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A prisão de Lula e a crença na “justiça verdadeira”: reflexões sobre o lugar do direito na reprodução da sociedade de classes

Lula´s arrest and belief in “true justice”: reflections on the place of law in the reproduction of class society

Resumo

O trabalho tematiza o lugar do direito na reprodução da sociedade de classes, oportunizando uma reflexão sobre o atual momento de crise política no Brasil e crise sistêmica do capital, tendo como mote a prisão do ex-presidente Lula. Revisamos as contribuições da crítica marxista ao analisar a forma jurídica, inclusive as possibilidades de construir algum tipo de “justiça verdadeira” no capitalismo, analisando, por fim, a investida contra os direitos dos trabalhadores no Brasil no aludido contexto atual.

Palavras-chave:
Direito e Marxismo; Crise; Lula

Abstract

The article themathizes the place of law in the reproduction of class society, giving a reflection on the current moment of political crisis in Brazil and the systemic crisis of capital, after the arrest of ex-President Lula. We review the contributions of marxist critique in analyzing the legal form, including the possibilities of constructing some kind of “true justice” in capitalism, analysing, finally, the attacks against the worker´s rights nowadays in Brazil.

Keywords:
Law and Marxism; Crisis; Lula

A nação está em choro

Lula deve estar doente

Nosso maior presidente

Terminou entrando em coro

É bom botar Sérgio Moro

Onde nosso Lula está

Tire ele de lá

Que cadeia é pra ladrão

Tire Lula da prisão

Para o Brasil se soltar

(...)

Nossa manhã tá escura

Eu quero um tempo de paz

A tortura nunca mais

Tenho medo de tortura

Mas como existe loucura

Em Bolsonaro querem votar

Ditadura militar,

Nunca mais nessa nação

Tirem Lula da prisão

Que é pro Brasil se soltar 1 1 Trechos do repente tocado de improviso por Francinaldo Oliveira e Damião Enésio no São João de Caruaru em 23 de junho de 2017. Gravado e transcrito pela autora.

Introdução

Momentos antes de se entregar à Polícia Federal, no dia 07 de abril de 2018, o ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva discursou para uma multidão em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo dos Campos/SP. “Eu sairei dessa maior, mais forte, mais verdadeiro e inocente, porque quero provar que eles é que cometeram um crime político” 2 2 Trechos do discurso amplamente noticiado e aqui coletado direta e indiretamente do site do Jornal O Estadão: < https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lula-confirma-que-vai-se-entregar-a-pf,70002258711 > e < https://odia.ig.com.br/brasil/2018/04/5529509-ex-presidente-lula-se-entrega-a-policia-federal.html#foto=1 >. Acesso em 29 de julho de 2018. . Lula refere-se ao processo judicial que o condenou a doze anos e um mês de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro devido a um controverso favorecimento relacionado a um apartamento triplex na cidade de Guarujá, em São Paulo. “Mentiram no meu processo e eu digo com segurança: nenhum deles dorme com a consciência tranquila como eu durmo com a minha inocência”. Lula afirma não perdoar os responsáveis pela sua prisão por terem construído a sua imagem como a de um ladrão, “sem provas, só com convicção”.

Quero que eles provem qualquer crime que eu cometi (...) Um dia eu sonhei que era possível um metalúrgico sem diploma universitário cuidar melhor da educação do que todos os doutores que já governaram este país (...) Eu sonhei que era possível levar estudantes das periferias para as melhores faculdades deste país, para que a gente não tivesse só juízes e procuradores da elite. Esse crime eu cometi. E é isso que eles não admitem (...) Se o crime que eu cometi foi levar comida e educação para os pobres, eu digo que quero continuar sendo criminoso neste país (...) Como presidente, eu fortaleci o MP e o Judiciário. E sempre disse: quanto mais forte a instituição, mais responsáveis precisam ser seus membros (...) Quando deram o golpe na Dilma, eu já dizia que o golpe não fechava com Lula eleito em 2018. Para eles, pobre não pode ter direito (...) Não adianta eles tentarem me parar. Eu não vou parar porque não sou ser humano, sou uma ideia e estou com vocês. Vou de cabeça erguida e sair de peito estufado porque vou provar a minha inocência (Discurso de Lula noticiado por O ESTADÃO em 07 de abril de 2018).

O comovente discurso de Lula expressa uma inusitada crença na “Justiça” e no “Direito”, a despeito do seu reconhecimento e da sua indignação pelo fato de que agentes do sistema de justiça o estavam conduzindo injustamente à prisão. “Eu acredito na Justiça e não estou acima da lei. Mas acredito numa justiça verdadeira, baseada nos autos do processo. Não posso admitir mentiras em um powerpoint como justiça” 3 3 O ex-Presidente refere-se à exposição das acusações por parte do Ministério Público Federal através de um arquivo do programa Powerpoint que foi amplamente divulgado pela mídia em rede nacional. A esse respeito, a defesa de Lula se pronunciou, em nota, nos seguintes termos: “O processo penal não autoriza que autoridades exponham a imagem, a honra e a reputação das pessoas acusadas, muito menos em rede nacional e com termos e adjetivações manifestamente ofensivas”. Disponível em: < https://ptnacamara.org.br/portal/2016/12/16/defesa-de-lula-processa-procurador-do-power-point-por-danos-morais-e-denuncia-sergio-moro-no-cnj >. .

Como conferir sentido analítico à obstinação de Lula em provar a sua inocência, diante do reconhecimento de haver um complô das elites com setores do Judiciário contra ele? Se ele demonstra reconhecer as reais razões pelas quais estava sendo processado – “Se o crime que eu cometi foi levar comida e educação para os pobres, eu digo que quero continuar sendo criminoso neste país” -; se ele compreendia o significado de sua prisão dentro de um contexto político maior – “Quando deram o golpe na Dilma, eu já dizia que o golpe não fechava com Lula eleito em 2018” –, então por que a insistência em acreditar na justiça e, como resultado disso, entregar-se à polícia?

Voltemos a um ponto anterior do mesmo enredo histórico: a deposição de Dilma Roussef em 31 de agosto de 2016. As disputas narrativas a respeito desse momento – “impeachmeant” ou “golpe” – enfrentam-se em torno de outro imbróglio jurídico, desta vez a respeito das “pedaladas fiscais”, compreendidas ora como crime, ora como operação de crédito corriqueira na política nacional. O que esse episódio da história do Brasil tem a nos dizer sobre o significado do direito, com os deputados autorizando despudoradamente o impedimento da presidenta em nome de Deus e da família? Como as forças de contestação da ordem posta devem se movimentar no terreno jurídico e o que devem esperar dele?

Neste artigo, buscamos tematizar como a crítica marxista pode contribuir para problematizar o lugar do direito na reprodução da sociedade de classes, considerando a importância desta reflexão no momento de crise mundial do capital e intensa crise política no Brasil. Em um primeiro momento do texto, buscaremos revisar as contribuições marxianas e marxistas que tematizaram as possibilidades do direito servir a projetos de emancipação ou transformação social. Em seguida, damos conta de analisar a relação constitutiva entre o direito e a sociedade de classes, apontando alguns elementos da conformação do capitalismo dependente que nos levariam a aprofundar o contexto específico do desenvolvimento do direito nas sociedades de capitalismo dependente. Por fim, relacionamos o momento de ataque aos trabalhadores no contexto do golpe como inserido na profunda crise que o capital atravessa.

