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Uma etnografia dos ricos em São Paulo

RESENHAS

Uma etnografia dos ricos em São Paulo

Catarina Morawska Vianna

Jessica SKLAIR. A filantropia paulistana: ações sociais em uma cidade segregada. São Paulo, Humanitas, 2010. 233páginas.

Jessica Sklair abre em A filantropia paulistana uma rara brecha que permite ao leitor espreitar a perspectiva dos ricos de São Paulo sobre a desigualdade na cidade, revelada através da etnografia de três programas de responsabilidade social. O primeiro é o Friendship and Learning Acquisition (FALA), em que adolescentes da Escola Graduada, um colégio norte-americano no bairro do Morumbi, oferecem aulas de inglês para funcionários e jovens da favela de Paraisópolis. No segundo, Programa Einstein na Comunidade de Paraisópolis (PECP), mulheres entre 40 e 60 anos se voluntariam nos serviços gratuitos oferecidos pelo hospital Albert Einstein aos moradores de Paraisópolis, que incluem o atendimento ambulatorial para crianças de 0 a 6 anos, atividades para gestantes e mães e aulas de computação para adolescentes. O terceiro, Programa Nova Geração (PNG), busca engajar jovens ricos de 18 a 35 anos no debate sobre a desigualdade social para incitá-los a imaginar possíveis formas de atuação.

Além do capítulo introdutório, que discute brevemente a literatura na área de segregação urbana, e outro com considerações finais, o livro conta com três capítulos centrais dedicados a cada um dos programas. O eixo argumentativo que perpassa a obra se baseia numa estratégia que desloca o enfoque ao que chama Caldeira (2000) "enclaves fortificados". Em vez de se debruçar sobre os efeitos das medidas de autossegregação operadas pelas elites, tais como o isolamento apoiado pelo discurso do medo, o reforço da discriminação social e a desvalorização da esfera pública, Sklair explora as tentativas dos que estão dentro dos muros de olhar por sobre eles. O resultado é uma etnografia que revela como iniciativas de responsabilidade social estimulam os atores a elaborar certas visões do social que explicam a pobreza e a desigualdade; como a noção de responsabilidade social acoplada a estas visões aciona, de maneiras distintas em cada um dos programas investigados, relações, saberes e práticas.

A abordagem etnográfica adotada pela autora é a principal contribuição do livro para a literatura nas ciências sociais que elege como objeto de estudo as elites econômicas, já que a atenção à perspectiva nativa aponta para nuances na autopercepção do que é ser rico. Ainda que a autora se valha da definição do Atlas da exclusão social (Pochmann, 2005) para precisar seu universo de pesquisa – aqueles com renda familiar mensal média de R$22.487 –, sua etnografia descreve uma paisagem muito mais móvel, em que não só parâmetros de riqueza e pobreza variam circunstancialmente, mas também o exercício do escalonamento está constantemente presente entre os atores.

Crianças e adolescentes aprendem desde cedo, na escola, a classificar e hierarquizar seus colegas de acordo com sinais diacríticos ligados a hábitos de consumo e conforme as informações correntes sobre quais alunos têm a mensalidade paga integralmente pela família, quais têm os estudos cobertos pelas empresas dos pais e quais usufruem de bolsas. Os habitantes deste mundo imaginam-se vivendo em "uma bolha" formada por carros blindados, conjuntos residenciais de alto padrão, clubes, escolas e shopping centers de luxo. O resto é terra incógnita. Como diz um adolescente: "é esse submundo gigantesco que não conhecemos realmente, uma parte no meio da nossa vida que ignoramos, é um buraco e nós só andamos pela sua borda" (p. 115). Como veremos adiante, a etnografia de Sklair nos lembra que assim como o Atlas da exclusão social estabelece critérios para um desenho do social, tal desenho é continuamente fabricado nas relações.

