Acessibilidade / Reportar erro

A liderança na perspectiva de enfermeiros da Estratégia Saúde da Família

RESUMO

Objetivo:

Compreender a percepção da liderança no processo de trabalho e promover sua discussão no âmbito da Estratégia Saúde da Família.

Método:

Pesquisa de abordagem qualitativa guiada pelo referencial da pesquisa-ação, com participação de 15 enfermeiros no interior de São Paulo. Os dados foram coletados no ano de 2015 em duas etapas interdependentes, entrevistas e intervenção-ação, e processados pelo referencial metodológico da análise de conteúdo e do arcabouço teórico acerca do gerenciamento em enfermagem.

Resultados:

Os enfermeiros apresentaram suas concepções de liderança e os desafios inerentes à prática: formação para liderança, sobreposição da assistência e gerência, e cobranças advindas da gestão. Com a discussão de problemáticas comuns e aprendizagem entre pares construiu-se uma concepção de liderança transformacional.

Considerações Finais:

Os estilos comum e comportamental influenciam a concepção de liderança, mobilizando as atitudes dos enfermeiros no processo de trabalho, o que indica a necessidade de investimento na formação dos profissionais e dos serviços nessa temática.

Palavras-chave:
Enfermagem de atenção primária; Liderança; Administração de serviços de saúde

ABSTRACT

Objective:

To understand the perception of leadership in the work process and to promote its discussion within the Family Health Strategy scope.

Method:

A qualitative approach research, guided by the action-research referential, conducted with 15 Familiy Health Strategy nurses in the inland of the state of São Paulo. Data was collected in 2015 in two interdependent phases, interviews and intervention-action, and processed according to the methodological framework of content analysis and the theoretical framework on nursing management.

Results:

The nurses showed their conceptions of leadership and the inherent challenges of practice: leadership training, overlapping care and management, and management charges. In the discussion of common problems and peer learning, a conception of transformational leadership was constructed.

Conclusions:

The common and behavioral styles of leadership influenced on the conception of leadership and mobilized the attitudes of the nurses in the work process; however, there is a need for more engagement in the training/qualification of the professionals and the services about leadership.

Keywords:
Primary care nursing; Leadership; Health services administration

RESUMEN

Objetivo:

Comprender la percepción del liderazgo en el proceso de trabajo y promover su discusión en el marco de la Estrategia de Salud de la Familia.

Método:

Investigación qualitativa, guiada por el referencial de la investigación-acción con la participación de 15 enfermeros de la Estrategia de Salud de la Familia en el interior del estado de São Paulo. Los datos se recolectaron en 2015 en dos etapas interdependientes, entrevistas e intervención-acción, y se los procesó de acuerdo con el marco metodológico del análisis de contenido y con el marco teórico sobre gestión de enfermería.

Resultados:

Los enfermeros presentaron sus concepciones de liderazgo y los desafíos inherentes a la práctica: formación para el liderazgo, superposición de la asistencia y la gestión, y cargos provenientes de la gestión. Con la discusión de problemáticas comunes y aprendizaje entre pares se elaboró una concepción de liderazgo transformacional.

Consideraciones finales:

Los estilos común y conductual influencian la concepción de liderazgo y movilizan las actitudes de los enfermeros en el proceso de trabajo, pero se necesita mayor inversión en la formación/capacitación de los profesionales y de los servicios en cuanto a la temática.

Palabras clave:
Enfermería de atención primaria; Liderazgo; Administración de los servicios de salud

INTRODUÇÃO

A Estratégia de Saúde da Família (ESF), desde sua implementação em 1994, é tida como prioritária para a ampliação e consolidação da Atenção Primária à Saúde (APS), por propiciar o acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) e reorganizar o modelo de atenção voltado às ações preventivas e de promoção à saúde11. Fernandes MC, Silva LMS. Gerência do cuidado do enfermeiro na estratégia saúde da família: revisão integrativa. Rev Rene. 2013 [cited 2019 Feb 08];14(2):438-47. Available from: Available from: http://periodicos.ufc.br/rene/article/view/3407/2644
http://periodicos.ufc.br/rene/article/vi...
.

Para a consolidação desse modelo de vigilância à saúde na APS, as ações do enfermeiro são essenciais por desempenhar as habilidades necessárias ao cuidado integral e à composição da equipe de saúde11. Fernandes MC, Silva LMS. Gerência do cuidado do enfermeiro na estratégia saúde da família: revisão integrativa. Rev Rene. 2013 [cited 2019 Feb 08];14(2):438-47. Available from: Available from: http://periodicos.ufc.br/rene/article/view/3407/2644
http://periodicos.ufc.br/rene/article/vi...
. Para tanto, o processo de trabalho de enfermagem conta com cinco dimensões complementares e interdependentes: assistir, gerenciar, pesquisar, ensinar e participar politicamente22. Paula M, Peres AM, Bernardino E, Eduardo EA, Sade PMC, Larocca LM. Characteristics of the nurses’ work process in the family health strategy. Rev Min Enferm. 2014;18(2):454-62. doi: https://doi.org/10.5935/1415-2762.20140034
https://doi.org/10.5935/1415-2762.201400...
. A articulação entre as dimensões gerencial e assistencial compõe a gerência do cuidado de enfermagem, contudo com ações fragmentadas e curativas no contexto da ESF11. Fernandes MC, Silva LMS. Gerência do cuidado do enfermeiro na estratégia saúde da família: revisão integrativa. Rev Rene. 2013 [cited 2019 Feb 08];14(2):438-47. Available from: Available from: http://periodicos.ufc.br/rene/article/view/3407/2644
http://periodicos.ufc.br/rene/article/vi...
essa articulação fica fragilizada.

Dessa forma, é preciso atuar na educação permanente dos profissionais de saúde para motivá-los a produzir saúde no modelo proposto, visto que o gerenciamento do cuidado constitui um processo coletivo e, mesmo sendo exclusivo do enfermeiro, depende da atuação integrada de toda equipe33. Silva SS, Assis MMA, Santos AM. The nurse as the protagonist of care management in the estratégia saúde da família: different analysis perspectives. Texto Contexto Enferm. 2017;26(3):e1090016. doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072017001090016
https://doi.org/10.1590/0104-07072017001...
. Nessa perpectiva, a liderança, competência necessária e requerida do enfermeiro, é fundamental para a integração profissional, pois influencia a equipe a realizar um cuidado de enfermagem com qualidade44. Balsanelli AP, David DR, Ferrari TG. Nursing leadership and its relationship with the hospital work environment. Acta Paul Enferm. 2018;31(2):187-93. doi: https://doi.org/10.1590/1982-0194201800027
https://doi.org/10.1590/1982-01942018000...
.

