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Consulta de enfermagem na Estratégia Saúde da Família e a percepção do enfermeiro: Teoria Fundamentada

RESUMO

Objetivos:

compreender a experiência do enfermeiro com a consulta de enfermagem no contexto da Estratégia Saúde da Família e propor um modelo representativo.

Métodos:

pesquisa qualitativa, utilizando a Teoria Fundamentada, por meio de entrevistas não diretivas com 14 enfermeiros atuantes. Para análise dos dados, foram utilizadas três etapas: codificação aberta, axial e seletiva. Estas originaram fenômenos, temas, categorias e subcategorias, que embasaram a construção da categoria central e, consequentemente, do modelo teórico.

Resultados:

a inter-relação dos fenômenos fez emergir a essência da experiência do enfermeiro, revelando a categoria central: “Da formação do enfermeiro à prática da consulta de enfermagem: desvelando aprendizados, desafios e autonomia como componentes intervenientes”. Considerações Finais: a experiência do enfermeiro é positiva; e, apesar de inúmeros desafios no cotidiano, o enfermeiro vem atuando embasado na integralidade do cuidado. Novos estudos poderão agregar outras compreensões que possibilitem ampliação das condições de trabalho, valorizando a consulta de enfermagem.

Descritores:
Enfermagem no Consultório; Estratégia Saúde da Família; Teoria Fundamentada; Enfermagem; Enfermagem de Atenção Primária

ABSTRACT

Objectives:

to understand the experience of nurses with nursing consultations in the context of the Family Health Strategy and propose a representative model.

Methods:

qualitative research using Grounded Theory, with 14 nurses working through non-directive interviews. For data analysis, three stages were used: open, axial and selective coding, which originated phenomena, themes, categories and subcategories, which supported the construction of the central category and, consequently, the theoretical model.

Results:

the interrelation of phenomena emerged from the essence of the nurse’s experience, revealing the central category: From nursing education to the practice of Nursing Consultation, unveiling learning, challenges and autonomy as intervening components. Final Considerations: the nurse’s experience is positive and, despite numerous challenges in daily life, the nurse has been performing it based on comprehensive care. New studies may add new understandings that enable the expansion of working conditions, valuing the nursing consultation.

Descriptors:
Office Nursing; Family Health Strategy; Grounded Theory; Nursing; Primary Care Nursing

RESUMEN

Objetivos:

comprender la experiencia de enfermeras con consultas de enfermería en el contexto de la Estrategia Salud de la Familia y proponer un modelo representativo.

Métodos:

investigación cualitativa mediante Grounded Theory, con 14 enfermeras trabajando a través de entrevistas no directivas. Para el análisis de los datos se utilizaron tres pasos: codificación abierta, axial y selectiva, que originó fenómenos, temas, categorías y subcategorías, que sustentaron la construcción de la categoría central y, en consecuencia, el modelo teórico.

Resultados:

la interrelación de fenómenos surgió de la esencia de la experiencia de la enfermera, revelando la categoría central: De la formación en enfermería a la práctica de la Consulta de Enfermería, develando aprendizajes, desafíos y autonomía como componentes intervinientes. Consideraciones Finales: la experiencia de la enfermera es positiva y, a pesar de numerosos desafíos en la vida diaria, la enfermera la ha venido realizando con base en una atención integral. Nuevos estudios pueden sumar nuevos entendimientos que permitan ampliar las condiciones laborales, valorando la consulta de enfermería.

Descriptores:
Enfermería de Oficina; Estrategia de Salud familiar; Teoría Fundamentada; Enfermería; Enfermería de Atención Primaria

INTRODUÇÃO

A consulta de enfermagem (CE) é uma assistência exclusiva do enfermeiro, estabelecida pela Lei no 7.498/86 e utilizada no planejamento do trabalho a fim de fornecer ações de saúde por meio de orientações, instruções e ações com vistas a decidir um plano de cuidado dentro do sistema de saúde, incluindo a assistência ao indivíduo, família e comunidade(11 Crivelaro PMS, Posso MBS, Gomes PC, Papini SJ. Consulta de enfermagem: uma ferramenta de cuidado integral na atenção primária à saúde. Braz J Dev. 2020;6(7):49310-21. https://doi.org/10.34117/bjdv6n7-542
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).

No Brasil, o nome “consulta de enfermagem” surgiu oficialmente em 1960, porém, antes disso, as enfermeiras já realizavam essa atribuição referindo-se aos atendimentos às gestantes e crianças sadias realizados por meio de orientações. Com o passar dos anos, esse atendimento se estendeu, incluindo cuidados aos portadores de tuberculose e programas de saúde pública, os quais anteriormente eram denominados como “entrevistas pós-clínica”(11 Crivelaro PMS, Posso MBS, Gomes PC, Papini SJ. Consulta de enfermagem: uma ferramenta de cuidado integral na atenção primária à saúde. Braz J Dev. 2020;6(7):49310-21. https://doi.org/10.34117/bjdv6n7-542
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).

Assim, as práticas de enfermagem foram evoluindo em parceira com a ciência e com as tecnologias. Como exemplo, na década de 1970, uma enfermeira brasileira, por nome de Wanda de Aguiar Horta, incentivou a implementação do uso das teorias de enfermagem na área acadêmica e desenvolveu a teoria denominada “Teoria das Necessidades Humanas Básicas”.