Se a abordagem etnográfica é a contribuição do livro para as ciências sociais, para a área específica da antropologia urbana a contribuição está na atenção a uma perspectiva mais comumente preterida pelos antropólogos – a dos ricos. Em vez de ser um mero comentário inicial de praxe, a reflexão de Sklair sobre as dificuldades em realizar esse tipo de pesquisa, em especial sua entrada no campo e a discrepância ideológica entre ela e os sujeitos de pesquisa, assume um papel extremamente produtivo em termos teóricos e textuais.

Como Sklair propôs investigar a perspectiva daqueles que atuam em programas de responsabilidade social e não de seus beneficiários, ela se viu obrigada a realizar pesquisa de campo dentro dos muros (ou "da bolha"). Apesar de os três programas terem como princípio, justificativa e objetivo a interação entre ricos e pobres, o contato não acontece fora da proteção dos muros: no FALA, as aulas de inglês são ministradas dentro da Escola Graduada; no PECP, as voluntárias trabalham dentro da unidade de atendimento construída pelo hospital Einstein em Paraisópolis; no PNG, os encontros são realizados dentro de organizações ou em hotéis. A já conhecida dificuldade em adentrar os muros da cidade vale também para pesquisadores, e Sklair descreve de forma bastante honesta sua entrada no campo, em especial no capítulo sobre o PNG. A permissão para realizar a pesquisa foi condicionada à avaliação de seu próprio perfil socioeconômico. O fato de ser inglesa e de uma família que praticava ações de filantropia no Reino Unido não só lhe abriu as portas para o programa, mas também trouxe a demanda pela sua participação como jovem doadora em potencial.

Se a sua identificação como igual garantiu-lhe a entrada naquele campo, foi o reconhecimento da disparidade entre suas posições políticas e a de seus interlocutores que se mostrou crucial para os desdobramentos da pesquisa. Isto porque a autora se viu diante da escolha entre manter uma crítica apriorística daqueles que estudava (com o apoio de um grande corpo de literatura sobre segregação urbana) ou efetivamente levar a sério a visão de mundo e o estilo de vida que lhe eram revelados, ainda que deles discordasse. Sklair optou então por "evitar uma análise ideológica dos atores de tal campo e seus discursos e [se] concentrar no trabalho de descrever as práticas ali observadas" (p. 181). Desta escolha decorre um texto que intercala a descrição dos projetos com as falas dos atores, sem referência às discussões sobre segregação mencionadas no capítulo introdutório.

Esse estilo poderia levar os leitores, em especi­al aqueles familiarizados com a extensa literatura crítica sobre desigualdade social, a dois incômodos: de um lado, uma aparente sedução pelo objeto de estudo; de outro, a descrição em detrimento da análise. Contudo, a forma como o texto é construído ajuda a evitar o enquadramento de dados a premissas­ analíticas e a dispor o material etnográfico de tal maneira que a crítica às elites passa a ser não o ponto de partida, mas o resultado da descrição feita a partir de um lugar raramente etnografado. O esforço de Sklair em não partir de uma crítica e levar a sério o que os seus interlocutores em campo têm a dizer lhe permite realizar uma descrição que demonstra como as tentativas de enxergar a pobreza por parte daqueles atores não são acompanhadas de uma problematização sobre como seu estilo de vida mantém a segregação.Como diz um jovem: "Quer andar de Ferrari? Anda. Quer viajar de primeira classe? Viaja. Mas lembra de doar 3%, 4%, 5% para quem precisa." (p. 193).