A liderança vem sendo exigida nas organizações de saúde, passando de um modelo hierarquizado e tradicional para um trabalho em equipe, com unidades semiautônomas, tornando-se indispensável o papel do enfermeiro, por ser ele o elemento da equipe que privilegia os interesses coletivos e oferece assistência segura ao paciente55. Strapasson MR, Medeiros CRG. [Transformational leadership in nursing[. Rev Bras Enferm. 2009;62(2):228-33. Portuguese. doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672009000200009
https://doi.org/10.1590/S0034-7167200900...
.

Nessa perspectiva, a liderança transformacional apresenta-se como um estilo de liderança voltado para a qualidade da atenção à saúde, prestada pela enfermagem, sobretudo, na gerência, na educação e na assistência, corroborando com o esperado na ESF.

A característica principal desse modelo é o empoderamento dos membros da equipe, com relação motivacional entre líder e seguidor, o que possibilita o alcance de soluções conjuntas e ambiente de trabalho interpessoal positivo, contribuindo para índices baixos de rotatividade, maior produtividade e satisfação dos funcionários55. Strapasson MR, Medeiros CRG. [Transformational leadership in nursing[. Rev Bras Enferm. 2009;62(2):228-33. Portuguese. doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672009000200009
https://doi.org/10.1590/S0034-7167200900...
.

Todavia, algumas barreiras dificultam a liderança do enfermeiro no contexto da ESF, como: modelo biomédico de saúde, relação verticalizada e impessoal com usuários, famílias e equipe, exclusão dos usuários na construção das atividades gerenciais e trabalho do enfermeiro pautado nos modelos da administração clássica11. Fernandes MC, Silva LMS. Gerência do cuidado do enfermeiro na estratégia saúde da família: revisão integrativa. Rev Rene. 2013 [cited 2019 Feb 08];14(2):438-47. Available from: Available from: http://periodicos.ufc.br/rene/article/view/3407/2644
http://periodicos.ufc.br/rene/article/vi...
.

Os estudos disponíveis na literatura acerca da temática desse estudo estão focalizados em experiências e competências da liderança em enfermagem no âmbito hospitalar e nos desafios para a prática da liderança, incluindo o contexto da formação acadêmica11. Fernandes MC, Silva LMS. Gerência do cuidado do enfermeiro na estratégia saúde da família: revisão integrativa. Rev Rene. 2013 [cited 2019 Feb 08];14(2):438-47. Available from: Available from: http://periodicos.ufc.br/rene/article/view/3407/2644
http://periodicos.ufc.br/rene/article/vi...
,66. Balsanelli AP, Cunha ICKO. The work environment and leadership in nursing: an integrative review. Rev Esc Enferm USP. 2014:48(5):938-43. doi: https://doi.org/10.1590/S0080-6234201400005000022
https://doi.org/10.1590/S0080-6234201400...
.

Assim, existe a necessidade de estudos, sobretudo, brasileiros, que se refiram ao tema liderança em enfermagem no cenário da APS, como demonstrado em estudos de revisão que evidenciaram “ações ambivalentes do cuidar e gerenciar, além da lacuna no conhecimento sobre a gerência do cuidado do enfermeiro na ESF”11. Fernandes MC, Silva LMS. Gerência do cuidado do enfermeiro na estratégia saúde da família: revisão integrativa. Rev Rene. 2013 [cited 2019 Feb 08];14(2):438-47. Available from: Available from: http://periodicos.ufc.br/rene/article/view/3407/2644
http://periodicos.ufc.br/rene/article/vi...
e a necessidade de pesquisas que investiguem a relação entre o ambiente de trabalho e a liderança desempenhada pelo enfermeiro66. Balsanelli AP, Cunha ICKO. The work environment and leadership in nursing: an integrative review. Rev Esc Enferm USP. 2014:48(5):938-43. doi: https://doi.org/10.1590/S0080-6234201400005000022
https://doi.org/10.1590/S0080-6234201400...
) nesse cenário.

Diante do exposto, ainda se faz necessário conhecer como os enfermeiros da ESF experienciam/retratam suas práticas de liderança, permitindo, assim, inová-las com o propósito de oferecer cuidado de qualidade à população. Nesse contexto, o presente estudo tem como objetivos compreender a percepção da liderança no processo de trabalho e promover sua discussão no âmbito da ESF.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa, guiada pelos pressupostos da pesquisa-ação que é utilizada com a intencionalidade de operar uma ação estratégica e participativa, visando à construção de saberes, partindo da experiência dos atores envolvidos77. Sampieri RH, Collado CF, Lucio MPB. Metodologia de Pesquisa. 5.ed. Porto Alegre: Penso, 2013..

Nesse processo, os dados são processados com o objetivo de desencadear mudanças oriundas da resolução ou do questionamento de uma dada problemática77. Sampieri RH, Collado CF, Lucio MPB. Metodologia de Pesquisa. 5.ed. Porto Alegre: Penso, 2013.. Sendo assim, essa abordagem possibilitou a compreensão aprofundada do objeto de investigação representado pela liderança desempenhada no trabalho do enfermeiro no contexto da ESF.

A pesquisa foi realizada em um município de médio porte do interior paulista que, no período de coleta de dados, contava com oito Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 12 Unidades Saúde da Família (USF), onde se distribuíam 15 equipes de Saúde da Família. As UBS’s não são integradas às USF’s e contavam com dois enfermeiros que desempenhavam separadamente as funções gerenciais e assistenciais, situação distinta nas equipes da ESF, pois as duas funções são realizadas por um mesmo profissional.

Utilizou-se de amostragem intencional77. Sampieri RH, Collado CF, Lucio MPB. Metodologia de Pesquisa. 5.ed. Porto Alegre: Penso, 2013. para seleção dos participantes e como critério de inclusão, a atuação como enfermeiro em uma USF. Considerou-se importante oportunizar a inserção de todos os enfermeiros da ESF, pois com esssa estratégia de composição da amostra, buscou-se compartilhar os impasses vividos e estimular a troca de saberes entre aqueles com maior e menor experiência de trabalho.