O marco teórico da discussão transitará na tradição marxista, tanto nos escritos que voltaram as análises para o direito (do próprio Marx, de Engels e Kautsky, de Pachukanis e Stucha) como nas formulações da crítica marxista brasileira (em especial, Florestan Fernandes).

1. A “justiça verdadeira”

A crença de Lula numa “justiça verdadeira” encontra correspondência em formulações teóricas significativas da crítica jurídica no Brasil. Critica-se o direito e a justiça pelo modo como vêm se realizando “hoje”, o que implica na esperança de que, em algum ponto da história, a forma jurídica esteja enfim liberada para encarnar a emancipação social. Nessas análises, o direito costuma ser alocado, contraditoriamente, como a dimensão que nos possibilitará resistir a todas as formas de violência e opressão, apesar das articulações históricas e estruturais entre essas violências e a forma jurídica.

Trata-se do que denominamos noutro trabalho como expressão do “fetichismo jurídico de esquerda” ( ALMEIDA: 2015 ALMEIDA, Ana Lia. Um estalo nas faculdades de direito: perspectivas ideológicas da assessoria jurídica universitária popular. 2015. 342 fls. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa - PB. ), confiante na edificação de um “outro direito” ou de um “direito emancipatório”, conectado com a realização dos direitos humanos e com a transformação social. Esta variante fetichista se contrapõe à versão positivista dominante, que caracteriza o direito pela sua neutralidade e objetividade, valorizando assim o respeito à ordem jurídica como garantia do “bem comum” e da “paz social”.

O fetichismo do direito consiste em concebê-lo “como uma área fixa, coesa, definida univocamente ‘em termos lógicos’” não apenas do ponto de vista da sua manipulação pragmática, mas também teoricamente, como um sistema coeso “que pode ser concretamente manejado tão somente pela ‘lógica’ jurídica, autossuficiente, fechado em si mesmo” (LUKÁCS: 2013, p.237). Já o fetichismo jurídico de esquerda consiste na associação entre direito e emancipação, na crença de que a forma jurídica é capaz de servir como um “instrumento” para a transformação social, como se o direito de fato pudesse ser, um dia, completamente autônomo em relação à dominação de classes.

Não se trata aqui de negar a mediação das lutas sociais com a ordem jurídica. Tal mediação é inescapável, no sentido de que não está sob escolha dos trabalhadores serem ou não alcançados pela forma jurídica. Recusamos, deste modo, um ponto de vista antinormativo de base anarquista, do tipo “os trabalhadores não devem se envolver com o Estado nem com o direito”, porque isto seria simplesmente impossível. Contudo, pensamos ser necessário refutar as ilusões de conciliação entre a forma jurídica e a emancipação.

Essas ilusões parecem até aqui ter dominado o estado da arte da crítica jurídica no Brasil 4 4 A despeito disso, é notável certo contraponto no avanço de análises marxistas, principalmente de base pachukaniana. Conferir edição XXX da Direito e Práxis, apresentando o Dossiê Direito e Marxismo, bem como os anais dos seminários do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais, em especial os trabalhos apresentados nos Espaços de Discussão “Direito e Marxismo”. . A despeito de todos os avanços analíticos deste campo sobre o positivismo jurídico como ideologia dominante no direito e as implicações daí decorrentes com a reprodução da ordem posta, tais análises têm em comum um investimento teórico na caracterização da forma jurídica para além da ideologia dominante. O direito costuma ser apresentado como um “instrumento”, que tanto pode estar a serviço dos poderosos e da perpetuação da dominação quanto pode também se voltar aos processos de transformação social participando da construção de uma sociedade justa e igualitária. Critica-se o direito e a justiça pelo modo como vêm se realizando “hoje”, o que implica na esperança de que, em algum ponto da história, a forma jurídica esteja enfim liberada para encarnar a emancipação social. Daí se conclui pela necessidade de construir outro tipo de direito, “alternativo” ao que está posto, “justo”, “crítico”, “emancipatório”, que supere o positivismo em direção a outro modelo de sociedade.

Aqui se situam as reflexões de Boaventura de Sousa Santos (2003 SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais. n°65. Coimbra: 2003. p.03-76. e 2015) quando indaga se “poderá o direito ser emancipatório”; as de Roberto Lyra Filho (1985) LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Nova Cultural/ Brasiliense, 1985. a respeito da “dialética social do direito”; as de José Geraldo de Sousa Jr.(2008) sobre o direito como um processo ilimitado de “consciência da liberdade”; as de Antônio Carlos Wolkmer WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 3 ed. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 2001. a respeito do pluralismo jurídico (2001), as de Luís Alberto Warat (1994) WARAT, Luís Alberto. Introdução geral ao direito. Interpretação da lei. Temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994. sobre a necessidade de superar o “senso comum teórico dos juristas”; as formulações ligadas ao movimento do “direito alternativo”, entre outras. Ainda em formulações mais aproximadas das análises de Pachukanis, como as de Miguel Pressburguer (1990) PRESSBURGUER, Miguel (et al). Direito insurgente: o direito dos oprimidos. Rio de Janeiro: AJUP; FASE, 1990. , ligado à orientação insurgente, a tese da correspondência da forma jurídica com a forma das trocas mercantis não foi levada até as últimas consequências, ou seja, a compreensão da extinção do direito numa sociedade igualitária. Como concluído noutro trabalho, “ao conceber o direito nos marcos da emancipação, falta freio a estas análises. Elas ampliam o direito para além das inescapáveis implicações da forma jurídica com a sociedade de classes” ( ALMEIDA: 2015 ALMEIDA, Ana Lia. Um estalo nas faculdades de direito: perspectivas ideológicas da assessoria jurídica universitária popular. 2015. 342 fls. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa - PB. , p.216).

Esta tensão a respeito dos limites e das possibilidades da relação entre o direto e as lutas sociais esteve colocada desde cedo nas movimentações da classe trabalhadora. Outro não é o tema do livro de Engels concluído por Kautsky (2012), “O Socialismo Jurídico”, publicado no ano de 1887 em defesa das ideias de Marx contra a adesão dos trabalhadores à “ideologia jurídica”.

A discussão tem como interlocutor principal um jurista, Anton Menger, autor de um livro intitulado “O direito ao produto integral do trabalho historicamente exposto”, publicado em 1886, no qual se defendia a transformação do ordenamento jurídico por meios pacíficos como forma de alcançar o socialismo. No prefácio da edição publicada pela Boitempo, Márcio Bilharinho Naves explica que as posições de Menger favoreciam a “ala direitista da social-democracia alemã, que privilegiava a participação no sistema eleitoral” ( ENGELS e KAUTSKY, 2012 ENGELS, Friedrich e KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. São Paulo: Boitempo, 2012. , p.10). Nesse texto, Engels e Kautsky apresentam um ponto de vista “irredutivelmente antijuridicista”, na expressão de Naves.

O centro da discussão consistia no tal “direito ao produto integral do trabalho”, que Engels e Kautsky refutavam como parte do programa comunista. Segundo eles, “o direito singular de cada trabalhador ao produto do seu trabalho” é algo “muito diferente” da “reivindicação de que os meios de produção e os produtos devam pertencer à coletividade trabalhadora” ( ENGELS e KAUTSKY, 2012 ENGELS, Friedrich e KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. São Paulo: Boitempo, 2012. , p.29). Associada a este debate em torno da forma mais adequada de dividir os produtos do trabalho na sociedade comunista, portanto, estava a concepção do direito para o marxismo.

