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Inovação em educação ambiental na cidade e na floresta: o caso Oela

Innovación en educación ambiental en la ciudad y en la floresta: el caso Oela

Innovation in environmental education in the city and in the forest: the Oela case

Resumos

Este artigo apresenta os resultados de um estudo de caso de inovação educacional na atuação de uma organização não governamental junto a jovens da periferia de Manaus e comunidades extrativistas de Boa Vista do Ramos, no Estado do Amazonas. A hipótese examinada pela pesquisa foi a de que fatores salientes que se conjugam na geração de ações de inovação são o tempo de experiência profissional de educadores(as), a estabilidade da equipe, o nível de qualificação e a atuação mobilizadora de líderes da organização. São descritos os objetivos e o modo de atuação da organização e apontadas as características de líderes, agentes e equipes. Conclui que a hipótese levantada foi parcialmente confirmada.

inovação educacional; organização não governamental; educação ambiental; Amazonas


Este artículo presenta los resultados de un estudio de caso de innovación educativa en la actuación de una Organización No Gubernamental junto a jóvenes de la periferia de Manaus y comunidades de extracción de Boa Vista do Ramos, en el Estado de Amazonas. La hipótesis examinada por la investigación fue la de que los factores importantes que se unen para generar acciones de innovación son el tiempo de experiencia profesional de educadores(as), la estabilidad de su equipo, el nivel de calificación y la actuación movilizadora de líderes de la organización. Se describen los objetivos y el modo de actuación de la organización y se señalan las características de líderes, agentes y equipos. Se concluyó que la hipótesis que se planteó fue parcialmente confirmada.

innovación educativa; organización no gubernamental; educación ambiental; Amazonas


This article presents the results of a case study on educational innovation concerning the involvement of a Non Governmental Organization with young people in the outskirts of Manaus and in extractive communities of Boa Vista do Ramos, in the state of Amazonas. The hypothesis examined in the survey was that salient factors that combine to generate innovative actions are the educators' time of professional experience, their staff's stability, and the level of qualification and mobilizing actions of the organization's leaders. The organization's objectives and mode of operation are described and the leaders', agents' and staff's characteristics are identified. Results showed that the hypothesis was partially confirmed.

educational innovations; non governmental organizations; environmental education; Amazonas


OUTROS TEMAS

Inovação em educação ambiental na cidade e na floresta: o caso Oela

Innovation in environmental education in the city and in the forest: the Oela case

Innovación en educación ambiental en la ciudad y en la floresta: el caso Oela

Elie Ghanem

Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FE/USP elie@usp.br

RESUMO

Este artigo apresenta os resultados de um estudo de caso de inovação educacional na atuação de uma organização não governamental junto a jovens da periferia de Manaus e comunidades extrativistas de Boa Vista do Ramos, no Estado do Amazonas. A hipótese examinada pela pesquisa foi a de que fatores salientes que se conjugam na geração de ações de inovação são o tempo de experiência profissional de educadores(as), a estabilidade da equipe, o nível de qualificação e a atuação mobilizadora de líderes da organização. São descritos os objetivos e o modo de atuação da organização e apontadas as características de líderes, agentes e equipes. Conclui que a hipótese levantada foi parcialmente confirmada.

Palavras-chave: inovação educacional; organização não governamental; educação ambiental; Amazonas

ABSTRACT

This article presents the results of a case study on educational innovation concerning the involvement of a Non Governmental Organization with young people in the outskirts of Manaus and in extractive communities of Boa Vista do Ramos, in the state of Amazonas. The hypothesis examined in the survey was that salient factors that combine to generate innovative actions are the educators' time of professional experience, their staff's stability, and the level of qualification and mobilizing actions of the organization's leaders. The organization's objectives and mode of operation are described and the leaders', agents' and staff's characteristics are identified. Results showed that the hypothesis was partially confirmed.

Keywords: educational innovations; non governmental organizations; environmental education; Amazonas

RESUMEN

Este artículo presenta los resultados de un estudio de caso de innovación educativa en la actuación de una Organización No Gubernamental junto a jóvenes de la periferia de Manaus y comunidades de extracción de Boa Vista do Ramos, en el Estado de Amazonas. La hipótesis examinada por la investigación fue la de que los factores importantes que se unen para generar acciones de innovación son el tiempo de experiencia profesional de educadores(as), la estabilidad de su equipo, el nivel de calificación y la actuación movilizadora de líderes de la organización. Se describen los objetivos y el modo de actuación de la organización y se señalan las características de líderes, agentes y equipos. Se concluyó que la hipótesis que se planteó fue parcialmente confirmada.

Palabras clave: innovación educativa; organización no gubernamental; educación ambiental; Amazonas

Este artigo reporta alguns dos resultados de uma pesquisa* * Realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp. dedicada ao seguinte problema: que fatores se conjugam na geração de ações de inovação educacional? Diferentemente de muitos trabalhos (ver, por exemplo, TYACK; CUBAN, 1995; FARRELL, 2000, 2001; DIDASKALOU, 2002; LAWTON, 2001; GLÓRIA; MAFRA, 2004; LEVIN, 2008; TURA; MARCONDES, 2008) que trataram de inovações como reformas educacionais, a pesquisa enfoca a inovação educacional como práticas independentes da atuação reformadora de governantes.

Geralmente, as abordagens da inovação educacional usam os termos inovação, mudança, transformação, atribuindo a todos um mesmo significado: ações com o objetivo de alterar práticas educacionais. Mesmo obras com importantes contribuições conceituais, como a de Huberman (1976), incorrem nesse uso indistinto, ainda que assinalem a desigualdade entre fenômenos segundo a escala em que se apresentam. A mudança ou inovação pode atingir apenas uma ou poucas escolas. Pode também ser observada em muitas escolas de uma província ou estado, de uma região ou de um país. As pesquisas muitas vezes se referem a essa mudança em maior escala nomeando-a de reforma educacional (CRAIG, 2001a, 2001b; HATCH, 2001; DRAKE; SHERIN, 2006).

Parsons e Fidler (2005) enfatizam que a mudança planejada pode ser considerada, às vezes, ou como mudança radical de larga escala, ou como pequenas mudanças incrementais, ou ainda como combinações entre ambas em longos períodos de equilíbrio. Embora eles tenham razão, considerei necessário utilizar outra classificação, baseando-me na análise de Torres (2000) sobre as relações entre reformadores e docentes, apontadas como inibidoras da mudança educacional.

Uma mudança radical de grande escala, uma mudança de caráter sistêmico, eu denomino mudança educacional. Não é o mesmo que reforma educacional ou inovação educacional. A mudança educacional resulta da convergência de práticas que emergem da lógica da inovação educacional e da lógica da reforma educacional.

Deve-se entender inovação educacional como a lógica que rege as práticas originadas na base de sistemas escolares, ou seja, em estabelecimentos individualmente considerados ou em organizações de alcance local, geralmente conhecidas como associações comunitárias. As práticas de inovação precisam ser vistas como atividades cuja peculiaridade é, para certo lugar e grupo social, se diferenciarem das práticas que seguem um costume. A inovação não decorre de uma originalidade absoluta, mas está em não seguir o costume. A inovação educacional constitui-se de práticas de baixa visibilidade, isoladas, fragmentadas, descontínuas no tempo e marcadas por forte voluntarismo de educadores(as). Sua tendência é muito mais endógena do que exógena.

