Acessibilidade / Reportar erro

Uso de narrativas para o aprendizado da tecnologia grupal por profissionais de Centros de Atenção Psicossocial

RESUMO

Objetivo:

Analisar os resultados sobre o uso de narrativas de cuidado grupal no processo de qualificação dos profissionais dos Centros de Atenção Psicossocial para o aprendizado do uso da tecnologia grupal.

Método:

Pesquisa-ação envolvendo 21 trabalhadores de 11 Centros de Atenção Psicossocial do Centro-Oeste brasileiro. Para coleta de dados foram utilizadas narrativas escritas pelos participantes sobre suas práticas de trabalho com grupos terapêuticos e oficinas presenciais para discussão teórica a partir das mesmas. Os dados foram submetidos à análise de narrativas com o suporte do software de análise qualitativa.

Resultados:

A categoria “Angústias e Questionamentos” evidenciou o desconhecimento dos trabalhadores quanto à conceituação de grupo e dinâmica de grupo, os desafios do manejo grupal e o desconforto com as frustrações vividas no grupo. A categoria “Aprendizados para Coordenação de Grupo” revelou aquisição de conhecimento para o planejamento e funcionamento grupal, e compreensão do papel de coordenador de grupos para o cuidado em saúde mental.

Conclusão:

Narrar as cenas de cuidado grupal possibilitou aos participantes exercitar o pensamento crítico reflexivo, reconhecer a teoria da tecnologia grupal e desenvolver habilidades para coordenar grupos.

DESCRITORES:
Transtornos Mentais; Serviços de Saúde Mental; Processos Grupais; Capacitação Profissional; Enfermagem Psiquiátrica

ABSTRACT

Objective:

To analyze the results of the use of narratives in group therapy for the qualification process of professionals in the Psychosocial Care Centers on the use of group dynamics.

Method:

This is an action research involving 21 workers from 11 Psychosocial Care Centers in the Brazilian Central-West region. For data collection, narratives written by the participants about their work practices with therapeutic groups and theoretical discussion based on in-person workshops were used. Data were subjected to narrative analysis with the support of qualitative analysis software.

Results:

The category “Concerns and Questioning” showed the workers’ lack of knowledge regarding the concept of group and group dynamics, the group management challenges, and the discomfort with the frustrations experienced by the group. The category “Learning for Group Coordination” showed knowledge acquisition for group planning and functioning, and understanding of the role of the group coordinator for mental health care.

Conclusion:

Narrating the scenes of group care allowed participants to exercise critical reflexive thinking, recognize the theory of group dynamics, and develop skills to coordinate groups.

DESCRIPTORS:
Mental Disorders; Mental Health Services; Group Processes; Professional Training; Psychiatric Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Analizar los resultados sobre el uso de narrativas de atención grupal en el proceso de cualificación de los profesionales de los Centros de Atención Psicosocial para el aprendizaje del uso de la tecnología grupal.

Método:

Investigación-acción realizada con 21 trabajadores de 11 Centros de Atención Psicosocial ubicados en la región centro occidental de Brasil. Los datos se recogieron mediante narrativas escritas por los participantes acerca de sus prácticas de trabajo con grupos terapéuticos y talleres presenciales de discusión teórica basados en ellas. Estos datos se sometieron a un análisis narrativo con el apoyo de un software de análisis cualitativo.

Resultados:

La categoría “Angustias y Cuestionamientos” evidenció el desconocimiento de los trabajadores con respecto a la conceptualización de grupo y de dinámica de grupo; los desafíos de la gestión de grupo y la incomodidad con las frustraciones vividas en el grupo. La categoría “Aprendizajes para la Coordinación de Grupos” reveló la adquisición de conocimientos para la planificación y el funcionamiento del grupo, y la comprensión del papel de coordinador de grupos para la atención a la salud mental.

Conclusión:

La narración de las escenas de atención grupal les posibilitó a los participantes ejercitar el pensamiento crítico reflexivo, reconocer la teoría de la tecnología grupal y desarrollar habilidades para coordinar grupos.

DESCRIPTORES:
Trastornos Mentales; Servicios de Salud Mental; Procesos de Grupo; Capacitación Profesional; Enfermería Psiquiátrica

INTRODUÇÃO

O cuidado psicossocial em saúde mental ocorre em diferentes modalidades de encontros terapêuticos, nos inúmeros serviços que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), dentre os quais destacam-se aqui os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Os CAPS são serviços estratégicos de atendimento às pessoas com transtornos mentais graves e persistentes e ou com problemas decorrentes do uso de drogas(11 Amarante P, Nunes MO. Psychiatric reform in the SUS and the struggle for a society withou asylums. Cien Saude Colet. 2018;23:2067-74. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018236...
).

Mais do que um serviço, o CAPS é um espaço representativo de uma nova prática social, cultural, técnica, política e ideológica que orienta a produção do cuidado em liberdade com o objetivo de reabilitação e reinserção social. O tratamento é oferecido no território onde as pessoas vivem e trabalham, com participação e envolvimento das famílias e da comunidade. Tudo isso por meio do trabalho interpro-fissional em equipe multiprofissional(11 Amarante P, Nunes MO. Psychiatric reform in the SUS and the struggle for a society withou asylums. Cien Saude Colet. 2018;23:2067-74. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018236...
).

O trabalho nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) é cotidianamente construído, na emergência das perguntas que surgem frente ao esforço diário de trabalhadores, usuários, e familiares para construir estratégias para driblar as dificuldades, necessidades e tensionamentos constantes deste contexto. Trata-se de trabalho vivo, produzido em ato, mediado(22 Franco TB, Merhy EE. Cartografias do trabalho e cuidado em saúde. Rev Tempus Actas Saúde Cole. 2012; 6:151-63. doi: https://doi.org/10.18569/tempus.v6i2.1120
https://doi.org/10.18569/tempus.v6i2.112...
) por tecnologias de cuidado que consideram os impactos das diferentes forças que influenciam a saúde mental do indivíduo, sejam elas sociais, econômicas e políticas(33 Burgess RA, Jain S, Petersen I, Lund C, Ann Burgess R, Jain S, et al. Social interventions: a new era for global mental health? Lancet Psychiatry. 2019;19:9-10. doi: http://dx.doi.org/10.1016/S2215-0366(19)30397-9
http://dx.doi.org/10.1016/S2215-0366(19)...
).