Para garantir o sigilo dos participantes, foi atribuído um código alfa-numérico composto pela letra “E” sucedida de um algarismo.

A coleta de dados ocorreu em duas etapas interdependentes: entrevistas e intervenção-ação. Na primeira, todos os enfermeiros estiveram envolvidos e, na segunda, dois não puderam participar por motivos de licença saúde.

As entrevistas foram realizadas por meio de questões norteadoras relacionadas ao objeto de estudo, o que possibilitou a ampliação para outras questões que surgiram, à medida que as respostas foram sendo obtidas e o envolvimento dos entrevistados na elaboração do conteúdo da pesquisa77. Sampieri RH, Collado CF, Lucio MPB. Metodologia de Pesquisa. 5.ed. Porto Alegre: Penso, 2013..

Essa etapa foi realizada pela primeira autora entre os meses de janeiro e março de 2015, audiogravadas e, posteriormente, transcritas na íntegra. A duração média das entrevistas foi de 15 minutos.

As questões norteadoras foram: Como você percebe, em sua atuação como gerente de enfermagem, a liderança? O que é ser líder? Quais as facilidades e dificuldades para liderar? Como pensa que um líder deve se comportar? Acredita ser importante aprender a liderar? Qual seria o caminho para esse aprendizado?

Dos resultados obtidos nas entrevistas individuais, planejou-se a segunda etapa que consistiu em uma intervenção-ação com o propósito de ofertar um espaço de discussão e reflexão sobre a liderança do enfermeiro na ESF, com o propósito de provocar mudanças no processo de trabalho. Os encontros dessa etapa possibilitaram apreender similaridades e diferenças acerca da liderança do enfermeiro e os valores, atitudes e crenças que permeiam todo esse processo.

Tais encontros foram registrados em um livro-ata, com a realização da leitura do conteúdo validada no encontro subsequente, previamente agendados e realizados no decorrer do mês de setembro de 2015. Além disso, eles ocorreram em um local de fácil acesso a todos os participantes, tiveram duração média de duas horas e foram compostos pelos enfermeiros e por duas pesquisadoras, autoras deste artigo. Dessa maneira, o grupo apresentou características homogêneas, permitindo que todos os envolvidos discorressem sobre sua prática de trabalho.

No primeiro encontro, o projeto de pesquisa foi retomado e o material qualitativo produzido na primeira etapa foi apresentado e validado, coletivamente, pelos participantes. Em seguida, foi realizada a dinâmica de apresentação, em que todos tiveram a oportunidade de apontar as suas expectativas relacionadas a essa etapa da pesquisa, bem como as percepções vivenciadas e percebidas no que se refere à liderança no processo de trabalho.

As estratégias utilizadas no segundo encontro foram: leitura de texto, encaminhado previamente, envolvendo a temática da liderança55. Strapasson MR, Medeiros CRG. [Transformational leadership in nursing[. Rev Bras Enferm. 2009;62(2):228-33. Portuguese. doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672009000200009
https://doi.org/10.1590/S0034-7167200900...
; reconhecimento de situações-problema acerca da prática de trabalho dos enfermeiros e a discussão dessas em pequenos grupos, tendo como referencial a literatura recomendada. A partir de um caso hipotético criado por todos os participantes, cada pequeno grupo refletiu sobre ações e intervenções diante dos problemas identificados. Por fim, em um único grupo, uma síntese das discussões foi elaborada.

No último encontro, os enfermeiros construíram um conceito de liderança transformacional e discutiram sobre a aplicabilidade em suas realidades. O encerramento da atividade ocorreu por meio de uma avaliação composta por duas partes, considerando toda a segunda etapa e buscando aquilatar a efetividade da proposta executada.

A avaliação iniciou com uma escala tipo likert com quatro critérios (ótimo, bom, regular ou ruim) relacionados a dez atributos da segunda etapa: objetivos, importância para a atuação profissional, importância para a formação, conteúdo, metodologia, relacionamento em grupo, conhecimento das pesquisadoras, motivação das pesquisadoras, possibilidade de reorientação dos encontros e dedicação do participante. Seguiram três questões abertas às quais os participantes respondiam, dando continuidade às frases iniciadas pelas expressões: “Eu nem esperava e aconteceu...”, “Decepcionei-me um pouco com...”, “Se eu fosse fazer uma propaganda a um colega sobre essa intervenção educativa eu diria que...”. Por fim, atribuiu-se uma nota de zero a dez à segunda etapa em sua totalidade.

Os dados da primeira etapa foram processados por meio da análise de conteúdo. A operacionalização do processamento dos dados, mediante referencial teórico, se dá partindo da definição do termo condensação como um processo de reduzir as falas, preservando-lhes a essência. Nesse sentido, adotou-se, neste estudo, o modelo que descreve: unidade de significado, unidade de significado condensada (descrição próxima do texto), interpretação do significado subjacente, subtema e tema. O tema é expresso pelo conteúdo latente (nível interpretativo) do texto, podendo reunir vários subtemas88. Graneheim UH, Lundman B. Qualitative content analysis in nursing research: concepts, procedures and measures to achieve trustworthiness. Nurse Educ Today. 2004;24:105-12. doi: https://doi.org/10.1016/j.nedt.2003.10.001
https://doi.org/10.1016/j.nedt.2003.10.0...
.

A segunda etapa partiu dos registros feitos em ata, das percepções das pesquisadoras e das avaliações preenchidas pelos enfermeiros, buscando, de forma descritiva, as similaridades e as diferenças com os resultados encontrados na primeira etapa; tal análise se deu guiada pelos pressupostos do gerenciamento em enfermagem99. Marquis BL, Huston CJ. Administração e liderança em enfermagem (teoria e prática). 8. ed. Porto Alegre: Artmed; 2015..

Em consideração aos preceitos éticos, esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu, em 02/11/2014, sob o parecer n.º 855.870. Todos os participantes foram esclarecidos dos detalhes da pesquisa e consentiram sua participação por meio da assinatura no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS

Etapa I

A análise das entrevistas permitiu construir dois temas em torno do processo de liderança, desempenhado pelo enfermeiro no contexto da ESF. O primeiro - a liderança do enfermeiro - foi composta por quatro subtemas: as percepções do enfermeiro; as atitudes de um líder; o líder como mediador; o relacionamento interpessoal como uma habilidade para liderar. Já, no segundo, - os desafios da liderança - emergiram três subtemas: a formação do enfermeiro para liderar; o assistir e o gerenciar como atividades sobrepostas; a dicotomia entre a realidade dos serviços de saúde e os seus gestores.