De outra parte, as práticas designadas com a expressão reforma educacional não são criadas por agentes diretos de sua execução e seguem outra lógica, uma vez que decorrem de prescrições feitas por autoridades estatais do Poder Executivo e por autoridades acadêmicas das universidades. A configuração das práticas que seguem a lógica da reforma é homogênea, sua abrangência é muito ampla e a visibilidade, muito alta, também porque elas contam com significativa sustentabilidade proporcionada por recursos orçamentários do poder público. Caracterizam-se pela normatividade e coercividade e, assim, sua tendência é muito mais exógena do que endógena.

Está sempre presente o risco de se atribuir um valor positivo ou negativo a priori tanto sobre práticas educacionais abarcadas pela reforma como pela inovação. Convém ter em mente a advertência de Craft (2003, p. 123) para que tais objetos não sejam vistos como ações boas ou más em si mesmas, ainda que as alterações almejadas por essas ações ou que delas decorram também estejam sujeitas a juízos de valor.

No intuito de compreender as ações orientadas por cada uma das lógicas muitos aspectos podem ser relevantes. A pesquisa aqui apresentada concentrou-se na gênese das experiências inovadoras e em fatores que podem estar presentes nessa origem. A fim de manter coerência com a definição de inovação que escolhi, ao considerar os fatores geradores das experiências, desprezei aqueles que dizem respeito à atuação dos níveis hierárquicos mais elevados da administração dos sistemas escolares ou dos aparatos estatais de maneira geral. A hipótese pela qual a pesquisa se orientou para buscar evidências foi a de que, na gênese das iniciativas, conjugam-se os seguintes fatores salientes: a experiência profissional de docentes, a estabilidade de corpos docentes, a atuação mobilizadora de diretores(as) de estabelecimentos e o grau de qualificação profissional de integrantes de organizações comunitárias. Realizei o estudo de quatro casos de inovação para examinar a veracidade dessa hipótese. São casos de trabalhos de organizações não governamentais – ONGs – nos estados brasileiros do Ceará, Rio de Janeiro, Pernambuco e Amazonas. Os resultados deste último são descritos neste artigo.

Esses fatores foram inicialmente selecionados supondo ações inovadoras em escolas regulares de educação básica. Para os estudos de casos de práticas de ONGs, fiz adequações nos fatores priorizados na hipótese. O tempo de experiência dos(as) agentes educadores(as) das ONGs foi adotado para o que seria o tempo de docentes na profissão. Analogamente, sua estabilidade na função foi posta no lugar da estabilidade de corpos docentes em escolas. A atuação mobilizadora de líderes das ONGs passou a equivaler à de diretores(as) de estabelecimentos. Por sua vez, o nível de qualificação profissional de líderes de associações comunitárias foi substituído pelo nível de líderes das ONGs. É certo que as ONGs se distinguem das escolas em muitos aspectos, antes de tudo, porque as escolas públicas são submetidas diretamente à ação reguladora e fiscalizadora dos órgãos administrativos governamentais e as escolas privadas têm fins de lucro e concorrem em um mercado próprio. Contudo, considerei suficiente o fato de todas, escolas e ONGs, serem organizações no sentido amplo da definição weberiana – a ação contínua de um quadro administrativo dirigida à realização e imposição das ordenações (WEBER, 1996) – e prestarem expressamente serviços educacionais. Nestes termos, os fatores hipotéticos de inovação mantêm sua pertinência.

As informações utilizadas pela pesquisa foram colhidas ao longo de 2010, em visitas aos municípios amazonenses de Manaus e Boa Vista do Ramos, com entrevistas semiestruturadas aplicadas a dirigentes, agentes educacionais e ex-alunos(as) da Oficina Escola de Luteria da Amazônia – Oela –, assim como com líderes e outros integrantes de associações extrativistas em comunidades de Boa Vista do Ramos.

O CASO OELA

A ONG

A Oela iniciou em 1998 como a ação de um grupo de três pessoas. Tornou-se uma ONG composta por 25 pessoas. O eixo de sua atuação é a defesa de direitos e, envolvendo-se com a floresta amazônica, os direitos dos povos que ali vivem. Daí lidar com o tema das mudanças climáticas e com processos de concessão florestal para obter identificação, destinação e gestão pelo Estado. Ao mesmo tempo, em quatro estados da Grande Região Norte, a Oela foi responsável por operar (treinando equipes municipais sobre indicadores) o programa do Fundo das Nações Unidas para a Criança – Unicef – de apoio às prefeituras que se comprometeram a respeitar os direitos estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente.

A Oela já era parceira do Unicef desde 2001, quando se integrou à campanha Criança Esperança.1 1 Campanha de arrecadação de fundos coordenada pelo Unicef entre 1986 e 2003 destinada a apoiar projetos voltados à defesa dos direitos de crianças e adolescentes brasileiros e suas famílias. Disponível em: < www.unicef.org.br>. Acesso em: 27 dez. 2010. Nesse trabalho, o Unicef foi substituído pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco – e a relação da Oela com o Unicef foi suspensa. Em 2008, o Unicef instalou um escritório em Manaus e selecionou a Oela para fazer parte da coordenação do projeto Criança Amazônica.

O formato da ONG inclui uma assembleia geral de sócios. Quando se realizou a pesquisa, o conselho diretor tinha três cargos exercidos por ambientalistas, sendo que a presidente era uma psicóloga e o vice-presidente, um ecólogo. O conselho fiscal incluía uma terapeuta, a mãe de um aluno e um empresário local. A diretoria executiva contava com o idealizador e fundador, a coordenadora de projetos (uma psicóloga) e o coordenador financeiro (um economista). Estavam em andamento três frentes de atuação: educação profissional, geração de renda e políticas públicas. A Oela está representada, por exemplo, no Grupo de Trabalho Amazônico – GTA –,2 2 Fundado em 1992, o GTA conta com 602 organizações filiadas, em nove estados da Amazônia Legal. na Comissão Nacional de Florestas e no Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente.

A Oela começou no bairro Zumbi, na zona leste de Manaus, originalmente projetado para ser um conjunto habitacional para a classe média, com apenas duas ruas, quadras de esportes e piscinas. Contudo, houve muitas invasões do terreno e partes do bairro são mais precárias do que o núcleo inicial do conjunto, com casas flutuantes, igarapés poluídos e rip-raps (pontes feitas apenas com uma tábua para dar acesso às casas). Há grupos de "galeras" rivais, com as quais foi preciso negociar para que estudantes pudessem ter acesso à ONG. Entretanto, mesmo sendo o bairro conhecido como perigoso, não há agressões contra a equipe.

A coordenadora de projetos caracteriza a ONG por sua "filosofia humanista", cujo foco não é fazer com que adolescentes se tornem músicos, luthiers – artesãos(ãs) contrutores(as) de instrumentos musicais – ou que obtenham certificado de informática, mas fazer com que cada indivíduo "tenha a possibilidade de construir a sua própria história de vida". Segundo ela, as pessoas que a Oela recebe não têm perspectiva de vida, oportunidade, estrutura familiar e conceitos formados, e seu vínculo de amizades pertence a um mundo de drogas, violência, prostituição, suicídio e abandono familiar (vivem alternadamente em períodos irregulares com o pai, a mãe ou outros parentes).

Procura-se manter uma interligação entre os programas: o de geração de renda depende do programa educacional, que ensina luteria a jovens e manejo florestal a ribeirinhos. O de políticas públicas orienta o conjunto para a realização dos direitos incluídos nas leis. O de geração de renda envolve a Oela e pessoas formadas na ONG que montam seus próprios negócios e continuam recebendo apoio (por exemplo, para a elaboração de projetos e prestação de contas). Este último programa inclui ainda o telecentro, que oferece cursos de informática a cerca de oito mil pessoas por ano e as encaminha para postos de trabalho no distrito industrial.