Os grupos e oficinas são modalidades de terapêuticas grupais que visam ao cuidado em saúde mental a partir da interação, compartilhamento de experiências e da oferta de atividades vivenciais diversas, ambas realizadas por um ou dois trabalhadores da equipe multiprofissional(44 Brasil. Ministério da Saúde. Saúde mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial [Internet]. Brasília; 2004 [citado 2020 nov. 25]. Disponível em: http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental/pdf/sm_sus.pdf
http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental...
-55 Rauter C. Oficinas para que? Uma proposta ético-estético-política para oficinas terapêuticas. In: Amarante P, editor. Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000. p. 267-77.). A tecnologia grupal visa à inserção dos usuários do CAPS no trabalho, em atividades artísticas e artesanais, bem como a dar-lhes acesso aos meios de expressão verbais e não verbais sobre diversos temas, tais como relações amorosas, amizades, trabalho, sexualidade, família, lazer, cultura e saúde(66 Souza LGS, Pinheiro LB. Oficinas terapêuticas em um Centro de Atenção Psicossocial-álcool e drogas. Aletheia [Internet]. 2012 [citado 2020 nov. 25];38:218-27. Disponível em: http://www.periodicos.ulbra.br/index.php/aletheia/article/view/3375
http://www.periodicos.ulbra.br/index.php...
). Propicia intervenção psicossocial por meio do vínculo entre profissionais e usuários, além de favorecer o acompanhamento da evolução do tratamento dos participantes(66 Souza LGS, Pinheiro LB. Oficinas terapêuticas em um Centro de Atenção Psicossocial-álcool e drogas. Aletheia [Internet]. 2012 [citado 2020 nov. 25];38:218-27. Disponível em: http://www.periodicos.ulbra.br/index.php/aletheia/article/view/3375
http://www.periodicos.ulbra.br/index.php...

7 Farias ID, Thofehrn MB, Andrade APM, Carvalho LA, Fernandes HN, Porto AR. Therapeutic workshops as expressions of subjectivity. SMAD Rev Eletr Saúde Ment Álcool e Drog. 2016; 12:147. doi: http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v12i3p147-153.
http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-697...
-88 Ferreira KF, Carvalho VCS. Oficinas terapêuticas: caminhos de saberes. Ver Fac Ciênc Med Sorocaba. 2018;20:82-5. doi: https://doi.org/10.23925/1984-4840.2018v20i2a5
https://doi.org/10.23925/1984-4840.2018v...
).

A tecnologia grupal é aqui entendida como a utilização dos recursos teóricos e práticos do campo da dinâmica de grupo em variados contextos, tais como: assistência em saúde, gestão de pessoas, ensino e pesquisa(99 Nunes FC, Caixeta CC, Pinho ES, Souza ACS, Barbosa MA. Group technology in psychosocial care: a dialogue beteen action research and permanent health education. Texto Contexto Enferm. 2019;28:e20180161. doi: https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2018-0161
https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-20...
). Ela possibilita a realização de intervenções psicossociais coletivas e a construção de processos participativos de aprendizagem e de pesquisa(1010 Nunes FC, Farinha MG, Valentim F, Barbosa MA, Rua M dos S. Group interventions and action research in health. Millenium. 2020;2:65-71. doi: https://doi.org/10.29352/mill0211.07.00273
https://doi.org/10.29352/mill0211.07.002...
).

Para investigar e intervir em ambientes complexos como os CAPS é preciso eleger estratégias capazes de apreender as variadas facetas de funcionamento deste serviço, sendo as práticas grupais tecnologias de cuidado necessárias para extrapolar a lógica da consulta individual e fortalecer o modelo psicossocial. Entretanto, há evidência de que poucos são os profissionais que possuem formação e preparo para a coordenação e condução de grupos, oficinas e equipes(99 Nunes FC, Caixeta CC, Pinho ES, Souza ACS, Barbosa MA. Group technology in psychosocial care: a dialogue beteen action research and permanent health education. Texto Contexto Enferm. 2019;28:e20180161. doi: https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2018-0161
https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-20...
,1111 Pinho ES, Souza ACS, Elizabeth E. Working processes of professionals at Psychosocial Care Centers (CAPS): an integrative review. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(1):141-52. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018231.08332015
https://doi.org/10.1590/1413-81232018231...
-1212 Santos RCA, Pessoa Junior JM, Miranda FAN. Psychosocial care network: adequacy of roles and functions performed by professionals. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e57448. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.57448.
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.5...
).

Por isso, para a construção desta pesquisa, optou-se pelo uso de narrativas de cuidado grupal em CAPS. As narrativas têm sido utilizadas como potente instrumento para pesquisa qualitativa em saúde(1313 Castellanos MEP. The narrative in qualitative research in health. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(4):1065-76. doi: https://doi. org/10.1590/1413-81232014194.12052013
https://doi. org/10.1590/1413-8123201419...
), como estratégia de educação permanente em saúde junto a dispositivos grupais(1414 Diniz DS, Sá MDC. The use of narratives and group device approach in education/continuing education of health professionals: a literature review. Interface - Comun Saúde, Educ. 2019; 23:e18021 7. DOI: https://doi.org/10.1590/Interface.180217
https://doi.org/10.1590/Interface.180217...
) e ainda como recurso influenciador no processo de elaboração de políticas de saúde(1515 Fadlallah R, El-Jardali F, Nomier M, Hemadi N, Arif K, Langlois EV, et al. Using narratives to impact health policy-making: a systematic review. Public Health Health Serv. 2019;17:1-22. doi: https://doi.org/10.1186/s12961-019-0423-4
https://doi.org/10.1186/s12961-019-0423-...
).

Frente o exposto, o objetivo desse artigo é analisar os resultados sobre o uso de narrativas de cuidado grupal no processo de qualificação dos profissionais dos CAPS para o aprendizado do uso da tecnologia grupal.

MÉTODO

Desenho do estudo

Este artigo deriva da pesquisa-ação “Saúde Mental, Álcool e outras Drogas e o Uso da Tecnologia Grupal”, com abordagem qualitativa, que teve como objeto de trabalho o processo formação de profissionais da saúde mental que atuavam em CAPS(99 Nunes FC, Caixeta CC, Pinho ES, Souza ACS, Barbosa MA. Group technology in psychosocial care: a dialogue beteen action research and permanent health education. Texto Contexto Enferm. 2019;28:e20180161. doi: https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2018-0161
https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-20...
).