A liderança do enfermeiro

Esse primeiro tema expressa como os participantes do estudo perceberam a liderança, e, em síntese, explorou atitudes, comportamentos e a mediação esperados na função do enfermeiro líder. A sobreposição das ações dos subprocessos assistir e gerenciar apareceu interferindo no exercício da liderança no contexto da ESF.

As percepções dos sujeitos frente ao que se espera do papel do líder foram trazidas com similaridades nos discursos e expressas com os termos: exemplo, mentor, referência, elo, mediador, mestre, espelho, entre outros.

[...] quando a gente pensa em liderança, a gente sempre pensa em uma pessoa que seja um pouco espelho para a equipe de saúde […]. (E15)

Observa-se que os participantes atribuíam à figura do líder a importância de atuarem como modelo, terem um comportamento coerente com seus discursos e desempenharem o papel de orientador do trabalho em saúde.

Em relação as atitudes, os entrevistados conceberam a liderança democrática, caracterizada por uma relação de confiança e de uma relação horizontal construída ao longo do tempo e baseada no respeito mútuo; por atitudes justas e flexibilidade em suas ações; e pela inclusão de todos os membros da equipe na tomada de decisões.

[...] e ser um líder acessível, um líder que participe junto com a equipe, que permita que a equipe possa participar na tomada das decisões [...]. (E4)

Para os participantes deste estudo, há clareza na diferenciação entre chefiar e liderar. Foi também perceptível que, a incorporação desse perfil no trabalho do enfermeiro, no contexto da ESF, é uma tarefa complexa.

O processo de liderança inicia a partir da própria postura do líder […] em todos os sentidos: a forma de falar, a forma de agir, a forma de se por, de se colocar, porque não tem como a gente liderar sem a gente olhar para nós mesmas. (E1)

Observou-se que os participantes elaboraram suas concepções de liderança com base nos estilos comuns, evidenciando uma miscelânea de conceitos comportamentais, autocráticos e democráticos. A prática de trabalho da ESF leva ao enfermeiro líder mobilizar em si determinados comportamentos que se associam a essas concepções, contudo as funções gerenciais desencadeiam uma postura mais centralizadora.

A clareza nas relações interpessoais no trabalho esteve entre os fatores que dificultam o exercício da liderança do enfermeiro, uma vez que os discursos dos participantes permitem interpretar que a dimensão relacional e o modo como os envolvidos a elaboram fragilizam as intervenções realizadas pelos enfermeiros.

Na liderança, uma dificuldade seria [...] que as pessoas confundem a amizade com o trabalho. Eu procuro ser amiga, tem que ser e aí as pessoas confundem [...] quando você vai pontuar alguma coisa de trabalho, as pessoas já acham que você deixou de ser amiga. Não! Eu vou continuar sendo amiga, mas aquilo ali precisa ser mudado [...]. (E7)

O apoio mútuo, como a troca de experiência entre os pares, foi identificado como facilitador para a liderança do enfermeiro para tomada de decisão no trabalho.

Para os enfermeiros, a liderança exercida do processo de trabalho da ESF compreende uma prática complexa que exige domínio nas relações interpessoais, coerência entre discurso e ação, facilitada pelo apoio que possuem entre si. Houve uma redução conceitual sobre liderança, o que justifica a importância de espaços de discussão sobre o tema.

Os desafios da liderança

Este tema abarca a formação acadêmica e profissional do enfermeiro para liderar, a sobreposição da assistência e gerência no processo de trabalho e as cobranças da gestão da APS aos serviços como fatores que impossibilitam a prática da liderança transformacional.

O exercício da liderança foi descrito como um processo desafiador para os participantes e seu desenvolvimento envolveu três aspectos: o conteúdo aprendido durante a graduação como insuficiente, a importância da atuação profissional e o autodesenvolvimento para elaborar e incorporar as experiências vividas no trabalho.

Eu percebo a liderança como um processo muito difícil, que a gente não nasce sabendo ser líder e, muito menos, sai da faculdade sabendo liderar. Eu acho que a liderança acaba vindo com o tempo [...] tem muitas dificuldades e a gente não tem nenhum treinamento. De repente, você presta um concurso e falam que você é a líder dessa unidade de saúde [...] e você tem que fazer a coisa funcionar, mas como que você faz isso? Ninguém te ensina. As dificuldades, nesse processo, é você não saber como fazer isso. Eu acho que a maior dificuldade é que a faculdade não te traz isso e é só lendo e estudando muito. (E4)

Os conhecimentos, habilidades e atitudes do enfermeiro para exercer o papel de líder envolvem diversos atributos, dentre os quais se destacaram as experiências prévias, características pessoais, a intencionalidade para o trabalho em equipe e interprofissional, a flexibilidade e a criatividade para vivenciar as situações de maneira compartilhada.

No que tange ao processo educativo da liderança, esse subtema refletiu a fragilidade da formação do profissional e das atividades de educação permanente que, muitas vezes, não vão ao encontro das necessidades dos serviços. Os enfermeiros identificaram a necessidade de estratégias de formação em serviço que os coloquem em contato com as diferentes experiências vivenciadas no contexto de trabalho na ESF.

Então, a gente precisa aprender a ser líder, não dá para sair da Faculdade e falar: Nossa! Agora vou liderar uma equipe! E eu acho que existem alguns caminhos para fazermos isso, existem alguns cursos, existem algumas maneiras da gente aprender, talvez com a experiência de outros colegas [...] Olha, na sua unidade, como você lida com isso? [...] aprender com o outro: ‘- Olha, nessa situação, eu fiz dessa maneira […]. (E8)

Nesse sentido, observou-se ainda que discussões em torno da prática são mais efetivas que ações educativas pontuais, como cursos e palestras, que desfavorecem a troca de experiências e se distanciam da realidade dos serviços de saúde. Portanto, compartilhar experiências com pares e equipes poderia ser um meio para o aprendizado efetivo, produzindo mudanças na gerência, processo de trabalho e na assistência prestada.

