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Assistência em saúde mental sustentada no modelo psicossocial: narrativas de familiares e pessoas com transtorno mental

Atención en salud mental basada en el modelo psicosocial: testimonios de familiares y personas con transtorno mental

Resumos

Esta pesquisa foi realizada com o método da história oral temática e desenvolvida no ano de 2009, em Curitiba, com oito colaboradores pertencentes a três famílias que tinham um integrante com transtorno mental. O objetivo do estudo foi descrever a percepção de familiares e de portadores de transtorno mental sobre a assistência em saúde mental sustentada no modelo psicossocial. Os dados foram obtidos por meio de entrevista semiestruturada, analisados e apresentados de maneira descritiva. Os colaboradores consideraram os serviços extra-hospitalares, como o Centro de Atenção Psicossocial e os ambulatórios de saúde mental, estratégias inovadoras, e mencionaram o atendimento por equipe multiprofissional, a mediação de conflitos familiares e o princípio de territorialidade. Destacaram o acompanhamento do portador de transtorno mental pela Unidade Básica de Saúde e ressaltaram a importância das associações na rede de saúde mental. Atribuíram à inclusão da família no tratamento a melhora na relação familiar e a aceitação da doença.

Transtornos mentais; Família; Serviços de Saúde Mental; Enfermagem psiquiátrica


Investigación según metodología de historia oral temática, desarrollada durante 2009 en Curitiba, con ocho colaboradores pertenecientes a tres familias con un miembro padeciendo transtorno mental. Se objetivó describir la percepción de familiares y portadores de transtorno mental sobre la atención de salud mental basada en el modelo psicosocial. Datos recabados mediante entrevista semiestructurada, analizados y presentados de modo descriptivo. Los colaboradores consideraron estrategias innovadoras a los servicios extrahospitalarios como el Centro de Atención Psicosocial y ambulatorios de salud mental, mencionaron la atención por parte de equipo multidisciplinario, la mediación de conflictos familiares y el principio de territorialidad. Destacaron el seguimiento del portador de transtorno mental por la Unidad Básica de Salud y resaltaron la importancia de las asociaciones en la red de salud mental. Atribuyeron la mejora de las relaciones familiares y la aceptación del padecimiento a la inclusión de la familia en el tratamiento

Trastornos mentales; Familia; Servicios de Salud Mental; Enfermería psiquiátrica


This study was performed in 2009 in Curitiba, using the thematic oral history technique. The participants were eight individuals from three different families who had one relative suffering from a mental disorder. The objective of the study was to describe the perception of relatives and persons with mental disorders regarding mental healthcare based on the psychosocial model. The data were obtained through semi-structured interviews, which were then analyzed and organized descriptively. The participants opined that extra-hospital services such as the Psychosocial Care Center and mental health outpatient clinics are innovative strategies. They described receiving assistance from a multidisciplinary team, the mediation of family conflicts, and the principle of territoriality. They highlighted that the individual with a mental disorder is followed by the Basic Health Unit and emphasized the importance of mental health network connections. They believe that including the family in the treatment regime improves family relationships and their acceptance of the disease.

Mental disorders; Family; Mental Health Services; Psychiatric nursing


ARTIGO ORIGINAL

Assistência em saúde mental sustentada no modelo psicossocial: narrativas de familiares e pessoas com transtorno mental* * Extraído da dissertação "Vivência familiar de tratamento da pessoa com transtorno mental em face da reforma psiquiátrica", Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Paraná, 2010.

Atención en salud mental basada en el modelo psicosocial: testimonios de familiares y personas con transtorno mental

Letícia de Oliveira BorbaI; Andrea Noeremberg GuimarãesII; Verônica de Azevedo MazzaIII; Mariluci Alves MaftumIV

IEnfermeira. Doutoranda em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Paraná. Membro do NEPECHE - Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Cuidado Humano em Enfermagem. Curitiba, PR, Brasil. leticia_ufpr@yahoo.com.br

IIEnfermeira. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, PR, Brasil. Bolsista REUNI. Curitiba, PR, Brasil. deia@ufpr.br

IIIEnfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Paraná. Líder do Grupo de Pesquisa GEFASED - Grupo de Estudos Família, Saúde e Desenvolvimento. Curitiba, PR, Brasil. mazzas@ufpr.br

IVEnfermeira. Doutora em Enfermagem. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, PR, Brasil. Vice-lider do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Cuidado Humano em Enfermagem. maftum@ufpr.br

Endereço para correspondência Correspondência: Mariluci Alves Maftum Rua Lothário Meissner, 632. Bloco Didático II - 4º andar Setor de Ciências da Saúde - Campus Botânico CEP 80210-170 - Curitiba, PR, Brasil

RESUMO

Esta pesquisa foi realizada com o método da história oral temática e desenvolvida no ano de 2009, em Curitiba, com oito colaboradores pertencentes a três famílias que tinham um integrante com transtorno mental. O objetivo do estudo foi descrever a percepção de familiares e de portadores de transtorno mental sobre a assistência em saúde mental sustentada no modelo psicossocial. Os dados foram obtidos por meio de entrevista semiestruturada, analisados e apresentados de maneira descritiva. Os colaboradores consideraram os serviços extra-hospitalares, como o Centro de Atenção Psicossocial e os ambulatórios de saúde mental, estratégias inovadoras, e mencionaram o atendimento por equipe multiprofissional, a mediação de conflitos familiares e o princípio de territorialidade. Destacaram o acompanhamento do portador de transtorno mental pela Unidade Básica de Saúde e ressaltaram a importância das associações na rede de saúde mental. Atribuíram à inclusão da família no tratamento a melhora na relação familiar e a aceitação da doença.

