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Trinta anos de não-alinhados

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Trinta anos de não-alinhados

Jayme Brener

Sociólogo e redator de Exterior da Folha de São Paulo

"Eu proponho o fim do Movimento dos Países Não-Alinhados, que já não tem qualquer finalidade prática."

A frase soa ainda mais estranha quando se sabe que foi pronunciada pelo coronel Gadafi, chefe de Estado libio, na 8.ª Conferência dos Não-Alinhados, que reuniu no início de setembro em Harare, Zimbábue, nada menos que 105 países (a ONU tem 159 membros). Alguns poderiam objetar que Gadafi está mais para divã de psiquiatra que para encontros internacionais, porém, observando os resultados da Conferência, algumas contradições saltam aos olhos.

Os dois pontos centrais discutidos em Harare foram o repúdio ao regime racista da África do Sul e a adoção de medidas visando reduzir os efeitos da dívida externa do Terceiro Mundo. No entanto, 2/3 dos países da África, a maioria dos quais "Não-Alinhados", mantêm relações comerciais com Pretória e vários deles dependem da infra-estrutura do paraíso dos Botha. Lesoto e Suazilândia ficam DENTRO da África do Sul e capitalistas daquele país possuem 90% das minas de Zimbábue. Até a cerveja que foi bebida em Harare era a famosa "Castle", fabricada em Johannesburgo...

No plano econômico, foi rejeitada em Harare a proposta de Fidel Castro, que previa a formação de um "cartel de devedores", para negociar com os organismos internacionais melhores condições no pagamento da dívida dos países subdesenvolvidos. Isso quando algumas economias (como a peruana) estão virtualmente paralisadas, e com a dívida do Terceiro Mundo saltando de US$ 373 bilhões em 1977 para US$ 950 bilhões em 1985.

Assim, uma conferência que reúne 2/3 dos países do mundo não deixou praticamente nenhum saldo. É preciso recuperar um pouco da história do Movimento dos Não-Alinhados.

A formação do movimento

O Movimento dos Não-Alinhados remonta ao final da Segunda Grande Guerra, quando as conferências de Ialta e Potsdam teriam loteado o mundo em duas grandes áreas de influência, dos Estados Unidos e da URSS, ao mesmo tempo em que ruíam os impérios coloniais da França e Grã-Bretanha. O movimento surgirá sob o impacto de distintos fatores: a revolução nacionalista nas antigas colônias, incapaz de ser detida pelas metrópoles européias, e a "guerra fria", com a ameaça permanente do "conflito final" entre Estados Unidos e URSS; ao que se acrescenta a reativação do fluxo de investimentos externos (principalmente norte-americanos) em direção aos países subdesenvolvidos.

Com relação a este item, observe-se que entre a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, a queda nas importações de manufaturados e bens de capital, ao lado do aumento nos preços e volumes das exportações de matérias-primas, levaram à formação de estruturas industriais "independentes", base de vários regimes nacionalistas em países subdesenvolvidos. Logo, uma nova fase de expansão capitalista — agora dirigida pelos Estados Unidos, nova potência hegemônica — só seria possível pela reversão dessa tendência. A década de 50 oferece vários exemplos militares desse dilema econômico, como o ataque dos Estados Unidos à Guatemala, depondo o nacionalista Jacobo Arbenz (1954), ou a ação anglo-franco-israelense no Egito de Nasser (1956).

Reúnem-se então em Bandung, Indonésia (1955), vinte e nove países da Ásia e África. Seu objetivo, impedir que a "guerra fria esquente" na região (o que já havia ocorrido, com o confronto entre Estados Unidos e China na guerra da Coréia) e apoiar as lutas anticoloniais, na perspectiva de criar uma "terceira posição", equidistante das duas superpotências . No seu berço, o Movimento dos Não-Alinhados já vivia graves contradições, uma vez que entre seus fundadores figuravam regimes tão heterogêneos como a Turquia, membro da OTAN, e a China, então bem próxima à URSS, além, é claro, da Índia de Pandit Nehru, bastião mais sólido da "equidistancia", até por razões geográficas. Restava saber se tais contradições eram maiores do que os pontos em comum, a rigor, o subdesenvolvimento.