Uma exigência para estudar na Oela é estar frequentando a escola regular. A perspectiva é oferecer um ensino complementar, de modo que os jovens aprendam um ofício para ter uma alternativa de geração de renda. Se não se tornarem luthiers, podem ser restauradores ou acabadores, pois sua formação permite desempenho especializado de padrão internacional.

A Oela visou a tornar a luteria algo comum no local, defendendo o direito ao conhecimento e a uma formação profissional refinada também para jovens de origem popular. São oferecidas 60 vagas e a frequência oscila entre 30 e 40 jovens, variação que o diretor executivo da ONG explica da seguinte forma: "Não tem aqui nem uma bolsinha de cem reais pra ajudar o cara, não tem lanche, não tem transporte. A única coisa que a gente pode dar é atenção, carinho e o conhecimento que nós temos".

Na área da psicologia, a Oela faz aconselhamento a famílias, encaminhamento de casos de alcoolismo ou de abuso de crianças etc. Trabalha com 500 estudantes de informática, 60 estudantes de luteria, 60 de música e 80 de educação ambiental e faz atendimentos familiares. Uma triagem identifica as pessoas que necessitam de atendimento psicológico ou apenas de aconselhamento. Grupos de 10 a 15 pessoas "que necessitam de fortalecimento egoico" participam de oficinas com dinâmicas, integração, mobilização e teatro.

Uma decisão de grande risco foi instalar, em 2010, uma linha de montagem de instrumentos musicais no Distrito Industrial de Micro e Pequenas Empresas de Manaus – Dimpe –, tendo em vista buscar a sustentabilidade do projeto e a geração de renda para jovens egressos(as) do aprendizado de luteria. Decisão audaciosa, já que o coordenador do ateliê vinha trabalhando com grupos de jovens que aprendiam luteria porque queriam e, nos grupos mais recentes, ele não notou o mesmo interesse, o que torna a iniciativa temerária. Além disso, um luthier pode vender um instrumento por um preço maior do que a remuneração mensal em uma linha de montagem, mas nem mesmo essa busca por ganhos tem sido manifestada pelos(as) jovens. Selecionar candidatos(as), no entanto, seria contraditório com o caráter da Oela, aberto ao trabalho com jovens com diferentes características.

Além das atividades em Manaus, a Oela orienta o manejo comunitário da extração de madeira em Boa Vista do Ramos, um município de cerca de 13 mil habitantes, situado a 18 horas de barco de Manaus, descendo o Rio Amazonas.

ORIGENS EM UM PERCURSO PESSOAL

José Rubens Ferreira Gomes, conhecido como Rubens Gomes, nasceu em 1958, no Município de Serra do Navio, no Estado do Amapá. Seu pai foi seringueiro e trabalhou como operário após ter sofrido de malária e leishmaniose com 18 anos de idade, tendo ido para Macapá para tratar da saúde. Gomes acredita que ter-se tornado ambientalista tem muito a ver com sua infância, porque brincava com a floresta e com a montanha e, repentinamente, essa paisagem desapareceu, quando sua família se mudou para a capital do Amapá.

Gomes passou a ser educador por força das circunstâncias e se define como um artista. Com cerca de 13 anos de idade foi estudar em Belém. Sonhava estudar música. Sua formação foi mais autodidata, mas fez também um curso livre no Centro de Artes da Universidade Federal do Pará – UFPA –, quando ainda era estudante de nível médio e aprendeu violão com um padre em Serra do Navio. Naquela época, já trabalhava como músico à noite. Aprendeu primeiro em casa. Seu pai tocava acordeão.

Tendo contado com muita autonomia em sua formação, sem seguir os caminhos tradicionais, pesquisou outras formas de ensinar música, questionando o modelo dos conservatórios, que considerava extremamente perverso e excludente. Pensou ser necessária uma metodologia de ensino mais simples e mais adequada, para que todas as pessoas tivessem acesso.

A luteria é uma arte que passa de pai para filho. Empresas familiares de fabricação de instrumentos musicais no Brasil são nomeadamente de famílias de imigrantes: a Del Vecchio e a Giannini com os violões, a Esenfelder e a Fritz Dobbert com pianos. Com Gomes, foi diferente. Ele fez curso técnico em música em contrabaixo e técnicas vocais na UFPA. Observou o trabalho de um senhor que fazia manutenção e afinação de pianos e aprendeu os mecanismos de regulação e "tempero" dos instrumentos. Assim iniciou sua história com a luteria. Quando decidiu estudar contrabaixo, não tinha meios para comprar um instrumento, sempre muito caro, fosse de indústria (chinesa ou checa) ou de luthier. Fazendo afinação e reparos, conseguiu dispor de instrumentos para seguir estudando.

Ao ver que, no Pará, não tinha mais o que aprender, Gomes foi estudar contrabaixo com um professor da Universidade de Brasília – UnB –, sempre informalmente e sem diplomas. Em Brasília, além de trabalhar como músico, atuou como militante político. Voltou a Belém no início de 1980. Foi para Castanhal reger um coral. Em seguida, foi para Manaus, onde ficou um período afastado da música. Mudou-se para o Acre, em 1984, onde lecionou música. Criou o Centro Musical Clave de Sol, uma escola que faliu. Havia momentos em que a escola estava lotada com pessoas que não podiam pagar. Por isso, ele tinha que sobreviver consertando e afinando instrumentos musicais. Fez um curso na Esenfelder, em Curitiba. Acompanhava o processo de produção e aprimorava conhecimentos de afinação. Retornou ao Acre e manteve as mesmas atividades por cerca de dez anos, em Rio Branco. Tendo em vista ensinar jovens na Amazônia, Gomes foi fazer um curso de construção de violão na Fundação de Ensino Superior de São João Del Rey (MG), com Roberto Gomes, ex-concertista e destacado luthier.

Gomes se incomodava com o fato de, na Amazônia, uma imensa riqueza conviver com uma pobreza absoluta, o que ele atribuía à ausência de políticas públicas, de Estado e de oferta de oportunidades. Diante das desigualdades sociais e dos desequilíbrios ambientais, ele via uma sociedade urbana muito acomodada e nada solidária. No entanto, conhecia profissionais da música e conseguia emprestados microfones para causas políticas, por exemplo, ações pela libertação de seringueiros sindicalistas presos, representantes de grupos desprovidos da ação distributiva do Estado e acusados de impedir o desenvolvimento.

Voltou a Rio Branco, onde viu adolescentes na rua agredidos pela polícia e interveio para impedir que a violência fosse praticada. Posteriormente, pediu ao juiz autorização para montar um ateliê dentro da chamada Casa de Passagem, uma prisão suja, na qual os agentes permitiam graves agressões entre os reclusos, que tinham como única atividade o culto semanal realizado por um pastor. Os adolescentes reincidiam e retornavam frequentemente à internação. Naquela Casa, Gomes montou o que chamou de primeira etapa da Oela. O trabalho de formação daqueles adolescentes o absorveu tanto que ele não dedicava tempo a serviços remunerados.

Em 1994, mudou-se de Rio Branco para Manaus, visto que a Universidade Estadual do Amazonas buscava um luthier. Considerou também que havia muita madeira sendo desperdiçada na Amazônia e que seria necessária uma estratégia para transformar aqueles recursos em bens com valor agregado que pudessem gerar autonomia econômica para que cada pessoa pudesse "escolher o que fazer de sua vida". Trabalhou ali até 1998 na perspectiva de conceber e oferecer um curso superior de luteria, mas não contou com suficiente mobilização do corpo docente, que teria sobrecarga de trabalho sem receber por isso. Além do mais, um novo reitor assumiu e não apoiou a iniciativa, o que fez com que o grupo inicial se dispersasse.