A perspectiva epistemológica que sustenta e respalda a pesquisa-ação abordada neste artigo é o paradigma complexo, o qual afirma que a complexidade está na ciência e na vida cotidiana(1616 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Editora Sulina; 2015.). Defende-se a compreensão de que a prática de ensino-aprendizagem e pesquisa que produz conhecimento no trabalho, com o trabalho e para o trabalho é capaz de incentivar o envolvimento e protagonismo dos profissionais na construção coletiva de mudanças para melhorar os serviços de saúde.

As etapas da pesquisa foram organizadas em quatro ciclos operacionais distintos, conforme ilustra a Figura 1, seguindo dois princípios-guia da Teoria da Complexidade de Morin: o “princípio do ciclo retroativo” que afirma que a causa age sobre o efeito e o efeito sobre a causa; e o “princípio do ciclo recorrente” que defende a ideia de autoprodução e de auto-organização(1717 Minayo MCS. Da inteligência parcial ao pensamento complexo: desafios da ciência e da sociedade contemporânea. Política Soc. 2011;10:41-6. doi: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2011v10n19p41
https://doi.org/10.5007/2175-7984.2011v1...
). O caminho do fazer científico escolhido na investigação foi o de ato coletivo de construção, desconstrução e autoconstrução que envolveu pesquisador, participantes e elementos do contexto pesquisado.

Figura 1
Ciclos da Pesquisa-Ação “Saúde Mental, Álcool e outras Drogas e o Uso da Tecnologia Grupal”.

População

Participaram deste estudo 21 trabalhadores que compunham equipes multiprofissionais de 11 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de diferentes municípios de um Estado do Centro-oeste brasileiro, sendo 4 CAPS I, 5 CAPS II, 2 CAPS Álcool e Drogas e uma profissional do nível da Gestão Estadual. Não houve adesão voluntária de CAPS III e CAPS infantil para participação na pesquisa. Os CAPS tipo I e II incluídos no estudo também faziam atendimento a usuários de álcool e outras drogas bem como de crianças e adolescentes.

No momento da realização da pesquisa havia 56 CAPS habilitados. As unidades participantes do estudo deveriam ter anuência do coordenador do serviço e do gestor da saúde do município para participar. O coordenador de cada CAPS indicou dois profissionais de sua equipe para participação na pesquisa. Sendo assim, os critérios de inclusão dos participantes do estudo foram: ser profissional de nível superior completo da equipe técnica do serviço e estar em exercício profissional nos CAPS selecionados por ocasião da coleta de dados; atuar como coordenador de grupos terapêuticos no serviço e ter participado de todos os ciclos de coleta de dados do estudo. Optou-se por uma amostra de conveniência a partir da escolha intencional de serviços e profissionais ativos, tendo por base o critério da representatividade qualitativa e social(1818 Thiollent M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez; 2011.).

Coleta de dados

A coleta dos dados ocorreu de fevereiro a setembro de 2017 e os resultados apresentados neste artigo foram colhidos no terceiro ciclo da pesquisa, que consistiu na fase de ação na qual os participantes fizeram busca teórica e conceitual, planejamento e implantação das intervenções nos serviços conforme Figura 1. Para sistematizar a coleta de dados, os trabalhadores foram convidados a relatar, por escrito, a sua prática cotidiana de trabalho com grupos terapêuticos nos CAPS, incentivados pelas seguintes perguntas: O que fizemos hoje no grupo? O que foi positivo? O que pode ser aperfeiçoado? O que gerou dúvidas e angústia?

Todas as narrativas produzidas pelos participantes foram enviadas por e-mail à equipe de pesquisa, que as analisou com base nos critérios de clareza, coerência e riqueza de detalhes narrados. Oito narrativas foram selecionadas e entregues para os participantes, que divididos em seis trios e um quarteto, organizados por serviço, analisaram-nas em duas oficinas, com intervalo de 15 dias entre uma e outra. Orientou-se que o exercício de teorização deveria ocorrer por meio de estratégias criativas, inovadoras e dinâmicas, num tempo de 40 minutos para cada subgrupo. Cada oficina teve duração de oito horas e as discussões do grupo foram gravadas em áudios que foram transcritos na íntegra para análise.

Análise e tratamento dos dados

Elegeu-se a análise de narrativas, para delimitação das categorias que emergiram na pesquisa(1919 Lindsay GM, Schwind JK. Narrative Inquiry: experience matters. Can J Nurs Res. 2016;48:14-20. doi: https://doi.org/10.1177/0844562116652230
https://doi.org/10.1177/0844562116652230...
). O processo foi realizado por meio do software webQDA, que permitiu visualizar, interligar e organizar os dados possibilitando assim a codificação, a criação de categorias e a realização de questionamentos, por meio das seguintes funcionalidades do software: pesquisa das palavras mais frequentes, nuvem de palavras, pesquisa texto e matrizes(2020 Costa AP, Amado J. Análise de conteúdo suportada por Software. Aveiro: Ludomedia; 2018.).

Aspectos éticos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás com o Parecer n. 3.951.500/20. Seguiu os preceitos da Resolução 466/12, do Conselho Nacional de Saúde e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS

Perfil sociodemogrÁfico e profissional dos participantes

Participaram deste estudo vinte mulheres e um homem. No que se refere a área de formação profissional, havia 09 psicólogos, 05 assistentes sociais, 05 enfermeiras, 01 terapeuta ocupacional e 01 técnica. O tempo de atuação no campo da saúde mental variou de 1 ano e 7 meses a 9 anos, conforme Quadro 1.

Quadro 1
Caracterização dos participantes da amostra do estudo -Goiânia, GO, Brasil, 2019.

Análise das cenas narradas

A análise das cenas narradas possibilitou enxergar a dinâmica tanto dos grupos quanto dos serviços pesquisados. Os dados mostram que, nos CAPS pesquisados, as ofertas terapêuticas organizam-se conforme as demandas de cuidado, o diagnóstico e a faixa etária dos usuários. Portanto, os grupos têm objetivos bem variados, dentre os quais destacam-se os grupos para acolhimento, psicoeducação, educação em saúde e psicoterapia.