Dessa forma, o exercício profissional estaria alicerçado a um referencial teórico, no que deu origem à Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE), seguindo os cinco passos elaborados por Wanda de Aguiar Horta, que se referem a anamnese e exame físico, levantamento de problemas, diagnóstico, prescrição e evolução de enfermagem(11 Crivelaro PMS, Posso MBS, Gomes PC, Papini SJ. Consulta de enfermagem: uma ferramenta de cuidado integral na atenção primária à saúde. Braz J Dev. 2020;6(7):49310-21. https://doi.org/10.34117/bjdv6n7-542
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).

Atualmente, para a realização da CE, além da sistematização, são exigidos do enfermeiro conhecimento técnico, científico, ético, pensamento crítico, raciocínio clínico e estratégia de ação em todos os níveis de assistência, seja de caráter público, seja privado(22 Conselho Federal de Enfermagem (BR). Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986. Dispõe sobre a regulamentação do exercício de enfermagem, e dá outras providencias. Brasília, DF: COREN; 1986.).

Na Atenção Primária à Saúde (APS), dentro da Estratégia Saúde da Família (ESF), a CE se apresenta de forma ampliada para a comunidade oferecendo cuidado aos diferentes grupos populacionais, como puericultura, saúde da mulher, gestante, adulto, idoso, doenças crônicas, imunização, visitas domiciliares e educação permanente(33 Kahl C, Meirelles BHS, Lanzoni GMM, Koerich C, Cunha KS. Actions and interactions in clinical nursing practice inrimary health care. Rev Esc Enferm USP. 2018;52:e03327. http://doi.org/10.1590/S1980-220X2017025503327
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).

Para ampliação do cuidado à população, os enfermeiros utilizam como apoio e referência na CE as orientações descritas em protocolos do Ministério da Saúde e protocolos municipais validados, os quais amparam e direcionam a assistência referente às condutas, diagnósticos, solicitações de exames e prescrições de medicamentos(33 Kahl C, Meirelles BHS, Lanzoni GMM, Koerich C, Cunha KS. Actions and interactions in clinical nursing practice inrimary health care. Rev Esc Enferm USP. 2018;52:e03327. http://doi.org/10.1590/S1980-220X2017025503327
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).

Um dos principais objetivos no planejamento da CE é executar um atendimento embasado na integralidade do cuidado com a garantia de prestação de serviços de qualidade ao usuário. Vale esclarecer que a integralidade compreende intervenções resolutivas às demandas da comunidade em suas diferentes dimensões de cuidado, considerando a complexidade de cada ser humano(11 Crivelaro PMS, Posso MBS, Gomes PC, Papini SJ. Consulta de enfermagem: uma ferramenta de cuidado integral na atenção primária à saúde. Braz J Dev. 2020;6(7):49310-21. https://doi.org/10.34117/bjdv6n7-542
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).

No campo científico, há muito para se discutir sobre a CE dada sua relevância à APS, principalmente quando associada à evolução e valorização da prática de enfermagem e ao atendimento das necessidades da população. Além disso, são poucos os estudos acerca dessa temática, e parte deles focaliza a análise em visão reducionista e linear da ciência clássica, restringindo-se às barreiras na CE, sem abranger respostas que satisfaçam ao atendimento das demandas dos cuidados integrais de saúde e que expliquem como esses obstáculos interferem na conduta profissional.

Diante de tal cenário, esta pesquisa partiu da questão: Como os enfermeiros experienciam a prática da consulta de enfermagem na Estratégia Saúde da Família?

OBJETIVOS

Compreender a experiência do enfermeiro com a consulta de enfermagem no contexto da Estratégia Saúde da Família e propor um modelo representativo.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Todos os aspectos éticos foram considerados, e o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa conforme a Resolução no 466, de 12 de dezembro de 2012, que aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos.

Tipo de estudo

Seguindo os critérios do Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ), indicado para pesquisas qualitativas, a opção para o estudo foi a Grounded Theory(44 Corbin J, Strauss AL. Basics of qualitative research: techniques and procedures for developing grounded theory. 4th ed. Los Angeles: SAGE; 2015.), também denominada Teoria Fundamentada em Dados (TFD), na vertente Straussiana, que viabiliza gerar explicações do fenômeno com base na compreensão das ações de indivíduos ou grupos em determinado contexto diante do enfrentamento de problemas ou situações sociais vivenciadas. Desenvolvida por Glaser e Strauss (1960), com influência do interacionismo simbólico e do pragmatismo, a TFD propõe uma técnica de análise sistemática que instrui o autor a desenvolver teorias sociológicas sobre a experiência vivenciada pelas participantes(44 Corbin J, Strauss AL. Basics of qualitative research: techniques and procedures for developing grounded theory. 4th ed. Los Angeles: SAGE; 2015.-55 Santos JLG, Cunha KS, Adamy EK, Backes MTS, Leite JL, Sousa FGM. Data analysis: comparison between the different methodological perspectives of the Grounded Theory. Rev Esc Enferm USP. 2018;52:e03303. https://doi.org/10.1590/S1980-220X2017021803303
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).

Cenário do estudo

A amostra da pesquisa foi composta por 14 enfermeiras atuantes nas unidades ESF em um município do interior do estado de São Paulo (SP). Tinham idades entre 29 e 50 anos e concluíram a graduação entre os anos de 1995 e 2010. Todas participavam de educação permanente, nove haviam concluído o curso de especialização em Saúde Pública, seis possuíam o título de mestre e uma enfermeira estava cursando o doutorado.

