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Por Marx e além de Marx: crítica do capitalismo em Dussel

By Marx and Beyond Marx: Critique of Capitalism in Dussel

Resumo

O texto tem por objetivo principal mostrar a influência de pensamento de Marx na filosofia da libertação de Enrique Dussel. No desdobramento do objetivo indicado, destaca-se como a partir de categorias marxistas, Dussel especialmente no livro Grundrisse de Marx, confirma e desenvolve com novos argumentos as suas intuições filosóficas iniciais das décadas de 1960 e 1970. Por fim, concluir que a filosofia da libertação, sem abandonar Marx se projeta para além dele.

Palavras-chave:
Marx; Dussel; Filosofia da Libertação

Abstract

The main objective of the text is to show the influence of Marx's thought on the philosophy of liberation of Enrique Dussel. In the unfolding of the indicated objective, it is highlighted as from Marxist categories, Dussel especially in the book Grundrisse of Marx, confirms and develops with new arguments his initial philosophical intuitions of the 1960s and 1970s. Finally, to conclude that the philosophy of liberation, without abandoning Marx, is projected beyond him.

Keywords:
Marx; Dussel; Philosophy of Liberation

Introdução

Inicialmente será apresentada rápido contexto histórico e conceitual. A chamada Filosofia da Libertação surge na América Latina, no inicio dos anos 70, como um movimento filosófico a partir de um grupo de pensadores que movidos pela situação de dependência injusta dos países latino-americanos, e, pela convicção de que para superá-la, havia a necessidade de uma filosofia libertadora, embora fossem sabedores de que só isso não é suficiente. É uma filosofia que ao surgir ocupa-se do tema da libertação, tanto na teoria como na práxis, num duplo aspecto: pretende a libertação da situação de dependência e de dominação, e criticamente, pretende também libertar-se das ideologias de dominação, o que requer também a libertação da própria dominação filosófica. Em resumo, ocupa-se da Filosofia da Libertação e, ao mesmo tempo, da Libertação da Filosofia. Essa foi a polêmica que nas décadas de 60 e 70 do século XX foi intensamente assumida. Desde as discussões de Salazar Bondy (Existe una filosofía de nuestra América?) e Leopoldo Zea ZEA, Leopoldo. La filosofía americana como filosofía sin más. Mexico: Siglo veintiuno editores, 1969. (La filosofía americana como filosofía sin más), a partir da década de 60, até reflexões posteriores com Ellacuria ELLACURÍA, Ignacio. Filosofía, para qué? (1976). San Salvador: Universidad Centroamericana José Simeón Cañas, 1987. (Filosofía, para qué? e Zubiri, cuatro años después) e Dussel DUSSEL, Enrique D. Método para uma filosofia da libertação. São Paulo: Loyola, 1976. (Método para uma filosofia da libertação e Filosofia da libertação na América Latina), na década de 70, para situar simbolicamente alguns momentos, a filosofia latino-americana começa a se expressar como filosofia da libertação.

Portanto, essa postura da necessidade de uma filosofia hispano-americana, ou latino-americana, é a tomada de consciência que ocorre com os estudos e debates em torno do processo histórico da produção filosófica no continente. Os seguintes traços negativos apontados por Augusto Salazar Bondy (1968 BONDY, Augusto Salazar. Existe una filosofía de nuestra América? México: Siglo Veintiuno, 1968. , p. 39-44) dão conta da percepção de então frente ao processo apontado: (a) o sentido imitativo da reflexão filosófica importada, especialmente a europeia; (b) a receptividade universal, numa quase irrestrita disposição em aceitar os produtos teóricos procedentes dos grandes centros da cultura ocidental; (c) a superficialidade e pobreza dessa recepção de ideias; (d) as ausências de contribuições originais, que pudessem significar ideias ou teses novas suscetíveis de serem incorporadas à tradição do pensamento mundial; (e) o forte sentimento de frustração intelectual dos pensadores que se dedicavam à filosofia, tendo como causa os traços anteriormente apresentados; e (f) por fim, o divórcio entre os praticantes da filosofia e o conjunto da comunidade, motivo pelo qual não haveria um selo, uma marca própria, como quando se fala em filosofia alemã, francesa ou mesmo norte-americana. Essa distância entre o filosofar e a comunidade seria causa da ausência de uma filosofia genuína.

Ainda assim, uma espécie de inventário de aportes filosóficos problematizadores dessa herança mencionada serve de alento para “a geração” de filósofos envolvidos no debate, durante as décadas de 60 e 70 do século vinte. Desde Juan Bautista Alberdi (argentino) talvez o primeiro pensador que explicitamente se coloca o tema em aula inaugural em 1842 ao questionar sobre se há uma filosofia americana, como deveria ser e que missão deveria cumprir, passando, a partir dos anos vinte do século passado, por José Vasconcelos Calderón (mexicano), por José Carlos Mariátegui (peruano), por Alejandro Korn (argentino), por Risieri Frondizi (argentino), por Antonio Gómez Robledo (mexicano), por Francisco Miró Quesada (peruano), Aníbal Sánches Reulet (argentino), pelo espanhol José Gaos, por Leopoldo Zea ZEA, Leopoldo. La filosofía americana como filosofía sin más. Mexico: Siglo veintiuno editores, 1969. (mexicano), e por Augusto Salazar Bondy (peruano), para ficar nos nomes arrolados na já citada obra deste pensador, podendo se acrescentar ao rol para ilustrar, os brasileiros Vilém Flusser, Luís Washington Vita, Antonio Paim, Tobias Barreto, João Ribeiro, e Roberto Gomes, como noticia em sua obra Crítica da Razão Tupiniquim, para terminar incluindo ainda o nome de Darcy Ribeiro, entre outros. Do conjunto desse debate são destacadas as categorias da originalidade, autenticidade (ou genuinidade) e peculiaridade a partir das quais, em geral, são feitos os diagnósticos e as avaliações do processo de produção do pensamento filosófico entre nós, até ao final da década de 1960.