As narrativas grupais revelaram encontros terapêuticos com atores, enredos e cenários distintos, como por exemplo: problema de adesão dos membros de um grupo de adolescentes em conflito com a lei; reunião dos profissionais do CAPS para desenvolvimento de equipe; silêncio e pouco envolvimento no grupo de pacientes com transtorno mental leve. Para a realização dos grupos são associados múltiplos recursos terapêuticos como: teatro, música, atividade física, rodas de conversa, técnicas de grupo e trabalhos manuais, quase sempre utilizados para atrair e aumentar a adesão dos usuários e familiares.

As narrativas evidenciam que, em muitos serviços, o atendimento nos grupos ocorre em dupla, com profissionais de áreas distintas, o que indica um processo de trabalho multiprofissional de cuidado em equipe. Algumas cenas mostram que nem sempre o usuário tem condições clínicas ou desejo de participar das atividades propostas nos grupos terapêuticos.

A principal estratégia de avaliação dos resultados terapêuticos dos grupos engloba a frequência nos encontros, os comportamentos de autoexposição, compartilhamento de experiências, iniciativas de ajuda mútua entre os membros do grupo e adesão às atividades propostas no grupo.

Duas das oito cenas trabalhadas apresentam reuniões de equipe com os profissionais do CAPS, usadas como estratégia de gestão de equipe, espaço de interação, formação continuada e acolhimento dos sofrimentos dos trabalhadores.

Cinco cenas estudadas apresentam como protagonistas usuários adultos com transtornos mentais. Dessas, quatro cenas são com pacientes portadores de patologias graves variadas (depressão, esquizofrenia e bipolaridade) e uma com pacientes portadores de transtornos leves. Há apenas uma cena com adolescentes, nenhuma que mencione atendimento com crianças ou famílias.

Reconhecendo o aprendizado dos profissionais dos caps

O Quadro 2 expõe as categorias centrais do estudo, acompanhadas das subcategorias e do número de referências codificadas. Para melhorar a compreensão do texto, apresentam-se fragmentos das falas dos participantes, aqui nomeadas como Referências. As referências apresentadas foram identificadas com a palavra Participantes e o número que os representa na amostra do estudo.

Quadro 2
Categorias de análise dos aprendizados construídos com o estudo das narrativas de cuidado grupal -Goiânia, GO, Brasil, 2019.

Angústias e questionamentos

A frustração frente a situações em que o funcionamento do grupo não ocorreu como desejado, nomeadamente, ocasiões em que as técnicas aplicadas não levaram ao desfecho esperado, foi a situação relatada com mais frequência nessa categoria:

Porque eu previa um resultado diferente, e como que eu ia manejar isso, porque não ia ser da forma que devia ser, ou da forma que eu achava que devia ser ... e ela me orientou, justamente pensando nessa abordagem de aplicar o que a gente estava vi-venciando, e não ir de encontro à demanda específica daquele grupo (Participante 19 - Ref.1 - Subcategoria ‘Frustração das expectativas’).

Os trabalhadores também manifestaram desconforto diante do comportamento frequente dos usuários de só se queixarem sobre seus sintomas durante os grupos:

..a gente tem muita dificuldade nos grupos, pelo menos, eu tenho um CAPS no sentido de que o paciente quer chegar e desabafar, ele quer chegar e falar ele está sentindo isso, eu não estou dormindo, essa semana eu senti tal, tal sintoma, quer desabafar porque está sentindo aquela semana, ele desabafa (Participante 5 - Ref.4

- Subcategoria ‘Desafios no manejo grupal’).

A angústia dos profissionais no manejo de situações desafiadoras durante a coordenação dos grupos terapêuticos compareceu na dificuldade de controle do tempo frente à necessidade de fala dos participantes:

..ela fala que deixou a desejar na hora de acolher uma fala. Acho que esta questão do tempo é de todos, acontece demais, essa fala acontece muito no nosso serviço também (Participante 19 - Ref.4

- Subcategoria ‘Desafios no manejo grupal’).

Os participantes também apresentaram os critérios de organização e criação dos grupos com base na patologia ou nas demandas de vida dos usuários:

Eu tenho uma dúvida aqui, quando a gente separa neuróticos de psicóticos, por exemplo, a gente está segregando ou a gente está fazendo um manejo clínico, eu tenho essa dúvida lá no CAPS, porque a gente está com essa questão (Participante 7 - Ref.1 -Subcategoria ‘Dúvidas no objetivo terapêutico’).

Os trabalhadores expressaram o desafio de promover adesão dos participantes e familiares aos grupos, principalmente do público adolescente:

Foi realizado contrato com eles, perguntamos o que eles gostariam de fazer, como eles participariam disso e mesmo assim a gente não está conseguindo mesmo fazer o grupo andar (Participante 10 - Ref.2 - Subcategoria ‘Desafios no manejo grupal’).

Dúvidas surgiram sobre quais seriam os objetivos terapêuticos dos grupos bem como o seu alinhamento com as demandas dos usuários:

Às vezes você pergunta qual o objetivo do nosso grupo, e aí eufico confusa, aí eu sempre relato o objetivo do grupo, mas eu quero saber, o grupo tal tem um perfil assim, um nome tal, e esse grupo trabalha isso, porque eu não associo, entendeu, essas coisas (Participante 19 - Ref.1- Subcategoria ‘Dúvidas no objetivo terapêutico’).

O desconhecimento conceituai do grupo frente a três pontos da teorização revelou-se como campo potencial para investimentos futuros de aprendizado, a saber: 1) Análise do Campo Grupal para reconhecimento dos fatores impulsores e restritivos do grupo:

A questão dos fatores restritivos a gente procurou assim, esse termo, fatores restritivos. Aí a gente até tentou, pegou de um texto do

Os profissionais afirmaram que alternavam a função no grupo, como coordenadores ou cocoordenadores, sendo que apenas uma enfermeira mencionou que atuava sempre como coordenadora dos grupos. Apesar disso, os relatos dos profissionais da psicologia foram mais frequentes em todas as subcategorias do núcleo dos “questionamentos e angústias”, estando em primeiro lugar a percepção das psicólogas e psicólogos do sentimento de frustração dos trabalhadores na coordenação dos grupos, em segundo lugar relatos sobre os desafios aos critérios de agrupamento dos usuários e, em terceiro, questionamentos sobre a necessidade ou não do cocoordenador nos grupos terapêuticos.

