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Editorial

Editorial

Este número de Scientiæ udia trata de uma variedade de temas: exemplares e modelos na genética e na pesquisa científica, polêmicas ligadas ao darwinismo e à cosmologia, complexidade, auto-organização e emergência nos mais variados tipos de acontecimentos e eventos. Apesar da aparente diversidade, os textos publicados são significativamente convergentes na perspectiva lógico-epistemológica de análise conceitual da ciência; convergência que assegura uma certa unidade de esforço analítico construtivo.

Os dois primeiros artigos dedicam-se a questões lógico-epistemológicas que fazem parte do núcleo teórico da atividade científica. Visam uma análise da "modelagem teórica", isto é, da construção, natureza e alcance dos modelos teóricos, embora exista entre eles uma tensão: enquanto um nega um papel fundamental às leis, o outro reafirma sua importância. Assim, no primeiro artigo, Pablo Lorenzano aplica a concepção semântica de teoria à genética clássica, produzindo uma reconstrução lógica da teoria mendeliana, que é particularmente reveladora da ausência de leis gerais nessa ciência e, assim, critica incisivamente a visão histórica tradicional da genética que atribui seu nascimento à descoberta das leis da hereditariedade por Mendel. No segundo artigo, Luiz Henrique de Araújo Dutra afasta-se deliberadamente da concepção semântica de teoria para percorrer a literatura filosófica pertinente em busca de uma caracterização do conceito de "modelo" como entidade abstrata ou contexto possível ao qual se aplicam leis que, em circunstâncias usuais, não se aplicariam; esse sentido, segundo Dutra, é mais próximo do senso comum e mais apropriado ao uso científico do termo. No terceiro artigo, Gustavo Caponi trata do tema do darwinismo, opondo a teoria selecional da evolução de Darwin e Wallace à teoria transformacional da evolução de muitos outros naturalistas; o que praticamente retoma, sob outra perspectiva de análise, a discussão feita, no número anterior, a respeito da unidade de seleção natural. No indivíduo-organismo ou na população? Onde opera efetivamente o mecanismo da evolução? A resposta parece depender da perspectiva que se adota: selecional ou transformacional. Mas seria efetivamente a perspectiva transformacional uma visão alternativa? Não existe a possibilidade de que essa perspectiva seja complementar da perspectiva selecional darwiniana?

Scientiæ udia publica, neste número, dois documentos científicos. O primeiro documento é o artigo Aristotelismo moderno, de 1937, do astrônomo Herbert Dingle, texto que é precedido pela introdução crítica de Antônio Augusto Passos Videira, na qual o documento é contextualizado como fazendo parte de uma interessante polêmica dos anos 30 do século passado sobre os aspectos metodológicos e epistemológicos da recém constituída cosmologia científica. Essa controvérsia mobilizou, de um lado, os cientistas mais apegados aos princípios do empirismo e do método indutivo (entre os quais se incluía Dingle) e, de outro, aqueles que defendiam uma visão mais liberal de busca de hipóteses teóricas gerais guiada por critérios conceituais. O texto é particularmente interessante pelo tom crítico e mordaz e pela retórica agressiva adotada por Dingle contra seus adversários.

O segundo documento é o artigo publicado em 1960 por Paul Feyerabend, com o título original Das Problem der Existenz theoretischer Entitäten, traduzido para o espanhol por Fernando Tula Molina, que se dedica, na introdução, a uma reconstrução detalhada da argumentação do filósofo. Paul Feyerabend doutorou-se em filosofia, em 1951, com uma tese sobre o papel dos enunciados básicos; dois anos depois, teve a ocasião de escolher entre ser assistente de Karl Popper em Londres ou de Arthur Pap em Viena, optando por esta última, onde foi apresentado por Pap a Herbert Feigl, com quem Feyerabend manteve uma extensa controvérsia, da qual o documento aqui publicado é o resultado. No texto, investe contra a distinção entre enunciados teóricos e observacionais. A estratégia argumentativa consiste em mostrar que todos os argumentos em favor da solidez epistemológica dos enunciados observacionais fracassam, porque se aplicam também às entidades teóricas, de modo que todas podem ser consideradas, sem distinção, como teóricas. As idéias expostas por Feyerabend representaram uma contribuição ao desenvolvimento da tese da impregnação teórica da experiência.

Concluem este número de Scientiæ udia a nota crítica de Marcelo Alves Ferreira e a resenha de Nelson Fiedler-Ferrara. Na primeira, Ferreira discute a apropriação valorativa feita pelo "criacionismo científico" das críticas dirigidas por Karl Popper ao grande naturalista Charles Darwin e à concepção dita darwinista da evolução. Ferreira alerta para o perigo da apropriação indevida tanto das idéias científicas quanto de sua crítica para legitimar o ensino do criacionismo como alternativa científica à teoria da evolução no ensino de ciências. Com efeito, o debate evolucionismo versus criacionismo só tem servido para promover posições obscurantistas e agora, infelizmente, para comprometer o caráter laico e civil que o ensino dos jovens deve ter exatamente para não impor crenças aos de outras crenças, assegurando assim a necessária tolerância à diferença de posição e opinião. Fiedler-Ferrara, a propósito de resenhar Steven Johnson, introduz o leitor aos temas da emergência, da complexidade e da auto-organização, mostrando como tal conceituação altera a concepção da relação entre o todo e as partes e discutindo as possíveis aplicações aos sistemas corporativos e aos movimentos políticos e os impactos esperados pelo avanço do chamado paradigma da complexidade.

Pablo Rubén Mariconda

editor responsável

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    Jun 2005
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