Naquele momento, surgiram as chamadas galeras em Manaus, gangues de jovens que atemorizavam os bairros periféricos, especialmente o bairro Zumbi. Segundo disse Gomes, "os jovens andavam em gangues, em grupos, eles se mutilavam. Eles usavam terçados, aqueles facões grandes. [...] Aquilo bate, leva perna, leva braço, leva tudo". Gomes decidiu montar um grupo "positivo", mudando sua residência para o bairro Zumbi. A Oela começou a funcionar em sua própria casa quando ele deixou de prestar serviços à universidade. Na aula inaugural, trouxe vários artistas, políticos e a imprensa, estando presentes 40 jovens estudantes da escola municipal contígua.

Na pretensão de constituir um grupo de jovens considerado positivo em comparação com as galeras, Gomes entendeu que precisaria gerar oportunidades. Para isso, enfrentou desafios de contrariar o ambiente comum de um ateliê, normalmente tranquilo, com poucas pessoas e adultos. Ele elaborou um processo de construção de instrumentos por certas partes, módulos que possibilitavam dividir uma turma de 20 jovens em atividades de aprendizagem num ateliê.

Sua esposa auxiliava a Oela nos aspectos administrativos. Ele ensinava jovens e também obtinha recursos vendendo instrumentos que ele mesmo construía. Nessas ações, era auxiliado por dois artesãos que ele formou e, assim, os trabalhos seguiram durante dois anos. Desde então, lida com o fato de que as famílias muito pobres demandam o trabalho dos jovens para compor a renda, criando um dilema para eles quando querem frequentar a Oela.

APRENDIZADO DE MANEJO SUTENTÁVEL

Cerca de metade da população de Boa Vista do Ramos vive em 44 comunidades rurais. A produção agrícola é fraca, os alimentos vêm de fora, inclusive as frutas. Planta-se pouco e com pouca diversificação, há um pouco de caça e a pesca é farta quando os rios baixam. Nos períodos de cheia, há fome. A atividade mais rentável é a extração de madeira.

Segundo uma das líderes da Associação dos Artesãos de Boa Vista do Ramos – AABVR –, em 1999, a ONG Imaflora propôs fazer um plano de manejo comunitário para certificar a madeira extraída e, no ano seguinte, chegou a Oela. Um projeto de produção de pequenos objetos de madeira com incrustações de machetaria resultou num curso de fino acabamento realizado pela Oela, que capacitou artesãos da associação a ensinar outros moveleiros. Foram criados mais nove núcleos nas comunidades e a associação fez muitas parcerias. A AABVR se formalizou em 2000. Contava com recursos da prefeitura para diárias às pessoas que tinham de viajar para participar de feiras e para a construção da sede da associação, que dispõe de secadora solar de madeiras e equipamentos.

Advieram as eleições municipais e o prefeito eleito era um aliado. A Oela apoiou, mas, terminado o processo eleitoral, os grupos externos foram afastados e a luta voltada para políticas locais de desenvolvimento sustentável fracassou. O vice-prefeito foi morto em circunstâncias não esclarecidas e houve a prisão do prefeito e de secretários, acusados de corrupção. Além disso, a partir de 2010, o governo estadual sob Eduardo Braga criou a chamada Zona Franca Verde para dar escala às pequenas experiências como a de Boa Vista do Ramos. Pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, Virgílio Viana,3 3 Docente da Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz" – ESALQ –, da Universidade de São Paulo. esteve à frente daquela iniciativa. Os atrativos governamentais para as associações eram muito maiores que os da aliança inicial entre Oela, Imaflora e Escola Agrotécnica (atual Instituto Federal de Educação – Ifam –, Ciência e Tecnologia do Amazonas). Ele criou uma fundação4 4 Fundação Amazonas Sustentável – FAZ –, criada em 20 de dezembro de 2007, como instituição público-privada, sem fins lucrativos, não governamental e sem vínculos político-partidários, por meio de parceria entre o governo do Amazonas e o Banco Bradesco. Disponível em: < http://www.idis.org.br/acontece/noticias/livro-de-virgilio-viana-propoe-estrategia-de-desenvolvimento-sustentavel-para-a-amazonia>. Acesso em: 7 dez. 2010. que recebeu recursos financeiros estaduais e ficou encarregada de explorar os serviços ambientais por 20 anos, com venda de crédito carbono de todas as unidades de conservação do estado. Conforme declarações de integrantes da Oela, ficaram sem qualquer atenção os planos de manejo das comunidades, que encontram grandes dificuldades de regularização fundiária dos terrenos das associações, necessária para viabilizar os projetos de exploração econômica sustentável. Segundo eles, o que se faz nas unidades de conservação é "construir uma escolinha muito bonita com design altamente sofisticado para tirar fotografias, para dizer que está todo mundo feliz"; e pelo programa estadual Bolsa Floresta distribuem-se 50 reais por família para não desmatar: "um recurso que sequer consegue alimentar as pessoas. E é um recurso que é volátil, ele pode, a qualquer momento, acabar [...] as pessoas querem continuar na floresta, manter a floresta, mas querem ter o direito de se desenvolver".

De sua parte, a Oela fez tentativas de contato com empresas tendo em vista estabelecer parcerias de negócio com as comunidades. As comunidades são detentoras dos recursos, mas não têm experiência com negócios nem de gestão. Há grupos empresariais que buscam construir arranjos produtivos considerados responsáveis; no entanto, tais tentativas não evoluíram e as pessoas que exercem liderança localmente não conseguiram dar novo impulso ao processo.

O diretor executivo da Oela assegura que a prefeitura não dá estímulo para os produtores locais fazerem manejo: "faz compras ilegais, contrata, manda entrar na floresta de qualquer jeito, tira [madeira] de qualquer jeito, não tem licença, não tem nada, é um país sem lei". Um dos líderes comunitários reafirmou a falta de apoio às iniciativas das associações e falou da grande desconfiança que existe em relação aos políticos profissionais dos municípios, que praticam compra de votos em períodos eleitorais e não mostram apoio efetivo quando se tornam governantes.

O trabalho da Oela em Boa Vista do Ramos foi interrompido quando terminou o apoio do Pró-Manejo,5 5 Projeto de Apoio ao Manejo Florestal Sustentável na Amazônia, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama. que financiou condições materiais e capacitação, mantendo uma equipe com engenheiro, dois técnicos, piloto, maquinista e um barco à disposição da comunidade. Quando foi realizada a pesquisa, a AABVR estava desativada. Após a certificação, a associação havia se tornado conhecida também fora do país e recebia encomendas, mas eram encomendas de três mil a dez mil peças por mês e a associação não tinha como manter uma produção dessas dimensões. De todo modo, segundo a líder entrevistada, não há interesse do grupo inicial em reativar a associação porque boa parte dos integrantes foi trabalhar no serviço público ou com movelaria.

Uma especialista em técnica florestal da Oela orienta o manejo, que inclui a organização de associações comunitárias. São feitos planos de manejo que, uma vez aprovados, possibilitam a certificação da madeira extraída. Um dos grandes desafios é a regularização das terras, que são estaduais. Sem a regularização, a extração de madeira implica multas. Fez-se uma solicitação ao governo estadual para trabalhar na terra, mas não é um processo de tramitação simples.

