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Crânios, corpos e medidas: a constituição do acervo de instrumentos antropométricos do Museu Nacional na passagem do século XIX para o XX

Resumos

Aborda o processo de constituição do acervo de instrumentos científicos do Setor de Antropologia Biológica (antiga Divisão de Antropologia Física) do Museu Nacional. Prioriza-se a análise da coleção de instrumentos de antropometria. Pensar o instrumental de medição antropométrica relacionando-o com as demais coleções do acervo de antropologia biológica e com a atuação dos pesquisadores do Museu Nacional, em seus respectivos contextos sociopolíticos e acadêmicos, oferece uma visão privilegiada do panorama científico na passagem do século XIX para o XX.

história da antropologia; antropometria; Museu Nacional (Rio de Janeiro); antropologia biológica; instrumentos científicos


Analyzes the formation of the collection of scientific instruments at the Museu Nacional's Biological Anthropology Sector (previously known as the Physical Anthropology Division), Brazil. It focuses on the instruments used for anthropometric measurements. By drawing relations between this collection and other of the institution's biological anthropology collections, as well as the activities of Museu Nacional researchers within their sociopolitical and academic contexts, we arrive at a privileged view of the scientific methods and theories in use in the final decades of the nineteenth century and beginning of the twentieth.

history of anthropology; anthropometry; Museu Nacional (Rio de Janeiro); biological anthropology; scientific instruments


NOTA DE PESQUISA

Crânios, corpos e medidas: a constituição do acervo de instrumentos antropométricos do Museu Nacional na passagem do século XIX para o XX

Guilherme José da Silva e SáI; Ricardo Ventura SantosII; Claudia Rodrigues-CarvalhoIII; Elizabeth Christina da SilvaIV

IDepartamento de Ciências Sociais/Universidade Federal de Santa Maria. Departamento de Antropologia do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). guilherme_jose_sa@yahoo.com.br

IIDepartamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ. Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz. Rua Leopoldo Bulhões. 1480. 210410-210 Rio de Janeiro – RJ Brasil. santos@ensp.fiocruz.br

IIIDepartamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ. Quinta da Boa Vista s/n. 20940-04 Rio de Janeiro – RJ Brasil. claudia@mn.ufrj.br, mirrataranto@uol.com.br

RESUMO

Aborda o processo de constituição do acervo de instrumentos científicos do Setor de Antropologia Biológica (antiga Divisão de Antropologia Física) do Museu Nacional. Prioriza-se a análise da coleção de instrumentos de antropometria. Pensar o instrumental de medição antropométrica relacionando-o com as demais coleções do acervo de antropologia biológica e com a atuação dos pesquisadores do Museu Nacional, em seus respectivos contextos sociopolíticos e acadêmicos, oferece uma visão privilegiada do panorama científico na passagem do século XIX para o XX.

Palavras-chave: história da antropologia; antropometria; Museu Nacional (Rio de Janeiro); antropologia biológica; instrumentos científicos.

O Setor de Antropologia Biológica do Museu Nacional, antiga Divisão de Antropologia Física, originou-se na segunda metade do século XIX.1 1 O campo de pesquisa que é atualmente denominado 'antropologia biológica' era referido como 'antropologia física' até aproximadamente a década de 1950. Santos (1996) aborda a transição teórico-metodológica ocorrida nesse período, que se relaciona à crescente influência da genética e do neodarwinismo nos estudos sobre origens e variabilidade biológica da espécie humana, temas centrais da reflexão bioantropológica no passado e no presente. Ao longo de sua trajetória, que se desdobra até o presente, mantém-se como um lócus de intensas atividades de pesquisa, ensino e constituição de coleções e por vezes envolve-se nos debates sobre questões sociopolíticas de amplo alcance no país (Castro-Faria, 1952, 1999; Santos, 1998, 2002; Seyferth, 1985).