A conclusão geral é a de que (a) existe uma filosofia peculiar (algum traço histórico-cultural próprio, algum “colorido” local ou pessoal, sem inovações substantivas de conteúdo) na América Latina; (b) que existe um complexo de inferioridade que impede a compreensão de nossas peculiaridades; (c) que não existe concordância sobre a originalidade (construções conceituais inéditas de reconhecido valor) e autenticidade (produto que não seja falseado, equivocado, ou desvirtuado) de nossa filosofia, predominando a avaliação do caráter imitativo e superficial do pensamento; para, por fim, (d) concluir pela necessidade de produzir nossa própria filosofia para se fazer presente na história de nosso tempo (Bondy). Trata-se de um juízo que, respeitados os diferentes enfoques e argumentos, indica uma clara exigência: a da necessidade de um fazer filosófico que superasse o caráter imitativo e inautêntico do pensamento até então praticado. A irrupção de uma nova geração filosófica ( Dussel, 1977 DUSSEL, Enrique D . Filosofia da libertação na América Latina. São Paulo: Loyola, (1977). , p.195-201) é o inicio do movimento que pode ser, no conjunto de suas vertentes, denominado de Filosofia da Libertação, cujo conceito pode ser desdobrado em três momentos: o primeiro momento de libertação permite indicar um possível conceito de filosofia da libertação, como sendo um discurso estritamente filosófico que dá prioridade temática à práxis de libertação do outro, das vítimas oprimidas e excluídas e prioridade à libertação da filosofia, libertação do discurso hegemônico; o segundo momento de libertação aponta na direção do contexto do final dos anos 1960 e início dos anos 1970 diante da situação de dependência injusta dos países latino-americanos, com negação da democracia e dos direitos humanos, aumento da violência sistêmica e institucional, marginalização, exclusão e empobrecimento crescentes a que estavam submetidas as populações latino-americanas. Essa situação de negação ensejou a reflexão sobre o tema da libertação desde diversos campos do saber; o terceiro momento de libertação pode ser apontado a partir dos anos 80 e 90 com a inserção internacional do diálogo filosófico acerca da libertação, tendência que hoje está cada vez mais acentuada.

No conjunto de suas vertentes, a denominada Filosofia da Libertação apresenta três períodos distintos: o período de emergência (final dos anos 60 a meados dos anos 70), no qual a filosofia da libertação passa pela (1o.) investigação da história das ideias na América Latina desde sua pré-história – com a inclusão dos mitos indígenas – até a história mais recente; o período da sistematização e avaliação crítica (meados de 70 até final dos anos 80) – período no qual há um grupo que tem uma posição mais próxima da perspectiva marxista de libertação, concebida como transformação e/ou revolução libertadoras de transcendentes dimensões sociais, superadoras das alienações capitalistas, direcionadas para o socialismo (Enrique Dussel - 2a. fase -, Arturo Andrés Roig, Alejandro Serrano Caldera, Horácio Cerutti, entre outros). Este período passa também pela revisão, avaliação crítica e pela autocrítica de muitas das categorias até então elaboradas pela filosofia da libertação; noções como totalidade, exterioridade, mediação, alienação, ser-negado, alteridade, pobre, proximidade, povo, cultura popular, sujeito do filosofar, exclusão, vitimas e outras, que são constantemente explicadas e redefinidas; o período atual (a partir do final dos anos 80), caracteriza-se pela consolidação de produções mais consistentes e de inserção internacional. 1 1 Para obter informações complementares, consultar ( FORNET-BETANCOURT, 2004 ). A expressão mais direta e objetiva desta fase é o Programa de Seminários do Diálogo Filosófico Norte-Sul, com seminários realizados na Alemanha, México, Brasil, El Salvador e Espanha, para indicar alguns países.

1. Demarcação filosófica dusseliana desde Marx e além de Marx.

1. 1. O contexto da questão.

Em diversos momentos de seus três livros sobre a obra de Marx (La producción teórica de Marx: un comentario a los grundrisse. Bogotá: Siglo Veintiuno, 1985 2 2 Em português: A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. ; Hacia un Marx desconocido: un comentario de los manuscritos del 61-63. México: Siglo Veintiuno, 1988; e El último Marx (1863-1882) y la liberación latinoamericana. México: Siglo Veintiuno, 1990) Dussel DUSSEL, Enrique D. El último Marx (1863-1882) y la liberación latinoamericana. México: Siglo Veintiuno, 1990. manifesta seu inconformismo com a análise e avaliação feita por Horácio Cerutti Guldberg CERUTTI GULDBERG, Horácio. Filosofía de la liberación latinoamericana. México: Fundo de Cultura Econóomica, 1983. em seu livro Filosofía de la Liberación Latinoamericana (1983), no qual apresenta uma classificação das distintas tendências da Filosofia da Libertação, particularmente na Argentina, nos termos do seguinte quadro: Filosofia da Libertação, dividida em (A) Setor Populista e (B) Setor Crítico do Populismo; e o Setor Populista, subdividido em (a) Populismo da “ambiguidade” concreta, e (b) Populismo da ambiguidade “abstrata”; e o Setor Crítico do Populismo em (c) Subsetor Historicista, e (d) em Subsetor Problematizador.

