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As lanças do crepúsculo: relações jivaro na Alta Amazônia

RESENHAS

Pedro de Niemeyer Cesarino

Doutorando PPGAS/ MN/ UFRJ

DESCOLA, Philippe. 2006. As lanças do crepúsculo: relações jivaro na Alta Amazônia. São Paulo: Cosac & Naify. 520pp.

As lanças do crepúsculo é já uma indispensável monografia da etnologia americanista. Ao narrar o período em que esteve entre os Jívaro da Amazônia equatoriana com sua esposa e colega Anne-Christine Taylor, Philippe Descola demonstra seu rigor investigativo ao percorrer, em um mesmo livro, temas diversos como a guerra e a vingança, a predação, o xamanismo, a cosmologia, a mitologia, a política, as etiquetas e os meandros da sociabilidade nas aldeias. Marcado por sua descrição da vendetta e de seu sentido para as sociedades Achuar, o livro mostra que as teorias produzidas pela imaginação antropológica repousam, antes de tudo, em uma rica e obscura base criada pela interação entre o pesquisador estrangeiro e seus hóspedes locais. Embora freqüentemente escamoteada pelo discurso especulativo, a intensidade surgida de tal interação pode, se explorada em sua devida complexidade, conferir vigor particular ao texto etnográfico.

O próprio Descola, situando seu livro no registro da "crônica", escreve no epílogo que o trabalho etnológico "não tem como dissociar a descrição da invenção, e essa não implica a falsidade, aproximando-se antes da verossimilhança do que da verdade" (:457). Aperceber-se de que tanto o olhar local quanto o estrangeiro são inseparáveis de seu substrato cultural, diz ainda o autor, "não quer dizer praticar a apologia da subjetividade como modo de conhecimento, e sim enfatizar mais uma vez a evidência de que os julgamentos que fazemos sobre os costumes alheios são amplamente determinados, na vida como na ciência, por nossa história individual" (:456-457). Descola, balizando a subjetividade, oferece também parâmetros para esta sua aproximação com a literatura, a fim de garantir o espírito científico: "a composição literária reorganiza o real para torná-lo mais acessível, às vezes mais digno de interesse, mas não modifica a substância dos fatos. Em contrapartida, quando se propõe desvendar o seu significado, a interpretação lhes traz uma nova dimensão; ela se apresenta graças à criatividade, sem reais garantias de não estar enveredando no imaginário" (:456, ênfases minhas).

Se for verdadeiro que a descrição permanece neutra ou objetiva, parece, porém, difícil separá-la não apenas de seu nível imediatamente superior (a passagem do "singular" para o "universal" [:456] que a valida enquanto discurso etnológico), mas também do problema da verossimilhança que a constitui. Ciente de tal dilema, não agrada a Descola a idéia de que a etnologia possa ser uma "hermenêutica das culturas": deve haver "um valor antropológico que transcen[da] o particularismo das circunstâncias em que foram formuladas" (:457), nota o autor. As lanças do crepúsculo desenvolve, portanto, uma tarefa propriamente especulativa que, embora tomando o recurso da crônica, acaba por conduzir a um trajeto paralelo à literatura, e não a um entrecruzamento efetivo (e será mesmo possível?) entre os dois registros da criação. Isto porque a opção pelo estilo narrativo não deixa de reservar o centro da obra para a explicação e a exposição etnográfica extensiva — eixo essencial de monografias descritivas — impedindo uma interpenetração efetiva da verossimilhança etnológica e da literária — como poderia ser, talvez, no caso de uma exploração maior do entrecruzamento dissonante de subjetividades de que se faz a experiência de campo.