Nos dias atuais, com um acervo de remanescentes esqueletais humanos (sobretudo resultantes de pesquisas arqueológicas), documentos e instrumentos científicos de fundamental importância para se compreender a trajetória da disciplina no país a partir do século XIX, o Setor de Antropologia Biológica é possivelmente o mais antigo arranjo institucional voltado a pesquisas em antropologia biológica no Brasil. Ademais, as coleções continuam a desempenhar papel importante na produção de novos conhecimentos em antropologia biológica, em particular no que diz respeito à compreensão de dinâmicas de ocupação e estilos de vida de populações que, na pré-história, ocupavam o atual território brasileiro (Mendonça de Souza, Araújo, Ferreira, 1994; Neves, Powell, Ozolins, 1999; Rodrigues-Carvalho, 2004).

A trajetória da antropologia física/biológica sempre esteve estreitamente associada ao desenvolvimento de uma pletora de instrumentos de medição do corpo humano (antropometria). Esse aprimoramento técnico decorreu de debates intelectuais e políticos a respeito das interfaces entre a dimensão morfo-anatômica da espécie humana e os planos morais, intelectuais e sociais de sua existência. Tendo como pano de fundo o expansionismo colonial europeu, tais discussões foram de enorme proeminência, sobretudo nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do XX, no Brasil e em muitas partes do mundo (Gould, 1991; Monteiro, 1996; Santos, 1996, 2002; Schwarcz, 1993; Stocking, 1968, 1988).

Nosso objetivo neste texto, que é uma nota sobre pesquisa em andamento, é lançar um olhar sobre a antropologia física/biológica do Museu Nacional a partir de uma perspectiva que privilegia as interfaces entre ciência, antropologia e história.2 2 Este estudo teve seu início em 1995 no âmbito do Projeto Integrado de Curadoria das Coleções do Setor de Antropologia Biológica do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenado por Ricardo Ventura Santos (Santos, 1996, 1998, 2002; Santos, Mello e Silva, 2006). Interessa-nos abordar o Setor de Antropologia Biológica como composto por objetos, pessoas e suas idéias; por achados arqueológicos; e, sobretudo, por uma categoria de objetos muito interessante aos olhos dos estudiosos da ciência: os instrumentos de medição, de trabalho, e por que não, de 'mediação' (Latour, Woolgar, 1997). Como veremos, o acervo de instrumentos científicos do Setor oferece-nos uma janela através da qual é possível vislumbrar aspectos das inter-relações entre pesquisadores, esqueletos, corpos e mensurações, elos fundamentais da história da antropologia física/biológica.

Tempos passados

Para entender o processo de constituição do acervo de instrumentos científicos do Setor de Antropologia Biológica é preciso retroceder ao período que Castro-Faria (1952, 1999) denominou de 'construção' do campo da antropologia física no Brasil. A antropologia física desenvolvida nesse período, aproximadamente entre 1860 e 1910, foi muito influenciada pelos rumos teóricos e perspectivas metodológicas que emanavam da Europa, especificamente da Sociedade de Antropologia de Paris. Predominou naquele momento a ênfase na craniologia e, depois, na 'antropologia métrica' de Alphonse Bertillon (ou 'bertillonagem'). Ambas ganharam espaço nos laboratórios de antropologia física do Museu Nacional no final do século XIX e início do XX, por meio de nomes como João Batista de Lacerda e Edgard Roquette-Pinto.3 3 Castro-Faria (1952) apresenta, em minucioso trabalho sobre a história da antropologia física no Brasil, informações relevantes acerca dos demais intelectuais ligados à antropologia física do Museu Nacional entre o final do século XIX e a década de 1940.

De forma esquemática, a antropologia na segunda metade do século XIX pode ser dividida em duas grandes vertentes. De um lado, havia aqueles que, sobretudo ligados a faculdades de medicina, ocupavam-se em estudar a anatomia das 'raças' humanas; de outro, juristas preocupados em se aprofundar nas especificidades culturais dos povos ditos 'não-civilizados' (como eram vistos as populações de negros e indígenas). Segundo os mitos de origem da disciplina antropológica, tais vertentes concorreriam para a fundação da antropologia física e da antropologia social/cultural, respectivamente (Schwarcz, 1993; Stocking, 1968, 1988). Nos atuais currículos de ensino da história das teorias antropológicas ainda ocorre essa fragmentação do campo, que pretende explicar a cisão entre as duas antropologias existentes. Entretanto esse distanciamento nem sempre foi tão bem marcado.