Horácio Cerutti Guldberg CERUTTI GULDBERG, Horácio. Filosofía de la liberación latinoamericana. México: Fundo de Cultura Econóomica, 1983. ao propor tal classificação parte de alguns critérios, tais como o ponto de partida do filosofar, a metodologia e o sujeito do filosofar. Em síntese, atribui ao Setor Populista – em filosofia – uma concepção que mistifica o termo “povo”, convertendo-o num universal ideológico, esquecendo-se da realidade contraditória que constitui o povo como fenômeno de classe (1983, p. 188), classificando-o como decididamente antimarxista, inclusive na pretensão de tê-lo superado, propondo uma filosofia como saber de salvação. E afirma que o “populismo da ambiguidade abstrata” tem como ponto de partida do filosofar a opção de fé no Deus da “religião”, Deus “vivo” da “história” e da “práxis” (1983, p. 211); registra ainda que tais filósofos partem de dois aspectos que, no entanto, seriam novidade: 1º. o rosto do pobre, que permite o reconhecimento de uma dimensão antropológica que é prévia à dimensão teológica, e na qual se joga a história humana; e 2º. a noção da analogia: o alterativo permite romper as totalizações em formação, em ponto de partida explícito de crítica à modernidade europeia, em perspectiva eticista. Portanto, aí está o pressuposto metodológico da analética. O sujeito do filosofar é o povo em oposição ao conceito de classe. Apresenta uma autoimagem eticista da libertação. Deixo de apresentar a caracterização do Setor Crítico do Populismo, bem como das subdivisões, nesta ocasião, pela simples razão de que Horacio Cerutti Guldberg CERUTTI GULDBERG, Horácio. Filosofía de la liberación latinoamericana. México: Fundo de Cultura Econóomica, 1983. ao fazer a distribuição dos filósofos da libertação em seu quadro classificatório coloca Enrique Dussel neste Setor do Populismo da ambiguidade “abstrata”, também identificado por ele com o populismo ingênuo (juntamente com Scannonne, Ardiles, Guillot). A força desse acontecimento, tanto na condição real, quanto no sentido simbólico, tem o significado de uma “ducha de água fria” na produção teórica de Enrique Dussel, levando-o ao estudo do “Marx mesmo”, como ele próprio reconhece, 3 3 Em diversas ocasiões Dussel faz menção ao fato, como pode ser observado em notas de rodapé da obra A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. Transcrevo algumas delas para a compreensão da questão. A começar pela nota 15 do Capítulo 18, p. 379: “Esta é a posição de H. Cerutti na op. cit., quando escreve (p. 318): “no discurso populista se verifica em aspectos fundamentais e decisivos [...] a reiteração do conceito de povo’. Ou seja: para este autor, ou se opera uma interpretação classista (que é abstrata) ou se cai no populismo porque se emprega a categoria ‘povo’. Neste caso, Fidel Castro, Borges etc. seriam, para Cerutti, populistas”. E já na nota 16: “Crer é ter fé. Para Cerutti, op. cit., isto seria cair no fideísmo. Ele parece ignorar a problemática filosófica, estritamente filosófica , da questão da ‘fé’. [...] A referência crítica a um ‘populismo fideísta’ é simplesmente demonstração da ignorância da problemática filosófica da ‘fé antropológica’. Castro se situa no nível de uma fé política”. A seguir pela a nota 32 do Capítulo 18, p. 382: “Cerutti também me acusa, repetidas vezes, de ser populista por ser ‘etapista’. Por isso, deveria antes criticar-me como leninista, stalinista ou por assumir a posição de Mao em ‘A nova democracia’ – mas eu não seria populista por causa disto. Ele parece confundir o sentido de um texto de Lenin: ‘O populismo se converteu quase completamente em ideologia pequeno-burguesa, erguendo uma barreira entre ele e o marxismo (op. cit., p. 156). Talvez por isso insista ele tanto sobre o meu ‘antimarxismo’ dos anos 1960 (que, na realidade, era antidogmatismo, antialthusserianismo ou recusa da posição política do PC argentino, que já se separava do povo ao seguir a linha stalinista de ordens e contraordens). Mas não se deve tentar denegrir as pessoas mediante uma ‘imputação ideológica’ de antimarxismo (como outros, ao mesmo tempo e por razões igualmente políticas, me imputam por ser marxista). A última nota do livro sobre este assunto, a nota 44, Capítulo 18, p. 388, retoma o tema: “Este é o erro de fundo de Cerutti na op. cit.” [Dussel refere-se ao erro de “confundir ‘povo’ com “populismo’]. Já anteriormente, na nota 25 deste Capítulo 18, p. 381, Dussel após apresentar algumas expressões de Marx que contêm os termos “povo” e “pobre”, pergunta: “Também Marx será populista por usar a categoria povo ligada a pobre? Decerto que sim, para Cerutti”. E acrescenta na nota 39 deste Capítulo 18, p. 386, transcrevendo afirmação de Cerutti: “Como se verá, a noção de pobre é uma das noções-chave da filosofia da libertação” (Cerutti, op. cit. , p. 30), ao que Dussel acrescenta “- claro que, para o crítico [Cerutti], trata-se de um conceito ambíguo por excelência”. Ainda para reportar equívocos da crítica de Cerutti, pode-se observar, especialmente a nota 21 do Capítulo 17, p. 330, onde assim se expressa ao avaliar a relação de suas primeiras obras com as do período dos estudos de Marx: “Estas categorias (ontológicas ou metafísicas), nós as descrevemos em nossa Filosofía de la liberación, ed. cit.: Mediações e 2.3. Totalidade; igualmente, em Para una ética de la liberación latinoamericana, ed. cit: totalidade (t.I, pp. 33 e ss.), mediações (pp. 65, e ss.). Cerutti, op. cit., opera uma verdadeira “mistura” em sua pretensa apresentação do nosso pensamento (pp. 38-43), revelando que, antes de realizar uma crítica, é necessário compreender o que se pretende criticar. O que, desde 1969, expressei através de uma categorização heideggeriana, posso agora, com maior precisão (mas respeitando as intuições de fundo), expressar a partir de Marx. E ainda, para ilustrar a questão sob outro enfoque, a nota 2, p. 323, do mesmo Capítulo: “‘O outro’ como realidade comunitária (cf. Filosofía de la liberación , ed. cit., 2.4.5.1, p. 59: “O rosto do outro, primeiramente como pobre e oprimido, revela antes um povo que uma pessoa singular [...]; é rosto de um sexo, de uma geração, de uma classe social, de uma nação...”). Cerutti, op. cit. , p. 38, comete todo tipo de confusões - fala mesmo da ‘alteridade do ente’, o que é absurdo -, negando o sentido também comunitário do outro”. E por fim, ao se referir à categoria da exterioridade, assim se manifesta na nota 37 do Capítulo 18, p. 385: “Cf. Parágrafo 17.1.b e c. Chamamos a esta ‘exterioridade’ o momento ‘escatológico’, o ‘mais além’ do sistema. Esta denominação oferece, novamente, oportunidade para que Cerutti ‘clericalize’ depreciativamente a questão. Pode-se, também, falar de ‘transcendentalidade’”. ainda que não seja este o motivo exclusivo.

1.2. Momento categorial: a totalidade, a exterioridade e a analética.

Para compreender o sentido do que quero indicar, tomo duas definições de Habermas HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. sobre o assunto. Na primeira (1990, p. 151), ele diz que “Unidade e multiplicidade, foi desde o início, o tema mais importante da metafísica. Esta pretende deduzir tudo a partir de uma unidade”. Na segunda (1990, p. 154) afirma que “O tema da unidade e da multiplicidade é colocado de modo diferente de acordo com o paradigma em jogo: ontológico, mentalista ou linguístico”.

Esquematicamente, as manifestações históricas da filosofia operam essa lógica, com o auxílio de ser, sujeito e comunicação.

Segundo Dussel, a reflexão filosófica grega teve como tema central a dialética entre o uno e a multiplicidade. Desde Parmênides o ser é apresentado como fundamento da totalidade. Na modernidade, o fundamento ontológico encontra na subjetividade do sujeito seu lugar, a partir do ego cogito cartesiano, até Hegel, em quem se dá a plenitude da totalização moderna. Dussel, em sua obra, procura mostrar que a totalidade aparece como fundamento da ontologia grega, do pensar moderno europeu e contemporâneo. De forma radical, tudo se reduz ao uno, ao todo, ao “o mesmo”. Metodicamente, se procede do múltiplo ao uno; o uno tido como fundamento e origem do todo; tudo é redução ao mesmo. Isso leva à afirmação que caracteriza a filosofia geopolítica e ideologicamente.