Ao negar a reivindicação do “direto fundamental” ao “produto integral” do trabalho, Engels e Kautsky delimitavam a complexa relação dos comunistas com as reivindicações jurídicas: “Tentamos por todos os meios fazer com que esse obstinado jurista compreendesse que Marx nunca reivindicou o ‘direito ao produto integral do trabalho’, nem jamais apresentou reivindicações jurídicas de qualquer tipo em suas obras teóricas” ( ENGELS e KAUTSKY, 2012 ENGELS, Friedrich e KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. São Paulo: Boitempo, 2012. , p.34). Asseguram que os socialistas dispensam todos os direitos fundamentais de Menger, o que não significa que renunciem a propor determinadas reivindicações jurídicas que correspondam às suas demandas num dado programa, como qualquer classe em luta. Para ir além, no entanto, na direção da sociedade comunista, os trabalhadores deveriam se livrar “das coloridas lentes jurídicas” ( ENGELS e KAUTSKY, 2012 ENGELS, Friedrich e KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. São Paulo: Boitempo, 2012. , p.21).

A crítica de Engels e Kautsky remete diretamente à discussão apresentada por Karl Marx (2012) na “Crítica ao Programa de Gotha”. Ali, encontramos um veemente embate com o programa socialdemocrata apresentado pelo Partido Operário Alemão em 1875, tendo como uma das divergências a proposta contida no Programa de dividir igualmente os frutos do trabalho.

A sociedade que os socialdemocratas propunham, julgava Marx, não correspondia ao comunismo. Nela, o trabalhador receberia um “bônus” pelo trabalho que prestou e retiraria o equivalente para seu consumo – “Aqui impera, evidentemente, o mesmo princípio que regula o intercâmbio de mercadorias, uma vez que este é um intercâmbio de equivalentes” (Marx, 2012, p.31), donde resulta que “o direito igual continua sendo aqui, em princípio, o direito burguês”, incapaz de atender adequadamente às necessidades desiguais dos indivíduos diferentes. Para atendê-las, o direito teria que ser desigual, e não igual; mas, por sua natureza, o direito consiste na aplicação de uma medida igual – “no fundo é, portanto, como todo direito, o direito da desigualdade” (MARX, 2012, p.32). Somente depois de alcançada a fase superior do comunismo é que seria possível “ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual segundo suas necessidades” (MARX, 2012, p.33).

Portanto, as questões em torno do papel do direito frente às lutas sociais permanecem atuais como no auge dos processos de mobilização dos trabalhadores no séc. XIX. De lá para cá, contudo, o alcance do direito parece ter se ampliado e a forma jurídica se enraizado como horizonte intransponível. Este enraizamento parece se expressar na insistência de Lula em provar a sua “inocência”, na demonstração da sua crença na “justiça verdadeira”, aquela que “decorre dos autos do processo”.

Esta afirmação, além de apontar para a “justiça verdadeira” num momento em que as instituições de justiça materialmente existentes estão implicadas numa perseguição política, ainda associa a justiça a uma dimensão formalista, já que decorrente dos autos do processo. A justiça seria algo que decorre das regras processuais quando corretamente aplicadas, ou a justiça é uma síntese da luta de classes associada à reprodução do capital? Não seria este um momento privilegiado da história para considerar os laços constitutivos entre a forma jurídica e a reprodução da ordem em termos mais abrangentes?

2. Direito e capital

As relações entre o direito e a sociedade capitalista podem ser analisadas, evidentemente, sob diversos enfoques. Do ponto de vista da teoria liberal do direito, essas relações costumam ser apresentadas de maneira a-histórica, como se a forma jurídica desde sempre estivesse presente na regulação da vida social, “evoluindo” para o seu momento mais ordenado e sistemático no capitalismo.

O enfoque do materialismo histórico, por sua vez, indica que a forma específica que o direito passou a assumir em determinado estágio do desenvolvimento social se relaciona ao surgimento da forma da mercadoria no plano das relações materiais de produção, como indicou Eugeny Pachukanis em Teoria Geral do Direito e Marxismo.

Pachukanis, participante do processo revolucionário soviético, foi o principal responsável por dar continuidade às indicações de Karl Marx, n´O Capital (1988), sobre a íntima relação entre o sujeito de direito e o proprietário de mercadorias. Ali, Marx considerava que, ao mesmo tempo em que o produto do trabalho vira mercadoria e porta valor, o homem se torna sujeito jurídico e portador de direitos para poder negociar essas mercadorias. Sendo assim, o sujeito de direito consiste numa abstração que corresponde materialmente aos proprietários 5 5 Indicamos, noutro trabalho, possibilidades de continuar explorando as conclusões de Pachukanis a respeito do sujeito de direito, considerando que as relações de trocas mercantis se atravessam por relações raciais, de gênero e sexualidade de modo que este sujeito “proprietário” pode ser compreendido como racializado, generificado e sexualizado (ALMEIDA: 2017b). – “um proprietário de mercadorias abstrato e transposto para as nuvens” ( PACHUKANIS: 1988 PACHUKANIS, Evgeny Bronislavovich. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Sílvio Donizete Chagas. São Paulo: Acadêmica, 1988. , p. 78).

Ao desenvolver as ideias marxianas com singular rigor metodológico, Pachukanis desnuda a correspondência entre a forma jurídica e a forma da circulação mercantil, considerando o ato da troca como fundante tanto para a economia política como para o direito. O direito, desse modo, “representa a forma, envolvida em brumas místicas, de uma relação social específica” ( PACHUKANIS, 1988 PACHUKANIS, Evgeny Bronislavovich. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Sílvio Donizete Chagas. São Paulo: Acadêmica, 1988. , p.42): a relação dos proprietários de mercadorias entre si. A função principal que o direito assume é a de garantir a troca entre esses sujeitos; mais que isso, a sua forma, mesma, equivale à forma dessa troca, baseadas, ambas, no princípio da equivalência.

Esta caracterização geral dos laços constitutivos entre o direito e o capital precisa ser refinada tendo em conta as sociedades de capitalismo periférico. Sendo assim, uma das tarefas para as análises marxistas do direito consiste na investigação de como a forma jurídica se desenvolveu na periferia do capital, tematizando a forma jurídica dependente ou periférica. Para essa tarefa, os estudos daqueles que buscaram compreender a formação social brasileira e latino-americana tornam-se essenciais, como os de Florestan Fernandes, Rui Mauro Marini, Caio Prado Júnior, entre outros.