Descritores: Transtornos mentais. Família. Serviços de Saúde Mental. Enfermagem psiquiátrica.

RESUMEN

Investigación según metodología de historia oral temática, desarrollada durante 2009 en Curitiba, con ocho colaboradores pertenecientes a tres familias con un miembro padeciendo transtorno mental. Se objetivó describir la percepción de familiares y portadores de transtorno mental sobre la atención de salud mental basada en el modelo psicosocial. Datos recabados mediante entrevista semiestructurada, analizados y presentados de modo descriptivo. Los colaboradores consideraron estrategias innovadoras a los servicios extrahospitalarios como el Centro de Atención Psicosocial y ambulatorios de salud mental, mencionaron la atención por parte de equipo multidisciplinario, la mediación de conflictos familiares y el principio de territorialidad. Destacaron el seguimiento del portador de transtorno mental por la Unidad Básica de Salud y resaltaron la importancia de las asociaciones en la red de salud mental. Atribuyeron la mejora de las relaciones familiares y la aceptación del padecimiento a la inclusión de la familia en el tratamiento

Descriptores: Trastornos mentales. Familia. Servicios de Salud Mental. Enfermería psiquiátrica.

INTRODUÇÃO

O modelo hospitalocêntrico, caracterizado pela superlotação dos manicômios, segregação, tutela, terapêutica expressa em (des)cuidado e maus tratos aos portadores de transtornos mentais, sofreu críticas importantes a partir do final da II Guerra Mundial. Os manicômios naquela época chegaram a ser comparados aos campos de concentração, haja vista as precárias condições de assistência e o desrespeito aos direitos humanos(1).

Tal realidade demandou a necessidade de reformulação das práticas na assistência e a proposição de um novo modelo de atenção à saúde mental - o modelo psicossocial. Contudo, a consolidação deste modelo envolve a desconstrução de modos de pensar e conceber a loucura, de práticas e discursos que conferem caráter de objeto à mesma. Também, das relações sociais ainda impregnadas pelo paradigma racionalista e reducionista baseado no problema-solução e a desconstrução do manicômio no que diz respeito às estruturas físicas, aos mitos e às formas arcaicas de fazer e de pensar centradas na institucionalização(2-3).

O modelo psicossocial tem como premissa a construção do conhecimento por meio da intervenção/transformação efetiva da realidade, articulando o discurso, a análise e a prática(2-3). É orientado pelos pressupostos da reforma psiquiátrica brasileira os quais sustentam as transformações nos campos teórico-assistencial, jurídico-político, técnico-assistencial e sociocultural da saúde mental(1,4).

No campo teórico-assistencial, tem-se trabalhado com a construção do conceito de existência-sofrimento em contraposição ao binômio doença-cura. Portanto, questiona a relação de sujeito-objeto e coloca o sujeito no centro das ações de cuidado. Nas práticas sustentadas no modelo psicossocial, devem ser incorporados o acolhimento, o cuidado, a emancipação, a autonomia e o poder de contratualidade dos sujeitos(4).

No campo jurídico-político, há avanços com a aprovação da Lei Federal n. 10.216 e demais aparatos legais que normatizam os serviços substitutivos e reorientam a assistência em saúde mental no país, além do controle social, das comissões de fiscalização dos serviços institucionais formadas por familiares e técnicos, enfim pela participação da comunidade por meio dos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde(1,4).

Na dimensão técnico-assistencial, o avanço é evidenciado pela construção de uma rede de serviços que devem constituir-se verdadeiros espaços de sociabilidade, de acolhimento, cuidado e relações sociais, não mais lugar de repressão, vigilância e punição. A instituição passa a ser entendida como espaço de diálogo e interlocução. Estes serviços devem dispor de equipe multiprofissional cuja prática deve ser pautada no conceito de integralidade, trabalhar com a noção de rede, de territorialização, intersetorialidade, participação social e democratização. Portanto, deve haver uma rede de serviços abertos que se articulam entre si, com a atenção básica e os recursos disponíveis na comunidade(1,4).

Destarte, surgem as estratégias inovadoras de experiências comunitárias de tratamento e acolhimento em saúde mental como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Centros de Convivência e os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), as Unidades Psiquiátricas em Hospitais Gerais (UPHG). Nestas estratégias, tem-se o desafio de buscar novas tecnologias de cuidado e a humanização das relações entre a pessoa com transtorno mental, sua família e a sociedade, e os objetivos devem ser de inclusão e respeito aos direitos humanos(3,5).

As atividades propostas no campo sociocultural estão relacionadas a transformar o imaginário coletivo acerca da loucura. Neste contexto, a instituição passa a ser compreendida como espaço de liberdade, não de vigilância e violência, e o louco, até então considerado perigoso e incapaz, passa à condição de cidadão(4).