Mudanças

O Movimento cresce, numericamente. Na 1ª Conferência, em Belgrado (1961), são vinte e seis países preocupados com a crise dos mísseis em Cuba e a guerra atômica. Já na 2ª Conferência, no Cairo (1964), são quarenta e sete países, reforçados pela independência de inúmeras ex-colônias africanas. Na liderança do Movimento dos Não-Alinhados, os nacionalistas Nehru e Nasser, além de Tito, da Iugoslávia, socialista dissidente.

No entanto, só encontraremos um esboço de ação concreta dos Não-Alinhados na 4ª Conferência, realizada em Argel (1973). O momento era de efervescência. A guerra do Vietnã definia-se contra os Estados Unidos, as ditaduras de Franco e Caetano suspiravam por dias passados e a luta pela independência impregnava as colônias portuguesas da África.

Desenhava-se então a única tentativa real de alguns países subdesenvolvidos em usar sua pressão conjunta contra as potências capitalistas. Meses após a Conferência, a OPEP elevaria o preço do petróleo, no bojo da guerra do Yom Kippur. Depois do primeiro impacto, a ação da OPEP é absorvida pelas grandes multinacionais do petróleo, que controlam economias de vários países do Terceiro Mundo.

Alguns países, como a Venezuela e o Irã, tentarão industrializar-se, mas o farão através de uma maior entrada de capital estrangeiro ou comprando tecnologia de segunda mão. Os preços do petróleo baixaram mas os lucros retornaram calmamente aos países capitalistas desenvolvidos. Daí para diante seriam frustradas todas as tentativas de formação de "cartéis do Terceiro Mundo" para controlar o fornecimento de matérias-primas.

Havana -1979

O aparente afastamento da ameaça de guerra nuclear imediata e o fracasso da formação de um "lobby do Terceiro Mundo" levam à mudança no eixo de atuação do Movimento dos Não-Alinhados. Tratava-se agora de buscar melhores condições para os países subdesenvolvidos nas relações econômicas com as potências centrais. A 6.ª Conferência dos Não-Alinhados será realizada em Cuba, quando a crise do capitalismo cresce, e também a tentativa dos países desenvolvidos em repassá-la para sua "periferia". Os juros sobre a dívida externa são elevados unilateralmente e as taxas protecionistas geram crises intermináveis na exportação de matérias-primas. O contexto favorável a uma ação antiimperialista, com a vitória da Frente Sandinista na Nicarágua e a queda do xá do Irã, levam Fidel Castro a propor que o Movimento aproxime-se do bloco socialista, "que não mantém relações de exploração econômica entre seus membros". A proposta é rejeitada pelo Movimento.

Conclusões

Embora as conferências dos Não-Alinhados sejam um fórum diplomático importante para numerosas organizações de libertação, como a OLP, o ANC ou a SWAPO, da Namíbia, afastadas da política oficial, o Movimento não conseguiu tomar medidas efetivas, seja no campo político, seja no campo econômico, e a razão para tanto parece ser sua heterogeneidade congênita. É impossível soldar uma "aliança antiimperialista" entre Cuba e a Arábia Saudita, o que leva a crer que, malgrado todo o respeitável não-alinhamento de Tito e Nehru, não existe meio caminho entre capitalismo e socialismo, sejam quais forem seus matizes. De outra parte, a relação de dependência do Terceiro Mundo para com as grandes potências tem demonstrado ser inquebrável no seio do capitalismo.

De fato, os Não-Alinhados jamais conseguiram articular plenamente sua intervenção na ONU, quanto mais mediar conflitos entre seus membros, como a guerra Irã-Iraque. Mas a melancolia transforma-se rapidamente em tragédia, quando vemos alguns participantes do Movimento dos Não-Alinhados compondo a "força de paz" dos Estados Unidos na invasão a Granada, em 1984, ou o governo "socialista" do Afeganistão "não-alinhado" chamar tropas da URSS para livrar-se da guerrilha.

Afinal, fica também complicado unificar contra países desenvolvidos todo o espectro de classes de uma sociedade dependente. É possível imaginar, por exemplo, "a união de todos os brasileiros" frente a uma improvável oposição do presidente Sarney às diretrizes do FMI; dos camponeses sem terra, que vêem a reforma agrária cada vez mais distante, aos pecuaristas, hoje caprichando a "maquiagem" de seus rebanhos?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1987
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