A partir de uma matriz evolucionista, as investigações em antropologia física, no período a que nos referimos, interessavam-se pela compreensão da história natural da espécie humana e pela forma como ela se diversificou ao longo do tempo, fortemente calcada em abordagens tipológicas. Nesse contexto, 'raça' e enfoques correlatos foram preponderantes na disciplina (Castro-Faria, 1952, 1999; Santos, 1996, 1998, 2002; Schwarcz, 1993).

A segunda metade do século XIX marcou o apogeu da craniologia e da frenologia como práticas científicas que, entre outros pontos, pretendiam explicar diferenças étnicas e de gênero em termos de grau de inteligência; além de aptidão para atividades específicas, saúde física e mental e até mesmo a personalidade dos indivíduos (Gould, 1991; Spencer, 1997). A frenologia pautava-se no estudo detalhado das características cranianas e das circunvoluções cerebrais dos indivíduos. Essa prática notabilizou-se pela análise de cérebros de indivíduos considerados 'geniais', possuidores de 'dons naturais', e de pessoas com comportamento tido como desviante (prostitutas, assassinos, homossexuais etc.). Foi no contexto do desenvolvimento da frenologia que se deu a criação de uma diversidade de instrumentos que, mais tarde, viriam a ser aprimoradas em larga escala por médicos e antropólogos físicos (Spencer, 1997).

Herdeira da frenologia, a craniologia, pautada nas técnicas elaboradas por Camper, Gall, Broca, Quatrefages, Topinard, entre outros, dedicava-se a medir crânios em seu volume, circunferência e os mais diversos ângulos. Tida como disciplina que, em seu tempo, centralizava as atenções do que em sentido mais amplo chamaríamos de antropometria, a craniometria pretendia estabelecer padrões para distinguir e inter-relacionar as diferentes 'raças' humanas. Partia-se do pressuposto de que características como capacidade craniana, peso do cérebro e a conformação das circunvoluções cerebrais poderiam informar sobre aspectos morais e intelectuais dos indivíduos e, em uma dimensão mais ampla, as possibilidades de aprimoramento das sociedades humanas. Eram centrais as discussões quanto às possibilidades de as chamadas 'raças primitivas' – incluindo populações indígenas e negras, com as quais os europeus se defrontavam em seu expansionismo ao redor do mundo – galgarem os degraus rumo à civilização (Gould, 1991; Monteiro, 1996; Santos, 1996, 2002; Schwarcz, 1993).

No âmbito da craniometria (ou seja, a vertente da craniologia voltada para as mensurações), o ímpeto pela definição de medidas e índices que, progressivamente, tornavam-se mais diversificados e complexos demonstra a expectativa de se objetivar cientificamente os mais variados fenômenos sociais. Os instrumentos de medição craniométrica, uma vez que eram inventados para fins específicos, eram porta-vozes da técnica em mundo onde a dinâmica da ciência e os debates político-sociais se retroalimentavam com intensidade. As indagações que motivavam a pesquisa científica se atrelavam aos anseios por respostas, sobretudo da sociedade européia, acerca da igualdade/desigualdade entre os seres humanos, em um período de expansão colonial.

Refletindo as estreitas vinculações entre a ciência na periferia e o que se produzia nos centros europeus, os primeiros antropólogos brasileiros lançaram mão de manuais e técnicas importadas da Europa, aplicando-as aos materiais e casos locais. Tal ascendência pode ser verificada em um documento de 1858, "Instruções para a Comissão Científica encarregada de explorar o interior de algumas províncias do Brasil menos conhecidas", no qual eram estabelecidas as diretrizes para os estudos antropológicos no Brasil:

Sendo o ponto mais importante da etnologia, para o estudo do homem físico, o conhecimento do tipo, só se poderá adquirir noções suficientes por meio de desenhos fidelíssimos do todo, principalmente da cabeça ... Convém igualmente coligir crânios de todas as raças naturais do país, e moldar no vivo algumas cabeças, para à vista de certos dados morais poder verificar conjuntamente o que há de mais positivo no sistema de Gall: se há verdade nesta doutrina, a cranioscopia deverá encontrar notáveis modificações entre as diversas protuberâncias do crânio do Índio selvagem e as do Índio civilizado ou do mestiço, conforme a raça dominante ... A atitude e a mímica do homem são indispensáveis, porque numa e noutra se revelam os hábitos sociais e o temperamento individual. A posição da cabeça, dos braços e das pernas, seja no repouso, na locomoção ou no trabalho, é muito significativa para um observador, porque por ela, pelos seus movimentos, pelo seu assento sobre o pescoço se conhece o indivíduo, assim como pelo modo com que move os braços, pelo que pende as mãos, e pela maneira e situação dos pés no caminhar: o ocioso tem atitudes bem diferentes do trabalhador. (citado em Castro-Faria, 1999, p.18-19)

As primeiras atividades regulares relacionadas à pesquisa e ao ensino em antropologia física no Museu Nacional foram desenvolvidas por João Batista de Lacerda, médico e antropólogo ligado à instituição entre 1872 e 1915. Inicialmente atuou como subdiretor da Seção de "Antropologia, zoologia geral e aplicada, anatomia comparada e paleontologia animal" (Castro-Faria, 1952, 1999). Na fase inicial de sua carreira, Lacerda contou com o apoio e interesse do então diretor do Museu Nacional, Ladislau Neto, que, empenhado no desenvolvimento da coleção osteológica do Museu Nacional, solicitou materiais de grupos indígenas às diferentes províncias do país (Lopes, 1997).4 4 Lacerda teve uma carreira bastante diversificada e além da antropologia, dedicou-se ao estudo da fisiologia e de doenças infecciosas (Benchimol, 1999; Castro-Faria, 1952, 1999).

Enquanto eram dados os primeiros passos da antropologia no Brasil, destacava-se na Europa a fundação da Sociedade de Antropologia de Paris. Criada em 1859, era composta sobretudo por médicos dedicados ao estudo de morfologia comparativa das raças humanas e tinha em Paul Broca um de seus mais destacados representantes. Em 1875 Broca redigiu as "Instructions craniologiques et craniométriques de la Société d'Anthropologie de Paris", elaboradas a partir de ampla experiência em análises de crânios. As instruções ditavam os procedimentos fundamentais da prática craniológica e normatizavam a utilização dos aparelhos de medição. O alcance que tais diretrizes atingiram consolidou a influência da antropologia física francesa – e da craniometria em particular – em praticamente todo o mundo (Castro-Faria, 1973).


Broca foi responsável não somente pela concepção teórico-metodológica de muitas medidas importantes nos estudos craniométricos, como também pela idealização de vários instrumentos de medição que passaram a ser produzidos pela casa Mathieu, de Paris, segundo a orientação do cientista. A esse respeito, Castro-Faria (1973, p.10) salienta: "À invenção de cada aparelho seguia-se uma monografia modelar, com a descrição pormenorizada da sua estrutura e do seu funcionamento. Para fazer a demonstração da sua utilidade [Broca] levantava centenas de dados, comparava-os e em pouco a literatura antropológica se enriquecia de novas pesquisas morfológicas".

A influência de Broca nos estudos realizados no Museu Nacional pode ser atestada pela assimilação dos protocolos metodológicos franceses e também pela importação de aparelhos de medição produzidos em Paris. Entre muitos outros, fazem parte do acervo do Setor de Antropologia Biológica instrumentos como goniômetro retangular, goniômetro occipital, goniômetro mediano, estereógrafo, goniômetro facial e compasso de coordenadas (ver Figuras).

