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Territórios, trajetórias e tramas

RESENHAS

Territórios, trajetórias e tramas

Wagner Iglecias

Vera da SILVA TELLES e Robert CABANES (orgs.). Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo, Humanitas, 2006. 442 páginas.

Nas tramas da cidade é um livro sobre São Paulo, maior cidade do Hemisfério Sul, principal elo de conexão entre a economia e a sociedade brasileiras com as teias globalizantes e palco de dinâmicas diversas de exclusão e mobilização, desfiliações e lutas. Embora não abra mão da perspectiva histórica, a obra, que é resultado do trabalho conjunto de pesquisadores brasileiros em cooperação com o Institut de Recherche pour le Dévelopment, não trata da São Paulo de outrora, que não podia parar, que tragava como uma fornalha em brasas milhões de migrantes arrancados dos mais diversos rincões para sugar-lhes a energia necessária à construção da locomotiva industrial do país. Analisa-se a São Paulo deste início de século XXI, plena de contradições, que vai acrescentando à sua história camadas de modernização por cima de antigos baldrames de crescimento econômico e complexidade social, atravessados pela mais aguda desigualdade e ainda sequer consolidados. Uma cidade que sofre um turbilhão de transformações, sobretudo por conta da maior integração do espaço produtivo brasileiro à economia mundializada, e que mantém ou até mesmo aprofunda os crônicos problemas relativos à ocupação do território, às prioridades governamentais em relação ao investimento público, à integração precária no mercado de trabalho, aos deslocamentos espaciais e às velhas e novas formas de informalidade e ilegalidade que perpassam a metrópole.

Os autores têm suas lentes voltadas para a periferia da cidade, ali onde saltam aos olhos com maior intensidade a pobreza, o desemprego, a violência e as precariedades urbanas de maneira geral. Mas a perspectiva não é única, ou melhor, os oito textos que compõem o livro apontam também para a crescente integração das regiões mais carentes da metrópole aos circuitos do mercado e seus bens materiais, culturais e simbólicos. Integração que se dá, também, nos circuitos das chamadas redes sociais por meio da proliferação de associações comunitárias que atuam cada vez mais sob a lógica gerencial típica das empresas privadas e que buscam, por meio da cultura do contrato, estabelecer parcerias com o poder público e com as iniciativas de responsabilidade social empresarial no sentido de atender a demandas sociais as mais variadas.

O primeiro capítulo faz um balanço da literatura voltada para a questão urbana no Brasil desde a década de 1970, apontando autores fundamentais como Francisco de Oliveira e Lucio Kowarick, entre outros, com base no que Cibele Rizek chamou de um debate que fundava "um modo de pensar o país e seus processos de transformação a partir da cidade" e suas relações com a industrialização e a modernização. De fato, as várias abordagens que se faziam sobre a cidade à época já traziam em seu bojo a tematização do modelo de desenvolvimento brasileiro, a partir de categorias analíticas aplicáveis às grandes cidades e ao próprio país, como "arcaico"/"moderno" e "formal"/"informal", que apareciam na realidade social como coexistentes e em curiosa relação simbiótica. A cidade era compreendida, dessa forma, como o cenário no qual se dava um modo de intervenção do Estado que redefinia as relações entre urbano e rural, regulamentava os vínculos entre capital e trabalho e articulava a produção industrial e a acumulação ampliada do capital. O capítulo encerra-se apontando para a reestruturação produtiva dos anos de 1990 e suas conseqüências sobre o emprego e as relações de trabalho, e chama a atenção para a redefinição, daí resultante, dos espaços urbanos e seus territórios. O trabalho precário, o desemprego prolongado e a crescente interpenetração entre formal e informal originam um novo traçado urbano, uma nova geografia de conexão e desconexão aos fluxos globais do capital e aos circuitos locais de consumo e de circulação de bens.

Os capítulos subseqüentes buscam decifrar a nova São Paulo que se forma nos últimos quinze anos, por meio das trajetórias urbanas, dos deslocamentos habitacionais, dos percursos ocupacionais e das idas e vindas diárias de milhões de pessoas através de circuitos que articulam trabalho, moradia e serviços urbanos. A análise empreendida por Vera Telles no segundo capítulo é extremamente feliz ao discutir os novos ritmos que a temporalidade urbana tem adquirido e seus conseqüentes impactos sobre a luta no e pelo espaço. As histórias de vida de moradores pobres da grande metrópole e suas (des)inserções nas tramas de sociabilidade da cidade abrem as portas para os vários estudos de caso retratados no restante da obra. A partir de etnografias realizadas em bairros paradigmáticos da periferia de São Paulo, como Guaianazes e Jardim São Luís, os autores dos capítulos seguintes discutem a dinâmica social da pobreza paulistana, com seus percursos e traçados. Aborda-se, ao longo do livro, desde a luta pelo direito ao território até a sensação de orfandade das populações pobres em relação ao poder público; desde o declínio dos movimentos sociais e sua substituição pela gramática política das ONGs e seu empreendedorismo social até a ascensão da indiferenciação entre o legal e o ilegal, o lícito e o ilícito na vida urbana; desde a crescente coexistência entre o velho clientelismo político brasileiro, tão vivo nos grotões do interior do país quanto nas periferias das grandes cidades, até as novas práticas de filantropia e o crescimento da importância do crime organizado como ator social relevante.