A análise da matriz possibilitou evidenciar uma possível relação entre as unidades de contexto das subcategorias “desafios de manejo grupal” e “frustração das expectativas”. O que se percebe é que quando o manejo grupal se mostra difícil, com resultados negativos e distantes do esperado, o sentimento de frustração comparece na vivência do coordenador de grupo.

Aprendizados para coordenação de grupo

Apesar das dúvidas e angústias, o estudo de narrativas trouxe aos profissionais um valioso exercício de aprendizagem e produção de conhecimento. A problematização feita durante os encontros possibilitou aos trabalhadores a compreensão de que cada grupo tem uma realidade única e singular que determina o seu funcionamento: papel do coordenador e aí eu falei para ela é tudo que o coordenador tem que fazer só que ao contrário... Tá certo? (Participante 7 - Ref.2 - Subcategoria ‘Desconhecimento conceitual’);

O papel do co-coordenador de grupos;

Eu tive dúvida assim porque não encontrei nada que fale específico da co-coordenação, não sei se existe (Participante 9 - Ref. 2 - Subcategoria ‘Desconhecimento conceitual’);

E a condução do Ciclo da Aprendizagem Vivencial:

Olha, a gente pode falar a verdade? A gente ficou em dúvida numa coisa na teoria, para o CAV a pessoa tem que seguir todos passos do processo, tem uma ordem fixa? (Participante 8 - Ref.3 - Subcategoria ‘Desconhecimento conceitual’).

Frente à característica heterogênea do grupo de participantes deste estudo, surgiu a seguinte indagação: a categoria profissional do trabalhador influenciou o tipo de questões levantadas e angústias experimentadas por eles no processo de teorização? Para responder a essa indagação utilizou-se da ferramenta de Matrizes para construção de questionamento do Software webQDA conforme Quadro 3.

Quadro 3
Matriz de análise: "Categoria profissional x Questionamentos e angústias" -Goiânia, GO, Brasil, 2019.

Então você vai ter que adequar aquilo que você está aplicando, aquilo que você está aplicando à sua realidade, muitas vezes você vai ter que fazer alguma adequações porque o grupo que eu presto aquele serviço lá não é o mesmo daqui, só para começar lá é um grupo de usuários, aqui é o grupo dos profissionais do serviço, então isso já mostra que o grupo é diferente, as demandas vão ser diferentes (Participante 4 - Ref.3 - Subcategoria ‘Compreensão do funcionamento grupal’).

Os trabalhadores perceberam que a demanda do grupo e de seus membros é soberana às demandas do coordenador, e que por isso é preciso estar atento e aberto às necessidades dos usuários que compõem os grupos terapêuticos. Concluíram que, diante de tais aspectos, tornam-se improváveis a antecipação e o controle dos desfechos que ocorrem nos encontros grupais: Assim a gente tem que estar aberto para o usuário trazer a fala dele, a contribuição dele e a gente não vai estar preparado para todas as situações que podem aparecer (Participante 10 - Ref.12 - Subcategoria ‘Compreensão do funcionamento grupal’).

Para compreender o papel do Coordenador de Grupos os participantes da pesquisa buscaram suporte em várias abordagens teóricas da psicologia, dentre as quais destacam-se: a psicanalítica, a psicodramática, a gestáltica e a centrada na pessoa. Os trabalhadores apresentaram, por meio da leitura de um fragmento do texto “Um olhar para a dinâmica do coordenador de grupos”(2121 Mota KAMB, Munari DB. Um olhar para a dinâmica do coordenador de grupos. Rev Eletr Enferm. 2006;8:150-61. doi: https://doi.org/10.5216/ree.v8i1.931
https://doi.org/10.5216/ree.v8i1.931...
), dois grandes eixos de competências que devem ser dominadas pelo coordenador de grupos, como mostra o fragmento a seguir:

O coordenador precisa de competência técnica que é o domínio dos conceitos científicos da área e dos instrumentos aplicados e a competência interpessoal para conduzir o grupo com espontaneidade propiciando um ambiente propício à integração grupal (Participante 16 - Ref. 3 - Subcategoria ‘Papel do Coordenador de grupos’).

A incursão dos participantes da pesquisa no campo teórico da Dinâmica Grupal mostrou um processo de (re) conhecimento de novos conceitos, tais como: comunicação, liderança, planejamento e organização dos grupos, motivação, resistência, aplicação adequada das técnicas e vivências grupais e responsabilidade ética com o grupo:

Então pra mim, nossa, assim, ficou claro essa questão dos grupos, o objetivos dos grupos, os critérios, o planejamento, então isso para mim ficou muito claro, eu sempre sofri muito, desde o começo de fazer esse curso, eu queria mais teoria para entender como é que se formam os grupos (Participante 3 - Ref. 21 - ‘Subcategoria Planejamento grupal’).

Buscou-se compreender se houve diferença significativa nos conhecimentos discutidos pelos participantes em função da variação das categorias profissionais, recorrendo-se à criação da matriz de análise no webQDA para essa finalidade, conforme pode ser visto no Quadro 4:

Quadro 4
Matriz de análise: Conhecimentos discutidos pelos participantes por categoria profissional -Goiânia, GO, Brasil, 2019.

No que se refere ao planejamento grupal, o conhecimento parece estar alinhado entre as categorias, com pouca variação tanto na quantidade de referências quanto na qualidade. No entanto, em relação à compreensão do funcionamento grupal, a categoria de psicólogas (os) apresentou maior expressividade no número de referências do que todas as outras.

DISCUSSÃO

As ofertas grupais identificadas nas narrativas, assim como o uso associado de múltiplos recursos terapêuticos para realização dos grupos e promoção da adesão dos usuários do serviço(2323 Lorentzen S, Ruud T. Group therapy in public mental health services: approaches, patients and group therapists. J Psychiatr Ment Health Nurs. 2014;21:219-25. doi: https://doi.org/10.1111/jpm.12072.
https://doi.org/10.1111/jpm.12072...
), são compatíveis com as diretrizes nacionais de funcionamentos dos CAPS(2222 Brasil. Ministério da Saúde. Centros de Atenção Psicossocial e Unidades de Acolhimento como lugares da atenção psicossocial nos territórios: orientações para elaboração de projetos de construção, reforma e ampliação de CAPS e de UA [Internet]. Brasília; 2015 [citado 2020 maio 17]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/centros_atencao_psicossocial_unidades_acolhimento.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
), com a modalidade de grupos discutidos pela literatura internacional.