Coleta e organização dos dados

A coleta de dados foi realizada entre junho de 2017 e julho de 2018, por meio de entrevistas do tipo não diretiva, tendo como questão de partida: Conte-me qual é sua experiência com a consulta de enfermagem em sua unidade?

As participantes da pesquisa foram convidadas via contato telefônico, agendando-se data e horário para as entrevistas, fora do período de trabalho, sendo realizadas nas unidades onde elas atuavam. Após a leitura e esclarecimento dos objetivos e metodologia do trabalho, todas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

As entrevistas foram gravadas por meio digital e transcritas na íntegra imediatamente após a coleta. As participantes foram identificadas pela letra “E” (de “enfermeira”) acompanhada de um número (E1, E2…), para garantir o anonimato.

Análise dos dados

Seguiu-se o rigor metodológico segundo o qual os dados foram comparados sistematicamente entre fenômenos, temas, categorias e subcategorias. Os procedimentos de codificação da TFD foram realizados em três etapas que se complementam: aberta, axial e seletiva. Com isso, desenvolveu-se o modelo teórico(44 Corbin J, Strauss AL. Basics of qualitative research: techniques and procedures for developing grounded theory. 4th ed. Los Angeles: SAGE; 2015.-55 Santos JLG, Cunha KS, Adamy EK, Backes MTS, Leite JL, Sousa FGM. Data analysis: comparison between the different methodological perspectives of the Grounded Theory. Rev Esc Enferm USP. 2018;52:e03303. https://doi.org/10.1590/S1980-220X2017021803303
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).

Para a discussão dos dados, utilizou-se o referencial teórico da integralidade na atenção e no cuidado à saúde(66 Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizers. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ; 2006. p. 43-68.), o qual direciona a construção de práticas multidisciplinares de atenção integral.

RESULTADOS

A estratégia empregada para descobrir a categoria central foi inter-relacionar os fenômenos denominados Do início da práxis ao cotidiano da CE” e “A CE na prática de ESF”, para a construção do modelo teórico. Assim, os fenômenos foram identificados por meio das cinco categorias-chave que evidenciaram a experiência do enfermeiro com a CE.

Fenômeno 1 - Do início da práxis ao cotidiano da CE - Representa a história da práxis do enfermeiro desde o início da atuação na ESF, sua busca contínua pelo conhecimento científico até o preparo profissional. Nesse percurso, as participantes reconhecem que a CE é um aprendizado constante.

[…] Não posso dizer para você que, mesmo fazendo há dez anos, eu saiba tudo ou que faça a melhor consulta. É tudo um aprendizado! […] Talvez daqui dez anos sejam outros instrumentos […] a gente tem que se atualizar. (E2.9)

[…] porque a gente se preparou, a faculdade formou a gente inicialmente e, depois, tivemos que procurar uma especialização, cursos de capacitação e outras demandas para que suprissem as necessidades que no dia a dia aparecem. Tenho muitas experiências, e a vivência do dia-a-dia é enriquecedora. A gente aprende muito no dia a dia. (E4)

Categoria 1 - A CE e a formação do enfermeiro - Reúne os processos pelos quais os enfermeiros passaram durante sua graduação para adquirirem conhecimentos clínicos visando à integralidade do cuidado em relação ao paciente, por meio da CE, incluindo suas deficiências.

[…] nesses sete anos, me aprimorei muito e precisei buscar muita coisa. Realmente, só a graduação, ela dá uma base, mas ela não auxilia em todos esses processos. Não dá para ficar só com a graduação. (E11)

Categoria 2 - A CE sendo reconhecida pelo enfermeiro e aceita pela equipe e comunidade - Retrata os ganhos profissionais referentes à prática da CE, tais como o reconhecimento, valorização e visibilidade profissional adquiridos durante os atendimentos na ESF.

Nessa unidade, a consulta de enfermagem já está bem consolidada. Tanto para a equipe quanto para população. Raramente, tem pacientes que não querem ser atendidos pela enfermeira, ou que encontram algum empecilho. Mas, depois de uma conversa, demonstrando a importância do nosso trabalho, os protocolos que seguimos e o embasamento teórico, geralmente conseguimos ganhar o paciente e somos bem aceitos. (E4)

Fenômeno 2 - A CE na prática de ESF - Contempla a CE desenvolvida na ESF, a superação de desafios, a obtenção de ganhos em busca da integralidade do cuidado e as sobrecargas do processo de enfermagem (PE). Inter-relaciona os sentimentos apresentados pelos enfermeiros diante das condições de trabalho no cotidiano e do desejo de qualificar a CE.

[…] a consulta de enfermagem é a principal atividade que a gente faz e pratica a assistência dentro da saúde da família. E na visita também, que também é uma consulta vamos dizer assim. […] acho que o que dificulta por exemplo é a sobrecarga. Porque, muitas vezes, nas unidades, o enfermeiro é assistente-gerente. Pelo menos as de Saúde da Família. (E9)

Categoria 1 - Tendo problemas com a demanda espontânea - Demonstra que os enfermeiros da ESF enfrentam todos os dias um dilema com a demanda espontânea — esta que é definida como qualquer atendimento não programado na unidade originado pela necessidade momentânea do usuário. Esses fatos se apresentam como empecilhos na organização do processo de trabalho do enfermeiro diante da CE.