A etnografia mostra como a lógica do investimento social reproduz certa visão em que o mundo é concebido como um mercado, sobre o qual se imaginam estratégias de atuação através de cálculos de possíveis retornos e técnicas de medição de impacto. As ações de responsabilidade social parecem querer recriar (e assim ampliar) o mundo da "bolha", tornando o "buraco" visível a partir de categorias reconhecíveis: "oportunidade", "investimento", "liderança", "empreendedorismo". Assim, compreendemos o que significa a "transformação" reiterada pelos atores como resultado dos três programas: a jovem passa a compreender que "o mundo não é todo igual à minha pequena bolha, meus shopping centers e meu motorista e minha escola" (p. 68); a senhora voluntária leva para o marido notícias sobre outra realidade, "é um Brasil dentro de outro Brasil, a gente não tem ideia do que se passa" (p. 154); o jovem afirma ter parado de "tachar todos os pobres de preguiçosos" (p. 184). Ações de responsabilidade social não mudam Paraisópolis ou abolem os muros, apenas incluem o lugar na visão de mundo dos ricos a partir de relações mais complexas do que aquelas estabelecidas pelas tecnologias de segregação.

Ademais, a ausência da crítica apriorística e a preferência pela descrição etnográfica não implicam escassez de teoria; ao contrário, são importantes consequências do próprio aparato teórico utilizado pela autora. Sklair parte da reflexão de Telles (2006) quanto à necessidade de superar as referências teóricas que marcaram as ciências sociais nas últimas décadas, largamente embasadas nos pares conceituais "trabalho e reprodução social", "classes e conflito social", "contradições urbanas e Estado", que a socióloga crê serem inadequados para se pensar questões atuais. Como forma de enfrentar este desafio, Sklair propõe refletir sobre segregação urbana a partir das discussões teórico-metodológicas de Marilyn Strathern (1988) e Bruno Latour (2005).

Mais importante do que questionar a preferência da autora por tal ou qual linha teórica é explorar as consequências desta escolha para sua etnografia. Inspirada por Strathern, Sklair opta por enfocar a "matriz relacional que sustenta a segregação" (p. 52), ou seja, como relações de diferentes tipos (de responsabilidade social, de segregação, patronal) constituem-se mutuamente, e como a desigualdade é feita e refeita nessas relações. Quando o participante de um programa estabelece um vínculo com algum beneficiário, sua relação em casa com a empregada doméstica, por exemplo, torna-se naquele momento oculta, ainda que informe os termos das relações ali visíveis. Do mesmo modo, quando o vínculo patronal se efetiva, a relação com os beneficiários em Paraisópolis se eclipsa, ainda que a segunda continue a constituir a primeira. Os adolescentes do FALA, as senhoras do PECP e os jovens do PNG falam sobre a sua experiência como participantes de ações em responsabilidade social a partir de referências constantes aos seus empregados. Em vez de fazer da sua etnografia a constatação de uma estrutura social desigual, Sklair prefere enfatizar como o que se compreende por estrutura social se sedimenta a partir de relações hierárquicas de diferentes tipos que informam e afetam umas às outras.

De Latour, Sklair busca a inspiração para traçar associações "entre pessoas, coisas, ideias, acontecimentos e invenções na paisagem urbana" (p. 210) a partir das categorias dos próprios atores. É preciso notar, contudo, que há ao longo do texto certa profusão do termo "rede de relações sociais", ainda que este implique um conceito que difere do das "redes de práticas filantrópicas" que a autora propõe traçar. Não obstante, o material etnográfico selecionado é tão fértil que permite ao leitor vislumbrar o que ela designa como "uma só rede de práticas interconectadas" (p. 210).

Há, por assim dizer, um território comum compartilhado pelos três programas, identificado pela ideia de responsabilidade social, e não de filantropia, como aparece inclusive no título do livro. A autora adota o termo filantropia como forma de diferenciar as iniciativas que etnografa daquelas originadas em organizações populares ou institutos empresariais. Filantropia serviria para identificar as iniciativas específicas das elites. Porém, chama a atenção o fato de os atores em geral não fazerem uso do termo: no FALA, usa-se "serviço comunitário"; no PECP, "trabalho voluntário"; e no PNG, "investimento social". Ora, o exercício de traçar redes, a partir do aporte teórico escolhido, significa justamente mapear como diferentes termos implicam diferentes relações, controvérsias, saberes, práticas, isto é, a existência de redes distintas que se conectam no mesmo território da responsabilidade social. Nesse sentido, a identificação dos três programas como "filantrópicos" parece equivocada. A abordagem teórica adotada enfatiza a necessidade de realçar as circunstâncias em que um termo como filantropia é acionado, e assim atentar ao que ele revela. O caso de filantropia é claro: ele apenas aparece no PECP quando se vai estabelecer a diferença entre um passado marcado pelo assistencialismo e um presente profissionalizado, caracterizado por uma "crescente contabilização das atividades" (p. 139).