Sucedem-se depoimentos de moradores dos locais onde foi realizada a pesquisa – gente de meia idade ou já no limiar da terceira idade, que chegou a São Paulo na época em que a cidade integrava, ainda que precariamente, braços, corações e mentes à poderosa máquina fabril que fez da capital paulista a mais importante metrópole do país. Das impressões sobre moradia, trabalho, família, lazer, luta política, passado e perspectiva em relação ao futuro, constatamos que para essas pessoas a vinda para a cidade grande, apesar de todas as dificuldades, valeu a pena, pois aqui tantos conseguiram a casa e o emprego, casaram-se, tiveram filhos, integraram-se em redes de sociabilidade e ganharam respeito em suas comunidades. Em contrapartida, aflora também nesses depoimentos a perplexidade com o presente, em que a mesma cidade continua a crescer e a produzir riqueza, mas já não parece necessitar tanto da força de trabalho dos mais pobres. E aparece com muita força, desta feita na fala dos mais jovens, o sentimento de desencanto e desesperança com uma cidade que lhes vira as costas, especialmente em relação ao mercado de trabalho, e que se mostra cada vez mais violenta, nas mais diversas acepções do termo. Tais impressões não constituem exatamente uma novidade entre os trabalhos que abordam a história recente das populações pobres das grandes cidades brasileiras, e de São Paulo em especial, mas constituem-se em um rico material que corrobora a necessidade de formulação de novos termos e conceitos para a reflexão acerca das metrópoles hoje. Este talvez seja o maior mérito desta obra, na medida em que os pesquisadores conseguiram identificar, no material de campo, evidências suficientes de que a periferia paulistana é, na atualidade, muitíssimo distinta daquela de vinte ou trinta anos atrás.

Nas tramas da cidade é, pois, uma boa iniciativa no sentido de atualizar o debate que se fazia sobre a questão urbana nas décadas passadas, sobretudo nos anos de 1970 e 1980, buscando inclusive superar a perspectiva teórica mais recente, que analisa a cidade a partir da contraposição dura e direta entre a cidade global e os cinturões de pobreza e de todas as formas de exclusão que a circundam. Mais do que isso, o conjunto de etnografias que compõem a pesquisa que ensejou a publicação do livro mostra que, apesar de todos os pesares, estão sendo gestadas, como sustenta Giorgio Agambem, não apenas novas formas de vida nas periferias da cidade, mas também novas formas de sociabilidade, novas possibilidades e uma pulsante capacidade para criar caminhos possíveis e alternativos. Dos moradores do Jardim São Carlos e de sua luta pela regularização da moradia ao surpreendente futebol de várzea, que sobrevive em vários bairros na periferia da cidade em meio à adversidade decorrente da escassez cada vez maior de terrenos disponíveis para o lazer, a obra possibilita ao leitor vislumbrar o desenvolvimento de novas estratégias de sobrevivência que vêm sendo gestadas numa cidade que continua a ser tão hostil aos mais pobres.

O capítulo que encerra o livro, de Robert Cabanes, discute com muita propriedade o cotidiano de famílias operárias que viram seus referenciais de espaço público dramaticamente alterados nas duas ou três últimas décadas. Em face do enfraquecimento das mediações sociais do passado recente que se faziam presentes para as famílias urbanas pobres, Cabanes sugere que o ambiente doméstico e privado é uma espécie de último refúgio de proteção, bem como lugar de resistência e de formulação de reivindicações. Se trabalho e sindicalismo já não se constituem mais, tanto quanto no passado, como os espaços de integração, tudo parece levar a crer que as mediações das relações do privado com o mundo social passam, cada vez com mais intensidade, pela rede familiar, pelas associações, pelas redes locais e pelas ONGs, como pressupõe a instigante e provocativa tipologia de famílias e suas relações com o espaço público que o autor apresenta.

Estruturado em três eixos – discussão em torno do debate relativo à questão urbana; cenas urbanas, histórias e seus personagens; lugares da família e articulação entre o público e o privado –, este livro é uma iniciativa bem-sucedida no sentido de que contribui para a construção de novos marcos teóricos acerca das articulações entre cidade, Estado, trabalho, política e sociabilidade, algo tão necessário nos dias atuais. Creio apenas que a edição ficaria mais completa se ilustrada por mapas que indicassem os bairros onde a pesquisa foi realizada, bem como se houvesse legendas para as diversas fotos, muitas delas aéreas, que compõem o trabalho final.

WAGNER IGLECIAS é sociólogo e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (E-mail: wi6@usp.br).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Out 2007
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