Assim, Dussel metodologicamente vê a necessidade de “destruição” ou “desconstrução” do pensamento de centro, apontando sua lógica e seus limites, com a finalidade de proporcionar lugar ao novo. Desde o início procurou questionar o que denomina “pensar de centro”. Pois, entende que a totalidade não pode ser entendida apenas ontologicamente, mas deve ser considerada eticamente. Nesta relação, a ética situa-se como filosofia primeira. A metafísica e a antropologia não são prévias à ética. São frutos delas. O fundamento “es ontológicamente como es, no pode ser ni bueno ni malo, sino que es el ser ( DUSSEL, 1983 DUSSEL, Enrique D . Introducción a la Filosofía de la liberación. 2a. ed. Bogotá: Editorial Nueva América, 1983. , p. 116). Segundo Dussel somente a partir da descoberta de uma exterioridade, é possível indagar se um determinado fundamento é bom ou mau, se é justo ou injusto. Nisso consiste o problema da eticidade do fundamento. Investigação nessa perspectiva, só é possível a partir de uma exterioridade, pois, se o mundo é totalidade e esta é única, seu projeto é como é.

O sentido ético da totalidade – ou a moral vigente - se explica tendo como fundamento, parâmetro e limite, a concepção onde o múltiplo é admitido apenas como diferenciação do uno na mesma totalidade (seja no paradigma do ser, como fysis entre os gregos, seja na moldura paradigmática da consciência, entre os modernos, seja no paradigma da comunicação, como participante da argumentação, na neo ou pós-modernidade). Tal compreensão ética, no entanto, é ideológica, por ser fruto da lógica da totalidade que a possibilita paradigmaticamente. Além disso, é ideológica, na medida e enquanto encobridora do mundo que se situa além de sua lógica, negando e ocultando o mundo da alteridade, ao afirmar o fundamento e condução de tudo ao “mesmo”: nega a possibilidade real da outra lógica, a lógica da alteridade. Por isso, a totalização é vista como mal ético - uma injustiça.

Desta maneira, avalia como sendo uma imoralidade a conquista da América no plano histórico, na dominação pedagógica (mestre-discípulo), na dominação erótica (homem-mulher), na dominação política (governante-governado), na dominação racial (branco-negro) e na dominação social (opressor-oprimido), por serem condução ao “mesmo”. O outro restou aniquilado pela eliminação física, ou em sua condição de sujeito, tornando-se instrumento a serviço do “mesmo”: “Ahora si, podemos darnos cuenta de que el enfrentamiento de la conquista fue la expansión de lo 'mismo' a 'lo mismo'” ( DUSSEL, 1983 DUSSEL, Enrique D . Introducción a la Filosofía de la liberación. 2a. ed. Bogotá: Editorial Nueva América, 1983. , p. 122).

Essa inclusão do mundo periférico no mundo de centro, processo histórico-real da lógica da totalidade, é o mal na ordem da história mundial. Portanto, a totalidade egótica do centro é sempre morte da cotidianidade histórica. Assim, o primeiro nível de exigência de justiça se dá no plano geopolítico: a periferia se descobrindo como o Outro em relação ao Mesmo. Neste nível, a justiça é a afirmação do ser latino-americano e do terceiro mundo, ser periférico, como Outro. O momento geopolítico não esgota, no entanto, a lógica da totalidade. Há um desdobramento nos demais níveis, como já assinalamos: a erótica, a pedagógica e a política. Em cada um destes níveis o movimento que conduz ao “mesmo” é o mal, é a injustiça. Ao contrário, o bem ético consiste em que o outro não seja eliminado enquanto tal. Conclui Dussel (1983 DUSSEL, Enrique D . Introducción a la Filosofía de la liberación. 2a. ed. Bogotá: Editorial Nueva América, 1983. , p. 124) que: “el bien ético es el sí-al-Otro, y por lo tanto, es justicia, es cumplir la justicia y respetar al Otro como otro, dejarlo ser; es permitir que sea en plenitud lo que realmente es”.

Nessa ótica, a justiça se fundamenta não na totalidade, mas no momento da exterioridade. Portanto, nesse cotejo a exterioridade aparece como contra-imagem da totalidade, no entanto, ambas se definem como categorias de categorias.

Inicialmente, décadas de 1960 e 1970, Dussel encaminha a noção de totalidade desde as coisas-sentido (1977, p. 23) e o faz com referência à proxemia (o aproximar-se às coisas), onde os entes aparecem como momentos nunca isolados de uma totalidade que os compreende. O nível dos entes é a proxemia ou o ôntico, enquanto o nível da totalidade, seja mundana, natural, econômica é o ontológico (1977, p. 28). Assim, as coisas-sentido, os entes, constituem um mundo, o mundo de cada um e no qual vivemos, como totalidade de sentido. Define o mundo como a totalidade dos entes (reais, possíveis ou imaginários), que são por relação ao homem, sem o qual não há mundo, mas apenas cosmos ( Dussel, 1977 DUSSEL, Enrique D . Filosofia da libertação na América Latina. São Paulo: Loyola, (1977). , p. 29). Desta maneira, o mundo é definido como uma totalidade de totalidades. Por outro lado, inicia a construção da categoria da exterioridade ao fazer referência à proximidade (o aproximar-se aos outros). Esse aproximar-se consiste num surgir do além da origem do mundo. É anterioridade anterior a toda anterioridade (a arché como origem anterior a toda origem). Portanto, o aproximar-se do outro é o que define a práxis: um agir para o outro como outro, um aproximar-se da proximidade (1977, p. 23). Assim, conclui Dussel (1977 DUSSEL, Enrique D . Filosofia da libertação na América Latina. São Paulo: Loyola, (1977). , p. 24): “aproximar-se é avançar para a origem originária, para a própria arqueologia do discurso metafísico, filosófico, mais ainda: histórico, político”.

Para evitar os equívocos da metáfora espacial da exterioridade (embora a espacialidade seja um momento desta categoria), Dussel denomina o “além” do horizonte da totalidade de transcendentalidade interior – um além do sujeito no sistema. O outro visto não como algo, mas como alguém. Entre os entes ou coisas que aparecem no mundo, irrompe diariamente um que é absolutamente sui generis, o rosto do outro ou dos outros, o rosto de alguém (1977, p. 46).

O outro é o conceito preciso que Dussel elabora para denominar a exterioridade enquanto tal. Define o outro como alteridade de todo sistema possível, além do mesmo para a qual a totalidade sempre conduz (1977, p. 49). Nessa extrema exterioridade do sistema, o outro provoca para a justiça. O outro como rosto provocante e interpelante é o começo para a exigência de um mundo novo, distinto, mais justo (1977, p. 49-50).