Quais redes então aparecem dentro do território comum da responsabilidade social? Quais práticas, saberes e atores as ações em responsabilidade social acionam e movem? As redes mais claras e explícitas são traçadas no capítulo sobre o FALA, a partir da constatação de uma controvérsia: a ambivalência entre a participação no programa como um ato egoísta (que envolve uma lógica de mercado) ou altruísta (tido como moralmente superior). Alguns adolescentes criticavam os que participavam do programa com o único intuito de ganhar créditos para o International Baccalaureate, que tem como função ajudar os alunos a conseguir uma vaga em universidades estrangeiras. Da mesma forma, a escola era criticada pelo coordenador do programa porque buscava, via o benefício dos incentivos fiscais da Lei Rouanet, arrecadar R$8 milhões para a construção de um Centro de Arte, e usava o FALA para atrair doações: "se a motivação é realmente construir um novo edifício, então o dinheiro é sujo e não quero fazer parte disso" (p. 88). A sujeira expressa o lugar onde uma rede é forçosamente costurada a outra. As ações em responsabilidade social, definidas a partir de categorias que estimulam a transformação social a partir de princípios altruístas, também acabam por mobilizar saberes, práticas e atores dentro de um mercado de universidades internacionais de elite e entre megacorporações atuantes no Brasil interessadas em incentivos fiscais. Tanto as universidades quanto as megacorporações apontam para redes distintas de saberes, práticas e atores que se encontram em um lugar como a Escola Graduada e se conectam no mesmo território da responsabilidade social.

Sklair conclui de maneira precisa: "Observamos que, na medida em que as redes se expandem, surgem novos atores com outros interesses, cruzando-se com os atores a partir dos quais começamos nossas pesquisas" (p. 89). As redes que a autora descreve poderiam continuar a ser traçadas fora do Brasil (em direção a universidades internacionais) ou no chamado "terceiro setor" brasileiro (em direção às megacorporações). A filantropia paulistana mostra a importância de se empreender tal exercício em um país em que se reporta o crescimento de dezenove milionários por dia desde 2007.

Notas

Cf. notícia na revista Forbes, 28/11/2011. Disponível em <http://www.forbes.com/sites/ivancastano/2011/11/28/brazils-booming-economy-is-creating-19-millionaires-every-day/>.

BIBLIOGRAFIA

Catarina Morawska Vianna é professora do Programa de Pós-graduação em antropologia social da Universidade Federal de São Carlos. E-mail: <morawskavianna@yahoo.com>.

  • CALDEIRA, Teresa. (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo São Paulo, Editora 34/Edusp.
  • LATOUR, Bruno. (2005), Reassembling the social: an introduction to actor-network theory Oxford, Oxford University Press.
  • POCHMANN, Márcio et al. (2005), Atlas da exclusão social. Vol. 3: Os ricos no Brasil São Paulo, Cortez.
  • STRATHERN, Marilyn. (1988), The gender of the gift: problems with women and problems with society in Melanesia Berkeley, University of California Press.
  • TELLES, Vera da Silva. (2006), "Debates: a cidade como questão", in V. S. Telles e R. Cabanes (orgs.), Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios, São Paulo, Humanitas.
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    Atentar para a maneira pela qual os ricos brasileiros vivem o seu mundo e concebem a desigualdade social pode nos ajudar a compreender como as redes de saberes e práticas que mobilizam os poderosos do capitalismo global afetam a todos nós.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Fev 2013
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