[…] muitas vezes, a gente tem dificuldade em seguir a consulta. Porque eu vejo que nós, profissionais, estamos com um desafio muito grande no processo de trabalho, atualmente, devido à alta demanda espontânea, ou seja, o atendimento extra, a gente acaba agindo como queixa e conduta. Então, fazendo um atendimento assim, a gente acaba se norteando por um caminho que não é uma consulta de enfermagem. (E8)

Categoria 2 - Interfaces entre assistência e gerência - Representa a inter-relação entre as atividades assistenciais e as gerenciais, as quais se complementam na atribuição do enfermeiro da ESF. As enfermeiras relatam que se sentem assoberbadas devido à alta demanda atribuída a elas, que envolve a assistência, gerência e estruturação do trabalho.

Fazendo a parte da gerência e dividindo um pouco de tempo para a assistência. Então eu acho ruim, porque infelizmente os pacientes é que acabam perdendo em termos de qualidade. (E3)

Eu não consigo fazer tudo ao mesmo tempo. Se estou fazendo consulta, eu estou fazendo gerência ao mesmo tempo, alguém está batendo na porta, alguém quer falar comigo, alguém está me esperando […]. (E2)

Categoria 3 - Sistematizando a CE - Retrata a tentativa dos enfermeiros em sistematizar a CE, para desenvolver todas as etapas do PE aprendidas durante a graduação. As participantes demonstram que sistematizar induz a organização do trabalho, mas que, em razão da sobrecarga, essa prática não ocorre em todos os atendimentos.

Mas a gente tenta seguir os passos, realizar o histórico, anamnese, o levantamento de problemas, o diagnóstico e a intervenção. A gente tenta seguir tudo! (E3)

Após análise aprofundada, comparando-se os dados, identificou-se a categoria central da experiência do enfermeiro com a CE, intitulada “Da formação do enfermeiro à prática da consulta de enfermagem: desvelando aprendizados, desafios e autonomia como componentes intervenientes”. Foi possível configurar vivências e abstrai-las em um modelo teórico que aprofundou a compreensão dessa experiência (Figura 1).

Figura 1
Modelo teórico da experiência do enfermeiro com a consulta de enfermagem na Estratégia Saúde da Família

DISCUSSÃO

Com base no modelo teórico, é possível observar a experiência do enfermeiro com a CE na ESF desde a graduação, ampliando a construção do conhecimento e aprendendo formas de sistematizá-la na prática. O avanço dessa experiência permitiu melhor agilidade e conhecimento científico, aprimoramento do raciocínio clínico, os quais estruturam e formam a base da CE, proporcionando qualidade ao trabalho do enfermeiro e levando à prática da integralidade do cuidado.

O núcleo do modelo traduz o significado da trajetória que o profissional faz para realizar com êxito suas atribuições que lhe são privativas, atravessando desafios até alcançar conquistas e reconhecimento de sua prática. Nele se expõe a essência da experiência do enfermeiro por meio da CE, na categoria central intitulada “Da formação do enfermeiro à prática da consulta de enfermagem: desvelando aprendizados, desafios e autonomia como componentes intervenientes”. Assim, o modelo revela o processo de formação do enfermeiro, suas expectativas quanto à CE, fatores positivos, realidades vivenciadas na prática e os fatores negativos experimentados por ele ao longo desse percurso.

A formação acadêmica do enfermeiro fundamenta a prática profissional, que é influenciada direta ou indiretamente por diversos fatores. Tipos de instituições (públicas ou privadas), períodos (matutinos, noturnos ou integrais) e ensinos à distância podem moldar diferentemente o perfil dos futuros enfermeiros. Além disso, o ano de conclusão do curso traz interferências nessa formação já que os cursos e conteúdos se aprimoram com os avanços da ciência(77 Pires DEP. Transformações necessárias para o avanço da Enfermagem como ciência do cuidar. Rev Bras Enferm. 2013;66(spe):39-44. https://doi.org/10.1590/S0034-71672013000700005
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). No Brasil, é evidenciado que os enfermeiros, em sua maioria, são formados há dez anos ou menos, caracterizando uma categoria profissional jovem(88 Humerez DC. Aspectos gerais da formação da enfermagem: o perfil da formação dos enfermeiros técnicos e auxiliares: debatedor 3. Enferm Foco. 2016;7(esp):32-4. https://doi.org/10.21675/2357-707X.2016.v7.nESP.690
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).

A CE é uma das principais atividades trabalhadas na graduação, pois se apresenta como componente atravessador nas diferentes linhas de cuidado e representa a principal maneira de prestar assistência de enfermagem, tanto para o indivíduo sadio quanto para aquele que se encontra hospitalizado(11 Crivelaro PMS, Posso MBS, Gomes PC, Papini SJ. Consulta de enfermagem: uma ferramenta de cuidado integral na atenção primária à saúde. Braz J Dev. 2020;6(7):49310-21. https://doi.org/10.34117/bjdv6n7-542
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). A formação busca ainda aprimorar as técnicas assistenciais, que induz o raciocínio clínico, além de apresentar as bases para o gerenciamento de enfermagem, as quais, em conjunto, fortalecem o desenvolvimento do plano de cuidado, independentemente do local de trabalho ou nível de atenção à saúde(99 Bohusch G, Sanes MS, Vendrusculo C, Meltelsk FK. Melhores práticas de enfermagem na atenção primária à saúde: relato de ação pedagógica. Inova Saude. 2020;10(2)1-11. http://doi.org/10.18616/inova.v10i2.5212
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).

Quando o enfermeiro inicia a prática da CE na ESF muitas expectativas se revelam, como o atendimento qualificado, o conhecimento progressivo, a SAE e as ações planejadas.