Estudos conduzidos por Lacerda e colaboradores na década de 1870 trazem dados coletados por meio desses instrumentos. Em 1876 foi divulgada, nos Archivos do Museu Nacional, uma série de trabalhos sobre as "raças indígenas do Brasil" (Lacerda, 1876, 1905; Lacerda, Peixoto, 1876). Inserido em um contexto sóciopolítico e intelectual que entendia as chamadas 'raças primitivas' como física, moral e intelectualmente inferiores (e fadadas ao desaparecimento), Lacerda fundamentava seus argumentos em análises morfológicas de esqueletos de origem indígena – especialmente crânios – do acervo do Museu Nacional (Monteiro, 1996; Santos, 2002). Lacerda, a evidenciar a proximidade dos antropólogos brasileiros com a antropologia física francesa, publicou trabalho sobre a "história dos fósseis humanos" no Brasil, nas Memórias da Sociedade de Antropologia de Paris (Lacerda, 1875).

Em 1882 organizou-se no Rio de Janeiro a chamada Exposição Antropológica, que alcançou grande visibilidade científica e de público. Peças arqueológicas, etnológicas e de antropologia física (sobretudo crânios), relacionadas às principais questões antropológicas daquele momento, fizeram parte da mostra. Foram também trazidos para o Museu Nacional representantes de algumas etnias indígenas, que vieram a ser estudados pelos antropólogos da instituição. Em meio aos debates sobre a abolição da escravidão no país, em que se questionava a possibilidade de utilização de mão-de-obra indígena, Lacerda, por ocasião da Exposição Antropológica, realizou testes fisiológicos com alguns indígenas baseados no dinamômetro (aparelho que integra o acervo do Setor de Antropologia Biológica), para averiguação da força muscular da mão. A partir de suas observações, concluiu:

Como trabalhador braçal, o índio é inquestionavelmente inferior ao negro; aquele tem maior agilidade do que este, mas a sua resistência corpórea e a sua força muscular são sensivelmente menores. Medimos com o dinamômetro a força muscular de indivíduos adultos, pertencentes às tribos dos Bororós, dos Botocudos e dos Cherentes, e o instrumento denunciou uma força abaixo da que se observa geralmente em indivíduos brancos ou negros. (Lacerda, 1905, p.101)

Nas primeiras décadas do século XX, esqueletos humanos provenientes de diferentes sítios arqueológicos do Brasil continuaram a ser incorporados ao acervo de antropologia física do Museu Nacional. Foi um período caracterizado pela acumulação de extensa coleção craniológica, em particular de grupos indígenas sul-americanos. Em 1911 foi adquirida uma coleção de moldes de crânios humanos em gesso adquiridos na Casa Tramond, da França.

Passado o apogeu da craniologia, o foco das pesquisas em antropologia física no Museu Nacional deslocou-se de crânios e esqueletos para investigações sobre os 'tipos antropológicos' do Brasil. Desenvolvidas sobretudo na década de 1920, tais pesquisas foram conduzidas por Edgard Roquette-Pinto com base em análises antropométricas detalhadas de jovens de diversas regiões do país que prestavam serviço militar em quartéis do Rio de Janeiro. Os motes da discussão eram os efeitos da 'mistura racial', e procurava-se averiguar se mestiços apresentam quadros de 'degeneração'. Os resultados da pesquisa (Roquette-Pinto, 1929), divulgados durante o 1º Congresso Brasileiro de Eugenia de 1929, obtiveram ampla repercussão, devida em grande parte à ênfase dada pelo médico e antropólogo ao fato de que o problema do 'atraso' no Brasil não era de ordem racial (ou causado pela mistura das raças), mas sim resultado de dificuldades relacionadas à falta de saúde e educação (Santos, 2002). Enfatizava o cientista que, "em geral, tem-se o hábito de considerar degenerados, mestiços que são apenas doentes ou disgênicos. Não é o cruzamento; é a doença a causa do aspecto débil de muitos deles" (Roquette-Pinto, 1929, p.136).

Do ponto de vista técnico, os estudos de Roquette-Pinto sobre os 'tipos antropológicos' empregaram a chamada 'bertillonagem', qual seja, um conjunto de procedimentos de caracterização e medição do corpo humano elaborado por Alphonse Bertillon, outro membro-fundador da Sociedade de Antropologia de Paris. A técnica, originalmente concebida com vistas à identificação de criminosos (e dos reincidentes em particular), consistia na tomada de um grande conjunto de medidas antropométricas, na caracterização de aspectos morfológicos específicos (relacionados aos olhos e cabelo) e na tomada de fotografias em posição padrão. Para tal, Bertillon desenvolveu um estojo portátil, que ficou conhecido como Estojo de Bertillon e foi largamente empregado não somente no Museu Nacional, mas pela polícia do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XX (Carrara, 1990).