Observou-se, também, o afastamento por parte do enfermeiro da gestão do cuidado e a dificuldade em delegar e compartilhar funções, o que acaba por descaracterizar a concepção de liderança adotada pelos participantes apresentada no tema anterior.

Na nossa questão da Saúde da Família é que tem só um enfermeiro para a assistência e a gerência… a gente tem que estar preocupada com tudo ao mesmo tempo - é com a assistência do paciente, a liderança da equipe [...] a gente acaba deixando a desejar essa questão da liderança, porque, às vezes, têm outras questões [...] como os pacientes, a demanda. (E1)

Outra dificuldade relacionada ao desafio da liderança foi atribuída à relação serviço-gestão, caracterizada como verticalizada, mobilizando o modo como os enfermeiros estabelecem o contato com a equipe de saúde. Um segundo aspecto se referiu à valorização da gestão pela produção quantitativa em detrimento da qualificação ofertada na assistência.

[...] eu vejo que não tem uma valorização [...] pela própria empresa que a gente trabalha, porque tem uma cobrança da parte de produção, de atendimento, número de atendimento e, na verdade, não tem aquele espaço voltado para a organização do serviço. (E11)

Em síntese, os discursos dos participantes apontaram que os desafios da liderança estão relacionados a fatores para os quais a governabilidade do enfermeiro é limitada, principalmente, em espaços, onde a gestão compartilhada não é uma prática.

Etapa II

Em consideração aos resultados encontrados na primeira etapa, alinhando-os com os interesses dos participantes, a intervenção-ação foi planejada com o intuito de problematizar as concepções e as práticas exercidas em torno da liderança do enfermeiro no contexto da ESF. Ressalta-se que os relatos apontaram a escassez de estratégias de educação permanente, assim, no contexto analisado, a intervenção-ação representou uma primeira aproximação dos enfermeiros com a temática da liderança no contexto do trabalho.

No decorrer dos encontros, percebeu-se que os participantes sentiram abertura para se colocarem, estando em um ambiente onde, juntos, puderam identificar e compartilhar fragilidades e desafios comuns à prática da liderança na ESF. Essas características integram elementos fundamentais à efetivação da aprendizagem.

A intervenção-ação oportunizou a validação coletiva dos temas e subtemas da primeira etapa. Nesse sentido, houve convergência acerca da motivação do líder diante do processo de trabalho, das fragilidades na formação para o exercício da liderança e da sobrecarga gerada em função das atribuições gerenciais e assistenciais. Sobre esse subtema, os enfermeiros argumentaram que, em outros serviços da rede assistencial, essas atribuições são divididas entre dois profissionais, de modo que tal fator pode facilitar o desempenho da liderança.

Outros temas foram explorados mais profundamente, entre eles, a gestão da APS. Além de validar o conteúdo dos discursos individuais, os participantes discorreram sobre suas expectativas em relação à gestão, que deveria atuar como exemplo e como grande motivadora da liderança.

Contudo, seu posicionamento distante e vertical mostra aos enfermeiros uma desconsideração de suas experiências e responsabilidades, além da descaracterização do modelo de atenção à saúde atrelado ao trabalho da ESF. De acordo com os sujeitos, as interferências exercidas pela gestão são um dos fatores que fragilizam as ações coletivas de promoção e prevenção, levando à priorização de ações voltadas às demandas espontâneas.

Durante a discussão das situações-problema ocorrida entre o segundo e o terceiro encontros, o trabalho em equipe apareceu como uma ferramenta potente para a prática colaborativa; os relatórios gerados pelos sistemas de informação, quando utilizados pelo enfermeiro, foram vistos como facilitadores da gestão do processo de trabalhao e o déficit de recursos humanos foi percebido com um desafio para o desenvolvimento da liderança na ESF.

No que tange à construção de um conceito de liderança transformacional, após a leitura do referencial teórico e discussão de situações-problema contextuais, os participantes, coletivamente, elaboraram a formulação a seguir:

O líder transformacional tem o diferencial do entusiasmo e motivação, sem autoritarismo, conseguindo transmitir isso para sua equipe, promovendo uma liderança participativa e construindo um ambiente saudável de trabalho, sem perder o dinamismo/enfoque do gerenciamento.

Quanto à aplicabilidade desse conceito na prática, os participantes concordaram quanto à possibilidade, mas resgataram os desafios que foram elencados nas entrevistas e validados na intervenção-ação, como as questões políticas, o apoio frágil da gestão, a falta de regulamentos e incentivos institucionais, a autoestima e a motivação pessoal.

A resistência dos participantes na incorporação do conceito de liderança transformacional elaborado foi observada, quando se apontou para uma suposta sobrecarga do trabalho do enfermeiro na ESF. Foi necessário problematizar os conceitos de liderança, o papel do líder, o trabalho em equipe e colaborativo, para elucidar que a liderança transformacional propõe o compartilhamento e a inclusão da equipe no planejamento e execução das ações, levando à diminuição da carga de trabalho.

Outra fragilidade apontada recai sobre a gestão local por não valorizar essas atitudes, o que dificulta a mudança do paradigma que sustenta as ações desempenhadas pelos enfermeiros. Esse fato chama a atenção por esse profissional não perceber que a liderança transformacional deveria ser inerente à sua prática profissional.

A avaliação da intervenção-ação foi considerada positiva, visto que os atributos importância para atuação profissional, importância para a formação, relacionamento em grupo, motivação e possibilidade de reorientação dos encontros foram avaliados como “ótimo” por todos os participantes. E a outra metade dos atributos - objetivos, conteúdo, metodologia, conhecimento e motivação das pesquisadoras e dedicação do participante - foi avaliada como “ótimo” e “bom”, com maior concentração do primeiro.

A avaliação da intervenção-ação oriunda das questões abertas foi positiva por ter permitido a troca de experiências, o apoio diante de problemas similares nos serviços e a reflexão da prática gerencial. Quanto a nota atribuída à estratégia, sua média foi igual a 9,5.

DISCUSSÃO

As concepções dos participantes, em torno do conceito de liderança, evidenciaram aspectos comportamentais que transitaram entre a persuasão e a integração da equipe nos processos decisórios. Na primeira, resgata-se a centralidade das dimensões organizacionais e administrativas na atuação do enfermeiro que se relacionam à administração científica e que podem reduzir o papel do líder a mera capacidade de influenciar sua equipe, conduzindo-a a determinados desfechos1010. Fonseca AMO, Porto JB, Borges-Andrade JE. [Leadership: a portrait of Brazilian scientific production]. Rev Adm Contemp. 2015;19(3):290-310. Portuguese. doi: https://doi.org/10.1590/1982-7849rac20151404
https://doi.org/10.1590/1982-7849rac2015...
, responsabilizando, com efeito, o enfermeiro pela direção tomada pela equipe na efetivação do trabalho.