Em relação ao atendimento, as participantes expressaram uma visão integralista da assistência por meio da CE qualificada, isto é, o desejo de qualificar e exercer a profissão em totalidade, com busca de conhecimento progressivo para ampliar o raciocínio clínico mediante técnicas inovadoras e especializações relacionadas ao aperfeiçoamento da prática. Tais expectativas corroboram a literatura, uma vez que a falta de qualificação e aprimoramento pode comprometer o desempenho da unidade de saúde(1010 Oliveira MM, Pedraza DF. Contexto de trabalho e satisfação profissional de enfermeiros que atuam na estratégia saúde da família. Saude Debate. 2019;43(122)765-79. http://doi.org/10.1590/0103-1104201912209
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). Além disso, é preciso ter embasamento teórico e técnico para treinar a equipe e realizar educação em saúde para a comunidade(1111 Corrêa VAF, Acioli S, Tinoco TF. The care of nurses in the Family Health Strategy: practices and theoretical foundation. Rev Bras Enferm. 2018;71(suppl 6):2767-74. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0383
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).

Outras expectativas estão relacionadas à realização da SAE e às ações planejadas na prática da ESF, que se apresentam como fatores cruciais ao enfermeiro no desenvolvimento de suas atribuições, por serem responsabilidades legítimas da categoria, cobradas pelos órgãos de classe(1212 Conselho Federal de Enfermagem (BR). Resolução Cofen nº 358/2009. Dispõe sobre a Sistematização da Assistência de Enfermagem e a implementação do Processo de Enfermagem em ambientes, públicos ou privados, em que ocorre o cuidado profissional de Enfermagem, e dá outras providências [Internet]. Brasília, DF: Cofen; 2009[cited 2020 Jun 02]. Available from: http://www.cofen.gov.br/resoluo-cofen-3582009_4384.html
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).

A SAE influencia a performance da CE principalmente no planejamento e na organização das ações de enfermagem, pois oferece ao enfermeiro recursos para aplicar seus conhecimentos e suas habilidades para com o usuário de forma direta e independente(1313 Ribeiro GC, Padoveze MC. Nursing care systematization in a basic health unit: perception of the nursing team. Rev Esc Enferm USP. 2018;52:e03375. http://doi.org/10.1590/S1980-220X2017028803375
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-1414 Wanzeler KM, Bastos LBR, Cruz AB, Silva NP, Souza SPC, Bastos DAS, et al. Sistematização da assistência de enfermagem (SAE) na atenção primária à saúde. REAS. 2019;35(suppl 35):e1486. https://doi.org/10.25248/reas.e1486.2019
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). Além disso, favorece o diálogo e a escuta, que devem permanecer ativos para definir metas e ações envolvendo o plano de cuidado e qualidade de atendimento em saúde(1515 Silva JP, Garanhani ML, Peres AM. Systematization of nursing care in undergraduate training: the perspective of complex thinking. Rev Latino-Am Enfermagem. 2015;23(1):59-66. https://doi.org/10.1590/0104-1169.0096.2525
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).

As ações planejadas referem-se à organização do PE, à distribuição de trabalho da equipe, bem como à programação das intervenções e dos programas de saúde, possibilitando acessibilidade à saúde para os usuários e eficiência na divisão do tempo de trabalho. São incluídas também ações como diagnóstico de saúde da comunidade, com territorialização, mapeamento, planejamento de visitas domiciliares e ecomapa situacional das famílias(1616 Spagnuolo RS, Bocchi SCM. Between the processes of strengthening and weakening of the family health strategy. Rev Bras Enferm. 2013;66(3):366-71. https://doi.org/10.1590/s0034-71672013000300010
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).

Seguindo o modelo teórico, os fatores positivos da experiência do enfermeiro se revelam, e o protocolo se evidencia na realização da CE, pois, por intermédio desse instrumento, as participantes referem adquirir autonomia e empoderamento para realização de sua prática(1717 Pereira JG, Oliveira MAC. Nurses’ autonomy in primary care: from collaborative practices to advanced practice. Acta Paul Enferm. 2018;31(6):627-35. https://doi.org/10.1590/1982-0194201800086
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). Tal autonomia se manifesta na tomada de decisões diante do planejamento do cuidado aos grupos populacionais de forma resolutiva e integral, conduzindo ao reconhecimento profissional do enfermeiro e gerando ainda a sensação de satisfação pessoal com o trabalho desenvolvido (gratificação).

O protocolo apresenta-se como instrumento que direciona a CE. Nele estão inseridas as descrições de várias situações específicas de assistência, especificidades operacionais e minúcias sobre o que se realiza, quem realiza e como se realiza, direcionando os profissionais nas soluções para a prevenção da doença, promoção, recuperação ou reabilitação da saúde(1818 Pimenta CAM, Pastana ICASS, Sichieri K, Solha RKT, Souza W. Guia para construção de protocolos assistenciais de enfermagem [Internet]. São Paulo: COREN/SP; 2017[cited 2020 Jun 17]. Available from from: https://portal.coren-sp.gov.br/sites/default/files/Protocolo-web.pdf
https://portal.coren-sp.gov.br/sites/def...
). Apesar de nem sempre descreverem claramente todas as atribuições do enfermeiro(1919 Ferreira SRS, Périco LAD, Dias VRFG. The complexity of the work of nurses in primary health care. Rev Bras Enferm. 2018;71(suppl 1):704-9. http://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0471
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), os protocolos são referenciados de maneira positiva, à medida que a CE evolui e se aprimora.