Assim, a exterioridade é a esfera que está para além do fundamento da totalidade. E analético indica o fato real de que a condição humana se situa sempre além (anó-) do horizonte da totalidade. Ou de forma menos abstrata, o analético aponta e orienta para o “fato” de que todo ser humano, todo grupo, povo ou comunidade situa-se sempre para além da totalidade. Desta maneira, o momento analético é o ponto de partida para novos desdobramentos, tendo como princípio não a identidade, mas a distinção. A totalidade é posta em questão pela interpelação provocativa do outro. O momento analético consiste na afirmação da exterioridade. É insuficiente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade. A exigência está na superação da totalidade desde a exterioridade definida como transcendentalidade interna (1977, p. 163-164). E Dussel conclui: “afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema (não havia potência para isso), é realizar o novo, o imprevisível para a totalidade, o que surge a partir da liberdade incondicionada, revolucionária, inovadora”. (1977, p. 165)

Em síntese, para ele, dos entes ocupa-se a inteligência interpretadora, estimativa, produtora; da totalidade se ocupa a inteligência dialética; da exterioridade se ocupará a inteligência histórica, analética ou da libertação, inteligência prático poiética (1977, 28).

Portanto, a construção das categorias da totalidade e da exterioridade vem desde a década de 1960 e 1970, mantidas em sua intuição inicial, como se vê do curso que neste instante (2013-2014) está em andamento na cidade do México denominado “16 Tesis de economia política”, 4 4 Recentemente foi lançado o livro 16 Tesis de economía política: interpretación filosófica. México: Siglo XXI Editores, 2014. Ver especialmente Tesis 12, [12.7] La totalidad y la exteriodad económica. e ao mesmo tempo, reelaboradas no diálogo com outros filósofos e frente aos sempre novos desafios da realidade. Com efeito, nas reflexões recentes sobre economia política Dussel relembra que tratou desta problemática desde o início no sentido estritamente filosófico. E agora a questão retorna na economia política, pois todo o sistema – como no caso o sistema histórico concreto que é o capitalismo – em algum momento se fetichiza, se totaliza. Seria a totalidade como exposta por Levinas e por ele Dussel no sentido filosófico inicial, agora presente na esfera econômica. Esse sistema econômico fechado e autorreferencial do capitalismo é a totalidade ontológica que aliena o Outro (que aqui Dussel identifica como trabalho vivo ou povo periférico) no sistema, identificado como trabalho assalariado, colônia ou país dependente. Mostrar que há algo que fica oculto na lógica da totalidade – no caso, o trabalho vivo no trabalho assalariado – é a chave ou o momento crítico que aponta para a transcendência ético-ontológica em relação ao capital – que no caso de Marx diz respeito ao trabalhador frente ao capital. Esta transcendência interna do ser humano, no caso em relação à condição de trabalhador assalariado, é a exterioridade, ponto de partida do processo crítico contra a totalidade, neste caso contra o capital. Na e pela exterioridade o Outro, reduzido a um momento interno do capital, aparece em sua transcendência como alguém, e não apenas como algo no sistema. Portanto, como pode ser visto, e é reconhecido pelo próprio Dussel (2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 330, nota 21), o que desde a década de 1960 era expressado através de uma categorização heideggeriana e levinasiana, agora até com maior precisão e mais concretamente se expressa a partir de Marx, mantendo as intuições iniciais e de fundo.

1.3. A totalidade e a exterioridade a partir de Marx: a relação capital-trabalho.

Em seus escritos 5 5 DUSSEL, Enrique D. Hacia un Marx desconocido: un comentario de los manuscritos del 61-63. México : Siglo Veintiuno Editores, 1988; La producción teórica de Marx: un comentario a los grundrisse; El último Marx (1863-1882) y la liberación latinoamericana; Fundamentación de la ética y filosofia de la liberación. já mencionados, e a partir da também anunciada polêmica surgida com o livro de Horacio Cerutti Guldberg CERUTTI GULDBERG, Horácio. Filosofía de la liberación latinoamericana. México: Fundo de Cultura Econóomica, 1983. , Dussel ocupa-se com o estudo da obra de Marx, insistindo não poucas vezes sobre a importância originária da categoria da exterioridade para Marx. Procura revelar o que considera a categoria fundamental (fundamento originário) da reflexão de Marx, a exterioridade até mais do que a própria categoria da totalidade. 6 6 Dussel procura mostrar que, ao contrário do que afirmam Karel Kosik e Georg Lukács, a categoria da totalidade, só é a categoria fundamental do capital "já dado"; e que a possibilidade do devenir originário do capital se dá desde a categoria da exterioridade. Cf. Hacia un Marx, p. 57 e segs. Reflete sobre a relação entre tais categorias e mostra como ocorre o processo de subsunção da exterioridade (que é sempre também espacial, mas não apenas, como já observado) à totalidade .

O fio condutor que orienta Dussel na interpretação da obra de Marx no que diz respeito ao tema em jogo tem como ponto a pessoa do trabalhador como exterioridade. Trata-se, portanto, de um ponto de partida afirmativo, que é o da vida concreta das pessoas na comunidade de produção. Dussel (2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 20) articula a questão do seguinte modo: “Marx desenvolve, e não só nos Grundrisse, mas também até o fim d’O Capital, uma ontologia do capitalismo a partir de uma metafísica da vida, da sensibilidade humana como necessidade, da pessoa do trabalhador como exterioridade”.

Marx inicia a reflexão dos Grundrisse7 7 Embora o horizonte seja a o pensamento de Marx no sentido geral, a reflexão deste pequeno texto tem em conta em especial os Grundrisse, tendo em vista a obra de Dussel já tantas vezes anunciada (2012) desde o nível mais abstrato da produção em geral. Segundo Dussel, o ponto de partida não é histórico, mas metodologicamente tem um sentido essencial (determinações comuns a tudo que se denomina produção). Interessam, portanto, as determinações essenciais comuns a todo homem no ato em que produz, ou todo sistema de produção. A essência para Marx, consiste nas determinações comuns a todas as coisas que são consideradas as mesmas. Anota Dussel (2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 34) que:

Para Marx, pois, há um nível das notas ou determinações essenciais. As determinações são para Marx – assim como para Hegel -, o que para Aristóteles era definido como a “forma” (morfé ): momento constitutivo essencial da coisa.

Essas notas ou determinações reais são abstraídas ou fixadas para serem pensadas. Na produção em geral, ainda como exemplo, encontram-se momentos essenciais de toda produção: um sujeito que produz, um trabalhador; um objeto produzido, trabalhado, a natureza; um instrumento utilizado, com o qual se trabalha; e um trabalho passado, acumulado. Esses momentos constituem as determinações essenciais de toda produção possível. Segundo Dussel (2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 35):

Momento essencial ou abstrato é, para Marx, o mesmo. Momento essencial ou determinação comum ou geral (p. ex., o capital ‘em geral’) são idênticos. Trata-se, pois, para poder fixar a essência de um fenômeno ou aparência, de abstrair as determinações comuns a todos eles e articulá-los construtivamente – sabendo sempre, que o nível da abstração não é o nível histórico-concreto do real. Isto não quer dizer que o abstraído analiticamente seja irreal: mas não é real assim (em abstrato), mas em concreto (sobredeterminado por muitas outras condições e variáveis do próprio concreto). Além do mais, a essência se encontra num plano mais profundo, ao passo que o que aparece (o fenômeno) é o superficial.