Uma das associações, por exemplo, tem apenas 29 sócios em uma comunidade com 75 famílias. Tanto o cargo de presidente da associação quanto o de presidente da comunidade são ocupados mediante eleição, assim como o de agente de polícia. Um presidente da comunidade a representa junto à prefeitura e à paróquia. A cada dois anos, há eleição. Um ex-presidente da Comunidade Menino Deus do Curuçá costumava ter entre 70 e 90 votos contra 12 ou 13, e exerceu o cargo por pelo menos 26 anos. Organizava festas com música e grandes torneios de futebol, eventos que contavam com a participação de muitas pessoas das outras comunidades. O presidente da Comunidade Sagrada Família do Aninga, eleito pela segunda vez em 2009, já tinha exercido o mandato havia vários anos. Ele acredita que a prática de eleição de presidente se iniciou com as próprias comunidades e disse que a votação ocorre em todas elas. Na sua comunidade, o eleitorado é composto por uma pessoa de cada família.

O trabalho da especialista em técnica florestal estava concentrado em atividades na mata, orientando com a bússola a abertura de picadas com terçados para delimitar os terrenos. São usados equipamentos de proteção individual (capacetes e botas) para evitar acidentes ao fazer o inventário das árvores, com informações sobre o nome da espécie, localização e dimensões. O manejo envolve aspectos social, ambiental e econômico, que precisam ser igualmente contemplados. A maioria dos integrantes da associação lida com madeira e alguns contaram com capacitação para operar motosserra. A especialista também apoiou a regularização da associação. Na Comunidade do Aninga, a associação já contava com quatro planos de manejo elaborados e, com apoio da especialista, tinha em vista elaborar mais 18 (são planos individuais, para terrenos de 100 hectares). A associação também adquiriu um terreno, pagou uma parte com madeira e outra parte com dinheiro, tendo iniciado a construção de um barracão como sede: "a gente tira dia de sexta-feira pra trabalhar pra a associação, ir organizando ela".

Na fundação da Associação Comunitária Agrícola de Extrativismo de Produtos da Floresta – Acaf –, já estavam presentes seus parceiros: Imaflora, Oela e Escola Agrotécnica. Anualmente, estudantes da agrotécnica iam fazer treinamento de campo nas comunidades para aprender sobre inventário florestal comunitário: derrubada direcionada, operação e manutenção de motosserra, processamento de madeira. A Oela foi proponente de pedido de financiamento ao programa Pró-Manejo. A Oela mantinha um escritório em Boa Vista do Ramos e um barco, batizado de Educador, que circulava realizando cursos de agente florestal comunitário, que consistia principalmente em fazer o inventário das árvores, registrando sua localização por GPS e suas características. O curso chegou a capacitar 30 agentes.

Um ex-diretor da Acaf fez um plano de manejo florestal aprovado em maio de 2010. A madeira com a qual trabalha é certificada e concorre com a intensa atividade de extração ilegal. Ele disse que a Acaf já atuava havia cerca de dez anos, contava com 20 sócios e, por meio da associação, conseguiram adquirir equipamentos tais como uma serraria e um barco.

Outro integrante de associação mora há mais de 30 anos na Comunidade Sagrada Família do Aninga. Trabalhou na roça para produzir farinha, mas a profissão que exerce é carpintaria naval, na qual é autodidata. É também operador de motosserra e calafate. Faz parte do conselho fiscal da associação, da qual foi um dos fundadores. Antes, ele era uma das pessoas contrárias à ideia porque trabalhava com madeira e pensou que não poderia mais continuar nessa atividade. Declarou que a Oela esteve com a associação desde sua fundação e ajudou na obtenção de máquinas e de documentos. Um integrante do conselho fiscal da associação disse haver uma riqueza e um potencial muito grande da floresta, que precisa ser cuidada com mais delicadeza e zelo pelo patrimônio. Daí terem fundado a associação, cujo foco primeiro seria o manejo florestal e, em seguida, outras atividades de agricultura e piscicultura. A Oela deu apoio à associação, trouxe pessoas para falar da importância do manejo florestal e ministrou cursos sobre motosserra, manutenção, derrubada direcionada e sobre certificação. Também forneceu equipamento para trabalhar na elaboração dos planos de manejo e a especialista técnica florestal para orientar o trabalho dentro da floresta e ensinar como fazer o inventário, queimadas e cuidados com a floresta.

Trabalhar em grupo foi uma das coisas mais importantes que a líder da AABVR declarou ter aprendido. Ela não saía do centro da cidade e passou a visitar comunidades, fazer mobilização e conscientização de que "se a gente trabalhar de forma ilegal, usar a floresta de forma incorreta, daqui a um tempo, vai acabar".

Um dos fundadores da associação da Comunidade Sagrada Família do Aninga admitiu ter aprendido muito nos anos de experiência com a associação: "todo mundo diz que sabe tudo, mas, afinal de contas, a gente morre e não acaba de aprender". Ele mencionou três treinamentos dos quais participou e considerou muito úteis, sobre como cortar madeira sem prejudicar outras árvores. Outro líder aprendeu como derrubar e torar árvores, fazer o aproveitamento da madeira e serrar de modo direcionado para não danificar a vegetação próxima. Para o vice-presidente da associação, o aprendizado mais importante nos seus três anos de participação foi a necessidade de conservar e muitas técnicas de extrair madeira e trabalhar com motosserra, pois, antes, destruíam a natureza. Com a Oela e o manejo, aprendeu a trabalhar no mato com equipamentos e até a se alimentar bem antes de ir para o trabalho.

TORNAR-SE LUTHIER

Longe da floresta, jovens da cidade ao aprender uma profissão se educavam colaborando com a sua preservação na prática. Nesta parte, descrevo sumariamente três carreiras bem-sucedidas: os de Pepeu, Rita e Páris,6 6 O nome de cada jovem é fictício. embora representem apenas a face eficaz de realização dos propósitos da Oela.

PEPEU

Pepeu tem 26 anos, nasceu em Manaus e viveu no bairro Zumbi desde a idade de 2 anos. Começou na Oela em meados de 2005, participando de um curso de 18 meses. Estava no último ano do ensino médio e havia procurado a instituição antes, mas não encontrou vaga. Queria aprender música e luteria. Soube da existência da Oela por intermédio de um colega, que a havia frequentado. Fez parte de uma turma com sete mulheres e sete homens. Aprendeu manejo, música, rádio e luteria. Tendo se formado na oficina instalada dentro da Escola Agrotécnica, trabalhou lá, num grupo de oito pessoas, na construção de instrumentos, ganhando uma porcentagem de sua venda.

No começo de 2007, começaram a montar uma linha de produção de instrumentos, cerca de vinte por mês. Mas a madeira tinha umidade muito alta, não era apropriada para luteria. Às vezes, os que se formavam e tinham condição de participar autonomamente do mercado saíam porque não havia recursos para manter todos na equipe. Pepeu ficou com os alunos.

Comparando a ONG com as escolas regulares, Pepeu afirmou que a Oela "busca a realidade" e "procura as famílias", procura saber o que o aluno quer e se dispõe a ajudá-lo. Quando os alunos faltam às aulas, entra em contato para saber a razão e faz também visitas domiciliares.

Pepeu não faltava às aulas. Ele se considera perseverante na busca de seus objetivos. Fez cursos no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – Senai – e outros para a confecção de pequenos objetos de madeira. Lutava com dificuldades, pois havia desemprego em sua família e ele tinha que ajudar o pai no trabalho de pedreiro. Fazia pipas para ajudar na renda doméstica. Eram quatro pessoas na família e as dificuldades aumentaram porque seu pai sofreu um enfarte, não pôde mais fazer esforço e não encontrava outras colocações. O irmão teve uma doença infanfil e não podia trabalhar. Pepeu tornou-se arrimo de família.

Planejava montar uma luteria própria e gostaria de fazer curso superior de direito. Nunca fez exame vestibular para universidade públicas e prefere pagar pelo curso porque acredita que há fraude no exame. A Oela já ofereceu reforço escolar e Pepeu acredita que se deveria retomar essa atividade porque "a escola [regular] não faz a parte dela". Para ele, a Oela já faz algo pela escola regular porque exige que os alunos tenham bom desempenho nela.