Entretanto, a implementação e a consolidação do modelo psicossocial no cenário brasileiro acontecem de forma lenta e, pode-se dizer incipiente, visto que implica no repensar de um fazer que orientou por muitos anos a tradicional assistência psiquiátrica, bem como em oferecer de fato uma rede de atenção em saúde mental na qual os serviços sejam complementares, integrados e resolutivos(2). Um estudo(5) considera que esta rede de serviços ainda está em desenvolvimento e carece de ampliação da infraestrutura extra-hospitalar, de incentivo à qualificação profissional, rompimento com o preconceito e melhoria de acesso aos serviços.

Diante do exposto, o estudo dessa temática se justifica pelo momento de transformação no campo da assistência na área da saúde mental e em relação a toda discussão que ocorre atualmente sobre a forma de conceber, trabalhar, pensar e se relacionar com o fenômeno da loucura.

Tem como objetivo descrever a percepção de familiares e de portadores de transtorno mental sobre a assistência em saúde mental sustentada no modelo psicossocial.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa com abordagem da História Oral Temática, desenvolvida no período de 2009 com famílias que tinham um integrante com transtorno mental que reside em Curitiba/PR e região metropolitana.

Para a seleção dos colaboradores foram considerados os passos definidores do "como fazer" pesquisa com o método da História Oral, os quais também orientaram a condução das entrevistas. Esses passos consistem em estabelecer a comunidade de destino, a colônia e a rede(6).

A comunidade de destino é determinada considerando que o que marca a união das pessoas são dramas comuns, vivenciados com intensidade e consequências importantes que de certo modo acabam por impor mudanças na dinâmica da vida do grupo(6). Nesta pesquisa a comunidade de destino é representada pelas famílias que vivenciam o tratamento de um integrante com transtorno mental em face do modelo psicossocial.

A colônia é a primeira divisão da comunidade de destino, e sua finalidade é facilitar o entendimento do todo e tornar viável a realização do estudo(6). Portanto, nesta pesquisa, a colônia é representada pelas famílias que vivenciam o tratamento de um integrante com transtorno mental em face do modelo psicossocial e que residem em Curitiba e região metropolitana.

Rede é a subdivisão da colônia, ela deve ser plural, porque nas diferenças internas dos grupos se expõem formas diversificadas de entendimento do fenômeno(6). Nesta pesquisa, a rede é constituída de famílias (família entendida como a pessoa com transtorno mental e as pessoas que ele referiu e considerou como sua família) que vivenciam a trajetória de tratamento da pessoa com transtorno mental anterior a 1980 ou de 1980 a 1994 e que residem em Curitiba e região metropolitana.

Para estabelecer a rede de colaboradores, conforme o referencial metodológico adotado foi feito contato com os responsáveis por duas associações de familiares e pessoas com transtorno mental, que indicaram os colaboradores que atenderiam aos critérios de inclusão. Assim, os colaboradores indicados foram convidados e aceitaram participar da pesquisa, sendo três famílias, num total de oito colaboradores, conforme Quadro 1.


Os critérios de inclusão dos colaboradores foram famílias com pelo menos uma pessoa com transtorno mental que adoeceu em data anterior a 1980 (década, cujos vários acontecimentos marcam o início da reforma psiquiátrica no país) até 1994, aproximadamente (quando efetivamente se estabelece uma rede de assistência na área da saúde mental orientada pelos princípios do modelo psicossocial). Familiares que acompanharam a trajetória de tratamento da pessoa com transtorno mental, ser referido pelo portador de transtorno mental como família e ser maior de 18 anos. Aqueles que aceitaram participar da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido após receberam informações sobre os objetivos e a metodologia adotada, atendendo aos aspectos éticos da Resolução nº. 196/96, do Conselho Nacional de Saúde.

Este recorte temporal se justifica, pois os autores acreditam que aqueles que vivenciaram a assistência no modelo hospitalocêntrico poderiam discorrer sobre a atual assistência recebida e apontar mudanças ocorridas em face da reforma psiquiátrica.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná (UFPR), sob a inscrição CEP/SD: 617.154.08.09; CAAE 3168.0.000.091-08.

Os dados desta pesquisa foram obtidos mediante entrevista semiestruturada orientada por um roteiro composto de dados de identificação dos colaboradores e duas questões abertas: Relate como você percebe o tratamento recebido na atualidade pelo seu familiar na saúde mental, questão dirigida aos familiares, e Relate como você percebe o tratamento que recebe atualmente na saúde mental, dirigida à pessoa com transtorno mental.

As entrevistas foram realizadas de acordo com a disponibilidade de cada colaborador e nos locais indicados por eles (nas Associações e nos seus domicílios). Antes de iniciar as entrevistas, cada colaborador foi indagado se desejava narrar sua história em conjunto ou separadamente dos outros membros da família. Alguns preferiram ser entrevistados sozinhos e outros optaram por ser em conjunto, sendo que esse procedimento foi realizado com todos os colaboradores desta pesquisa. Ao todo, foram realizadas cinco entrevistas gravadas em fita cassete (Quadro 2) no período de abril a junho de 2009 com a média de duração de uma hora.


Cada entrevista passou pelo processo de transcrição, textualização e transcriação conforme estabelece o referencial metodológico da história oral. A transcrição envolveu a conversão do oral para o escrito tal qual o entrevistado referiu. Na textualização, realizou-se um refinamento do material para obter um texto mais limpo. Nesta etapa, foi feita a identificação do tom vital da entrevista (Quadro 3), que é a essência, a mensagem central que o colaborador emitiu na sua narrativa. Este é determinante sobre o que pode ser excluído ou não do texto. Na etapa de transcriação, recriou-se o texto seguindo um raciocínio lógico, o qual foi validado com cada colaborador a fim de não alterar o sentido de suas narrativas, pois o colaborador precisa se identificar com o resultado e é isso que confere qualidade ao texto final(6).