Como nota Ricardo Pazello (2016) PAZELLO, Ricardo Prestes. Contribuições metodológicas da teoria marxista da dependência para a crítica marxista ao direito. Revista Direito e Práxis, vl. 7, nº 13. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2016. p.540-574. Disponível em: <http://www.e- -publicacoes.uerj.br>. Acesso em julho de 2018.
http://www.e- ...
, alguns passos já foram dados nessa direção, aproveitando, inclusive, abordagens teóricas latino-americanas fora da tradição marxista. É o caso, por exemplo, dos estudos do argentino Carlos María Vilas, influência importante para as formulações do mexicano Jesus Antônio de la Torre Rangel (2007) DE LA TORRE RANGEL, Jesús Antonio. El Derecho como arma de liberación em América Latina: Sociologia jurídica y uso alternativo de derecho. 3 ed. San Luis Potosí: Comisión Estatal De Derechos Humanos; Universidad Autónoma De San Luis Potosí; Aguascalientes: Centro de Estudios Jurídicos Y Sociales Padre Enrique Gutiérrez, 2007. sobre o direito como “arma de libertação” na América Latina. Noutros estudos atuais 6 6 SECCO, Fabiana de Melo. Da crítica à resignação: Florestan Fernandes e o Direito como ideologia no capitalismo dependente brasileiro. 2017, 100 fls. Dissertação (Mestrado – Universidade Federal de Juiz de Fora); e RODRIGUES, Arthur Bastos. A função do direito na formação do capitalismo periférico de via colonial em Caio Prado Jr. 2017, 286 fls. Dissertação (Mestrado – Universidade Federal de Juiz de Fora). , também se vem buscando analisar o que as formulações de Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes sobre a formação social brasileira podem contribuir para a reflexão sobre o desenvolvimento do direito no Brasil.

De nossa parte, desde o estudo doutoral ( ALMEIDA: 2015 ALMEIDA, Ana Lia. Um estalo nas faculdades de direito: perspectivas ideológicas da assessoria jurídica universitária popular. 2015. 342 fls. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa - PB. ) e em alguns trabalhos recentes, buscamos analisar um aspecto desse processo: o modo como a ideologia do positivismo jurídico se realiza entre nós, cumprindo certas funções específicas no contexto do capitalismo dependente (ALMEIDA, 2017 ________. O apartheid do direito: reflexões sobre o positivismo jurídico na periferia do capital. Revista Direito e Práxis, vl. 8, nº 2. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2017. p.869-904. Disponível em: <http://www.e- -publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju>. Acesso em julho de 2018.
http://www.e- ...
). Em projeto de pesquisa vinculado à Universidade Federal da Paraíba 7 7 O projeto, intitulado “O positivismo jurídico na periferia do capital: uma análise de setores do campo jurídico na Paraíba”, funciona desde 2017 dentro do Grupo de Pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Sociais (GPLutas), investigando como o positivismo jurídico se expressa nas práticas de setores do judiciário paraibano e na educação jurídica. , vimos nos ocupando em investigar como estas particularidades se expressam nas práticas reais dos juristas. Estamos amadurecendo as análises sobre a convivência entre formas de personalismo e favorecimento com a retórica da autoridade das leis; a convivência de formalismos exacerbados com diversos planos de informalidade nas práticas judiciais; a superficialidade teórica e tautologias típicas dos “doutrinadores” do direito que conformam um dogmatismo manualesco; a precária atitude investigativa na lógica de produção de conhecimento entre os juristas etc. Estas análises ainda são incipientes, mas apontam para um fértil campo de possibilidades investigativas da forma jurídica que partem do primeiro debate soviético, porém buscam avançar para compreender as especificidades históricas da relação entre direito e capital de acordo com formações sociais específicas.

Acompanhando as análises de Florestan Fernandes (2009) FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. São Paulo: Global, 2009. , o capitalismo dependente que aqui se conformou engendrou um subdesenvolvimento para além da perpetuação de estruturas econômicas arcaicas que se modernizavam de modo limitado, conformando um tipo de “subdesenvolvimento paralelo” em todas as dimensões da vida: “O capitalismo dependente gera, ao mesmo tempo, subdesenvolvimento econômico e subdesenvolvimento social, cultural e político. Em ambos os casos, ele une o arcaico ao moderno e suscita seja a arcaicização do moderno, seja a modernização do arcaico” ( FERNANDES: 2009 FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. São Paulo: Global, 2009. , p.66).

Tal padrão de subdesenvolvimento dependente está diretamente implicado na maneira potencialmente conflituosa pela qual as classes “baixas” respondem ao contexto social violento que vivenciam. “Para se realizarem ‘dentro da ordem’, essas classes necessitariam de condições que só seriam possíveis mediante a eliminação simultânea da dependência e do subdesenvolvimento” ( FERNANDES: 2009 FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. São Paulo: Global, 2009. , p.89). No entanto, as condições do subdesenvolvimento são tão violentas que as aspirações dessas classes tendem a girar em torno da satisfação de suas necessidades mais imediatas, dificultando a articulação de contra-ideologias no sentido de uma “revolução contra a ordem”. Daí a tendência à propagação de ideologias “desenvolvimentistas”, capazes de canalizar limitadas possibilidades de atendimento a essas necessidades. Ocorre que “a dependência e o subdesenvolvimento suscitam problemas que não podem ser resolvidos sob o capitalismo dependente e a sociedade de classes subdesenvolvida” ( FERNANDES: 2009 FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. São Paulo: Global, 2009. , p.100). A única via capaz de superar os problemas causados pela dependência e pelo subdesenvolvimento consiste na “‘revolução contra a ordem’ por meio da explosão popular e do socialismo” ( FERNANDES: 2009, FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. São Paulo: Global, 2009. p.101).

No entanto, a realização desta via esbarra nas peculiaridades das configurações políticas que o desenvolvimento capitalista dependente requer: uma combinação especial de padrões democráticos e autoritários que converterão o Estado numa “instituição-chave, de autodefesa das classes privilegiadas e de controle da sociedade nacional pelas elites dessas classes” ( FERNANDES: 2009 FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. São Paulo: Global, 2009. , p.102). Nesse modelo de Estado, típico da América Latina, as demandas das classes populares são sufocadas pela força, já que não se pode resolver as contradições de uma sociedade de classes dependente e subdesenvolvida. Um tipo de Estado particularmente violento, completamente avesso a conquistas sociais mínimas em função da posição subordinada da burguesia brasileira.

Conforma-se, assim, uma espécie de “hegemonia burguesa conglomerada”, em que os interesses e a concepção de mundo ou do poder dos setores mais estáveis e consolidados servem de referência para os demais. Este padrão de hegemonia burguesa dependente, Florestan Fernandes designou como “plutocracia”, visto que tal conglomerado de posições, interesses, orientações comuns no uso do poder político etc., compartilha do “poder fundado na riqueza, na disposição de bens e na capacidade de especular com o dinheiro (ou com o crédito)” ( FERNANDES, 2009 FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. São Paulo: Global, 2009. , p.106).

As classes privilegiadas entenderam que não podem ser ‘iluministas’, ‘liberais’ e muito menos ‘tolerantes’. Acabaram acomodando-se à ideia de que não podem repetir o padrão europeu de revolução burguesa e que podem tirar maior proveito do ‘pragmatismo político’, que lhes ensina a ser impossível conciliar capitalismo e democracia, sem abrir mão do seu superprivilegiamento relativo e sem atacar as iniquidades do subdesenvolvimento ( FERNANDES: 2009 FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. São Paulo: Global, 2009. , p. 110).

Destas especificidades das configurações da sociedade de classes dependente resulta que a burguesia brasileira (e latino-americana) é incapaz de cumprir sua tarefa histórica de revolucionar a sociedade tradicional em sentido burguês. Quem realiza a revolução democrática burguesa nesse contexto é a classe trabalhadora, exigindo direitos. Primeiro, cobram o papel das “instituições-biombo”, que de outra forma não cumpririam com as mínimas funções para as quais deveriam estar voltadas. Segundo, contrapõem-se ao isolamento e à falta de civilização dominantes na sociedade civil. Por fim, desatam as revoluções e reformas burguesas típicas. Este processo histórico, levado a cabo pela própria burguesia nos países centrais, nem sempre é possível na periferia (FERNANDES: 2009B, p.29 __________. Nós e o marxismo. São Paulo: Expressão Popular, 2009. ).