Por sua vez, a segunda concepção indica uma ampliação da postura e do desempenho do líder diante do trabalho em saúde, caracterizada pela integração da equipe de saúde nos processos decisórios. Aspectos da liderança democrática, da corresponsabilidade e da autonomia dos diversos trabalhadores da equipe são elementos que se articulam aos discursos dos participantes quanto às suas concepções de liderança99. Marquis BL, Huston CJ. Administração e liderança em enfermagem (teoria e prática). 8. ed. Porto Alegre: Artmed; 2015..

A despeito da contradição observada nas diferentes concepções de liderança para os enfermeiros da ESF é convergente que a liderança é um elemento crítico e prioritário na prática do trabalho em saúde, compreendendo ações da dimensão gerencial da enfermagem.

O trabalho do enfermeiro na APS se divide entre gerenciar e assistir, desencadeando sentimentos que oscilam entre o prazer - quando exerce o papel articulador entre os membros da equipe, quando tem o trabalho reconhecido pelo olhar do paciente, ou ainda quando é percebido como facilitador do cuidado - e o sofrimento, resultante da sobrecarga de trabalho, das fragilidades do sistema de saúde, das condições físicas dos serviços e da exposição aos variados riscos ocupacionais1111. Guimarães E, Souza MMT, Passos JP. Desafios do enfermeiro como líder na atenção básica à saúde: do prazer ao sofrimento. Rev Pró-UniverSUS. 2016 [cited 2019 Feb 08];7(2):34-8. Available from: Available from: http://editora.universidadedevassouras.edu.br/index.php/RPU/article/view/346
http://editora.universidadedevassouras.e...
.

Nessa conjuntura, a liderança transformacional aparece como um modelo que promove uma abordagem integrada para dimensões organizacionais e pessoais, lidando com situações de mudança e resistência, com tomada de decisão no exercício necessário de incluir riscos e o enfrentamento da realidade55. Strapasson MR, Medeiros CRG. [Transformational leadership in nursing[. Rev Bras Enferm. 2009;62(2):228-33. Portuguese. doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672009000200009
https://doi.org/10.1590/S0034-7167200900...
. Essas características remetem ao conceito de liderança transformacional construído pelos participantes deste estudo e espera-se que, com sua prática, haja o desenvolvimento, a comunicação, a gestão de conflitos, a coesão e a confiança da equipe.

Estudo de revisão integrativa da literatura sobre instrumentos que avaliam a liderança, concluiu que “o modelo de liderança transformacional contribuiu com o aumento da motivação e satisfação no trabalho por proporcionar discussão coletiva, ampliação da comunicação dialógica e escuta ativa dos trabalhadores, levando ao maior comprometimento organizacional”1212. Carrara GLR, Bernardes A, Balsanelli AP, Camelo SHH, Gabriel CS, Zanetti ACB. Use of instruments to evaluate leadership in nursing and health services. Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(3):e2016-0060. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.03.2016-0060
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.0...
corroborando os achados da presente pesquisa.

A fragilidade na formação inicial e continuada da liderança como competência do enfermeiro é um dos fatores que justificam os desafios da assistência e da gestão que foram identificados nos discursos individual e coletivo. Esse aspecto corrobora resultados de um estudo realizado na região Sudeste do Brasil, pois identificou que a liderança e a gestão são desafios a serem superados, bem como a dissonância entre o que é ensinado na academia e o que é vivenciado na realidade de trabalho1313. Souza LPS, Silva WSS, Mota EC, Santana JMF, Santos LGS, Silva CSO, et al. Os desafios do recém-graduado em Enfermagem no mundo do trabalho. Rev Cubana de Enfermer. 2014 [cited 2019 May 18];30(1):4-18. Available from: Available from: http://www.revenfermeria.sld.cu/index.php/enf/article/view/127
http://www.revenfermeria.sld.cu/index.ph...
.

Dentre as estratégias de ensino-aprendizagem aplicadas para o desenvolvimento da liderança na graduação identificadas a partir de estudo realizado com docentes de todas as regiões do Brasil, observou-se que a aula expositiva dialogada está entre as mais utilizadas, seguida das discussões e trabalhos em grupo, e de cursos on-line1414. Caveião C, Peres AM, Amestoy SC, Meier MJ. Teaching-learning tendencies and strategies used in the leadership development of nurses. Rev Bras Enferm. 2018;71(suppl.4):1531-9. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0455
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0...
. Identifica-se, com esse apontamento, a distância entre a graduação e os cenários reais de prática, reforçando a dissociação na dialética trabalho e formação no ensino da liderança. Essa fragilidade foi observada em uma pesquisa realizada na região Sul do País, onde enfermeiros relataram que o conteúdo sobre liderança abordado na graduação influenciou seu desempenho profissional e dificultou sua atuação no que se refere a essa habilidade1515. Andrigue KCK, Trindade LL, Amestoy SC. Academic formation and permanent education: influences on leadership styles of nurses. J Res Fundam Care Online. 2017;9(4):971-7. doi: https://doi.org/10.9789/2175-5361.2017.v9i4.971-977
https://doi.org/10.9789/2175-5361.2017.v...
.

Portanto, essa repercussão negativa oriunda da abordagem fragilizada sobre liderança durante a graduação, demonstra uma lacuna a ser revista nos currículos, uma vez que a liderança é uma competência essencial para o enfermeiro e encontra-se em destaque nas Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Enfermagem1616. Ministério da Educação (BR), Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 3, de 7 de novembro de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. Brasília (DF): MEC; 2001 [cited 2019 Mar 19]. Available from: Available from: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES03.pdf
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pd...
.

