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Cuidado paliativo renal e a pandemia de Covid-19

RESUMO

Introdução

O cuidado paliativo é uma abordagem voltada para alívio do sofrimento, controle de sintomas e melhora da qualidade de vida. Deve ser oferecido em conjunto com o tratamento padrão de qualquer doença que ameace a continuidade da vida, como, por exemplo, a infecção pela Covid-19.

Discussão

Os princípios bioéticos e as estratégias utilizadas pela medicina paliativa podem auxiliar os nefrologistas no cuidado dos pacientes com disfunção renal, que, além de serem do grupo de risco para evolução mais grave da infecção por coronavírus, enfrentam as dificuldades do isolamento no seguimento do tratamento dialítico e ambulatorial. Essas ferramentas são: I) tomada de decisão compartilhada, que proporciona a participação do paciente e dos familiares como facilitadores na sistematização do raciocínio da equipe, além de respeitar o princípio da autonomia; II) manejo de sintomas, que deve ser prioridade para a garantia do alívio do sofrimento mesmo em momento de isolamento social; III) habilidades em comunicação, sendo possível amenizar dificuldades em anunciar más notícias ou decisões complexas através de técnicas de comunicação; IV) assistência ao luto, em que, em situações agudas como a pandemia, de perdas inesperadas, a importância do acolhimento dos profissionais de saúde torna-se ainda maior.

Conclusão

Os princípios dos cuidados paliativos são essenciais para enfrentar os desafios de uma crise humanitária, que causa sofrimento ao ser humano em todas as dimensões e exige a construção de estratégias que possam manter os pacientes assistidos, confortáveis e com medidas proporcionais à sua condição clínica e às suas preferências.

Cuidado Paliativo; Conforto do Paciente; Infecções por Coronavirus; Covid-19

ABSTRACT

Introduction

Palliative care is an approach aimed at relieving suffering, controlling symptoms and seeking to improve quality of life. It must be offered in conjunction with standard treatment for any disease that threatens the continuation of life, such as a Covid-19 infection.

Discussion

The bioethical principles and strategies used by palliative medicine can assist nephrologists in the care of patients with renal dysfunction, who face the difficulties of isolation at the beginning and follow-up of dialysis in outpatient treatment, and those who are at risk for a more serious disease progress. Some of them: - a Shared decision making, which enables the patient and family to participate as facilitators in the systematization of the team’s reasoning, in addition to respecting the principle of autonomy; - Symptom Management: which should be a priority to ensure relief of suffering even in times of social isolation; - Communication skills: making it possible to alleviate suffering in announcing bad news or complex decisions through communication techniques;; - Bereavement assistance: which in acute situations such as the pandemic, causing unexpected losses, the importance of sympathy from healthcare professionals becomes even greater.

Conclusion

The principles of palliative care are essential to face the challenges of a planet-wide crisis, which raises human suffering in all dimensions, and which requires the construction of strategies that can keep patients assisted, comfortable and with measures proportional to their clinical condition and preferences.

Palliative Care; Patient Comfort; Coronavirus Infections; Covid-19

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o papel do cuidado paliativo é fundamental no enfrentamento de crises humanitárias. Essas crises são definidas por eventos de grande escala que afetam populações ou sociedades, causando uma variedade de consequências difíceis e angustiantes, que podem incluir perda maciça de vidas, interrupção dos meios de sobrevivência, colapso da sociedade, deslocamento forçado e outros fatores políticos, econômicos, sociais, efeitos psicológicos e espirituais, como, por exemplo: as pandemias, os desastres naturais e as guerras civis11. World Health Organization. Integrating palliative care and sympton relief into the response to humanitarian emergencies and crises [2018]. Acessado em 18 de maio de 2020. Disponível em https://www.who.int/publications-detail/integrating-palliative-care-and-symptom-relief-into-the-response-to-humanitarian-emergencies-and-crises .
https://www.who.int/publications-detail/...
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Mas como podemos explicar o elo entre cuidado paliativo e uma pandemia, situação de caráter agudo e inesperado?