Passado o tempo

Fruto de uma trajetória de quase um século e meio, o Setor de Antropologia Biológica alberga atualmente um acervo composto por coleções bastante diversificadas, adquiridas em diferentes períodos de sua história. É constituído por milhares de peças, que incluem, entre outras, remanescentes ósseos humanos de procedência arqueológica, instrumentos e aparelhos de medidas em antropologia física e material fotográfico. Trata-se de um dos mais significativos acervos do seu gênero existentes no país e constitui importante fonte de informações sobre a história da antropologia no Brasil, em particular da antropologia física/biológica.

Ao nos determos nas peças utilizadas pelos antigos pesquisadores, em especial aquelas que referem a 'mediação' exercida pelos instrumentos científicos, deparamos com um cotidiano de práticas, técnicas, filiações e interpretações impregnadas do contexto sociopolítico da época. Crânios, corpos e instrumentos tornam-se 'bons para pensar' sobre os processos de formação de acervos e o próprio 'ato de colecionar'.

Ao longo do tempo, com as mudanças nas técnicas e nos interesses de pesquisa dos antropólogos físicos do Museu Nacional, deu-se o que poderíamos chamar de uma 'dissociação' entre coleções e instrumentos. Assim, nas décadas mais recentes as coleções osteológicas passaram a ser investigadas com base em novas abordagens, com ênfase crescente em análises anátomo-patológicas (por exemplo, Mendonça de Souza, Araújo, Ferreira, 1994; Neves, Powell, Ozolins, 1999; Rodrigues-Carvalho, 2004), teoricamente afastadas dos enfoques tipológicos e racializados que predominaram na antropologia física até os anos de 1950 (Santos, 1996). Gradativamente os estudos métricos deixaram de ser o foco principal de investigação no Setor de Antropologia Biológica, e boa parte dos antigos instrumentos deixou de ser utilizada. Aquisições posteriores, ainda no século passado, também contribuíram para transformar os instrumentos de trabalho em itens de acervo museológico.

Relacionar peças de acervo, instrumentos e personagens vai além de compreender domínios técnicos de manuseio. Torna-se possível, por um prisma particular, vislumbrar constituintes mais fundamentais da produção do conhecimento científico. Os materiais e temas de interesse dos antropólogos físicos necessitavam de instrumentos que os desvendassem, os instrumentos exigiam bases concretas que os concebessem, e ambos presumiam uma cultura científica que os absorvessem.

Ao que pode parecer à primeira vista uma redundância, se as coleções de esqueletos do Museu Nacional sempre tiveram o status de coleção, os instrumentos passaram por um processo de transfiguração muito particular antes de se tornarem uma. Refletindo uma lógica própria de acumulação, transformaram-se de objetos técnicos, do cotidiano de trabalho, sobre as bancadas e em constante manuseio, em peças do acervo, ou seja, em artefatos. A ação do tempo sobre esses instrumentos – discernível pelo escurecimento dos metais, menor brilho da madeira e marcas de ferrugem – ajudou a forjar uma transformação simbólica que resultou na constituição de novas identidades. Passaram de uma identidade utilitária, qual seja, de 'objetos do cotidiano', à condição de 'objetos (con)sagrados'. Essa metamorfose, regida por elementos de temporalidade e também pelo crescente revestimento de uma aura de 'exotismo' cada vez mais espessa - uma vez que foram retirados de circulação utilitária, permaneceram fora da visão cotidiana por estarem em armários fechados e progressivamente se tornaram menos conhecidos quanto aos seus usos e funções -, conferiu, mais e mais, um caráter museológico ao que, em um primeiro momento, não eram 'peças de coleções' (Pomian, 1984).