As incursões teóricas realizadas pelos trabalhadores para o estudo das cenas levaram a compreender que o objetivo do grupo terapêutico está ligado ao seu foco principal, que pode ser: a prevenção de recaídas, o treinamento de atividades diárias para autonomia, a psicoeducação ou a educação em saúde, para citar apenas alguns exemplos. No entanto, considerando que todo grupo terapêutico tem objetivos de socialização, oferecimento de suporte e aprendizagem, ele frequentemente terá mais de uma classificação simultânea(2424 Castilho A. A dinâmica do trabalho de grupo. Rio de Janeiro: Qualitmark; 2002.).

A não adesão dos usuários às atividades grupais comparece nos resultados como frequente e intenso desafio para os profissionais dos CAPS. Esse fenômeno grupal pode ter vários significados: resistência, falta de motivação para tarefa, atividades que não atendem as demandas e necessidades dos usuários, ou mesmo incapacidade ao que foi proposto no grupo, em função das limitações cognitivas e ou relacionais dos usuários dos serviços. Ressalta-se que o grupo funciona como um sistema completo e integrado onde cada um de seus membros é um subsistema importante®. Desse modo, resistências ou dificuldades que parecem ser individuais ou isoladas podem repercutir em todo o campo grupal. Por isso é preciso estar atento ao fato de a não adesão ao tratamento poder ocorrer em função de crenças, valores e preferências dos usuários, pois no grupo eles se influenciam mutuamente e portanto alteram a dinâmica do funcionamento grupal(2525 Ribeiro JP. O conceito de resistência na psicoterapia grupo-analítica: repensando um caminho. Psicol Teor Pesq. 2007;23(n. esp):65-71. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-37722007000500013
https://doi.org/10.1590/S0102-3772200700...
).

As cenas narradas evidenciam que os grupos ocorrem com dupla coordenação nos serviços pesquisados; no entanto, foi evidenciado que muitos trabalhadores desconhecem o conceito de cocoordenação e, consequentemente, não percebem todo o potencial terapêutico dessa figura no grupo. O cocoordenador ou coterapeuta é quem observa e sintetiza o conteúdo do grupo para apoiar e complementar as leituras e interpretações do coordenador(2626 Yalom ID, Leszcz M. Psicoterapia de grupo: teoria e prática. Porto Alegre: Osório LC; 2006. 2 7. Bros I, Notó P, Bulbena A. Effectiveness of short-term dynamic group psychotherapy in primary care for patients with depressive symptoms. Clin Psychol Psychother. 2017;24:826-34. doi: https://doi.org/10.1002/cpp.2029.
https://doi.org/10.1002/cpp.2029...
). Em situações de crise no grupo, o cocoordenador tem a incumbência de acolher os usuários mais mobilizados enquanto o coordenador segue com a condução e fechamento das atividades(2121 Mota KAMB, Munari DB. Um olhar para a dinâmica do coordenador de grupos. Rev Eletr Enferm. 2006;8:150-61. doi: https://doi.org/10.5216/ree.v8i1.931
https://doi.org/10.5216/ree.v8i1.931...
).

Quanto aos resultados terapêuticos do grupo, chama atenção que, nas cenas narradas, assim como nas discussões que delas sucederam, foram mencionadas prioritariamente estratégias de verificação do processo grupal e dos padrões relacionais que o caracterizam. Não há evidências do uso de avaliação de eficácia que compare as condições de saúde, qualidade de vida, ou remissão dos sintomas, como é frequentemente relatado pelos estudos internacionais(2727 Bros I, Notó P, Bulbena A. Effectiveness of short-term dynamic group psychotherapy in primary care for patients with depressive symptoms. Clin Psychol Psychother. 2017;24:826-34. doi: https://doi.org/10.1002/cpp.2029.
https://doi.org/10.1002/cpp.2029...
).

O conteúdo das referências do núcleo “Aprendizados para coordenação de grupo” evidenciou na subcategoria “Planejamento Grupal” grande preocupação dos trabalhadores com a aplicação adequada das técnicas de grupo de modo a conseguir determinado desfecho ou resultado. Infere-se que, diante da pouca intimidade teórica e conceitual dos profissionais com a Dinâmica Grupal, ocorre grande apego dos mesmos aos roteiros de execução de atividades como se eles fossem uma receita ou passo-a-passo linear e estanque a ser seguido. Essa ação mecânica muitas vezes é uma mera estratégia de ocupação do ócio dos usuários ou da agenda dos profissionais, sem considerar o grupo como uma tecnologia de transformação.

Ao que parece, a natureza dinâmica e ao mesmo tempo imprevisível dos grupos terapêuticos gerou nos trabalhadores a percepção de desafio no manejo grupal, o sentimento de frustração e a falta de clareza das metas e objetivos terapêuticos do grupo. A literatura aponta que, quanto maior o domínio teórico e técnico que o coordenador de grupos tem sobre os processos e os fenômenos grupais, menor será sua preocupação com trajetos pré-definidos para o grupo e maior será seu respeito e tolerância para acolher os conteúdos e movimentos da dinâmica grupal, sejam eles relacionados à doença e seus sintomas, ao próprio grupo ou à instituição(2121 Mota KAMB, Munari DB. Um olhar para a dinâmica do coordenador de grupos. Rev Eletr Enferm. 2006;8:150-61. doi: https://doi.org/10.5216/ree.v8i1.931
https://doi.org/10.5216/ree.v8i1.931...
).

Os participantes relataram que compreender o conceito de Dinâmica Grupal como movimento resultante do conjunto das interações no interior de um espaço psicosso-cial, singular e específico a cada um por ser produzido por ele próprio(2828 Malhiot GB. Dinâmica e gênese dos grupos. Petrópolis: Vozes; 2013.) os auxiliou a diferenciar o que é domínio e propriedade característicos do fazer do grupo e o que é de responsabilidade do coordenador. Distinguir as atribuições de cada elemento do Campo Grupal(2929 Frazão LM, Fukumitsu KO. Modalidades de intervenção clínica em Gestalt terapia. São Paulo: Summus; 2016.) é necessário para a construção de modos mais eficientes de oferecer cuidado psicossocial em grupo.