Ao partir para outra direção, a obra mostra que este "olhar crítico que nossa civilização soube tardiamente lançar sobre o mundo e sobre si mesma" pode ser capaz de "fundar o conhecimento do outro sobre o desvendamento das próprias ilusões" (:461). Tarefa fundamental para uma cultura geral letrada que ainda engatinha na compreensão dos universos ameríndios, talvez por estarem seus estudos especializados, ao menos no Brasil, demasiadamente restritos aos meios acadêmicos em que são produzidos. Assim, um trabalho etnológico competente pode apresentar a interpretação de que os Achuar vivem "o próprio destino sem o apoio de uma transcendência divina ou histórica" (:458), contra as idéias banais de uma "religiosidade indígena". De maneira similar, a percepção de que o individualismo Achuar "não se fundamenta na reivindicação de igualdade social e econômica, pois não sucede de um sistema desigual" (:458), é também essencial para desmanchar os clichês do "comunismo primitivo" que ainda circulam pelas inteligências. Ou mesmo que "os Jívaro não concebem sua etnicidade como um catálogo de traços distintivos que dariam substância e eternidade a um destino compartilhado" (:459), problematizando as recaídas conservadoras e românticas dos discursos indigenistas, atualmente em voga nas áreas mais diversas, em favor de uma compreensão mais acurada do sentido ameríndio de comunidade. Há que se mencionar também o reconhecimento de que "a natureza humana não existe em toda parte e para sempre ou, mais especificamente, que essa separação radical, há muito estabelecida pelo Ocidente, entre o mundo da natureza e o mundo dos homens não tem grande significação para outros povos, que conferem às plantas e aos animais os atributos da vida social" (:457), desta vez contra a insistente aliança entre "os índios e a natureza" agarrada em nosso imaginário rousseauista.

Com a intenção louvável de circular o conhecimento acumulado pela etnologia, As lanças do crepúsculo coloca em xeque muitos dos pressupostos do senso comum, em direção a uma melhor interpretação dos universos ameríndios. Em sua exposição da complexa rede xamânica que vincula os Achuar aos outros povos da região, o autor diz, todavia, o seguinte sobre a cura: "os males que afligem o cliente de um xamã são freqüentemente imaginários ou de ordem psicossomática" (:391, ênfases minhas). Em seu campo, o etnólogo via melhora no aspecto dos doentes após as sessões de cura, "libertadas de um tormento que decerto nunca tivera nenhuma base orgânica" (ibidem), mas que, "por aplacarem a angústia dos que os consultavam, por libertarem-nos da terrível alienação do face a face com a dor e o desconhecido, os xamãs até logram provocar uma melhora provisória em pessoas realmente enfermas" (ibidem).

Nos termos e nas construções gramaticais escolhidos pelo autor, parece persistir um crônico rebaixamento dos sistemas xamânicos — como se, desprovidos de qualquer ontologia possível, a eles restasse a solução de talvez se alojarem ao menos no discurso: "será a convicção [da eficácia das entidades ou dos espíritos] suficiente para propiciar a cura? Se for partilhada pelos doentes, por que não o seria, ocasionalmente?" (ibidem). Se, como mostrou o próprio autor, a "natureza" é algo partilhado apenas pelo caldo do qual surgem as mentalidades modernas, decerto ela também não serve como padrão implícito para a avaliação de um sistema cuja lógica interna não reside — e nem poderia residir (por incompetência?) — em qualquer base orgânica. Mas por que nela insistir como parâmetro de compreensão? E se não há uma base orgânica para a crise xamânica, será então necessário supor alguma outra (o discurso, o imaginário) para que o xamanismo "até" possua alguma eficácia pontual? Talvez fosse interessante investigar os critérios de verossimilhança que os próprios Achuar projetam para o pensamento quando se submetem às suas sessões de cura: como traduzi-los a partir dos nossos próprios?

Como esta é uma obra que se destaca, entre outras coisas, por sua competente descrição de diversos aspectos do xamanismo Achuar, caberia reavaliar para os dias de hoje este tratamento da cura xamânica, a fim de que não se naturalizem os seus pressupostos, sobretudo quando tratamos de uma importante obra de divulgação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Out 2007
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