De maneira complementar, treinamentos formais podem aumentar as habilidades dos enfermeiros frente à prática da liderança e como forma de suprir as lacunas do processo de ensino-aprendizagem herdadas da graduação, como demonstrado em estudo realizado com 512 enfermeiros de 23 hospitais no estado do Arizona, Estados Unidos1717. Kelly LA, Wicker TL, Gerkin, RD. The relationship of training and education to leadership practices in frontline nurse leaders. J Nurs Adm. 2014;44(3):158-63. doi: https://doi.org/10.1097/NNA.0000000000000044
https://doi.org/10.1097/NNA.000000000000...
. A oferta de cursos organizada pela gestão dos serviços de saúde foi identificada como estratégia facilitadora para o desenvolvimento da liderança por enfermeiros da região Sul do Brasil na APS1818. Lanzoni GMM, Meirelles BHS, Cummings G. Nurse leadership practices in primary health care: a grounded theory. Texto Contexto Enferm. 2016;25(4):e4190015. doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072016004190015
https://doi.org/10.1590/0104-07072016004...
, sendo esta uma necessidade apontada nos discursos dos participantes dessa investigação.

Portanto, a liderança tem sido um desafio para o enfermeiro no exercício de suas atividades diárias. Entretanto, essa competência pode ser desenvolvida no cotidiano do trabalho, através de empenho e confiança em seus potenciais, para que esteja preparado para assumir as inúmeras funções a ele atribuídas. Assim, é fundamental o preparo dos profissionais de enfermagem no que concerne as habilidades de liderança e a possibilidade de aprendê-las, pois se compreende uma função gerencial que requer qualidades individuais e habilidades específicas, passíveis de serem aprendidas por todos os indivíduos1111. Guimarães E, Souza MMT, Passos JP. Desafios do enfermeiro como líder na atenção básica à saúde: do prazer ao sofrimento. Rev Pró-UniverSUS. 2016 [cited 2019 Feb 08];7(2):34-8. Available from: Available from: http://editora.universidadedevassouras.edu.br/index.php/RPU/article/view/346
http://editora.universidadedevassouras.e...
.

Vale mencionar, também, que o aprendizado contínuo em liderança requer ambientes organizacionais, onde os trabalhadores devam participar das tomadas de decisão, sair de posições confortáveis e conhecer novas ideias e experiências.

Outros fatores, demonstrado em estudo realizado no interior do estado de São Paulo e corroborados por este estudo, são aqueles que podem causar fragilidades na liderança do enfermeiro, como: falta de apoio da gestão; a falta de tempo para o exercício da assistência e gerência; perda da clareza de seu papel como enfermeiro; valorização da produção em detrimento da qualidade da assistência ofertada; desmotivação; centralização do poder na figura do enfermeiro; conflitos entre a equipe e os usuários1919. Spagnuolo RS, Bocchi SCM. Between the processes of strengthening and weakening of the Family Health. Rev Bras Enferm. 2013;66(3):366-71. doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672013000300010
https://doi.org/10.1590/S0034-7167201300...
.

A complexidade da APS exige do enfermeiro um maior grau de qualificação para desempenhar suas atribuições nesse contexto identificaram-se a fragmentação, a desarticulação do trabalho em saúde e a sobreposição de ações gerenciais e assistenciais como características que dificultam o exercício da liderança.

Nesse sentido, a educação permanente é uma ferramenta para dirimir a fragmentação do processo de trabalho nas dimensões assistir-gerenciar e serviço-gestão, pois a sobreposição das atribuições gerencial e assistencial na unidade de saúde, por meio da sobrecarga de trabalho, repercute negativamente sobre o exercício da liderança que se dissocia do subprocesso assistir.

Estudo realizado em Zâmbia demonstrou que, após investimento do Ministério da Saúde desse país, na capacitação de enfermeiros e obstetrizes da APS para a liderança, desenvolvimento de competências e habilidades gerenciais e aprimoramento no uso de tecnologias, houve o fortalecimento dessas competências, empoderamento dos enfermeiros e obstetrizes e a institucionalização por parte do governo para a educação permanente desses profissionais, pois considerou-se o avanço da APS e a melhoria do acesso com vistas a cobertura universal em saúde2020. Foster AA, Makukula MK, Moore C, Chizuni NL, Goma F, Myles A, et al. Strengthening and institutionalizing the leadership and management role of frontline nurses to advance universal health coverage in Zambia. Glob Health Sci Pract. 2018;6(4):736-46. doi: https://doi.org/10.9745/GHSP-D-18-00067
https://doi.org/10.9745/GHSP-D-18-00067...
.

Do mesmo modo que relatado pelos participantes desta pesquisa, a equipe gestora tende a valorizar o modelo tradicional e individual da atenção à saúde e, com efeito, reduz as ações de liderança às atividades de supervisão e controle, baseadas, tão somente, na racionalidade da administração científica1515. Andrigue KCK, Trindade LL, Amestoy SC. Academic formation and permanent education: influences on leadership styles of nurses. J Res Fundam Care Online. 2017;9(4):971-7. doi: https://doi.org/10.9789/2175-5361.2017.v9i4.971-977
https://doi.org/10.9789/2175-5361.2017.v...
.

Apesar de o conteúdo apresentado não poder ser generalizado, por se tratar de um estudo local, salienta-se sua relevância, uma vez que agrega conhecimento no âmbito da temática, além de ter proporcionado momentos de reflexão e avaliação das lideranças em suas práticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para os enfermeiros que atuam na ESF, as concepções em torno da liderança são influenciadas pelas diversas atribuições que exercem nesse contexto e pelos conceitos comportamentais e estilos comuns que acabam por interferir no modo como o enfermeiro líder desempenha sua função. Com isso, foi possível apreender os desafios no exercício da liderança no processo de trabalho e as fragilidades que sustentam esse achado.

Destaca-se a similaridade na percepção que os enfermeiros têm do que é ser líder, sendo o trabalho em equipe o facilitador central para sua atuação. Dentre os desafios, citam-se a sobreposição do assistir e gerenciar no processo de trabalho e questões políticas, como as cobranças da gestão, que interferem no estabelecimento de uma liderança transformacional. Maior investimento na formação inicial e continuada e o reconhecimento do exercício da liderança do enfermeiro por parte dos serviços são estratégias que contribuem para a transposição desses desafios.

Por fim, oportunizar espaços para discussão favoreceu a troca de experiências e o aprendizado mútuo sobre o tema, contribuindo para a construção de uma concepção coletiva e integradora com vistas à liderança transformacional. Ademais, possibilitou uma estratégia de validação coletiva do material qualitativo construído com base nas entrevistas duais, corroborando os achados desta pesquisa.