A produção e o estudo das narrativas de cuidado grupal foram utilizados pela equipe de pesquisa tanto como dispositivos pedagógicos de qualificação profissional quanto como recurso metodológico para coleta de dados qualitativos. Ao falar, escrever e ler sobre seus grupos terapêuticos os trabalhadores invariavelmente pensaram e refletiram sobre si e seu fazer profissional, pois a atividade da escrita está associada ao exercício do pensamento de duas formas distintas, uma linear, que vai do trabalho da reflexão ao trabalho da descrição da realidade, e outra circular, pois a reflexão gera a escrita, e a releitura do texto cria novas reflexões(3030 Foucault M. O que é um autor? Lisboa: Passagens; 1992. A escrita de si; p. 129-60.).

Entende-se que o registro das cenas de cuidado grupal transformou-se em uma ferramenta de reconstrução da realidade, porque foram alvo da análise crítica daqueles que as produziram em associação às teorias e conceitos da Dinâmica de Grupo que fundamentam a prática dos grupos terapêuticos como tecnologia de cuidado. Iniciativas de aprendizado no serviço que potencializam o fazer, criar e transformar a prática profissional a partir dela própria são mais eficazes em responder às demandas dos serviços, favorecendo o trabalho multiprofissional(99 Nunes FC, Caixeta CC, Pinho ES, Souza ACS, Barbosa MA. Group technology in psychosocial care: a dialogue beteen action research and permanent health education. Texto Contexto Enferm. 2019;28:e20180161. doi: https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2018-0161
https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-20...
).

A análise das matrizes geradas com o webQda evidenciam maior intimidade dos profissionais da psicologia com os conteúdos aprendidos, o que pode ser explicado pelo fato de que coordenar e manejar processos grupais, considerando as diferenças individuais e socioculturais de seus membros, as demandas grupais e a promoção de autonomia e autogestão dos grupos” faz parte do núcleo das competências previstas nas diretrizes curriculares da graduação em Psicologia(3131 Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução 597, de 13 de setembro de 2018. Aprovar o parecer técnico que dispõe sobre as recomendações do Conselho Nacional de Saúde à proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Psicologia [Internet]. Brasil; 2018. [citado 2020 maio 17]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2018/Reso597.pdf
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/...
). Além disso, a compreensão comportamental da Dinâmica Grupal está baseada nas principais correntes teóricas da psicologia, quais sejam: Psicanálise, Psicodrama e Gestalt(3232 Mota KAMB, Leal ML. O processo de aprendizagem no modelo de educação de laboratório vivencial. In: Mota KAMB, Munari DB, editors. As trilhas do trabalho de grupos. Curitiba: CRV; 2016. p. 15-22.). Mas questiona-se sobre a competência de outros profissionais na condução de grupos, já que há disciplinas de grupo na formação de assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e também nas formações de Pós-Graduações em diferentes áreas. Nesse sentido, a Educação Permanente em Saúde faz-se importante para o processo de aprendizagem e desenvolvimento de competências em serviço, com o serviço e para o serviço.

Apesar disso, os demais trabalhadores que participaram do estudo não expressaram inaptidão ou desinteresse no aprendizado da Dinâmica Grupal; ao contrário, (re)conhece-ram o quanto sabiam e confirmaram práticas exitosas adquiridas com o grande tempo de experiência que possuíam no trabalho com os CAPS. A experiência também pode levar à competência, principalmente quando respaldada pela teoria.

CONCLUSÃO

Os resultados produzidos com a estratégia de pesquisa e qualificação adotada evidenciam que narrar as cenas de cuidado grupal, por escrito, possibilitou aos participantes exercitar o pensamento crítico por meio do reconhecimento e da descrição reflexiva da realidade concreta do trabalho. O momento de estudo das narrativas trouxe aos participantes o reconhecimento da vasta literatura existente sobre o campo da Dinâmica de Grupo, a importância do Planejamento Grupal adequado, bem como a compreensão dos conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias à tarefa de coordenar grupos. Quando introduzimos educação no trabalho, em certa medida supomos a introdução de processos de transformação, isto é, a introdução de mudanças por meio de formação.

Equipes multidisciplinares podem enriquecer o trabalho grupal nos CAPS em função da diversidade de ofertas terapêuticas e olhares de vários núcleos de especialidade sobre o mesmo fenômeno, o que possibilita um cuidado integral e ampliado. Percebe-se a importância da Educação Permanente em Saúde no favorecimento de novas aprendizagens, desenvolvimento e aperfeiçoamento de habilidades dos profissionais que atuam nos serviços. Essa formação continuada pode contribuir para a adesão e participação nos grupos e atividades propostas por esses profissionais.