RESULTADOS

Os dados oriundos das entrevistas foram analisados e estão apresentados de forma descritiva. Para exemplificar como os colaboradores percebem o tratamento atual em saúde mental que seu familiar recebe em decorrência das mudanças que ocorrem pela reforma psiquiátrica brasileira, são descritos recortes das entrevistas de alguns dos colaboradores que participaram do estudo. No Quadro 3 são apresentados o tom vital apreendido de cada entrevista cujas narrativas foram exemplificadas neste artigo.

Para os colaboradores, o CAPS, o atendimento ambulatorial, as associações de familiares e usuários são dispositivos que compõem a rede de serviços e apoio em saúde mental e estão relacionados às mudanças na assistência em face da reforma psiquiátrica, bem como a inserção da atenção básica no cuidado e acolhimento aos portadores de transtornos mentais.

Ele teve nove internamentos, na pior crise que ele teve, eu pedia que Deus me iluminasse, que eu encontrasse uma forma de ajudá-lo, que o ajudasse a entender que precisava aderir ao tratamento. Eu acompanhava na televisão, no rádio, as explicações de que se a pessoa tomasse a medicação corretamente, poderia viver uma vida normal e eu sonhava isso para ele. (...) Meu Deus! Foi um dia, por intermédio de uma amiga minha que conhecia uma moça que fazia tratamento no CAPS que apareceu o CAPS, descobri o CAPS, aí começou a melhorar. (...) Depois do CAPS, eu comecei a acompanhar o Paulo na Associação, porque teve uma época que ele não queria mais ir. Eu disse você não pode desistir, se ficar só em casa vai decair, não vai fazer nada, não dá. Eu já participava da oficina no CAPS e disse para ele: vamos os dois para a Associação, quero aprender a fazer coisas novas. (...) E foi aí que comecei a participar da Associação (F2Mãe).

Foi no CAPS que me informaram sobre a Associação, foram as próprias pacientes que me trouxeram até a Associação, eu vim, conheci a presidente da Associação e comecei a participar. (...) Então é isso, fiquei internado em hospital psiquiátrico, fiz CAPS, agora estou na Associação e faço ambulatório (F2Paulo).

Esses dias, a Eduarda recebeu a equipe da Unidade Básica de Saúde na casa dela, foram a médica, a enfermeira e a assistente social. Eu fiquei muito contente, porque nesse tempo todo de tratamento nunca nenhuma unidade de saúde havia realizado uma visita domiciliar. Nossa! É a primeira vez que uma UBS está nos dando suporte. Agora está bom, porque qualquer coisa eles estão sabendo da situação dela. Nessa UBS não tem psiquiatra, mas estão fornecendo as medicações para a Eduarda (F1Mãe).

A colaboradora F1Mãe menciona o ambulatório, mas faz crítica à escassez e à demora de obtenção de vaga para sua filha:

(...) aí ficou marcado para agendarem o ambulatório duas vezes por mês, só que até agora a vaga ainda não saiu, você veja, desde março, estamos em julho e ainda não conseguiram uma vaga para ela. Agora eu acredito que conseguindo essa vaga para fazer ambulatório, ela vá" (F1Mãe).

Os colaboradores atribuíram à dinâmica dos serviços como o Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS) e o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) a adesão ao tratamento, a diminuição da necessidade dos internamentos em instituição psiquiátrica. Referiram que os pacientes nos serviços substitutivos são acompanhados por uma equipe multiprofissional, seguem o tratamento de acordo com um programa terapêutico individual, participam de diversas atividades terapêuticas e que esta modalidade de assistência em saúde mental segue o princípio da territorialidade, conforme as narrativas a seguir:

Esse foi o último internamento dele, faz oito anos que ele iniciou o tratamento no NAPS. Ele foi um dos primeiros a participar do NAPS em Curitiba, foi fundador (...) posso dizer que essas mudanças foram para melhor, eu ia às reuniões do NAPS eu via o trabalho deles, o que eles faziam lá, estava tudo exposto para ver, ele fez até um tubarão de mosaico que foi premiado lá em São Paulo, foi muito bom ele ficar no NAPS. (...) Foi lá que nós fizemos amizade com todas as pessoas que até hoje temos amizade. Foi muito bom (F3Mãe).

Eu entrei em contato com o CAPS, fizemos a entrevista e ele começou o tratamento, aceitou o tratamento. Graças a Deus! Foi a partir do tratamento no CAPS que começou o meu alívio, ele nunca mais foi internado, agora toma a medicação corretamente. Ele começou a participar do CAPS. Vinha todo dia de manhã, voltava à tarde. Ali tem uma assistência geral, acompanhamento com médico, psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, ele começou a fazer as terapias. Foi o meu alívio. Eu andava à procura de um serviço assim. (...) Tinha o atendimento familiar, as assembleias, eu sempre estava presente, tinha atendimento com equipe multiprofissional, vários profissionais atendendo ele, várias atividades para ele fazer, ocupar a mente, era muito bom. Eu sempre procurei apoiá-lo (F2Mãe).