Em 2008, iniciou na organização da chamada Unidade III da Oela, da qual é encarregado do centro de montagem de instrumentos instalado no Dimpe.

RITA

Rita tem 22 anos, nasceu em Manaus e sempre viveu no bairro Zumbi. É professora da oficina de luteria. Começou na Oela fazendo curso de informática em 2004. Uma amiga que fazia convidou e ela aceitou, aproveitando que o curso era gratuito. Concluído o curso de informática, matriculou-se na luteria. Foi eleita para o grêmio estudantil, onde participou de movimentos como o 18 de maio, dia de combate à violência social infanto-juvenil, teve contato com jovens da Agência Uga-Uga de Comunicação e com a Casa Mamãe Margarida, que trabalha com menores. A Oela fazia visitas e também recebia jovens visitantes daquelas organizações.

Quando fez o curso de luteria, sua turma contava com 14 pessoas com idades de 14 a 18 anos, sete meninas e sete meninos (geralmente são duas ou três meninas em cada turma). Concluído o curso, Rita trabalhou na linha de produção de instrumentos entre 2007 e 2009, no ateliê para o qual foi selecionada, que funciona na Escola Agrotécnica. Em 2010, assumiu como professora de sua primeira turma de luteria, com 28 integrantes. Os matriculados são 60, mas alguns moram longe e, devido ao custo do transporte, fizeram um acordo para comparecer um dia ou dois por semana, de modo que todos os matriculados não estão simultaneamente nas mesmas aulas.

Rita entende que a experiência de lecionar é muito proveitosa porque pode aprender muito com os(as) alunos(as): "todo dia, eu aprendo a ser professora e ensino eles a serem alunos". Sendo muito nova, tem dificuldade de "controlar adolescentes". Embora a turma leve as atividades a sério, ela acredita que precisa aprender a mostrar firmeza, "algumas coisas de professora", tais como o momento certo de falar e de chamar a atenção de um aluno, o que falar, como conversar quando estão com dificuldades em casa: "eu tenho que estudar o que é que eu vou conversar pra poder ajudar, ver qual o problema pra poder ajudar, passar aula pra que ele possa ficar, estudar. Então, isso é uma coisa que eu quero aprender: entender os alunos". Ela quer chamar a atenção de alguns deles para "perceberem mais a luteria" porque, principalmente na turma da manhã, frequentam as aulas por exigência da mãe e não porque querem.

Rita apontou uma diferença entre os corpos docentes da Oela e da escola regular: na primeira, há profissionais capacitados, e na outra "é baixa a qualidade" porque faltam professores e também há docentes com formação para uma disciplina lecionando outra. Ela fez vestibular para entrar na Universidade Federal do Amazonas – Ufam –, mas disse ter havido fraude nos exames. Tentou engenharia florestal e, depois, psicologia. O curso de engenharia requer muitos cálculos e a matemática a assusta. Ela gosta também de comunicação e faz parte de um grupo sobre bandas de música pop, o Dinhets Online,7 7 São fãs da banda Capital Inicial. Disponível em: <dinhetsonlinne.blogspot.com.br>. Consulta em: 27 nov. 2013. que se comunica pela internet com pessoas de sete estados do Brasil.

Dentre os colegas de turma de luteria de Rita, uma passou a trabalhar como secretária no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – Inpa –, outro foi estudar psicologia, e outro ainda se dedicou ao estudo de técnica ambiental. Ela tem contato constante com todos, diz que estão estudando e "dois ou três não estão fazendo nada da vida".

PÁRIS

Páris nasceu em Manaus. Quando eu o entrevistei, tinha 25 anos e estava engajado na organização da nova unidade da Oela instalada no distrito industrial de pequenas empresas. Aos 6 anos de idade, foi morar no bairro Zumbi. Fez o ensino fundamental em uma escola municipal e o nível médio na Escola Agrotécnica de Manaus, onde estudou luteria num curso oferecido em parceria com a Oela. Eram 15 estudantes na turma.

O coordenador do ateliê, professor de luteria, recrutou alguns estudantes como monitores e Páris começou aprendendo diretamente com uma monitora. Quando esta abandonou o posto, Páris a substituiu. Ele começou na Oela em 2001, ao mesmo tempo em que ingressou na Agrotécnica. Pensava que, em duas semanas, aprenderia a fazer um instrumento. Descobriu que levaria de três a quinze anos.

A família enfrentava dificuldades para a manutenção da casa, que se agravariam se ele não trabalhasse. Morava apenas com a mãe e as irmãs, porém os tios também exerciam controle sobre ele, e durante os três anos de curso pressionaram para que trabalhasse. Ele entendia o que se passava no curso, mas não conseguia explicar a sua importância.

Entre 11 e 13 anos, Páris fazia parte de um grupo com cerca de dez amigos que não queriam perder oportunidades que surgissem. Entendiam que, caso se envolvessem com pessoas demais, se tornariam "parte de uma massa". O grupo trocava ideias apenas internamente e se reunia nos fins de semana para conversar, brincar e jogar futebol. Para Páris, esse isolamento do grupo serviu de alguma "proteção" às pessoas que o integravam, assim como o fato de sua mãe ser uma pessoa religiosa e ele se dedicar a um pensamento relacionado com a bíblia. O grupo refletia sobre a vida de jovens que já trabalhavam ou haviam casado, sobre o destino ser desconhecido, podendo alguém se tornar um mendigo ou presidente do país. Atentava ao fato de nem todas as pessoas nascidas pobres se "igualarem na massa", como muitas que se tornaram usuárias de tabaco, álcool e drogas ilegais, mesmo após terem passado a trabalhar, constituído família e terem filhos.

O grupo se reduziu a cinco amigos e Páris procurou alternativas, pedia informações sobre empregos, trabalhou em oficinas, aprendeu a rebobinar motores, a ser marceneiro e a fazer pintura, vendeu lanches. Um de seus colegas fez cursos de mecânica e de policial, foi servir num quartel. Outro também fez curso de mecânica e foi trabalhar em uma empresa do distrito industrial. Outro se tornou ouvidor na Assembleia Legislativa. Todos chegaram a entrar na luteria, mas só Páris continuou. Havia três meninas no grupo, uma das quais era irmã de Páris. Os rapazes falavam também sobre mulheres e receavam engravidar suas parceiras como viam acontecer com colegas: "por pressão, tiveram que estabelecer uma família, trabalhar forçado, sem gostar, e o dinheiro não dá pra nada, tem que sustentar".

Durante um mês, Páris trabalhou vendendo lanches para comprar o material requerido para estudar na Escola Agrotécnica. Logo os conhecimentos técnicos de luteria se somaram à abordagem de temas da Amazônia, do desenvolvimento e do mundo. Havia um dia da semana reservado para tratar desses assuntos, mas a conversa transbordava: "acabava a hora das aulas e a gente ficava".

Quando estava no terceiro ano do nível médio, Páris tinha dificuldade para se concentrar nas aulas porque estava muito envolvido com a luteria: "De vez em quando, me pegavam desenhando um instrumento, fazendo cálculo, riscando alguma coisa relacionada a isso. Aí, me tiravam da aula".

Das oficinas de luteria, dois ou três se tornaram luthiers, outros se tornaram macheteiros e outros se tornaram professores.