REFERENCES

  • 1
    Amarante P, Nunes MO. Psychiatric reform in the SUS and the struggle for a society withou asylums. Cien Saude Colet. 2018;23:2067-74. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
  • 2
    Franco TB, Merhy EE. Cartografias do trabalho e cuidado em saúde. Rev Tempus Actas Saúde Cole. 2012; 6:151-63. doi: https://doi.org/10.18569/tempus.v6i2.1120
    » https://doi.org/10.18569/tempus.v6i2.1120
  • 3
    Burgess RA, Jain S, Petersen I, Lund C, Ann Burgess R, Jain S, et al. Social interventions: a new era for global mental health? Lancet Psychiatry. 2019;19:9-10. doi: http://dx.doi.org/10.1016/S2215-0366(19)30397-9
    » http://dx.doi.org/10.1016/S2215-0366(19)30397-9
  • 4
    Brasil. Ministério da Saúde. Saúde mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial [Internet]. Brasília; 2004 [citado 2020 nov. 25]. Disponível em: http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental/pdf/sm_sus.pdf
    » http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental/pdf/sm_sus.pdf
  • 5
    Rauter C. Oficinas para que? Uma proposta ético-estético-política para oficinas terapêuticas. In: Amarante P, editor. Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000. p. 267-77.
  • 6
    Souza LGS, Pinheiro LB. Oficinas terapêuticas em um Centro de Atenção Psicossocial-álcool e drogas. Aletheia [Internet]. 2012 [citado 2020 nov. 25];38:218-27. Disponível em: http://www.periodicos.ulbra.br/index.php/aletheia/article/view/3375
    » http://www.periodicos.ulbra.br/index.php/aletheia/article/view/3375
  • 7
    Farias ID, Thofehrn MB, Andrade APM, Carvalho LA, Fernandes HN, Porto AR. Therapeutic workshops as expressions of subjectivity. SMAD Rev Eletr Saúde Ment Álcool e Drog. 2016; 12:147. doi: http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v12i3p147-153
    » http://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v12i3p147-153
  • 8
    Ferreira KF, Carvalho VCS. Oficinas terapêuticas: caminhos de saberes. Ver Fac Ciênc Med Sorocaba. 2018;20:82-5. doi: https://doi.org/10.23925/1984-4840.2018v20i2a5
    » https://doi.org/10.23925/1984-4840.2018v20i2a5
  • 9
    Nunes FC, Caixeta CC, Pinho ES, Souza ACS, Barbosa MA. Group technology in psychosocial care: a dialogue beteen action research and permanent health education. Texto Contexto Enferm. 2019;28:e20180161. doi: https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2018-0161
    » https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2018-0161
  • 10
    Nunes FC, Farinha MG, Valentim F, Barbosa MA, Rua M dos S. Group interventions and action research in health. Millenium. 2020;2:65-71. doi: https://doi.org/10.29352/mill0211.07.00273
    » https://doi.org/10.29352/mill0211.07.00273
  • 11
    Pinho ES, Souza ACS, Elizabeth E. Working processes of professionals at Psychosocial Care Centers (CAPS): an integrative review. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(1):141-52. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018231.08332015
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232018231.08332015
  • 12
    Santos RCA, Pessoa Junior JM, Miranda FAN. Psychosocial care network: adequacy of roles and functions performed by professionals. Rev Gaúcha Enferm. 2018;39:e57448. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.57448
    » https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.57448
  • 13
    Castellanos MEP. The narrative in qualitative research in health. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(4):1065-76. doi: https://doi. org/10.1590/1413-81232014194.12052013
    » https://doi. org/10.1590/1413-81232014194.12052013
  • 14
    Diniz DS, Sá MDC. The use of narratives and group device approach in education/continuing education of health professionals: a literature review. Interface - Comun Saúde, Educ. 2019; 23:e18021 7. DOI: https://doi.org/10.1590/Interface.180217
    » https://doi.org/10.1590/Interface.180217
  • 15
    Fadlallah R, El-Jardali F, Nomier M, Hemadi N, Arif K, Langlois EV, et al. Using narratives to impact health policy-making: a systematic review. Public Health Health Serv. 2019;17:1-22. doi: https://doi.org/10.1186/s12961-019-0423-4
    » https://doi.org/10.1186/s12961-019-0423-4
  • 16
    Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Editora Sulina; 2015.
  • 17
    Minayo MCS. Da inteligência parcial ao pensamento complexo: desafios da ciência e da sociedade contemporânea. Política Soc. 2011;10:41-6. doi: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2011v10n19p41
    » https://doi.org/10.5007/2175-7984.2011v10n19p41
  • 18
    Thiollent M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez; 2011.
  • 19
    Lindsay GM, Schwind JK. Narrative Inquiry: experience matters. Can J Nurs Res. 2016;48:14-20. doi: https://doi.org/10.1177/0844562116652230
    » https://doi.org/10.1177/0844562116652230
  • 20
    Costa AP, Amado J. Análise de conteúdo suportada por Software. Aveiro: Ludomedia; 2018.
  • 21
    Mota KAMB, Munari DB. Um olhar para a dinâmica do coordenador de grupos. Rev Eletr Enferm. 2006;8:150-61. doi: https://doi.org/10.5216/ree.v8i1.931
    » https://doi.org/10.5216/ree.v8i1.931
  • 22
    Brasil. Ministério da Saúde. Centros de Atenção Psicossocial e Unidades de Acolhimento como lugares da atenção psicossocial nos territórios: orientações para elaboração de projetos de construção, reforma e ampliação de CAPS e de UA [Internet]. Brasília; 2015 [citado 2020 maio 17]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/centros_atencao_psicossocial_unidades_acolhimento.pdf
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/centros_atencao_psicossocial_unidades_acolhimento.pdf
  • 23
    Lorentzen S, Ruud T. Group therapy in public mental health services: approaches, patients and group therapists. J Psychiatr Ment Health Nurs. 2014;21:219-25. doi: https://doi.org/10.1111/jpm.12072
    » https://doi.org/10.1111/jpm.12072
  • 24
    Castilho A. A dinâmica do trabalho de grupo. Rio de Janeiro: Qualitmark; 2002.
  • 25
    Ribeiro JP. O conceito de resistência na psicoterapia grupo-analítica: repensando um caminho. Psicol Teor Pesq. 2007;23(n. esp):65-71. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-37722007000500013
    » https://doi.org/10.1590/S0102-37722007000500013
  • 26
    Yalom ID, Leszcz M. Psicoterapia de grupo: teoria e prática. Porto Alegre: Osório LC; 2006. 2 7. Bros I, Notó P, Bulbena A. Effectiveness of short-term dynamic group psychotherapy in primary care for patients with depressive symptoms. Clin Psychol Psychother. 2017;24:826-34. doi: https://doi.org/10.1002/cpp.2029
    » https://doi.org/10.1002/cpp.2029
  • 27
    Bros I, Notó P, Bulbena A. Effectiveness of short-term dynamic group psychotherapy in primary care for patients with depressive symptoms. Clin Psychol Psychother. 2017;24:826-34. doi: https://doi.org/10.1002/cpp.2029
    » https://doi.org/10.1002/cpp.2029
  • 28
    Malhiot GB. Dinâmica e gênese dos grupos. Petrópolis: Vozes; 2013.
  • 29
    Frazão LM, Fukumitsu KO. Modalidades de intervenção clínica em Gestalt terapia. São Paulo: Summus; 2016.
  • 30
    Foucault M. O que é um autor? Lisboa: Passagens; 1992. A escrita de si; p. 129-60.
  • 31
    Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução 597, de 13 de setembro de 2018. Aprovar o parecer técnico que dispõe sobre as recomendações do Conselho Nacional de Saúde à proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Psicologia [Internet]. Brasil; 2018. [citado 2020 maio 17]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2018/Reso597.pdf
    » http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2018/Reso597.pdf
  • 32
    Mota KAMB, Leal ML. O processo de aprendizagem no modelo de educação de laboratório vivencial. In: Mota KAMB, Munari DB, editors. As trilhas do trabalho de grupos. Curitiba: CRV; 2016. p. 15-22.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2020
  • Aceito
    18 Nov 2020
Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: reeusp@usp.br