Logo depois que eu saí do hospital, minha mãe me apresentou o CAPS, no começo eu não queria, na época eu não sabia, até disse para a mãe que eu não queria ir, mas acabei indo e estou até hoje me cuidando. No CAPS era muito bom, tinham os outros pacientes, nós fazíamos atividades, tinha almoço que era muito bom. Fazia as atividades à tarde com a pedagoga e a terapeuta ocupacional, como desenhar, ler, jardinagem. No CAPS, eu fiquei de 2003 até 2004, foi nesse tempo que criaram um sistema, não sei se na cidade ou no Estado, seria implantado um sistema que quem morasse em uma cidade que tivesse CAPS seria transferido aqui do CAPS de Curitiba para o da sua cidade, por exemplo, se abrissem um CAPS em [nome de um município da região metropolitana de Curitiba] a pessoa que estivesse fazendo tratamento no CAPS em Curitiba tinha que ser transferida. Em 2004, eu tive alta do CAPS para fazer ambulatório, mas como não tinha ambulatório na minha cidade. Eles me pediram para fazer mais um pouco de CAPS, como fui transferido eu consultava com o psiquiatra em [nome de um município da região metropolitana de Curitiba] e frequentava o CAPS uma vez por mês, mas isso porque não tinha ambulatório na minha cidade (F2Paulo).

Eu gostava de ir ao NAPS. Lá fazia atividade de jardinagem, curso de confeiteiro, jogava futebol, nas quartas-feiras tinha teatro, as atividades são divididas. Tinha atendimento com equipe multiprofissional. Além disso, cada um tinha um projeto terapêutico individual, uns faziam jardinagem, outros cuidavam da cozinha, outros faziam compras no supermercado, eles davam licença para fazer compras. No NAPS, eu ficava das oito horas da manhã até às 16 horas. Lá eu me sentia bem. Eu preferia o NAPS do que o internamento em hospital psiquiátrico, porque no internamento não me sentia bem, antes era na base da força, era tudo feito de qualquer jeito (F3Gustavo).

Os colaboradores externaram que a convivência da família com o portador de transtorno mental antes de este iniciar o tratamento no NAPS ou no CAPS era insustentável, permeada por sucessivas discussões e brigas, a família não entendia a doença nem o comportamento manifestado pela pessoa com transtorno mental. Entretanto, após começarem a participar das reuniões oferecidas à família pelos serviços substitutivos, a convivência melhorou, pois passaram a receber esclarecimentos, orientações sobre a doença, a compartilhar experiências. Foi a partir disso que começaram a aceitar e entender o comportamento e a maneira de ser do integrante com transtorno mental.

Explicitaram que a grande contribuição do modelo psicossocial para suas vidas foi justamente a melhora na convivência a partir do momento que entenderam e aceitaram a doença por meio das orientações e da mediação de conflitos.

(...) Nesse tempo de doença dele, antes de existir o NAPS, a nossa vida era um verdadeiro inferno, era só briga porque achávamos que era ruindade dele, meu marido achava que era ruindade e eu também, depois que o pai dele morreu, ele começou a ir ao NAPS, lá tinham as reuniões para nós [a família] irmos. Toda semana tinha reunião, foi lá que nós, eu e meu outro filho, aprendemos como é que tratava dele. No hospital psiquiátrico não falavam, naquelas reuniões de família, não explicavam, só perguntavam o que ele fazia quando ia de visita para casa, como que ele estava. Quando ele estava de alta em casa, quando ele começava a ficar doente, meu Deus do céu! Brigavam, era só briga, mas não era de bater, ele nunca foi agressivo, só discussão, mas com o irmão, meu Deus! Brigavam que nossa. Porque lá em casa ninguém entendia o problema do Gustavo. (...) Foi quando começou a ter as reuniões no NAPS, eu e o irmão dele íamos, lá ensinavam, conversavam conosco, aí que nós começamos a aceitar, nós não aceitávamos a doença dele, que ele era doente. Agora vivemos que é uma beleza, em harmonia, porque naquele tempo não dava, era um inferno (...). O meu outro filho quando começou a ir às reuniões que tinha no NAPS começou a entender como que era tudo, nós víamos um o problema do outro, é assim que se trata. Posso dizer que a grande mudança da reforma desses serviços foi entendermos a doença (F3Mãe).

Depois que ele começou no CAPS, começou a melhorar tudo, porque lá tinham reuniões frequentemente. Quando tinha com os familiares eu nunca deixei de participar. Nas comemorações, eu sempre estava presente, apoiando. No CAPS, nós víamos a situação um do outro, todo mundo contando sua história, seu problema, eles explicavam como que era a doença, o que tinha que fazer. Nossa! Era uma maravilha! (...) É uma situação difícil, mas eu sempre procurei apoiá-lo. (...) Eu me lembro de uma conversa que o Paulo achava que eu não o amava, que o internava porque não gostava dele e foi em uma reunião no CAPS que eu disse para ele: eu amo você, se eu não amasse, você eu não estaria aqui dando todo o apoio. Eu te interno porque amo você e não quero vê-lo na rua, feito um mendigo, jogado, sofrendo, e a forma que eu encontrei de te ajudar foi o internamento porque lá eu sei que você está sendo cuidado. Não é falta de amor. Parece que ele foi entendendo melhor (F2Mãe).