As experiências revelam a oportunidade de desenvolver integralidade do cuidado, ao conseguir abordar de maneira abrangente diversos aspectos da vida do usuário. Essa integralidade está caracterizada por três conjuntos de conceitos: da articulação dos serviços de saúde, da abrangência das práticas dos trabalhadores e da composição de políticas governamentais(2020 Dias MMS, Carvalho JL, Landim LOP, Carneiro C. A integralidade em saúde na educação médica no Brasil: o estado da questão. Rev Bras Educ Med. 2018;42(4):123-33. https://doi.org/10.1590/1981-52712015v42n4rb20180094
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).

Na rotina das equipes de ESF, a integralidade atua nos microprocessos da assistência, no exercício de cada profissional por meio de acolhimento, comprometimento com a população e cuidado em saúde para conquistar vínculos e estabelecer metas para restituir as carências apresentadas(2121 Pinheiro R. Atenção básica à saúde: um olhar a partir das práticas de integralidade em saúde. REME [Internet]. 2005[cited 2020 Jun 17];9(2):174-8. Available from: http://reme.org.br/sumario/32
http://reme.org.br/sumario/32...
-2222 Viegas SMF, Penna CMM. A construção da integralidade no trabalho cotidiano da equipe saúde da família. Esc Anna Nery. 2013;17(1):133-41. https://doi.org/10.1590/S1414-81452013000100019
https://doi.org/10.1590/S1414-8145201300...
).

Para a concretização da integralidade na assistência de ESF, é preciso colaboração da equipe de saúde, de modo que cada membro realize sua função de forma integrada, a começar pelos responsáveis do sistema de saúde, superando barreiras como o modelo biomédico, que tem atenção fragmentada e foco na doença(2121 Pinheiro R. Atenção básica à saúde: um olhar a partir das práticas de integralidade em saúde. REME [Internet]. 2005[cited 2020 Jun 17];9(2):174-8. Available from: http://reme.org.br/sumario/32
http://reme.org.br/sumario/32...
).

O reconhecimento profissional na comunidade ocorre com base na resolubilidade que a CE imprime na ESF, pois, diante de uma anamnese, é possível ir além da necessidade apresentada como queixa, explorando a convivência familiar, aspectos sociais, culturais e demais fatores conflitantes que refletem no processo saúde/doença. Tal conduta fortalece o vínculo com os usuários, como aponta estudo canadense no qual os participantes confirmaram que a enfermeira era seu contato preferido nos cuidados primários(2323 Hudon C, Chouinard MC, Diadiou F, Lambert M, Bouliane D. Case management in primary care for frequent users of health care services with chronic diseases: a qualitative study of patient and family experience. Ann Fam Med. 2015;13(6):523-8. doi: 10.1370/afm.1867.
https://doi.org/10.1370/afm.1867...
).

Na vivência profissional do enfermeiro, quando a plenitude da CE é alcançada, são revelados sentimentos de grande satisfação com a evolução do trabalho, proporcionando a sensação de ser útil e cumprir seu papel perante a sociedade. Nesse sentido, estudo realizado com enfermeiras de ESF, no tocante à CE em puericultura, constatou que realizá-la significava obter um grande privilégio, pois gera a sensação de sucesso, valorização da profissão e reconhecimento tanto profissional quanto pessoal(2424 Campos RMC, Ribeiro CA, Silva CV, Saparolli ECL. Nursing consultation in child care: the experience of nurses in the family health strategy. Rev Esc Enferm USP. 2011;45(3):566-74. http://doi.org/10.1590/S0080-62342011000300003
http://doi.org/10.1590/S0080-62342011000...
).

Na outra ponta do modelo teórico, o enfermeiro já formado e inserido no mercado de trabalho enfrenta dificuldades na prática da CE, expressas principalmente como tempo escasso, falta de agilidade para o diagnóstico de enfermagem, problema na interface entre assistência e gerência, além de alta demanda burocrática.

A escassez do tempo se origina dos atendimentos abertos à população que geram alta demanda e fluxo não planejado, chamados de “demanda espontânea”, a qual exige do enfermeiro um período de assistência não programada causador de sentimentos de frustação e ansiedade devido à vasta fila de espera. Além disso, a alta demanda requer atendimentos rápidos e pontuais para que todos sejam contemplados, interferindo nas CEs pré-agendadas(33 Kahl C, Meirelles BHS, Lanzoni GMM, Koerich C, Cunha KS. Actions and interactions in clinical nursing practice inrimary health care. Rev Esc Enferm USP. 2018;52:e03327. http://doi.org/10.1590/S1980-220X2017025503327
http://doi.org/10.1590/S1980-220X2017025...
) e dificultando a prática da integralidade(1616 Spagnuolo RS, Bocchi SCM. Between the processes of strengthening and weakening of the family health strategy. Rev Bras Enferm. 2013;66(3):366-71. https://doi.org/10.1590/s0034-71672013000300010
https://doi.org/10.1590/s0034-7167201300...
).

Assim, emerge a dificuldade em sistematizar a CE, principalmente em classificar o diagnóstico de enfermagem de forma rápida e precisa. Apesar de procurar garantir o cumprimento de normas da profissão realizando a CE de forma completa (anamnese, exame físico, levantamento de problemas, diagnóstico, intervenção e evolução de enfermagem), os enfermeiros temem não conseguir executar todas as etapas em sua plenitude, já que é preciso senso crítico e capacidade evolutiva de planejar o processo terapêutico(11 Crivelaro PMS, Posso MBS, Gomes PC, Papini SJ. Consulta de enfermagem: uma ferramenta de cuidado integral na atenção primária à saúde. Braz J Dev. 2020;6(7):49310-21. https://doi.org/10.34117/bjdv6n7-542
https://doi.org/10.34117/bjdv6n7-542...
).

