordar isoladamente o tema pode se mostrar pouco eficaz, sendo necessário o reconhecimento do contexto ao qual estão inseridos e proporcionar aos estudantes da área da saúde a reflexão sobre seu papel social, aumentando seu interesse e engajamento pelo tema, em conjunto com ações governamentais de divulgação e conscientização.

Os discentes deste estudo apontaram a importância da divulgação da temática, considerando como uma oportunidade ímpar de promover não só a conscientização, como também a mudança de atitudes frente à doação. Essa divulgação deve ser feita de maneira clara, com o objetivo atingir o maior número de pessoas, utilizando-se de diversas estratégias, sejam mídias sociais, noticiários, impressos, palestras e/ou ações educativas(⁹).

Por fim, reforçamos os achados na literatura que demonstram que os discentes da área da saúde que se aproximam da temática durante sua formação apresentam, frequentemente, atitudes favoráveis à doação, desenvolvendo um arcabouço teórico, com argumentos válidos para dialogar com o público(¹⁵-¹⁶,²⁷).

Limitações do estudo

O estudo teve como fator limitante o fato de os registros das opiniões arquivadas não apresentarem informações de variáveis que pudessem contribuir na discussão da investigação.

Contribuições do estudo à área da saúde

Este estudo contribui para conhecer as opiniões de estudantes relacionadas à doação de órgãos e tecidos para transplante, ilustrando a presença de tabus sociais, bem como a importância da discussão do tema com o núcleo familiar e a sociedade, que podem ser realizadas com políticas públicas e ações educativas. Além disso, pode guiar discussões sobre a temática no espaço de formação acadêmica, para, assim, esclarecer e ressignificar possíveis crenças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os estudantes da área da saúde possuem visão favorável em relação à doação de órgãos e tecidos para transplante, mas reconhecem que o processo é permeado por tabus sociais que influenciam a sociedade. Além disso, relatam a importância de ações educativas e de sensibilização sobre o tema a fim de construir um espaço para discussão, principalmente no contexto familiar. Assim, vale ressaltar que a educação dos discentes de cursos da saúde sobre a temática se torna uma das possibilidades de intervenção na problemática, já que são o elo entre a comunidade leiga e científica, podendo, assim, proporcionar discussões, oportunidades de desmistificações e assistência qualificada.

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EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho

EDITOR ASSOCIADO: Priscilla Valladares Broca

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  18 Out 2021
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  17 Jan 2021
• Aceito
  25 Jun 2021