DISCUSSÃO

Nas falas dos colaboradores F2Mãe, F2Paulo e F3Mãe é possível identificar a satisfação de ambos com a existência dos serviços substitutivos do tipo CAPS. O primeiro CAPS do Brasil, o CAPS Prof. Luiz da Rocha Cerqueira na cidade de São Paulo, foi criado em 1987, experiência que vem sendo reproduzida em diversos municípios do Brasil(3). Na modalidade de serviço substitutivo, os Centros de Atenção Psicossocial são serviços abertos e comunitários mantidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentados pela Portaria nº. 336, de 19 de fevereiro de 2002, que estabelece diretrizes para o seu funcionamento(7).

O CAPS deve se responsabilizar pelo acolhimento de 100% da demanda das pessoas com transtorno mental, em especial os transtornos severos e persistentes no seu território de abrangência, garantir a presença de profissionais responsáveis e capacitados durante todo o período de funcionamento da unidade e criar um ambiente acolhedor. Este dispositivo estratégico deve articular recursos de natureza clínica, incluir medicamentos, moradia, trabalho, lazer, por meio do cuidado oportuno e programas de reabilitação psicossocial. Os CAPS têm por meta prestar atendimento diário às pessoas em sofrimento psíquico, promover a reinserção social dos usuários por meio de ações intersetoriais que articulam educação, trabalho, esporte, cultura e lazer(7).

Além disso, são considerados dispositivos estratégicos para a organização da rede de atenção em saúde mental, têm a finalidade de regular a porta de entrada para a assistência em saúde mental em seu território e se responsabilizar por supervisionar a atenção em saúde mental na atenção básica(7).

Já o Ambulatório de Saúde Mental, referenciado pelo colaborador F2Paulo, é referência para inúmeras consultas em psiquiatria e psicologia. Contudo, sua resolutividade tem sido baixa ao considerar que em sua maioria há imensas listas de espera e tem funcionamento pouco articulado à rede de atenção à saúde(8). Portanto, faz-se necessário reformular seu modo de funcionamento e rediscutir seu papel na rede de atenção à saúde mental. Isso corrobora o relatado pela colaboradora F1Mãe ao mencionar que a filha com transtorno mental aguarda há três meses uma vaga no serviço ambulatorial de saúde mental.

Cabe ainda ressaltar que apenas uma das colaboradoras mencionou o acompanhamento do portador de transtorno mental por uma Unidade Básica de Saúde (UBS), o que pode indicar um desafio que se apresenta ao novo modelo de atenção em saúde mental - a articulação entre saúde mental e atenção básica.

Neste sentido, atendimento em grupo, acompanhamento do quadro clínico, visita domiciliar, atendimento à família, orientações, possibilidade de diálogo, parcerias com a comunidade, o cuidado do portador de transtorno mental dentro do seu território de abrangência com apoio matricial, são estratégia que se incorporadas ao processo de trabalho da atenção básica podem possibilitar a articulação com a saúde mental e facilitar a reinserção social do portador de transtorno mental(9).

Na perspectiva de que a atenção psicossocial deve ser organizada em rede, é imprescindível articular os diversos dispositivos presentes em seu território de abrangência, formar uma série de pontos que se interligam e em determinado momento se cruzam de iniciativas e atores sociais envolvidos no processo. A UBS passa a ser considerada prestadora de serviços complexos, haja vista que acolhe a família, a crise e as relações sociais. Desse modo, ela constitui lugar privilegiado na construção e orientação da nova lógica de atendimento(1,7).

Destaca-se que a atenção básica tem potencial para identificar as queixas relativas ao sofrimento psíquico, prover escuta qualificada deste tipo de problemática e compreender as várias formas de lidar com os problemas detectados, bem como oferecer tratamento na própria atenção básica ou encaminhando os pacientes para serviços especializados(10).

Em relação às Associações de familiares e pessoas com transtorno mental, os colaboradores as consideraram importantes espaços de convivência e de atividades. Como exemplo desta realidade entre outras existentes no Brasil, podemos citar a experiência da Associação Franco Basaglia, que busca oportunizar ampla participação dos familiares, organizar atividades culturais, de lazer e de geração de renda. Porquanto, essas iniciativas são repletas de valores e sentido para as pessoas envolvidas, profissionais, voluntários, usuários e familiares, o que vai ao encontro do relatado nesta pesquisa por F2Mãe e F2Paulo(11).

Ressalta-se que os suportes sociais recebidos e percebidos pelos indivíduos são fundamentais para a manutenção da saúde mental, pois uma rede social fortalecida contribui para a reinserção social e ajuda a enfrentar situações adversas e de desgaste, como as suscitadas pela doença crônica(12).

Outro aspecto evidenciado nas falas das colaboradoras F3Mãe e F2Mãe diz respeito à adesão ao tratamento e à diminuição da necessidade de internação em hospital psiquiátrico após a participação do familiar nos serviços substitutivos como NAPS/CAPS. Isso corrobora a literatura pesquisada, a qual considera que a implantação e a ampliação dos serviços de saúde de base comunitária propiciam o rompimento com o ciclo das internações, pois nesses dispositivos são incorporadas ações que auxiliam o indivíduo a desenvolver novas habilidades em busca de autonomia e aumento de seu poder de contratualidade(13).

Um estudo revelou que alguns usuários do serviço substitutivo não precisaram mais recorrer à internação em hospital psiquiátrico, outros apresentaram recaídas e necessitaram de internação, entretanto isso aconteceu com menos frequência que antes do tratamento no CAPS e, que se tivessem tido acesso mais cedo a esse serviço, poderiam ter evitado uma série de internações(14).