Para otimizar esse processo ante a alta demanda, observa-se a necessidade de instrumentos que facilitem e agilizem a realização da CE com praticidade e padronização. A Classificação Internacional para Prática de Enfermagem (CIPE) apresenta-se como uma importante ferramenta, por se tratar de sistema classificatório de linguagem única e universal com padronização da CE em relação a diagnóstico e intervenção(2525 Kahl C, Meirelles B, Cunha K, Bernardo M, Erdmann A. Contributions of the nurse’s clinical practice to primary care. Rev Bras Enferm. 2019;72(2):371-6. http://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0348
http://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-03...
). Ela é uma forma de organizar o planejamento de cuidado, diminuindo variações nos tratamentos dos usuários e ampliando a qualidade na assistência(33 Kahl C, Meirelles BHS, Lanzoni GMM, Koerich C, Cunha KS. Actions and interactions in clinical nursing practice inrimary health care. Rev Esc Enferm USP. 2018;52:e03327. http://doi.org/10.1590/S1980-220X2017025503327
http://doi.org/10.1590/S1980-220X2017025...
). No entanto, a experiência dos enfermeiros com a CIPE revelou desafios ligados à falta de agilidade para encontrar o diagnóstico de forma rápida e precisa durante a CE, dada a complexidade e necessidade de memorização, o que causa constrangimentos ao ter que procurá-lo, folheando o livro na presença do usuário, já que a maioria dos profissionais não dispõe da CIPE informatizada. Tal dificuldade é corroborada em pesquisas realizadas no Sul do Brasil, nas quais os participantes também relataram falta de domínio na operacionalização do sistema, inclusive já em processo de informatização(2525 Kahl C, Meirelles B, Cunha K, Bernardo M, Erdmann A. Contributions of the nurse’s clinical practice to primary care. Rev Bras Enferm. 2019;72(2):371-6. http://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0348
http://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-03...
).

Outra realidade enfrentada é a inter-relação entre as atividades assistenciais e as demandas gerenciais, que estão sobrepostas nas atribuições do enfermeiro na ESF, provocando o sentimento de sobrecarga na estruturação do trabalho(1616 Spagnuolo RS, Bocchi SCM. Between the processes of strengthening and weakening of the family health strategy. Rev Bras Enferm. 2013;66(3):366-71. https://doi.org/10.1590/s0034-71672013000300010
https://doi.org/10.1590/s0034-7167201300...
). Nesse contexto, destaca-se o exercício da liderança do enfermeiro, agregando-se responsabilidades em práticas gerenciais e assistenciais que visam suprir as necessidades de saúde da população. Ambas as atribuições seguem em conjunto para o fortalecimento da APS, porém o enfermeiro manifesta insatisfação pela sobrecarga no PE causada pela alta demanda burocrática (preenchimento de planilhas, documentos e solicitações sob sua responsabilidade(1010 Oliveira MM, Pedraza DF. Contexto de trabalho e satisfação profissional de enfermeiros que atuam na estratégia saúde da família. Saude Debate. 2019;43(122)765-79. http://doi.org/10.1590/0103-1104201912209
http://doi.org/10.1590/0103-110420191220...
), exigências e encaminhamentos centrados em soluções morosas), além de desencontros nas relações e comunicações que parecem dificultar a resolutividade das ações e prejudicam a credibilidade da equipe de ESF(1616 Spagnuolo RS, Bocchi SCM. Between the processes of strengthening and weakening of the family health strategy. Rev Bras Enferm. 2013;66(3):366-71. https://doi.org/10.1590/s0034-71672013000300010
https://doi.org/10.1590/s0034-7167201300...
).

De forma geral, o PE envolve várias dimensões combinadas entre si, como a assistência, o gerenciamento, o ensino, a pesquisa e a participação política(2626 Sanna MC. Os processos de trabalho em enfermagem. Rev Bras Enferm. 2007;60(2):221-4. https://doi.org/10.1590/S0034-71672007000200018
https://doi.org/10.1590/S0034-7167200700...
-2727 Medeiros AL, Santos SR, Cabral RWL. Systematization nursing care: difficulties highlighted by the grounded theory. Rev Enferm UERJ [Internet]. 2013[cited 2020 Jun 17];21(1):47-53. Available from: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/6347/4520
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
). Portanto, observa-se a necessidade crucial do enfermeiro ESF em manter o equilíbrio entre suas dimensões de trabalho, associado ao conhecimento de suas demandas no planejamento diário de suas atividades, no delegar atividades pertinentes à equipe e na exploração dos benefícios que a prática da CE lhe traz no progresso da profissão.

Por fim, o modelo representativo evidencia os fatores negativos vivenciados na prática da CE na ESF, que estão diretamente relacionados com o processo de trabalho e apresentam interdependência com a realidade. Tais fatores são apresentados pelos enfermeiros como exigências dos gestores, alta demanda de usuários, limitação do protocolo, dependência da conduta médica e sentimento de tristeza diante dessas condições(2828 Campos EC. Protocolo de assistência de enfermagem: visão do enfemeiro na estratégia saúde da família [Dissertação] [Internet]. Botucatu: Universidade Estadual Paulista; 2017[cited 2020 Jun 17]. Available from: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/148948/campos_ec_me_bot_int.pdf?s
https://repositorio.unesp.br/bitstream/h...
).