Identidades e transformações identitárias são, como nos ensina a antropologia contemporânea, eminentemente relacionais. É possível que o fato de serem 'velhos' instrumentos de trabalho, fora de uso, não torne os aparelhos de medição mais especiais do que quaisquer outros pertencentes a coleções similares de outros museus com tradição em pesquisas em antropologia física. Não obstante, algo que impinge particularidade aos instrumentos antropométricos do Museu Nacional é o fato de que a transfiguração em objetos 'sacralizados' aconteceu em um cenário específico. Os instrumentos antropométricos sobre os quais discorremos neste trabalho possuem um mana (Mauss, 1974), proveniente do espaço (físico, histórico e intelectual) que habitam há mais de um século, incluindo as salas em que originalmente eram utilizados e os pesquisadores que os manusearam. Ou seja, têm em si agregadas, de forma ímpar, história e cultura científica particulares e de alta significação.

Considerações finais

Chamamos a atenção para um tipo de acervo que pode servir de base para futuros trabalhos historiográficos que explorem problemas e técnicas de antigas modalidades da prática da antropologia física. Crânios e instrumentos não devem ser vistos como evidências de uma ciência arcaica, mas como testemunhas de uma era de médicos antropólogos, em um período em que intensas discussões sobre a constituição do povo e os rumos possíveis colocavam em evidência questões com implicações para muito além das bancadas e paredes dos laboratórios de pesquisa. Em um dado momento, gerar modelos interpretativos sobre o Brasil, sob o prisma da antropologia física, passou pela mediação de complexos e criativos instrumentos de mensuração de partes do corpo humano (Monteiro, 1996; Santos, 2002).

Partir dos resquícios de cultura material, inclusive instrumentos científicos, até chegar a seus personagens, suas idéias e mesmo à sua sociedade, é uma proposta relativamente pouco explorada em história das ciências (Hoyme, 1953; Van Helden, Hankins, 1994). Enfatizamos aqui os processos de aquisição, acumulação e transformação de acervo de trabalho em acervo histórico. Acreditamos que análises desses instrumentos científicos que contemplem seus métodos de uso, os rituais que envolviam sua utilização e o mapeamento do contexto social em que estavam inseridos podem contribuir para o entendimento das culturas científicas do passado.

Agradecimentos

A Rodrigo C. Mexas, pelas fotografias dos materiais do acervo do Setor de Antropologia Biológica do Museu Nacional (exceto Figura 3); a Mônica Costa S. Coelho, pelo auxílio durante a realização da pesquisa que resultou neste trabalho.

NOTAS

Recebido para publicação em fevereiro 2007.

Aprovado para publicação em maio de 2007.

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  • VAN HELDEN, Albert; HANKINS, Thomas L. Introduction: instruments in the history of science. Osiris, Washington D.C., v.9, p.1-6. 1994
  • 1
    O campo de pesquisa que é atualmente denominado 'antropologia biológica' era referido como 'antropologia física' até aproximadamente a década de 1950. Santos (1996) aborda a transição teórico-metodológica ocorrida nesse período, que se relaciona à crescente influência da genética e do neodarwinismo nos estudos sobre origens e variabilidade biológica da espécie humana, temas centrais da reflexão bioantropológica no passado e no presente.
  • 2
    Este estudo teve seu início em 1995 no âmbito do Projeto Integrado de Curadoria das Coleções do Setor de Antropologia Biológica do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenado por Ricardo Ventura Santos (Santos, 1996, 1998, 2002; Santos, Mello e Silva, 2006).
  • 3
    Castro-Faria (1952) apresenta, em minucioso trabalho sobre a história da antropologia física no Brasil, informações relevantes acerca dos demais intelectuais ligados à antropologia física do Museu Nacional entre o final do século XIX e a década de 1940.
  • 4
    Lacerda teve uma carreira bastante diversificada e além da antropologia, dedicou-se ao estudo da fisiologia e de doenças infecciosas (Benchimol, 1999; Castro-Faria, 1952, 1999).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Nov 2008
    • Data do Fascículo
      Mar 2008

    Histórico

    • Aceito
      Maio 2007
    • Recebido
      Fev 2007
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