Assim, a distinção entre um nível superficial e um nível profundo é importante para se compreender a correspondente diferença entre o plano da aparência e da essência. O processo metódico exemplificado com “a produção em geral” indica a doutrina marxista da essência, que posteriormente define o capital, isto é, a essência do capital.

A preocupação metodológica de Marx vai aparecendo em muitos momentos de sua obra. Não nos interessa, aqui, acompanhar passo a passo esse desdobramento. Interessa tão-somente caracterizar a lógica do movimento . E embora, na descrição essencial da produção Marx distingue dois planos, o da generalidade em seu maior grau de essencialidade, e um segundo, no qual a produção começa a se codeterminar pelo consumo, pela distribuição e da troca, na produção em si, importa ressaltar a posição do sujeito em relação ao objeto, pois revela importante indício vinculado às categorias da totalidade e da exterioridade, objetos específicos de nossa análise. Pois, no círculo produtivo (sujeito-instrumento-objeto-sujeito), o sujeito é primariamente sujeito de necessidades ou subjetividade carente . Não estando o objeto natural satisfator à mão, haverá que produzi-lo. Assim, o “sujeito necessidade”, no ato produtivo, transforma-se em “sujeito produtor”. Portanto, o circulo da necessidade funda o círculo da produção, e os dois fundarão materialmente o círculo econômico propriamente dito. Para Marx, o sujeito necessitado ou produtor funda a “matéria” em sua essência. Em relação ao tema, Dussel (2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 37-38) ressalta que: o sujeito histórico é anterior; o sujeito é o a priori da “materia”. Primeiro está o sujeito histórico como “trabalho” e depois a natureza como matéria - este é o conceito de materialismo 'histórico' ou produtivo. 8 8 Na esfera mais concreta da produção (embora ainda em caráter abstrato), devem ser consideradas as outras determinações: o consumo, a distribuição e a troca. Estas determinações devem ser tratadas metodicamente por meio de relações co-implicantes: produção-consumo, produção-distribuição e produção-troca; ( Dussel, 2012 , p. 39-47).

O método marxiano procede dialeticamente. O momento dialético consiste num elevar-se ou num ascender. A elevação parte do abstrato e constrói a totalidade concreta. 9 9 A questão é bastante árdua e complexa. É de conhecimento que a investigação marxiana parte da produção material que é e não pode ser outra que não a produção de indivíduos produzindo em sociedade, como afirma. José Paulo Netto (2011, p. 39) sintetiza tal movimento desta maneira: “para elaborar a reprodução ideal (teoria) do seu objeto real (que é a sociedade burguesa), Marx descobriu que o procedimento fundante é a análise do modo pelo qual nele se produz a riqueza material”. Bom lembrar que as condições materiais da vida social não envolvem apenas a produção , mas incluem os momentos do consumo, da distribuição e da troca (com toda a dialética entre os distintos momentos, na totalidade concreta do capital). Há uma interação entre estes momentos – uma dialeticidade intensa -, embora seja a produção o momento dominante. Assim, Marx como bom dialético e como bom materialista distingue o campo da realidade – do objeto – do que é da ordem do pensamento – o conhecimento produzido pelo sujeito -. Portanto, o processo dialético de Marx pode ser explicitado em seus diversos e distintos momentos. O ponto de partida (1) é o real concreto (o existente, ponto de partida de toda investigação), de onde se procede o “ascenso” dialético para a (2) representação plena (como totalidade caótica, inicialmente sempre confusa, mas de todo modo já situada no “mundo conceituado”, mas que não pode ser confundido com o real que mantém uma exterioridade a todo conhecimento possível), depois para as (3) determinações abstratas (conceitos definidos), a seguir avança – é o elevar-se ou ascender , momento dialético por essência – para a (4) totalidade construída (concreta, ainda que abstrata em face dos momentos posteriores do método, ou seja no movimento de retorno e descenso) “em geral”; deste ponto se inicia o caminho da volta da totalidade (abstrata) para as (5) categorias explicativas, para alcançar a (6) totalidade concreta histórica explicada, e por fim, chegar na (7) realidade conhecida. Nesse movimento o ponto 1 e o ponto 7 indicam o “mundo real”, enquanto o movimento que vai do ponto 2 ao 4 e retorna deste ao 6 indicam o “mundo conceitualizado”, em livre explicação do esquema apresentado por Enrique Dussel (2012 , p. 51) sobre os diversos momentos metodológicos em Marx. Enfim, o concreto como síntese de múltiplas determinações. É um movimento do pensar em geral, que se eleva do simples ao complexo (simples: produção em geral; complexo: a produção nas relações co-implicadas - consumo, distribuição e troca). Nessas relações mutuamente constitutivas, constrói-se um todo. As quatro determinações referidas constituem uma nova totalidade. O próprio Marx tem consciência que a totalidade concreta, como totalidade do pensamento é fruto do pensamento, uma construção. Essa construção assume no movimento dialético, ao constituir uma nova totalidade ao nível concreto, uma autonomia, em razão da articulação com as múltiplas determinações. E aquilo que parecia oposto (produção e consumo, por exemplo), forma parte de uma unidade que a compreende e a explica, embora não sejam a mesma coisa. Marx afirma nos Grundrisse (2011, p. 54):

O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação.

Deste modo, o movimento dialético em seu momento essencial eleva-se do simples ao complexo, ou por exemplo, no movimento que vai da produção com o consumo, depois com a distribuição, e enfim, com a troca, constrói-se um todo no qual estas quatro determinações constituem uma nova totalidade com mútuas determinações. Trata-se de uma construção na qual a totalidade concreta como totalidade do pensamento, como um concreto do pensamento, é de fato um produto do pensar, do conceituar. No entanto, não é de maneira alguma um produto do conceito, mas um produto da elaboração que transforma as intuições e representações em conceitos. E portanto, o todo como um todo de pensamentos, tal como aparece na cabeça, é produto da cabeça pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, que é diferente da apropriação artística ou religiosa, por exemplo ( Marx, 2011 MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011. , p. 55). Assim Marx vai lentamente elaborando a questão metodológica na construção dialética em duplo movimento. Primeiro, maneja as determinações (conceitos) e as relaciona entre si em mútua codeterminação (produção-consumo, por exemplo, onde os “opostos” se codefinem). E segundo, como síntese forma-se uma nova totalidade com autonomia, dada a articulação das múltiplas determinações. Nesse novo nível concreto o que parecia serem opostos (produção e consumo) agora fazem parte de uma unidade. A totalidade concreta é o complexo, enquanto o simples consiste na determinação que pode chegar ao nível do conceito, como no caso do trabalho, da divisão do trabalho, a necessidade, o valor de troca. No caso da obra O capital as determinações simples, como as mencionadas, permitem construir a totalidade concreta com múltiplas determinações que é o “capital em geral” ( Dussel, 2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , 54-55). Por isso, a ordem das categorias, embora ainda seja uma ordem teórica, reconstitui a realidade numa dimensão abstrata que surge da própria realidade, e não das próprias ideias. Não é um pensamento que produz a realidade, de um lado, e de outro não é a mera representação que constitui a realidade. A realidade à qual as categorias se referem é a da totalidade concreta, com suas múltiplas determinações, como é a sociedade burguesa:

A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica da produção. Por essa razão, as categorias que expressam suas relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organização e as relações de produção de tidas as formas de sociedade desaparecidas, com cujos escombros e elementos edificou-se, parte dos quais ainda carrega consigo como resíduos não superados (...). Por conseguinte, se é verdade que as categorias da economia burguesa têm uma verdade para todas as outras formas de sociedade, isso deve ser tomado cum grano salis. Elas podem conter tais categorias de modo desenvolvido, atrofiado, caricato, etc., mas sempre com diferença essencial. ( Marx, 2011 MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011. , p. 58-59)

A moderna sociedade burguesa é algo dado tanto na realidade como no cérebro, e esse é o ponto de partida da abstração. Assim, no real as determinações são momentos de sua existência, mas enquanto abstratas são o resultado de um ato analítico metodológico. Por sua vez as determinações abstratas enquanto definidas são conceitos, e enquanto instrumentos ou mediações são categorias ( Dussel, 2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 57). Temos desta maneira, um conjunto de elementos e aspectos a serem levados em conta, seja na ordem da realidade, seja na ordem do pensamento, tais como o real concreto existente, a representação plena, as determinações como conceitos e como categorias, a totalidade concreta histórica explicada e a realidade conhecida, enfim, o mundo real e o mundo conceitualizado.

Além desse conjunto de elementos, na dinâmica da dialética, o tema da subsunção nos interessa de perto. Dussel (2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 119) define a subsunção na linha de Marx, Kant e Hegel:

Subsunção (que procede de subsumir) é subordinar ou incluir algo sob aquilo que o compreende e o eleva. É o ato ontológico por excelência pelo qual o ente é fundado num novo nível do ser. O ser ou a totalidade de um mundo subsume seus componentes. Deste modo, o ente passa (é a “passagem” que eleva) a uma nova ordem.

Por exemplo, o mero dinheiro passa a ser capital. O dinheiro “como dinheiro” na totalidade da circulação, agora em relação à nova totalidade como capital, é outra coisa: é dinheiro como capital . Isto vale igualmente para a mercadoria como mercadoria, o produto como produto, que passam na nova ordem a formar parte do capital. Todas as determinações, enfim, subsumidas como determinações do capital. Cada uma das determinações (o dinheiro continuando o exemplo, agora tendo o capital como totalidade, assume caráter novo, distinto de sua existência no interior de outra totalidade menos geral (menos abstrata). O capital “em geral” é, assevera Dussel (2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 121), nada menos, a essência do capital, e “toda essência, como totalidade concreta é a “síntese de múltiplas determinações”, na expressão do próprio Marx.

Na leitura de Dussel (2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 135), para Marx o capitalismo como totalidade se funda no capital. E este é a essência de tudo o que aparece no mundo das mercadorias. E a partir deste fundamento ( DUSSEL, 2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 135) Marx explica o capital em geral, isto é, na sua essência. Não apenas no nível raso, mas no nível profundo. As determinações do capital (dinheiro, mercadoria e outras) são subsumidas pela essência do capital e no seu interior funcionam como elementos constitutivos estruturais de seu ser. São suas determinações essenciais. E num segundo momento (momento do “retorno” dialético), voltam ao nível concreto dos fenômenos, como formas do próprio capital: o dinheiro, no caso de nosso exemplo, “retorna” como componente do capital. Portanto, o que se “vê”, o que aparece fenomenicamente nunca é o capital como tal. Este situa-se ao nível profundo, encoberto. Somente uma reflexão ontológica permite pensar o ser de sua essência: o conteúdo último do capital como valor ( DUSSEL, 2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 122). E se a ontologia pensa a questão do ser, Marx elabora uma ontologia do capital, e por efeito, do capitalismo. Tal ontologia é necessária porque a aparição do capital é sempre apenas fenomênica, nunca um aparecer em seu componente essencial como tal. O capital aparece como dinheiro, por exemplo, essa é sua aparência. Por isso se torna necessário uma reflexão ontológica de descoberta que permite pensar o ser da essência, ou seja, o conteúdo último de capital como valor.

Nesse passo, Dussel (2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 125-126) demarca o que é o núcleo central da ontologia marxista: o valor como essência última do capital, como sua determinação universal. A totalidade é o capital, figurando o valor como seu momento essencial. É importante observar neste caso, que o valor na condição de essência do capital sempre está escondido, encoberto, invisível. Valor que nunca aparece como valor no mundo fenomênico das mercadorias. Apenas se manifesta sob a forma de aparências ônticas: o valor aparece como dinheiro, como mercadorias, como produto e assim por diante. Ainda assim, valor e capital não são a mesma coisa, pois o capital tanto como conceito quanto como categoria é diferente do valor.

Embora Dussel mostre mais desdobramentos marxianos sobre a essência do capital, ocupo-me agora mais diretamente do tema da relação capital-trabalho .

Nos Grundrisse (2011, p. 212) Marx diferencia o trabalho objetivado do trabalho não-objetivado. Afirma que o único trabalho diferente do objetivado é aquele que ainda está se objetivando, ou seja, o trabalho como subjetividade. E nesta condição, existe como trabalho no tempo, por isso vivo, só podendo existir como sujeito vivo, como capacidade, como possibilidade, como trabalhador, conclui Marx.

Ao falar da relação entre capital e trabalho Marx (2011 MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011. , p. 229 -230) elabora também as seguintes importantes distinções. O trabalho posto como não capital enquanto tal, ao ser concebido negativamente é trabalho não objetivado . Nesta condição é não matéria-prima, não instrumento de trabalho, não produto bruto, não meio de vida, enfim, observa Marx, dissociado de toda sua objetividade, ou seja, separado de todos os meios e objetos de trabalho, é nada de capital. É não-valor: Esse completo desnudamento do trabalho, existência puramente subjetiva, desprovida de toda objetividade define o trabalho como pobreza absoluta: “ O trabalho como a pobreza absoluta: a pobreza não como falta, mas como completa exclusão da riqueza objetiva” ( Marx, 2011 MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011. , p. 229-230).