Sentimentos negativos são demonstrados em outro ângulo da experiência, em que os profissionais expõem o desconforto perante as exigências de produção, metas quantitativas de atendimento e pressão em termos de prazos requeridos pelos gestores(1010 Oliveira MM, Pedraza DF. Contexto de trabalho e satisfação profissional de enfermeiros que atuam na estratégia saúde da família. Saude Debate. 2019;43(122)765-79. http://doi.org/10.1590/0103-1104201912209
http://doi.org/10.1590/0103-110420191220...
). Referindo-se às metas mensais, a frustração manifesta-se pelo desejo de que cada atendimento seja baseado na integralidade e não caracterizado apenas como mais um simples procedimento; pela decepção ao não serem considerados todos os aspectos deficitários do usuário, tampouco o compartilhamento multiprofissional, encaminhamentos necessários e aspectos resolutivos, os quais demandam tempo e conhecimento técnico.

Outro aspecto negativo revelado referiu-se à dependência do profissional médico, pois, em situações de atendimentos, o protocolo de enfermagem não abrange certas ações, de modo que, quando há necessidade de prescrição de medicação para conclusão da consulta, as informações ali obtidas precisam ser compartilhadas com o médico. Nesse contexto, a ampliação dos protocolos traria maiores oportunidades de resolver problemas da comunidade e colaborar para o melhor funcionamento da unidade de saúde, que muitas vezes sofre com a ausência médica durante longos períodos(2828 Campos EC. Protocolo de assistência de enfermagem: visão do enfemeiro na estratégia saúde da família [Dissertação] [Internet]. Botucatu: Universidade Estadual Paulista; 2017[cited 2020 Jun 17]. Available from: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/148948/campos_ec_me_bot_int.pdf?s
https://repositorio.unesp.br/bitstream/h...
).

Em suma, sentimentos de tristeza se revelam ao ver que as expectativas da formação não se materializam de forma efetiva na prática da CE na ESF. Ao contrário, constatam em seu trabalho a sobrecarga aliada à falta de tempo e aos demais fatores negativos que surgem no cotidiano. Sugere se que os enfermeiros busquem melhor conhecimento de suas atribuições a fim de delegar funções no processo de trabalho em equipe, com adequação do tempo para desempenhar suas atividades privativas, mantendo as reuniões multiprofissionais com incentivo à educação permanente, fatos que podem melhorar a sua atuação na CE e na integralidade do cuidado(1616 Spagnuolo RS, Bocchi SCM. Between the processes of strengthening and weakening of the family health strategy. Rev Bras Enferm. 2013;66(3):366-71. https://doi.org/10.1590/s0034-71672013000300010
https://doi.org/10.1590/s0034-7167201300...
).

Limitações do estudo

Os resultados deste estudo são referentes ao cenário da ESF, o que compromete a ampliação da percepção de enfermeiro de outros campos na APS. Além disso, para a discussão com a literatura, a temática mostrou-se escassa; por esse motivo, são necessárias novas investigações nos diversos cenários de atuação do enfermeiro.

Contribuições para a área da Enfermagem, Saúde ou Política Pública

Estes resultados contribuem para o incremento da ciência na medida em que revelaram a realidade prática vivenciada pelos enfermeiros inseridos na ESF. Mudanças podem ser proporcionadas com base nos novos significados relacionados à CE, possibilitando uma melhor visibilidade e autonomia tão almejadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os enfermeiros compreendem que a CE na ESF se liga a experiências positivas. Entretanto, no cotidiano, se deparam com a sobrecarga, alta demanda, exigências burocráticas e limitações, que são fatores dificultadores da prática profissional.

Por meio do modelo teórico, foi possível revelar a experiência do enfermeiro com a CE na ESF desde a graduação, ampliando a construção do conhecimento em enfermagem e aprendendo formas de sistematizá-la na prática. Assim, o modelo expressa o processo de formação do enfermeiro, suas expectativas quanto à CE, fatores positivos, realidades vivenciadas na prática e os fatores negativos experimentados por ele nessa trajetória.

Esta investigação é inédita, fornecendo novas apreensões sobre a prática da consulta desenvolvida pelo enfermeiro. Identificou-se a falta de compreensão dos profissionais sobre a importância do gerenciamento de modo complementar à assistência, revelando uma lacuna a ser preenchida no ensino de graduação. Torna-se necessário preparar os futuros enfermeiros com conhecimentos e habilidades que correspondam melhor às realidades enfrentadas na prática profissional.

O estudo, ainda, aponta que existe um caminho a ser percorrido na profissão, no qual a CE deve ser mais valorizada pela sociedade e pelos próprios enfermeiros, por ser um rico instrumento para ampliação da resolução de problemas de saúde da população no nível primário de atenção.

MATERIAL SUPLEMENTAR

Lima SGS. The nursing consultation in primary health care: from nursing education to professional practice [tese] [Internet]. Botucatu: Faculdade de Medicina, Unesp; 2021 [cited 2021 Nov 21]. Available from:https://repositorio.unesp.br/handle/11449/213718

AGRADECIMENTO

Agradecimentos à Coordenação de aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de doutorado.

Os autores declaram não possuir conflitos de interesse.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Margarida Vieira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Nov 2020
  • Aceito
    03 Nov 2021
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