O cuidado paliativo é uma abordagem voltada para alívio do sofrimento, controle de sintomas e melhora da qualidade de vida, e deve ser oferecido em conjunto com o tratamento padrão de qualquer doença que ameace a continuidade da vida. Em época de pandemia de Covid-19, apesar de o objetivo maior do cuidado ser salvar vidas, ele não é o único. Nem todas as vidas poderão ser salvas, e mesmo as salvas passarão por um processo de grande sofrimento, seja no âmbito físico, com o surgimento de sintomas que precisam ser controlados, seja no âmbito social (suporte familiar, condições de isolamento, acesso às medidas de higiene) e emocional, expresso por medo, ansiedade e tristeza, tanto dos pacientes quanto de membros da família e da equipe assistente22. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Manual de Cuidados Paliativos ANCP: Ampliado e atualizado. Organização: Ricardo Tavares de Carvalho, Henrique Afonseca Parsons. São Paulo: ANCP. 2012:1-592..

Nesse contexto de calamidade pública, em que as regras se mostram diferentes, em que o colapso do sistema de saúde é um risco real, em que frequentemente encontramos profissionais de saúde exaustos física e emocionalmente, e em que a presença tão importante dos familiares não é recomendada, o conhecimento dos cuidados paliativos pode contribuir muito com a assistência na pandemia de Covid-19. Os profissionais que estão na linha de frente poderão enfrentar situações inéditas, que exigirão habilidades e conhecimento técnico, comuns aos paliativistas que lidam rotineiramente com o enfrentamento do sofrimento humano. Algumas ferramentas de cuidados paliativos tornam-se bastante relevantes também para o nefrologista nesse momento de crise:

  • Tomada de decisão compartilhada: A tomada de decisão, apesar de tratar-se de questão técnica e, portanto, relativa à equipe assistente, pode ser aperfeiçoada e inclusive facilitada quando conhecemos os valores, as informações prévias da saúde, o suporte social e os desejos do paciente em uma decisão compartilhada (equipe, paciente e família). Esse é um exemplo de boa prática médica em situações complexas, e um dos pilares do cuidado paliativo. A limitação de suporte avançado de vida, incluindo aqui a não realização de terapia substitutiva renal, exige sistematização do raciocínio clínico, e deve levar em consideração uma série de fatores. Na tentativa de seguir o princípio da bioética da nãomaleficiência, é recomendado ao nefrologista realizar uma avaliação criteriosa dos reais benefícios em oferecer diálise a pacientes com outras doenças crônicas em progressão e sem resposta ao tratamento padrão já instituído; a pacientes com idade muito avançada (mas não como fator isolado); a pacientes frágeis e totalmente dependentes; a portadores de déficit cognitivo prévio e sem suporte social. Assim, é importante estar atento ao fato de que muitos pacientes que venham a adquirir a infecção por coronavírus podem já ser portadores de tais condições, e por isso, independentemente de uma situação aguda como a da Covid-19, não se beneficiariam do tratamento intensivo com medidas mais invasivas se o quadro clínico exigisse. Transferência para unidade de terapia intensiva, intubação orotraqueal, diálise, reanimação cardiorrespiratória, entre outros, podem se tornar procedimentos desproporcionais à condição de saúde de alguns pacientes, corroborando em futilidade terapêutica.

  • Manejo de sintomas: Pacientes que já estão recebendo cuidados paliativos renais não devem deixar de ser reavaliados de forma periódica, principalmente no caso daqueles em que foi optado pela não realização de terapia dialítica e dos que estão em rápida progressão da doença de base. A piora dos sintomas urêmicos é esperada com o decorrer do tempo e com a evolução da doença renal, tornando o manejo dos sintomas prioridade para a garantia do alívio do sofrimento. Por serem uma população de alto risco, é possível evitar deslocamentos e exposição em consultas presenciais e optar pela teleconsulta. O alívio do sofrimento humano passa pelo domínio de técnicas e de conhecimento específico para o controle de sintomas em qualquer fase da doença, inclusive e sobretudo no caso de pacientes que evoluem inevitavelmente para o fim da vida.

