RESENHAS
Entre as aporias do tempo e a polifonia da cidade
Charles Monteiro
ECKERT, Cornelia & ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. O tempo e a cidade. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2005. 196 páginas.
No livro O tempo e a cidade as antropólogas Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert apresentam uma síntese do longo trabalho de pesquisa que ambas vêm desenvolvendo no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS no campo da antropologia visual (Navisual Núcleo de Antropologia Visual) e na constituição de um banco de imagens ou museu virtual da cidade (Biev Banco de Imagens e Efeitos Visuais).
Após uma afetiva abertura intelectual de Ruben Oliven, o livro está dividido em oito capítulos que podem ser lidos como ensaios autônomos, embora apresentem grande unidade ao problematizar os dilemas apresentados ao olhar do antropólogo e suas possibilidades de construir uma narrativa que dê conta de interpretar a complexidade da sociedade urbana brasileira contemporânea em sua pluralidade, polifonia e múltiplas temporalidades imbricadas em seu fazer social cotidiano.
Em "A retórica de um mito: Brasil, um país sem memória", o livro inicia com uma discussão teórica sobre o problema da temporalidade da sociedade brasileira e a necessidade de pensar a experiência da ruína, problematizando o discurso da modernidade e compreendendo as particularidades da experiência da sociedade brasileira no tempo com um dilema. Pensar experiência da memória da sociedade brasileira é pensar a experiência de um tempo caótico, com as ruínas da modernidade, e trabalhar com esse dilema teórico aliado a um trabalho etnográfico que aborde as artes do fazer cotidiano em suas múltiplas camadas temporais e suas tensões.
No capítulo "O antropólogo na figura do narrador", as autoras discutem a morte do narrador tradicional e a necessidade de o antropólogo tornar-se um novo tipo de narrador que pratique as artes de ouvir na busca de recuperar a riqueza das experiências e das artes de dizer do outro no cotidiano das grandes metrópoles.
Em "Elipses temporais e o inesperado, etnografando a cidade", as autoras confrontam a discussão teórica e metodológica dos dois capítulos anteriores com a pesquisa etnográfica que vem se realizando no Navisual junto aos alunos do PPGAS da UFRGS. Trata-se de uma síntese de pesquisas de campo sobre a experiência da violência, do medo, da insegurança e das ruínas do tempo no espaço urbano, que originaram vídeos etnográficos (alguns deles premiados em festivais nacionais).
Já no capítulo "A cidade como objeto temporal", propõe-se uma crítica a uma perspectiva linear e evolutiva para interpretar a trajetória da sociedade brasileira urbana no tempo, apontando a necessidade de se discutir a multiplicidade de experiências sociais envolvidas no fenômeno da construção-destruição dos espaços urbanos que produzem uma estética peculiar do espaço urbano visto como caos. A experiência da diversidade e da coexistência de diversos tempos no espaço urbano (de durações), como produto dinâmico de uma prática de destruição e reconstrução nas periferias das cidades brasileiras, aponta para uma vontade de estar junto e para o vitalismo da vida coletiva contra os discursos ordenadores e disciplinadores da modernidade e de planificação da experiência coletiva do urbanismo moderno.
Em "Nos jogos da memória, as curvaturas do tempo", as autoras revisam a discussão fundamental sobre tempo e memória, com base em autores clássicos como Bergson, Benjamin, Proust, Halbwachs e Gilbert Durand, no sentido de superar a discussão sobre um tempo perdido e uma memória reencontrada em direção à compreensão de que a memória "é a consolidação de um tempo ondulante e lacunar, fenômeno complexo e profundo que recria, por sua vez, uma hierarquia na essência do ser e que não pode ser reduzida à pura intuição do tempo [ ]" (p. 108).
A problematização do método etnográfico e do lugar do antropólogo em sua interação com o outro é o tema do capítulo "A interioridade da experiência temporal como condição da produção etnográfica". O objetivo das autoras nesse capítulo é discutir o método etnográfico em relação ao tema da identidade narrativa do antropólogo e o problema de sua identidade pessoal na direção de uma ética da ação. Para tanto, realizam uma discussão das diferentes perspectivas dos clássicos da antropologia até chegarem ao momento atual, analisando o que seria uma "crise do ato etnográfico" ante a perspectiva pós-moderna.
Após o balanço crítico da bibliografia sobre a questão da memória e o questionamento do método etnográfico, as autoras retornam a questão do tempo no capítulo "Imagens do tempo: por uma etnografia da duração". Dialogando com as obras de Bergson, Piaget, Durand e Bachelard, problematizam-se as estruturas que conformam a consciência do real, ressaltando a centralidade da contínua invenção temporal com sua vibração, suas hesitações, suas lacunas em relação ao fenômeno da memória.
O livro conclui os movimentos circulares dessa reflexão sobre o tempo, a cidade, a memória e o ato etnográfico no capítulo "A cidade, o tempo e a experiência de um museu virtual", que aborda a experiência da criação do Banco de Imagens e Efeitos Visuais (Biev). Nesse capítulo, as autoras refletem sobre a questão da imagem, as possibilidades e os limites da interatividade do "espectador" diante da tela de seu computador ao acessar um museu virtual de imagens da cidade. Novamente, apresenta-se a questão da experiência temporal na cidade e as possibilidades de (re)construção de mapas mentais e percursos na cidade por meio da etnografia de micronarrativas (poética do detalhe, de uma estética do fragmento) que permitem refletir sobre a complexidade das macronarrativas. Nesse sentido, segundo as autoras, "a cidade é concebida como um objeto temporal [que] possui a possibilidade de absorção de todas as histórias dos grupos humanos que por ali passaram tanto quanto de dissolução de seus signos culturais, os quais se tornam, aqui, objetos etnográficos, ou seja, pré-textos para a geração de novas histórias a serem narradas" (p. 161).
É importante apontar que as imagens fotográficas e "fotomontagens" que acompanham o texto são também narrativas que devem ser lidas e interpretadas em sua busca de flagrarem a diversidade da experiência temporal, as camadas de tempo e a polifonia da sociedade urbana brasileira contemporânea.
Com essa obra, as autoras mais do que oferecerem uma proposta teórico-metodológica fechada para a experiência etnográfica da sociedade urbana brasileira contemporânea, propõem uma arqueologia do saber antropológico e um inventário de problemas a serem confrontados numa prática criativa e desafiadora de pesquisa etnográfica nas cidades brasileiras atuais.
CHARLES MONTEIRO é professor-adjunto do Programa Pós-graduação em História da PUCRS e vice-coordenador do Centro de Pesquisa em Imagem e Som (CPIS/PPGH/PUCRS).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Abr 2007 -
Data do Fascículo
Out 2006