O atendimento no CAPS é realizado por uma equipe multiprofissional, os pacientes devem ter um projeto terapêutico individual que atenda as suas reais necessidades. Também são oferecidos atendimentos em grupos e individuais, oficinas terapêuticas, atividade física, atividades lúdicas, de alfabetização, geração de renda, atividades comunitárias e assembleia ou reuniões de organização do serviço, além da medicação que antes era considerada a principal necessidade no tratamento. Nesses serviços, a família é entendida como ator social fundamental no processo de reestruturação que se pretende, sendo oferecidos a ela atendimento específico e acolhimento nas situações em que se fizerem necessárias(7,15).

As atividades artísticas e artesanais realizadas nas oficinas terapêuticas são possíveis formas de incluir socialmente a pessoa com transtorno mental, pois a dança, a música, a arte, a culinária, a marcenaria, entre tantas outras atividades dessa natureza desenvolvidas em grupo, oportunizam ao usuário a inter-relação com os demais pacientes. Além de incentivar e preparar para o mercado de trabalho, essas atividades promovem a retomada pelo usuário de suas próprias atividades e a descoberta de novas habilidades na busca de sua independência(15).

O exposto vai ao encontro do expresso por F2Mãe:

tinha o atendimento familiar, as assembleias, eu sempre estava presente, tinha atendimento com equipe multiprofissional, vários profissionais o atendendo, várias atividades para ele fazer, ocupar a mente, era muito bom;

F2Paulo:

No CAPS, era muito bom, tinham os outros pacientes, nós fazíamos atividades, tinha almoço que era muito bom. Fazia as atividades à tarde com a pedagoga e a terapeuta ocupacional, como desenhar, ler, jardinagem.

e, F3Gustavo:

Eu gostava de ir ao NAPS. Lá fazia atividade de jardinagem, curso de confeiteiro, jogava futebol, nas quartas-feiras tinha teatro, as atividades são divididas. Tinha atendimento com equipe multiprofissional.

Ainda, os serviços substitutivos devem atender a demanda, respeitando o princípio da territorialidade, a noção de território, que vai além do espaço geográfico, embora este se faça importante para sua caracterização, mas, no contexto psicossocial, é construído fundamentalmente pelas pessoas que nele habitam, com seus conflitos, interesses, amigos, vizinhos, família, as instituições, cenários (igreja, cultos, escola, trabalho)(1,7). Isso coaduna com a fala do colaborador F2Paulo ao referir que foi transferido para o CAPS de sua cidade, sendo que antes ele precisava vir até Curitiba para fazer o tratamento.

Ressalta-se que em um estudo desenvolvido com profissionais de enfermagem de um CAPS, os sujeitos expressaram que o serviço oferece atendimento diferenciado, pois extrapola as ações técnicas, para um estar mais perto com o paciente. Além da composição e do trabalho em equipe, a inserção do usuário no seu projeto terapêutico, a corresponsabilização no tratamento e a própria organização do serviço. Dessa forma, relataram que o CAPS contribui muito mais para o processo de recuperação e reinserção social do usuário de saúde mental do que o hospital psiquiátrico(16). O que ratifica a fala de F3Gustavo: Eu preferia o NAPS do que o internamento em hospital psiquiátrico, porque no internamento não me sentia bem.

Diante do exposto, pode-se inferir que a dinâmica e o papel dos serviços substitutivos como NAPS/CAPS respondem às expectativas dos usuários e familiares. Porém, é preciso considerar que estas transformações implicam mudança de atitude dos profissionais, reflexão da prática, pois cuidar orientado pelos pressupostos do modelo psicossocial requer sair da posição vertical do saber, do poder para assumir uma postura horizontal. Isso pressupõe desenvolver uma relação com o portador de transtorno mental com a compreensão do ser humano muito além das limitações pela doença, mas percebê-lo como ser de possibilidades, relações e de subjetividade. Implica em considerar o potencial de reestruturação do portador de transtorno mental, ter como foco o sujeito que sofre e sua relação com o social(14-16).

Foi referido pelos colaboradores desta pesquisa como um dos avanços na assistência pelo modelo psicossocial a inclusão da família no tratamento. Nesse novo modelo, não se aceitam a culpabilização, a vitimização e a função de meros informantes destinada à família, mas o modelo requer a reformulação da abordagem familiar pelos serviços substitutivos. Assim, os serviços devem constituir espaço de negociação para que a família se sinta como sujeito de um projeto, haja vista que o que se tem observado ainda é uma prática centrada no usuário e não com intervenções que considerem seu contexto familiar(14).

Nesse sentido, os serviços de atenção comunitária em saúde mental precisam incluir ações dirigidas aos familiares e comprometer-se com a construção dos projetos de inserção social, respeitando as possibilidades individuais e princípios de cidadania que minimizem o estigma e promovam a qualidade de vida e inclusão social das pessoas com transtorno mental(7).

Ao envolver a família e a sociedade no tratamento das pessoas com transtorno mental, a desinstitucionalização do portador de transtorno mental torna-se possível com a construção de um novo espaço social no qual as diferenças e a individualidade de cada sujeito sejam compreendidas e respeitadas. No entanto, para que isto se constitua de fato uma realidade, é preciso proporcionar as condições adequadas à família a fim de que ela seja capaz de contribuir para a manutenção da pessoa em sofrimento psíquico nos serviços extra-hospitalares, dispositivos estes que precisam estar abertos ao conflito e à negociação(17).