REFERENCES

  • 1. Fernandes MC, Silva LMS. Gerência do cuidado do enfermeiro na estratégia saúde da família: revisão integrativa. Rev Rene. 2013 [cited 2019 Feb 08];14(2):438-47. Available from: Available from: http://periodicos.ufc.br/rene/article/view/3407/2644
    » http://periodicos.ufc.br/rene/article/view/3407/2644
  • 2. Paula M, Peres AM, Bernardino E, Eduardo EA, Sade PMC, Larocca LM. Characteristics of the nurses’ work process in the family health strategy. Rev Min Enferm. 2014;18(2):454-62. doi: https://doi.org/10.5935/1415-2762.20140034
    » https://doi.org/10.5935/1415-2762.20140034
  • 3. Silva SS, Assis MMA, Santos AM. The nurse as the protagonist of care management in the estratégia saúde da família: different analysis perspectives. Texto Contexto Enferm. 2017;26(3):e1090016. doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072017001090016
    » https://doi.org/10.1590/0104-07072017001090016
  • 4. Balsanelli AP, David DR, Ferrari TG. Nursing leadership and its relationship with the hospital work environment. Acta Paul Enferm. 2018;31(2):187-93. doi: https://doi.org/10.1590/1982-0194201800027
    » https://doi.org/10.1590/1982-0194201800027
  • 5. Strapasson MR, Medeiros CRG. [Transformational leadership in nursing[. Rev Bras Enferm. 2009;62(2):228-33. Portuguese. doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672009000200009
    » https://doi.org/10.1590/S0034-71672009000200009
  • 6. Balsanelli AP, Cunha ICKO. The work environment and leadership in nursing: an integrative review. Rev Esc Enferm USP. 2014:48(5):938-43. doi: https://doi.org/10.1590/S0080-6234201400005000022
    » https://doi.org/10.1590/S0080-6234201400005000022
  • 7. Sampieri RH, Collado CF, Lucio MPB. Metodologia de Pesquisa. 5.ed. Porto Alegre: Penso, 2013.
  • 8. Graneheim UH, Lundman B. Qualitative content analysis in nursing research: concepts, procedures and measures to achieve trustworthiness. Nurse Educ Today. 2004;24:105-12. doi: https://doi.org/10.1016/j.nedt.2003.10.001
    » https://doi.org/10.1016/j.nedt.2003.10.001
  • 9. Marquis BL, Huston CJ. Administração e liderança em enfermagem (teoria e prática). 8. ed. Porto Alegre: Artmed; 2015.
  • 10. Fonseca AMO, Porto JB, Borges-Andrade JE. [Leadership: a portrait of Brazilian scientific production]. Rev Adm Contemp. 2015;19(3):290-310. Portuguese. doi: https://doi.org/10.1590/1982-7849rac20151404
    » https://doi.org/10.1590/1982-7849rac20151404
  • 11. Guimarães E, Souza MMT, Passos JP. Desafios do enfermeiro como líder na atenção básica à saúde: do prazer ao sofrimento. Rev Pró-UniverSUS. 2016 [cited 2019 Feb 08];7(2):34-8. Available from: Available from: http://editora.universidadedevassouras.edu.br/index.php/RPU/article/view/346
    » http://editora.universidadedevassouras.edu.br/index.php/RPU/article/view/346
  • 12. Carrara GLR, Bernardes A, Balsanelli AP, Camelo SHH, Gabriel CS, Zanetti ACB. Use of instruments to evaluate leadership in nursing and health services. Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(3):e2016-0060. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.03.2016-0060
    » https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.03.2016-0060
  • 13. Souza LPS, Silva WSS, Mota EC, Santana JMF, Santos LGS, Silva CSO, et al. Os desafios do recém-graduado em Enfermagem no mundo do trabalho. Rev Cubana de Enfermer. 2014 [cited 2019 May 18];30(1):4-18. Available from: Available from: http://www.revenfermeria.sld.cu/index.php/enf/article/view/127
    » http://www.revenfermeria.sld.cu/index.php/enf/article/view/127
  • 14. Caveião C, Peres AM, Amestoy SC, Meier MJ. Teaching-learning tendencies and strategies used in the leadership development of nurses. Rev Bras Enferm. 2018;71(suppl.4):1531-9. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0455
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0455
  • 15. Andrigue KCK, Trindade LL, Amestoy SC. Academic formation and permanent education: influences on leadership styles of nurses. J Res Fundam Care Online. 2017;9(4):971-7. doi: https://doi.org/10.9789/2175-5361.2017.v9i4.971-977
    » https://doi.org/10.9789/2175-5361.2017.v9i4.971-977
  • 16. Ministério da Educação (BR), Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 3, de 7 de novembro de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. Brasília (DF): MEC; 2001 [cited 2019 Mar 19]. Available from: Available from: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES03.pdf
    » http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES03.pdf
  • 17. Kelly LA, Wicker TL, Gerkin, RD. The relationship of training and education to leadership practices in frontline nurse leaders. J Nurs Adm. 2014;44(3):158-63. doi: https://doi.org/10.1097/NNA.0000000000000044
    » https://doi.org/10.1097/NNA.0000000000000044
  • 18. Lanzoni GMM, Meirelles BHS, Cummings G. Nurse leadership practices in primary health care: a grounded theory. Texto Contexto Enferm. 2016;25(4):e4190015. doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072016004190015
    » https://doi.org/10.1590/0104-07072016004190015
  • 19. Spagnuolo RS, Bocchi SCM. Between the processes of strengthening and weakening of the Family Health. Rev Bras Enferm. 2013;66(3):366-71. doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672013000300010
    » https://doi.org/10.1590/S0034-71672013000300010
  • 20. Foster AA, Makukula MK, Moore C, Chizuni NL, Goma F, Myles A, et al. Strengthening and institutionalizing the leadership and management role of frontline nurses to advance universal health coverage in Zambia. Glob Health Sci Pract. 2018;6(4):736-46. doi: https://doi.org/10.9745/GHSP-D-18-00067
    » https://doi.org/10.9745/GHSP-D-18-00067

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    03 Abr 2019
  • Aceito
    23 Jul 2019
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escola de Enfermagem Rua São Manoel, 963 -Campus da Saúde , 90.620-110 - Porto Alegre - RS - Brasil, Fone: (55 51) 3308-5242 / Fax: (55 51) 3308-5436 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: revista@enf.ufrgs.br