Em 2004, ao terminar o curso, Páris havia construído um bom instrumento e foi escolhido para ir a Brasília, numa cerimônia no Palácio da Alvorada, para presentear o presidente Lula com o violão. Naquela ocasião, Páris conheceu Resende,8 8 Carlos Ovídio Duarte Rocha, nascido em Resende (RJ), daí o apelido. Secretário de Florestas do Estado do Acre, que o convidou para ir ao estado e viabilizou a viagem. Mas a mãe de Páris começou a pressioná-lo para arranjar emprego no distrito industrial "de carteira assinada, ganhando 600 reais". Páris não se conformava, considerava-se famoso porque havia falado com o presidente da República. Também passou a integrar uma banda de rock e tocar na noite. Decidiu ir para o Acre montar uma oficina e lecionar luteria e, talvez, montar uma fábrica para o governo estadual.

De 2004 a 2006, Páris trabalhou no núcleo de design do polo industrial do Acre. Saiu para trabalhar em um projeto de formação de jovens em luteria, concebido por ele, em uma ONG, a Rede Acreana de Jovens em Ação – Reaja. Muitos músicos vieram conhecer o curso, abriu-se uma nova turma. Formulou-se outro projeto para um curso de produção de pequenos objetos em madeira, para o qual Páris chamou um de seus antigos amigos que havia aprendido machetaria na Oela: "morava com a mãe, trabalhava no distrito, não tinha tempo, cuidava das duas irmãs pequenininhas e tinha um padrasto que bebia pra caramba. Então, esse moleque sofria demais".

Como a madeira encomendada para o curso de luteria estava com a entrega atrasada, Páris fez buscas na internet sobre desmatamento no Acre pensando na possibilidade de encontrar árvores caídas. Constituiu-se, então, um grupo de sete jovens que tinham aprendido a construir e a ensinar a construir instrumentos e pequenos objetos de madeira. Procuraram por lugares com desmatamento, encontraram muita madeira e foram gravando o percurso em vídeo. Empolgaram-se e decidiram produzir um vídeo, elaboraram um roteiro, colheram depoimentos e editaram a obra. Fizeram o documentário Luteria na Amazônia,9 9 São fãs da banda Capital Inicial. Disponível em: <dinhetsonlinne.blogspot.com.br>. Consulta em: 27 nov. 2013. sobre a substituição da floresta pela pecuária bovina e a venda ilegal de madeira. Registraram o início do projeto, a ideia do vídeo, o processo de desmatamento e o que foi encontrado, quem eram as pessoas que integravam o grupo de jovens, onde moravam, o que pensavam da luteria, que madeira era aquela, como conseguiram fazer parcerias, a produção na oficina, o instrumento pronto. Daí surgiu a Nativoz Luteria da Amazônia, "o primeiro grupo formado em luteria do Acre", que se tornou uma cooperativa e contou com recursos da Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego.

Resende resolveu apoiar o trabalho de Páris na Reaja, que encontrou tempo, condições financeiras e incentivo para se aperfeiçoar. Voltou para Manaus no final de 2009. Páris lançou a ideia de que a Nativoz fosse também um grupo musical de choro quando ninguém do grupo sabia tocar. Aprenderam e o grupo se constituiu com um bandolinista, três violonistas, quatro cavaquinistas e dois pandeiristas.

Segundo Páris, numa escola comum, há apenas um diretor sem apego a alunos, com muitos papéis para preencher e muitas coisas para evitar. Essa pessoa não foi formada para produzir nada que venha a fazer efeito no ambiente. De outra parte, a escola de luteria oferece uma interação muito boa para quem chega, "abre a visão" e traz uma ideia altruísta: "Se você ganhar muito dinheiro, ainda assim, tu pode ser um cara infeliz. Se tu arranjar um bom emprego, tu pode ser um cara infeliz. Agora, se tu for um cara que faz um bem à sociedade, ao redor que tu vive, aí, tu vai ser um cara feliz".

AS ESCOLAS COMUNS

A Oela não se direciona para intervir prioritariamente nas escolas comuns de educação básica, pretende apenas manter um bom relacionamento com elas. Dois agentes responsáveis pela Oela se queixaram da existência de estudantes que frequentam da 5ª à 8ª série do ensino fundamental e não sabem ler e escrever ou não dominam as quatro operações elementares da aritmética. Também observaram que, na escola municipal contígua à Oela, há apenas duas horas de aula por dia, sendo que na sexta-feira não há aula, apenas samba. Julgam que alguns docentes não conseguem "dominar a sala de aula" e preferem fazer recreação. Como crianças e jovens teriam uma "agressividade muito grande" e muitos(as) professores(as) não estariam preparados(as) para isso, não conseguiriam ficar na escola regular, por isso haveria falta de docentes.

Também há queixas da dificuldade de encontrar a diretora e a coordenadora pedagógica da escola municipal vizinha. A caixa d'água daquela escola vaza permanentemente, foram feitas denúncias a respeito e a própria Oela trocou três vezes a boia da caixa d'água, mas a escola é considerada "uma escola sem dono".

Apesar da falta de comunicação com a escola contígua, a Oela mantém parceria com seis escolas municipais e duas estaduais, todas na zona leste de Manaus. Realizou uma reunião com coordenadores pedagógicos e diretores para mostrar uma ONG voltada a um projeto socioambiental que trabalha com estudantes daquelas escolas: "Lotou o nosso auditório. A Oela é muito conhecida, está sempre na Globo, o negócio do Criança Esperança, o príncipe veio aqui".10 10 Príncipe Charles Philip Arthur George, do Reino Unido, herdeiro do trono, visitou a Oela em 2009. Naquela ocasião, propôs-se parceria com as escolas, que foi encaminhada oficialmente e formalizada. Desde 2006, mensalmente, é feita uma visita a cada escola para exibir filmes, realizar oficinas de edição de jornal impresso e mural e falar sobre participação nas políticas públicas. Estima-se que 40% das pessoas que integram os corpos docentes das escolas se mobilizam para aquela atuação e trocam experiências. As pessoas da Oela participam das reuniões pedagógicas semestrais das escolas, nas quais, conjuntamente com docentes, faz-se o cronograma das atividades. Também conversam com docentes nos momentos em que são feitas as oficinas nas escolas.

A Oela pretende envolver os pais de alunos(as), mas com dificuldade porque reconhecidamente os pais também não comparecem à escola regular. A ideia que adotaram foi aproveitar um programa do Serviço Social do Comércio – Sesc – que opera a distribuição de produtos agrícolas de propriedades familiares. Organizações se credenciam junto ao Sesc para receber e distribuir os produtos e, assim, a Oela também se credenciou, tendo em vista uma aproximação com os pais.

LÍDERES, AGENTES E EQUIPES

A equipe de profissionais da Oela se modificou muito ao longo de seus 12 anos de atuação. A coordenadora de projetos explica essa rotatividade pelo fato de organizações não governamentais serem um tema novo, que os cursos superiores praticamente não abordam. O trabalho nessa área é também exigente, requer sensibilidade, gostar "de trabalhar com pobre" e ir às suas casas. A localização distante do centro e os níveis de remuneração também não favorecem a estabilidade da equipe da Oela. Suas áreas de atuação não são estanques e requerem envolvimento em todas. Além disso, docentes da Oela precisam elaborar seus projetos de modo coordenado, orçar e fazer relatório de prestação de contas para financiadores.

Na coordenação financeira, uma mesma pessoa está há cerca de três anos. Mas há um posto de coordenação pedagógica para o qual não foi encontrada uma pessoa adequada, com responsabilidade profissional, iniciativa e disposição para trabalhar em equipe.