  • Habilidades em comunicação: Muitos conflitos relacionados à morte, à piora clínica ou à viabilidade de determinados tratamentos, como a diálise, podem ser amenizados por meio de técnicas de comunicação que garantam clareza da informação, escuta, acolhimento, respeito à emoção e à capacidade cognitiva de cada um. É preciso ter cuidado ao comunicar más notícias, e por isso devemos nos preparar, com ambiente adequado, tempo e planejamento da abordagem, sempre respeitando as emoções de cada um, inclusive do desejo de ser ou não informado de certos aspectos da doença.

  • Assistência ao luto: Em situações agudas como a de pandemia, o risco de perdas inesperadas é maior. Um familiar que leva seu ente querido para o hospital em um dia, e nunca mais o vê presencialmente, e em outro dia recebe a notícia da morte, sem ter acompanhado o processo de adoecimento e sem ao menos poder participar de um funeral ou de uma despedida, tem maior dificuldade de elaborar a perda. Nessas situações, o risco de um luto complicado é alto, por isso o acolhimento dos profissionais de saúde torna-se fundamental e deve ser mantido no seguimento e cuidado desses familiares22. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Manual de Cuidados Paliativos ANCP: Ampliado e atualizado. Organização: Ricardo Tavares de Carvalho, Henrique Afonseca Parsons. São Paulo: ANCP. 2012:1-592. , 33. Ballentine JM. The Role of Palliative Care in a Covid-19 Pandemic. Disponível em: https://csupalliativecare.org/palliative-care-and-covid-19/ . Acessado em 19 de maio de 2020.
    https://csupalliativecare.org/palliative...
    , 44. Minnesota Department of Health Emergency Preparedness and Response. Disponível em https://www.health.state.mn.us/communities/ep/surge/crisis/index.html . Acessado em 19 de maio de 2020.
    https://www.health.state.mn.us/communiti...
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Para viabilizar o melhor cuidado durante o isolamento social, o nefrologista pode utilizar a telemedicina, que foi oportunamente autorizada pelo Conselho Federal de Medicina, e não suspender as reuniões familiares para tratar dos mais diversos assuntos, como tomadas de decisão compartilhada, fornecer informações sobre o quadro clínico evolutivo do paciente, prestar assistência ao luto. Nesse momento, o abraço e a expressão do toque devem ser substituídos por um telefonema ou uma videoconferência, e não pelo silêncio da falta de informação, que pode ser interpretado erroneamente pelo abandono do cuidado55. Conselho Federal de Medicina. Ofício CFM 1756/2020. Disponível em http://portal.cfm.org.br/images/PDF/2020_oficio_telemedicina.pdf . Acessado em 20 de maio de 2020.
http://portal.cfm.org.br/images/PDF/2020...
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Na nefrologia, também vivemos um cenário inédito no cuidado dos pacientes nefropatas. Apesar da recomendação universal do isolamento social, para os pacientes dialíticos (especificamente, para os que fazem hemodiálise – 93%) essa não é uma realidade. Eles não podem ficar em casa, pois dependem de um tratamento para se manterem vivos, e o medo e o risco de exposição aumentam, tanto da equipe quanto do paciente. As clínicas de hemodiálise necessitam de readequações para esse novo tempo, o que exige maior alocação de recursos financeiros, insuficientes até o momento. Todas essas novas dificuldades podem gerar fragilidade física e emocional para a equipe assistente e para os pacientes dialíticos, que precisam ser valorizados e cuidados, a fim de evitar o colapso das clínicas de diálise.

Os princípios dos cuidados paliativos são essenciais para enfrentarmos os desafios de uma crise humanitária, que causa sofrimento ao ser humano em todas as dimensões. O compromisso humanitário lança o olhar não apenas para as necessidades da pessoa como indivíduo, mas para o contexto em que ela vive, elaborando recursos que assegurem direitos humanos básicos, como a dignidade. Em uma época de pandemia, devemos entender que é nosso papel lutar para salvar vidas, porém, não menos importante do que isso, é nosso papel também aliviar o sofrimento dos pacientes, dos familiares e da equipe que cuida.

REFERENCES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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