As classes burguesas não querem (e não podem, sem destruir-se) abrir mão: das próprias vantagens e privilégios; dos controles que dispõem sobre si mesmas, como e enquanto classes; e do controle que dispõem sobre as classes operárias, as massas populares e as bases nacionais das estruturas de poder. As vantagens e privilégios estão na raiz de tudo, pois se as classes burguesas “abrissem” a ordem econômica, social e política perderiam, de uma vez, qualquer possibilidade de manter o capitalismo e preservar a íntima associação existente entre dominação burguesa e monopolização do poder estatal pelos estratos hegemônicos da burguesia (FERNANDES, 1976, pp. 363-364 __________. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. ).

Dentro dessa realidade, ao exigir direitos básicos no contexto do centro, os trabalhadores da periferia tensionam além dos limites as conformações do capitalismo periférico: a “revolução dentro da ordem” passa a se confundir com a “revolução contra a ordem”. É por isso que, entre nós, as lutas por direitos tão básicos, como liberdade de expressão, moradia, saúde, educação etc., são reprimidas com tamanha violência e adquirem um potencial explosivo.

3. O golpe, a crise e os “ataques” aos direitos dos trabalhadores

No contexto da crise político-econômica cujo ápice se expressa no golpe de estado que o Brasil atravessou em 2016 e na prisão de Lula em 2018, certas análises apontam para o aprofundamento de um momento de “ataque” aos direitos dos trabalhadores e dos demais sujeitos subalternizados. Tais ataques consistem em inúmeros retrocessos na garantia de direitos conquistados nas últimas décadas, como a reforma trabalhista, os projetos para a reforma da Previdência, o corte nos investimentos sociais, o fortalecimento do agronegócio e da comercialização dos agrotóxicos 8 8 Este processo vem sendo compreendido pelas organizações populares e por alguns estudiosos como um “agrogolpe” em curso. Conferir o Relatório da Violência no Campo no Brasil em 2017 ( https://www.cptnacional.org.br ) e MITIDIERO JÚNIOR, M; BARBOSA,H. e SÁ, T. Quem produz comida para os brasileiros? 10 anos do Censo Agropecuário 2006. Revista Pegada, v.18, n.3, set-dez 2017, pp 7-77. , a diminuição da verba destinada às universidades públicas, o avanço da influência religiosa na política nacional 9 9 Conferir MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Sociedade e Estado vol.32, no3, Brasília, Departamento e Programa de PósGraduação em Sociologia, 2017, pp.723-745.; PRANDI, Reginaldo; SANTOS, Renan William dos. Quem tem medo da bancada evangélica? Posições sobre moralidade e política no eleitorado brasileiro, no Congresso Nacional e na Frente Parlamentar Evangélica. Tempo Social – Revista de Sociologia da USP vol. 29, no 2, São Paulo, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia, 2017, pp.181-214; BALIEIRO, Fernando F. “Não se meta com meus filhos”: da invenção à disseminação do fantasma da “ideologia de gênero”. Cadernos Pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero Pagu-Unicamp, 2018. , os desinvestimentos e reorientações ideológicas no setor da educação 10 10 Conferir: MIGUEL, Luis Felipe. Da “doutrinação marxista” à “ideologia de gênero” – Escola sem Partido e as leis da mordaça no parlamento brasileiro. Direito & Práxis vol.7, no15, Rio de Janeiro, 2016, pp.590-621; SOUZA, A.L.S. et al. A ideologia da Escola sem Partido: 20 autores desmontam o discurso. São Paulo: Autores Associados, 2016; REIS, G.R.F.S.; CAMPOS, M.S.N.; FLORES, R.L.P. Currículo em tempos de Escola sem Partido: Hegemonia disfarçada de neutralidade. Revista Espaço do Currículo, v. 9, n. 2, p. 200-214, maio/ago. 2016, PENNA, F.A. Programa Escola sem Partido: Uma ameaça à educação emancipadora. In: GABRIEL, C.T.; MONTEIRO, A.M.; MARTINS, M.L.B. (Orgs.). Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2016. p. 43-58 e MACEDO, E. As demandas conservadoras do Movimento Escola Sem Partido e as Bases Conservadoras da Base Nacional Curricular Comum. Educação & Sociedade, v. 38, n. 139, p. 507-524,abr-jun. 2017. , entre tantas outras medidas.

Embora aqui não seja a oportunidade de tematizar o modo como os governos anteriores de Lula e Dilma já estavam implicados em muitas dessas iniciativas 11 11 O Governo Lula, a partir de 2003, continuou com a política econômica do Governo FHC no que diz respeito a “a abertura comercial, a desregulamentação financeira, a privatização, o ajuste fiscal e o pagamento da dívida, a redução dos direitos sociais, a desregulamentação do mercado de trabalho e a desindexação dos salários” (BOITO JR: 2003 e 2005). , acompanhamos a compreensão de que existe um processo de “ofensiva neoconservadora” (LEHER e MOTTA; 2017 LEHER, R; VITTORIA, P. e MOTTA, V. Educação e mercantilização em meio à tormenta político-econômica do Brasil. Revista Germinal: Marxismo e Educação em Debate. Salvador, v.9, n.1, pp14-24, abr. 2017. ) que vem se intensificando nesse contexto de rearticulação de setores das classes dominantes num cenário político mais propício aos retrocessos em discussão. Como aponta Virgínia Fontes (2017 FONTES, V. Capitalismo, crises e conjuntura. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 130, set./dez. 2017, pp. 409-425. , p. 422), as contrarreformas iniciadas nos governos do PT “se aprofundaram no (des) governo Michel Temer, apesar de sua gritante ilegitimidade”, compreendendo um processo de “extorsão de direitos” a rebaixar as condições materiais de existência dos trabalhadores.

Importa situar que este momento particular de ofensiva contra os trabalhadores no Brasil é parte de um contexto global de crise do capitalismo. A compreensão desta crise, por sua vez, remonta aos anos 70, momento em que o capital necessitou de profundos rearranjos no plano das relações materiais de produção, com graves consequências para a vida dos trabalhadores e suas formas de organização.

Conforme as análises de István Mészáros ________. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Tradução de Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. 1ª edição. São Paulo: Boitempo: 2011. , sobretudo em Para Além do Capital (2011), mas também em O Poder da Ideologia (2004), os sinais desta crise já apareciam no mundo desde o final da década de 1960 e tal situação de colapso se prolonga até os nossos dias. Esta não se configuraria como mais uma crise cíclica, dessas que emergem de tempos em tempos (como foi compreendida por muitos a crise do petróleo no início dos anos 70). Estaríamos diante de uma novidade histórica: uma crise estrutural do sistema sócio-metabólico do capital. Diferentemente das que a antecederam, a crise sistêmica tem caráter universal, em vez de estar restrita a uma esfera particular da atividade produtiva; o seu alcance é verdadeiramente global, em vez de situado em um conjunto particular de países; a sua escala de tempo é extensa/contínua/permanente, em vez de limitada e cíclica; por fim, o seu modo de se desdobrar é mais rastejante quando comparado aos colapsos anteriores, mais espetaculares e dramáticos (MÉSZÁROS: 2011, p.795 e 796 ________. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Tradução de Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. 1ª edição. São Paulo: Boitempo: 2011. ).