Evidencia-se que a família precisa receber orientações e suporte para que possa melhor elaborar seus sentimentos, reorganizar e reordenar seus papéis diante da realidade do transtorno mental. Isso equivale a receber informações adequadas dos profissionais quanto à sintomatologia, às causas do sofrimento psíquico, aos modos de tratamento, de abordagem e convivência. O tratamento aliado aos espaços de socialização de experiências pode favorecer e melhorar a estabilidade emocional da família, sua compreensão acerca da complexidade do quadro psiquiátrico e restituir ou possibilitar compartilhar/criar estratégias eficazes de enfrentamento da situação(11,17-19). Assim, a narrativa de F3Mãe, ao referir que a grande contribuição do modelo psicossocial pela reforma psiquiátrica foi a família ter entendido o transtorno mental nas reuniões de familiares no NAPS, é corroborada pela literatura.

Desse modo, as novas diretrizes nacionais de tratamento e cuidado em saúde mental requerem que os profissionais da área da saúde estejam preparados para atender às demandas e trabalhar com a questão da família. Esta atuação, entretanto, não poderá ocorrer de modo linear, unidirecional, mas deverá ser compartilhada, de inclusão, respeito e vontade de oferecer cuidado qualificado que extrapole a lógica tecnicista como vem ocorrendo predominantemente até início das décadas de 80 do século XX(17-18).

Nas falas de F2Mãe e F3Mãe sobre a inclusão da família no tratamento, percebe-se que uma boa estratégia para isso é a realização de reuniões familiares, assembleias e festividade em datas comemorativas. Isso é confirmado por um estudo que aponta algumas estratégias possíveis de inserção e cuidado da família, nesse novo modelo de atenção à saúde mental que se pretende, como por exemplo, o grupo de familiares, o atendimento individual, a visita domiciliar, a participação nas assembleias de usuários e nos eventos promovidos pelos serviços(20).

Nessa perspectiva, a realidade da dinâmica familiar pode ser conhecida e intervenções mais pontuais podem ser propostas, tendo a família a oportunidade de expressar seus sentimentos, compartilhar experiências, esclarecer dúvidas, sentir-se apoiada e cuidada, bem como conhecer as atividades do serviço e as possibilidades terapêuticas de que esse mesmo serviço dispõe(19-22).

Outro apontamento importante se refere ao serviço substitutivo como espaço de medicação de conflitos. O colaborador F2Paulo acreditava que a mãe não o amava. A partir de um diálogo mediado por um profissional do CAPS, foi possível administrar o conflito, negociar e contribuir para a melhoria das relações entre mãe e filho.

Portanto, promover espaço de sociabilidade e administração de conflitos faz do modelo psicossocial um processo complexo, que não se reduz à reestruturação e transformação dos serviços como objetivos centrais, mas como necessidade de transformar e superar o manicômio por meio da implementação de ações e estratégias que se sobrepõem à institucionalização(1).

CONCLUSÃO

Para estar em consonância com os pressupostos do modelo psicossocial, é necessária uma assistência sustentada nos serviços extra-hospitalares, de base comunitária, que busque oferecer aos seus usuários o exercício de cidadania, autonomia, reinserção social e inclua ainda a família e a sociedade na discussão das mudanças em face da reforma psiquiátrica. Todos esses aspectos foram relatados pela maioria dos colaboradores que entendem como um avanço na forma de assistir a pessoa com transtorno mental.

Outra consideração importante a ser feita se relaciona à mudança de paradigma em saúde mental, que requer que os profissionais da área da saúde de maneira geral reflitam sobre suas ações, haja vista que nessa especificidade o trabalho se dá por meio de equipe interdisciplinar. Para que isso ocorra, é importante haver capacitação dos profissionais para acolher e elaborar estratégias de intervenção que sejam capazes de compreender a realidade da família e da pessoa com transtorno mental.

Além da capacitação dos profissionais que atuam nos serviços de saúde, é importante a conscientização e discussão sobre o modelo psicossocial nos cursos de graduação das diferentes profissões da área da saúde. No que se refere à compreensão ampliada do transtorno mental, parte-se da realidade concreta de que o portador de transtorno mental e sua família estão em todos os serviços de saúde solicitando atendimento de qualidade.

A ampliação dos serviços como Centros de Atenção Psicossocial, ambulatórios de saúde mental e leitos psiquiátricos em hospital geral constitui necessidade em caráter de urgência para a concretização da assistência na visão do modelo psicossocial. Além disso, estes dispositivos de saúde são substitutivos e não complementares à instituição psiquiátrica.

Recebido: 20/11/2011

Aprovado: 15/01/2012

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  • Correspondência:

    Mariluci Alves Maftum
    Rua Lothário Meissner, 632. Bloco Didático II - 4º andar
    Setor de Ciências da Saúde - Campus Botânico
    CEP 80210-170 - Curitiba, PR, Brasil
  • *
    Extraído da dissertação "Vivência familiar de tratamento da pessoa com transtorno mental em face da reforma psiquiátrica", Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Paraná, 2010.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      20 Nov 2011
    • Aceito
      15 Jan 2012
    Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
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