A especialista em técnica florestal tem 30 anos de idade, formou-se na Escola Agrotécnica Federal de Manaus em 2005 e trabalhava havia apenas dois anos pela Oela na Associação Comunitária Agrícola de Extrativismo do Aninga – Acaea –, da Comunidade Sagrada Família do Aninga, onde ela mora, em Boa Vista do Ramos. Antes disso, trabalhou apenas em um conjunto de municípios fazendo levantamento da produção de açaí.

A coordenadora de projetos estava na Oela havia cinco anos e exercia a coordenação há três. Tem 28 anos, nasceu em Alagoas e se formou em psicologia no ano anterior à sua entrada na Oela. Fez especialização em psicologia comunitária e pós-graduação em psicologia jurídica. Lecionou psicologia em cursos profissionalizantes e logo foi contratada pela Oela. Por dois anos, permaneceu nas duas atividades.

O coordenador do ateliê, com 63 anos, nasceu em Cuba. Foi morar e estudar em Havana, onde completou o ensino médio. Começou a trabalhar com 15 anos, em 1962, no que começava a ser a Fábrica de Instrumentos Musicais, uma pequena oficina. Trabalhou lá até 2001, quando veio para o Brasil. A fábrica fazia somente violões e, bem depois, passou a fazer também instrumentos de percussão. Ele não estudou nem se formou em música. Não havia escola de luteria em Cuba e ele fez apenas alguns cursos quando Che Guevara se tornou ministro da indústria e instalou uma escola para operários. Também não estudou magistério e se define apenas como luthier. Foi enviado para a Nicarágua em 1980, para ajudar a instalar uma fábrica de instrumentos musicais. Retornou a Cuba em 1985, sendo destinado a uma escola profissionalizante, na qual havia uma fábrica. Entre 1989 e 1991, esteve em Maputo, Moçambique, participando da montagem de uma indústria de instrumentos musicais. Em 1995, o Estado cubano decidiu que ele não deveria retornar à fábrica e arranjou um ateliê somente para ele, para construir instrumentos por encomenda, para a premiação do festival internacional de violão, que é realizado em Cuba a cada dois anos.

Em 1996, atarefado com a produção dos violões para o festival, o Ministério da Cultura quis que recebesse um luthier brasileiro. Era Rubens Gomes, que queria tirar meninos da rua e isso o encantou. Em 2001, chegou a Manaus para colaborar no projeto ensinando luteria.

CONCLUSÃO

Muitas ONGs se propõem a fornecer alternativas para crianças e adolescentes de camadas populares por meio de formação profissional. Não há dados sistemáticos disponíveis, mas são muitos os indícios de que é raro tratar-se de uma formação profissional de alta qualificação e de que mais rara ainda é a combinação desse tipo de propósito com o envolvimento no amplo terreno das políticas sociais que poderiam alterar substancialmente e em escala abrangente as condições de vida daquelas crianças e adolescentes.11 11 De outubro de 2009 a fevereiro de 2010, Silva (2010) identificou 234 ONGs conveniadas à Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo – SEADS – na cidade de São Paulo. A mesma pesquisa apontou que, entre 1996 e 2005, o número de fundações privadas e associações sem fins lucrativos no Brasil cresceu 215,1%, enquanto a média de crescimento de todas as entidades públicas e privadas foi de 74,8%. Somente no município de São Paulo, Bellizia (2011) encontrou 114 ONGs oferecendo formação profissional a jovens de baixa renda. Igualmente incomum é articular tal formação profissional com atuação em políticas e com educação ambiental, estabelecendo conexões deliberadas entre o trabalho com jovens na cidade e com integrantes de comunidades da floresta. A Oela se mostra um caso de inovação educacional exatamente porque realiza essas práticas, ou seja, diferencia-se das práticas que se costuma encontrar junto àqueles mesmos grupos. Aliás, um diferencial importante está no fato de sua educação ambiental ser também uma intervenção prática.

Este artigo não focaliza as relações entre fatores geradores de inovação e as práticas inovadoras da organização. Em vez disso, prioriza descrever a atuação da Oela e a trajetória de seus integrantes porque são aspectos decisivos para o exame da hipótese na qual a pesquisa se concentrou. As informações colhidas para o estudo do caso da Oela abordaram tanto os seus objetivos quanto suas formas de realização. Referem-se também ao tempo de experiência profissional dos(as) agentes educadores(as), à estabilidade da equipe, à qualificação e atuação mobilizadora de líderes. Esses são fatores salientes que a hipótese adotada pela pesquisa supôs estarem presentes na gênese da iniciativa de inovação, presença que as evidências apresentadas na descrição comprovam. O tempo de experiência profissional assume importância na medida em que ser muito ou pouco experiente pode implicar disposição favorável a inovar. Por seus vínculos frágeis com o que já vinha sendo feito, iniciantes podem lançar-se a outros modos de trabalho. Por sua vez, profissionais mais experientes podem mostrar menos receio de criticar procedimentos arraigados e de fazer tentativas novas de atuação.

A estabilidade da equipe também abre duas possibilidades. Uma baixa rotatividade favorece processos de entendimento e de constituição de consensos necessários para tornar efetiva a decisão de fazer experimentações. De outra parte, menor estabilidade dilui compromissos grupais, reduzindo entraves para expressões individuais ou de subgrupos se orientarem por praticar algo diferente.

O nível de qualificação profissional de quem exerce liderança também pode fornecer saberes com os quais se relativize o andamento regular das práticas educacionais. Finalmente, a atuação mobilizadora de tais líderes pode empolgar a equipe de educadores(as) ou mesmo induzi-la, pressionando-a a participar de iniciativas inovadoras.

Em seu conjunto, a experiência profissional dos(as) agentes da Oela é muito desigual. E composta por pessoas de muito longa experiência e por outras que, ao contrário, têm no máximo cinco anos de atuação profissional. Quanto à equipe da organização, as modificações pelas quais passou caracterizam-na pela instabilidade. No entanto, os(as) principais líderes (Rubens Gomes e a coordenadora de projetos) se orientam pelo traço definidor da ONG, que é a mobilização por direitos. São líderes que também possuem alta qualificação especializada ou elevada escolaridade. Pode-se dizer, portanto, que a hipótese levantada se confirmou apenas parcialmente, já que metade daqueles fatores de inovação são salientes no caso da Oela.

Não obstante, esses fatores estão todos presentes somente 12 anos após o surgimento da experiência inovadora, uma vez que esta teve início durante a própria constituição da organização, quando não se podia falar exatamente de uma equipe e a ONG se assentava na trajetória pessoal de seu idealizador.

Recebido em: FEVEREIRO 2012

Aprovado para publicação em: NOVEMBRO 2013

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  • 7
    São fãs da banda Capital Inicial. Disponível em: <dinhetsonlinne.blogspot.com.br>. Consulta em: 27 nov. 2013.
  • 8
    Carlos Ovídio Duarte Rocha, nascido em Resende (RJ), daí o apelido.
  • 9
    São fãs da banda Capital Inicial. Disponível em: <dinhetsonlinne.blogspot.com.br>. Consulta em: 27 nov. 2013.
  • 10
    Príncipe Charles Philip Arthur George, do Reino Unido, herdeiro do trono, visitou a Oela em 2009.
  • 11
    De outubro de 2009 a fevereiro de 2010, Silva (2010) identificou 234 ONGs conveniadas à Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo – SEADS – na cidade de São Paulo. A mesma pesquisa apontou que, entre 1996 e 2005, o número de fundações privadas e associações sem fins lucrativos no Brasil cresceu 215,1%, enquanto a média de crescimento de todas as entidades públicas e privadas foi de 74,8%. Somente no município de São Paulo, Bellizia (2011) encontrou 114 ONGs oferecendo formação profissional a jovens de baixa renda.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Mar 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      Fev 2012
    • Aceito
      Nov 2013
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