A erupção da crise estrutural do sistema do capital localiza-se aproximadamente no fim da década de 1960 ou no início da seguinte. De fato, os levantes de 1968 na França e em muitos outros países, até mesmo nos Estados Unidos, depois de um longo período de expansão no pós-guerra e de acomodação keynesiana em todo o mundo capitalista, podem ser vistos como um marco memorável. Os levantes de 1968 manifestaram-se não somente sob a forma de grandes conflitos econômicos, mas também como confrontações políticas significativas, mobilizando até algumas forças sociais insuspeitadas do lado da feroz oposição à ordem estabelecida. Mas, talvez mais importante, por volta de 1970 estávamos submetidos a um desenvolvimento perigoso no mundo do trabalho que pouco depois teve de ser caracterizado, mesmo pelos apologistas da ordem estabelecida, como “desemprego estrutural”. Desde aqueles dias, que hoje estão a não menos de três ou quatro décadas, esse problema foi ainda mais agravado, em vez de solucionado, conforme repetidas promessas e expectativas. De fato, ele se ampliou, atingindo proporções perigosas até mesmo nos países capitalistas mais desenvolvidos, acentuando assim a irremediabilidade persistente dessa característica da crise estrutural do sistema ( MÉSZÁROS, 2004 MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução de Paulo Cézar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004. , p. 16-17).

Para Mészáros, o desemprego crônico e irreversível é um dos importantes elementos indicadores de que o sistema do capital vem chegando ao seu limite absoluto. A destruição sem precedentes da natureza é outro desses limites estruturais, pondo em grave risco as possibilidades produtivas. Dessa forma, o capital obedece a uma lógica de autorreprodução destrutiva – assustadoramente exemplificada pela ampliação do complexo industrial militar – que consiste numa ameaça à própria existência da humanidade (MÉSZÁROS, 2011 ________. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Tradução de Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. 1ª edição. São Paulo: Boitempo: 2011. ).

Os contornos mais gerais deste quadro crítico são assim sintetizados por Ricardo Antunes (2009 ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009. , p.31): 1. queda da taxa de lucro, com a redução dos níveis de produtividade do capital; 2. esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista; 3. hipertrofia da esfera financeira, ganhando relativa autonomia frente aos capitais produtivos e priorizando a especulação; 4. maior concentração de capitais por conta da fusão entre as empresas monopolistas e oligopolistas; 5. crise do Welfare State ou do “Estado de bem-estar social”, acarretando crise fiscal e retração dos gastos públicos, transferindo-os para o capital privado; 6. aumento das privatizações, tendência às desregulamentações e flexibilização do processo produtivo, dos mercados e da força de trabalho.

A crise estrutural em curso, evidentemente, não se restringe ao âmbito econômico; o colapso em questão é uma verdadeira crise de dominação em geral, como a define Mészáros (2011) ________. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Tradução de Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. 1ª edição. São Paulo: Boitempo: 2011. , alcançando todo o conjunto das relações humanas que se desenrolam sob o sistema sócio-metabólico do capital. Sendo assim, “reverbera ruidosamente em todo o espectro das instituições políticas” (MÉSZÁROS, 2011, p.800 ________. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Tradução de Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. 1ª edição. São Paulo: Boitempo: 2011. ), exigindo novas configurações diante das condições socioeconômicas cada vez mais instáveis. Trata-se de “uma nova época histórica” em contraste com as fases anteriores do desenvolvimento capitalista – e não dos “acontecimentos mais ou menos efêmeros de uma nova conjuntura” ( Mészáros; 2004 MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução de Paulo Cézar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004. , p.15).

Uma das principais características dessa nova fase é a emergência do consenso neoliberal, substituindo, inclusive, o modelo institucional anterior do Estado de Bem-Estar pelo Estado neoliberal – “um Estado mínimo para o trabalho e máximo para o capital”, na síntese de José Paulo Netto (2004, p.72) ________. O marxismo impenitente. São Paulo: Cortez, 2004. .

Em resposta a esta crise sistêmica, iniciou-se um amplo e profundo “processo de reorganização do capital e de seu sistema ideológico e político de dominação” ( ANTUNES: 2009 ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009. , p.33). Alguns dos principais elementos dessa reorganização consistem no advento do neoliberalismo (com a privatização do Estado, desregulamentação dos direitos trabalhistas e desmontagem do setor produtivo estatal); e “um intenso processo de reestruturação da produção e do trabalho, com vistas a dotar o capital do instrumental necessário para tentar repor os patamares de expansão anteriores” ( ANTUNES: 2009 ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009. , p.33) – uma mutação nos padrões de acumulação, sem, contudo, alterar o modo de produção.

Tal reacomodação do capital acarretou graves consequências para a classe trabalhadora. Em função do desemprego em ordem estrutural e da ampla precarização do trabalho, os trabalhadores ficaram sujeitos à informalidade, ao trabalho parcial e a uma série de modalidades e condições que, sem dúvida, aumentaram a exploração sobre a classe como um todo. Muito embora a reestruturação produtiva tenha sido a resposta do capital à crise, ela investiu na obtenção do consenso da classe trabalhadora. As contradições que possibilitaram a aceitação dessa resposta estão relacionadas ao enfraquecimento das forças de contestação ligadas à perspectiva do trabalho.

Para que as alterações necessárias à reestruturação produtiva fossem levadas a cabo, implicando numa piora nas condições de trabalho e de vida dos trabalhadores, foi preciso enfraquecer os instrumentos de organização política de que a classe dispunha para se contrapor às forças do capital. Tal investida contra esses instrumentos organizativos da classe, sobretudo os partidos e os sindicatos, operou-se tanto através da repressão como também por meio de operações ideológicas para obter o consenso dos trabalhadores, convencendo-os de que os ajustes em questão eram indispensáveis para superar a recessão econômica (NETTO, 2004, p.73 ________. O marxismo impenitente. São Paulo: Cortez, 2004. ).

A reestruturação produtiva engendrou, no Brasil, algo que Ana Elizabete Mota (2000) MOTA, Ana Elizabete. Cultura da crise e seguridade social: um estudo sobre as tendências da previdência e da assistência social brasileira nos anos 89 e 90. São Paulo: Cortez Editora, 2000. identifica como uma “cultura política de crise”, reciclando as bases de hegemonia do grande capital em função do interesse não só de realizar a reestruturação produtiva, mas de fazê-lo com o consentimento das classes trabalhadoras. A partir da premissa ideológica de que a crise atingia a todas as classes, indistintamente, e só poderia ser enfrentada com a união entre elas, os trabalhadores passam a não mais acreditar na construção de uma alternativa à ordem do capital, numa nova cultura política em que o pragmatismo econômico se sobrepõe aos projetos mais amplos de sociedade.

Por outro lado, a reestruturação também foi a grande responsável pelo “declínio” dos países socialistas. A crise das experiências socialistas, para István Mészáros (2004 MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução de Paulo Cézar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004. e 2011), também foi expressão da crise sistêmica que alcançava o resto do mundo, porque as sociedades em que se conformaram Estados socialistas, de fato, não promoveram a completa erradicação do capital como forma de mediação das relações sociais ( Mészáros, 2004 MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução de Paulo Cézar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004. , p.19). Nesses termos, tais sociedades, embora não fossem “capitalistas”, continuaram sob o domínio do capital, tendo sido também afetadas por sua crise sistêmica.

O fracasso das experiências socialistas, na análise de José Paulo Netto (2007) NETTO, José Paulo. Crise do socialismo e ofensiva neoliberal. 4ª edição. Coleção Questões da Nossa Época; vol.20. São Paulo: Cortez, 2007. , demonstra que a erradicação do capital reclama uma radical socialização do poder político para socializar a economia, algo que as experiências em questão não levaram a cabo. No entanto, muitas análises atribuem o fracasso do socialismo a outras razões que, embora estivessem presentes – como a decadência ideológica do movimento dos trabalhadores –, faziam parte de um problema mais profundo e sintomatizavam a dificuldade de encontrar saídas à crise global que se expressava também ali.

Fernando Claudín (2013) CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Tradução de José Paulo Netto. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2013. , por exemplo, atribui o fracasso dessas experiências ao que identifica como uma “crise ideológica” do movimento comunista. As formulações de Claudín foram desenvolvidas ainda na década de 60 - antes de eclodir a crise estrutural do capital. Como observa Sérgio Lessa (2013 LESSA, Sérgio. A crise do Movimento Comunista. Resenha. Revista Crítica Marxista, n°39. 2013. , p.183), o centro das explicações sobre as sequenciais derrotas revolucionárias localizava-se sempre na esfera político-ideológica, nos erros atribuídos aos dirigentes das organizações revolucionárias – cometidos pelos leninistas, trotskistas, maoístas, albaneses, stalinistas, anarquistas ou pelos autonomistas etc. Mas a derrota de todas as revoluções socialistas já era um indício de que algo mais operava, além dos erros das correntes revolucionárias. Não era possível, àquela época, iniciar a transição ao comunismo pelo fato de o sistema do capital possibilitar ainda o pleno desenvolvimento das forças produtivas. Ainda não havia irrompido a sua crise estrutural.

Mészáros (2004) MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução de Paulo Cézar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004. comenta a respeito de uma tendência em atribuir os fracassos do movimento comunista a “falhas ideológicas”, à “ascensão do oportunismo”, à “influência da aristocracia do trabalho”, à “falta da correta consciência de classe” etc. São, para ele, explicações simplistas.

Uma chamada “crise ideológica” não é jamais apenas ideológica – no sentido de que poderia ser resolvida com discussões e esclarecimentos ideológico-teóricos (...). Uma vez que a ideologia é a consciência prática das sociedades de classe, a solução dos problemas gerados nos confrontos ideológicos não é inteligível sem a identificação de sua dimensão prática, material e culturalmente eficaz ( Mészáros, 2004 MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução de Paulo Cézar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004. , p.115).

Obviamente, a ofensiva neoliberal investiu esforços em apresentar a crise do socialismo como demonstração da inviabilidade histórica da perspectiva socialista. E mesmo nas movimentações das esquerdas dos anos 1980 e 1990, a questão terminou sendo assim compreendida, de modo geral. A natureza desta crise, no entanto, não diz da impossibilidade de um padrão societário sem mercado, sendo, antes, a crise de um tipo de organização econômico-social e política pós-revolucionária, a crise de “uma forma determinada de transição socialista” ( NETTO, 2007 NETTO, José Paulo. Crise do socialismo e ofensiva neoliberal. 4ª edição. Coleção Questões da Nossa Época; vol.20. São Paulo: Cortez, 2007. , p.19). É claro que a implosão do sistema soviético não pode ser usada “como ‘causa original’ do recuo dolorosamente óbvio da esquerda, tanto no Leste Europeu como no Ocidente” ( MÉSZÁROS, 2004 MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução de Paulo Cézar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004. , p.14), mas esse acontecimento é, sem dúvida, um dos marcos importantes na passagem para a nova época histórica em que emergiu o consenso neoliberal.

À crise do socialismo e à ofensiva neoliberal relaciona-se a “crise do marxismo” nas últimas décadas. Dentre as múltiplas variantes no interior da tradição marxista, o “marxismo-leninismo” acabou sendo imposto como o marxismo “oficial” pela autocracia stalinista a partir da III Internacional. Esta tendência, que resultou no marxismo “vulgar”, significou “uma conversão do legado de Marx numa teoria fatorialista da história, numa sociologia evolucionista e num economicismo determinista, desembocando numa projeção fatalista da transição ao comunismo” ( NETTO, 2007 NETTO, José Paulo. Crise do socialismo e ofensiva neoliberal. 4ª edição. Coleção Questões da Nossa Época; vol.20. São Paulo: Cortez, 2007. , p.59).

No entanto, a crise do marxismo-leninismo e do marxismo vulgar não sinaliza uma crise da tradição marxista. Pelo contrário, no momento mesmo em que tal crise começava a ser identificada, a partir dos anos 70, viam-se surgir as valiosas análises de Lukács, Korsch e Gramsci, revigorando a dimensão “humanista” do marxismo ( NETTO, 2007 NETTO, José Paulo. Crise do socialismo e ofensiva neoliberal. 4ª edição. Coleção Questões da Nossa Época; vol.20. São Paulo: Cortez, 2007. , p.29). A questão central na percepção desta crise consiste em avaliar seriamente se a tradição marxista ainda tem algo a nos dizer nos dias de hoje.

Florestan Fernandes diria que sim. “Hoje o marxismo é tão verdadeiro e ameaçador na esfera da práxis como na da teoria” ( FERNANDES: 2009 FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. São Paulo: Global, 2009. , p. 10), já que continuamos vivendo no capitalismo, cuja essência exploratória o projeto marxista busca analisar para superar. Tal avaliação, contudo, tem esbarrado numa predisposição das esquerdas em se distanciar do marxismo, bem como em se distanciar de uma perspectiva de organização político-ideológica dos trabalhadores e dos demais sujeitos subalternizados na sociedade de classes que seja capaz de recolocar um projeto de enfrentamento ao capital na agenda histórica.

4. Considerações finais

No momento em que terminamos de escrever estas linhas, algumas iniciativas ocorrem para denunciar o caráter político da prisão de Lula e o golpe de Estado em que ela está inserida. Há um acampamento com milhares de pessoas ao redor da Superintendência Regional da Polícia Federal do Paraná, onde ele se encontra, na cidade de Curitiba. A campanha “Lula Livre” tem milhares de adesões não apenas no Brasil (com dois mil Comitês Populares em Defesa de Lula e da Democracia), ganhando também cada vez maior apoio internacional desde a sua prisão. Militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra anunciaram uma greve de fome até que a decisão que o condenou seja revista.

No próximo dia 10 de agosto de 2018, organizações sindicais e movimentos sociais populares irão se mobilizar para uma série de protestos, o “Dia do Basta”. Diversas organizações realizarão uma caravana para Brasília no próximo dia 15 de agosto, quando se encerra o prazo para o registro de candidaturas que participarão do pleito eleitoral para o Governo Federal em outubro deste ano. O Partido dos Trabalhadores, por sua vez, anunciou hoje (4 de agosto) que Luiz Inácio Lula da Silva é o seu candidato oficial, do que resultará, certamente, novos embates jurídicos perdidos de antemão.

Tal contexto de mobilização popular aponta para o reconhecimento, pelo menos nesse caso específico, de que as instituições do sistema de justiça estão comprometidas com os interesses políticos e econômicos das elites do país, a despeito do discurso da neutralidade. Esse reconhecimento, contudo, não parece se aprofundar para uma problematização do real papel do Estado e do direito na gestão dos conflitos sociais.

A contradição é que os trabalhadores e os demais sujeitos subalternizados na sociedade do capital, nos processos de enfrentamento desse período histórico, passam a valorizar como estratégia de luta exatamente as vias institucionais e o direito, ali depositando, aparentemente, as suas últimas esperanças. Esta valorização se faz presente, por exemplo, na centralidade das movimentações eleitorais, que já começam a dominar por completo a agenda política brasileira.

Não sabemos, evidentemente, qual será o desfecho do conflito que ilustrou a discussão deste artigo; se Lula permanecerá preso ou se será solto, se os setores que lutam em sua defesa conseguirão reverter o intenso processo de perseguição política em curso, se o resultado eleitoral deste ano nos levará a um aprofundamento do projeto neoliberal, nem a capacidade dos trabalhadores de resistir às e enfrentar as forças do capital no próximo período.

O que podemos assegurar é que o trânsito dos trabalhadores no terreno jurídico apresenta possibilidades de movimentação muitíssimo limitadas. As reflexões aqui colocadas buscaram situar o direito no real lugar que ele ocupa desde que surgiu na história: como o âmbito de regulação responsável por garantir as engrenagens da sociedade de classes. Diante dessa função constitutiva, não é possível às instituições jurídicas garantir “a verdadeira justiça”, visto que o tema da justiça, nesse tipo de sociedade, é definido pelo lado mais forte na luta de classes.

  • 1
    Trechos do repente tocado de improviso por Francinaldo Oliveira e Damião Enésio no São João de Caruaru em 23 de junho de 2017. Gravado e transcrito pela autora.
  • 2
    Trechos do discurso amplamente noticiado e aqui coletado direta e indiretamente do site do Jornal O Estadão: < https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lula-confirma-que-vai-se-entregar-a-pf,70002258711 > e < https://odia.ig.com.br/brasil/2018/04/5529509-ex-presidente-lula-se-entrega-a-policia-federal.html#foto=1 >. Acesso em 29 de julho de 2018.
  • 3
    O ex-Presidente refere-se à exposição das acusações por parte do Ministério Público Federal através de um arquivo do programa Powerpoint que foi amplamente divulgado pela mídia em rede nacional. A esse respeito, a defesa de Lula se pronunciou, em nota, nos seguintes termos: “O processo penal não autoriza que autoridades exponham a imagem, a honra e a reputação das pessoas acusadas, muito menos em rede nacional e com termos e adjetivações manifestamente ofensivas”. Disponível em: < https://ptnacamara.org.br/portal/2016/12/16/defesa-de-lula-processa-procurador-do-power-point-por-danos-morais-e-denuncia-sergio-moro-no-cnj >.
  • 4
    A despeito disso, é notável certo contraponto no avanço de análises marxistas, principalmente de base pachukaniana. Conferir edição XXX da Direito e Práxis, apresentando o Dossiê Direito e Marxismo, bem como os anais dos seminários do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais, em especial os trabalhos apresentados nos Espaços de Discussão “Direito e Marxismo”.
  • 5
    Indicamos, noutro trabalho, possibilidades de continuar explorando as conclusões de Pachukanis a respeito do sujeito de direito, considerando que as relações de trocas mercantis se atravessam por relações raciais, de gênero e sexualidade de modo que este sujeito “proprietário” pode ser compreendido como racializado, generificado e sexualizado (ALMEIDA: 2017b ________. Continuando com Pachukanis: possibilidades analíticas para o sujeito de direito. Anais. Seminário Direito e Revolução: 100 anos da revolução que transformou o mundo e sua atualidade, 24 e 25 de outubro de 2017, Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa Direito e Movimentos Sociais. ISBN 978-85-67551-11-1. ).
  • 6
    SECCO, Fabiana de Melo. Da crítica à resignação: Florestan Fernandes e o Direito como ideologia no capitalismo dependente brasileiro. 2017, 100 fls. Dissertação (Mestrado – Universidade Federal de Juiz de Fora); e RODRIGUES, Arthur Bastos. A função do direito na formação do capitalismo periférico de via colonial em Caio Prado Jr. 2017, 286 fls. Dissertação (Mestrado – Universidade Federal de Juiz de Fora).
  • 7
    O projeto, intitulado “O positivismo jurídico na periferia do capital: uma análise de setores do campo jurídico na Paraíba”, funciona desde 2017 dentro do Grupo de Pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Sociais (GPLutas), investigando como o positivismo jurídico se expressa nas práticas de setores do judiciário paraibano e na educação jurídica.
  • 8
    Este processo vem sendo compreendido pelas organizações populares e por alguns estudiosos como um “agrogolpe” em curso. Conferir o Relatório da Violência no Campo no Brasil em 2017 ( https://www.cptnacional.org.br ) e MITIDIERO JÚNIOR, M; BARBOSA,H. e SÁ, T. Quem produz comida para os brasileiros? 10 anos do Censo Agropecuário 2006. Revista Pegada, v.18, n.3, set-dez 2017, pp 7-77.
  • 9
    Conferir MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Sociedade e Estado vol.32, no3, Brasília, Departamento e Programa de PósGraduação em Sociologia, 2017, pp.723-745.; PRANDI, Reginaldo; SANTOS, Renan William dos. Quem tem medo da bancada evangélica? Posições sobre moralidade e política no eleitorado brasileiro, no Congresso Nacional e na Frente Parlamentar Evangélica. Tempo Social – Revista de Sociologia da USP vol. 29, no 2, São Paulo, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia, 2017, pp.181-214; BALIEIRO, Fernando F. “Não se meta com meus filhos”: da invenção à disseminação do fantasma da “ideologia de gênero”. Cadernos Pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero Pagu-Unicamp, 2018.
  • 10
    Conferir: MIGUEL, Luis Felipe. Da “doutrinação marxista” à “ideologia de gênero” – Escola sem Partido e as leis da mordaça no parlamento brasileiro. Direito & Práxis vol.7, no15, Rio de Janeiro, 2016, pp.590-621; SOUZA, A.L.S. et al. A ideologia da Escola sem Partido: 20 autores desmontam o discurso. São Paulo: Autores Associados, 2016; REIS, G.R.F.S.; CAMPOS, M.S.N.; FLORES, R.L.P. Currículo em tempos de Escola sem Partido: Hegemonia disfarçada de neutralidade. Revista Espaço do Currículo, v. 9, n. 2, p. 200-214, maio/ago. 2016, PENNA, F.A. Programa Escola sem Partido: Uma ameaça à educação emancipadora. In: GABRIEL, C.T.; MONTEIRO, A.M.; MARTINS, M.L.B. (Orgs.). Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2016. p. 43-58 e MACEDO, E. As demandas conservadoras do Movimento Escola Sem Partido e as Bases Conservadoras da Base Nacional Curricular Comum. Educação & Sociedade, v. 38, n. 139, p. 507-524,abr-jun. 2017.
  • 11
    O Governo Lula, a partir de 2003, continuou com a política econômica do Governo FHC no que diz respeito a “a abertura comercial, a desregulamentação financeira, a privatização, o ajuste fiscal e o pagamento da dívida, a redução dos direitos sociais, a desregulamentação do mercado de trabalho e a desindexação dos salários” (BOITO JR: 2003 e 2005).

Referências bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
  • Data do Fascículo
    Set 2018

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2018
  • Aceito
    05 Ago 2018
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