Ao ser concebido positivamente, o trabalho não objetivado , em sua existência subjetiva, é o “trabalho mesmo”, não como objeto, porém, com atividade. Afirma Marx nos Grundrisse (2011, p. 230) que:

O trabalho não como objeto, mas como atividade; não como valor ele mesmo, mas como a fonte viva do valor. A riqueza universal, perante o capital, no qual ela existe de forma objetiva como realidade, como possibilidade universal do capital, possibilidade que se afirma como tal na ação. Portanto, de nenhuma maneira se contradiz a proposição de que o trabalho é, por um lado, a pobreza absoluta como objeto e, por outro, a possibilidade universal da riqueza como sujeito e como atividade, ou, melhor dizendo, essas proposições inteiramente contraditórias condicionam-se mutuamente e resultam da essência do trabalho, pois é pressuposto pelo capital como antítese, como existência antitética do capital e, outro lado, por sua vez, pressupões o capital.

Portanto, dialeticamente o trabalho é pobreza absoluta como objeto, e, ao mesmo tempo, é a possibilidade universal da riqueza como sujeito e como atividade. Visto desta maneira, o trabalho não-objetivado é o exterior, o outro do capital. E como tal (não-capital) é a fonte viva do capital. É nesse sentido que se pode afirmar que o trabalho originariamente é exterior ao capital. Nesse momento dialético caracteriza-se o âmbito da exterioridade como fonte originária do capital como totalidade. Portanto, antes de ser um ente (trabalhador assalariado, no capitalismo) do capital, é um sujeito vivo, fonte do trabalho enquanto atividade. No entanto, na totalidade do capital o trabalho objetivado do trabalhador já é trabalho como capital. O trabalho objetivado é desde já capital. Assim, a mercadoria, o dinheiro, o próprio capital são trabalho objetivado. No entanto, antes não é “o mesmo” subsumido na lógica do ser do capital, mas é um “fora de”, um “além de”, uma “exterioridade” (Äusserlickeit, na expressão de Marx), um outro (na expressão de Dussel). Nessa relação, tanto entre capital e trabalho e entre Dussel e Marx, aquele conclui que se a riqueza é o capital, o que está para além, o que está fora, é a pobreza absoluta, não como carência, na afirmação de Marx. É o nada de sentido, nada de realidade, o improdutivo, o inexistente porque não valor. O que Dussel denomina de o Outro, ou o Outro da totalidade do capital. 10 10 Se a riqueza é o capital, o que está fora é a pobreza “absoluta”. Nada de sentido, nada de realidade, improdutivo, inexistente, “não valor”. Chamamos “o Outro” a esta posição da pessoa. Mas deve-se levar em conta que o trabalhador, enquanto homem, pode sempre tornar-se – mesmo quando um assalariado – “o Outro” da totalidade do capital. ( DUSSEL, 2012 , p. 138)

A posição do trabalhador, enquanto pessoa, mesmo na condição de assalariado é “outro” em relação à totalidade do capital. Essa alteridade, no entanto, só pode ser mostrada desde uma lógica fundada na exterioridade e não na totalidade. Como observado anteriormente, a ontologia pensa a questão do ser, tendo-o como fundamento. Marx ao desenvolver uma ontologia do capital, destaca além de seu horizonte (do capital) o não-capital: o trabalhador como capacidade e subjetividade, fonte criadora do valor, essência do capital. Aqui está posta a questão da exterioridade. O trabalho como capital aparece num processo de subsunção, restando incorporado à essência do capital como uma de suas determinações. Nessa perspectiva da reflexão, o trabalho enquanto atividade, - “possibilidade universal de riqueza” (Marx), admitido que toda riqueza é produto do trabalho do homem -, é “pobreza absoluta”, “desnudamento de toda objetividade”, “existência puramente subjetiva do trabalho” (Marx): pobre, na expressão de Marx e de Dussel (2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 136-140), como visto anteriormente.

Com a categoria “trabalho vivo” elaborada por Marx se percebe que o trabalho não é valor, mas criador do valor. Por efeito, nesta condição o trabalhador enquanto não subsumido pelo capital, não é valor, não é dinheiro, não é capital. E como se define então o trabalhador na relação da totalidade do capital? A resposta é dupla. Desde que subsumido, passa a ser uma determinação interna do capital (o sentido dos entes se dá no e partir de seu ser, o fundamento), e em consequência fundado na totalidade do capital. Porém, enquanto não subsumido é o real exterior. É o que Dussel denomina de “o outro distinto do capital”. O trabalhador, enquanto corporalidade, enquanto pessoa, enquanto “não-ser” do capital, é a exterioridade. A totalidade-capital só é possível, desde e a partir da existência da “exterioridade” do trabalho vivo, do qual provém o valor, essência do capital. Dussel (1988 DUSSEL, Enrique D . Hacia un Marx desconocido: un comentario de los manuscritos del 61-63. México: Siglo Veintiuno, 1988. , p. 64) insiste que o movimento dialético do discurso de Marx tem a direção que vai desde o trabalho vivo como não-capital (como nada, como não-ser, como o outro distinto do capital) e fonte criadora do valor, para o capital como totalidade: sem a exterioridade que existe para além do capital, não haveria o capital.

Segundo Dussel, o criar-desde-o-nada é uma categoria radical, a primeira, a mais originária, e a partir da qual Marx desenvolve todo seu discurso. 11 11 Neste ponto, Dussel (1988 , p. 64) assinala que o pensamento de Marx se constrói desde a exterioridade do trabalho vivo – o criar desde o nada -, e que ou se equivoca ele em tal interpretação, ou se equivocam na leitura "Lukács, Kosik e tantos outros" ao considerarem a totalidade como categoria fundamental em Marx, como já referido em nota anterior.

Como síntese, nessa relação entre as duas categorias, pode-se concluir que a exterioridade é concebida como fonte criadora do valor desde o não-capital, num movimento de subsunção ao capital, que uma vez existente, tem na totalidade a categoria ontológica por excelência.

1.4. A totalidade e a exterioridade a partir de Marx: a relação trabalho vivo e mais-valia.

Dussel faz questão de destacar a relação direta da mais-valia com a produção, no pensamento de Marx. Registra que todo o seu discurso está orientado para o nível mais profundo, oculto e fundamental do processo de produção. E é assim que a questão da mais-valia é descoberta, definida e elaborada a partir da produção. A produção se apresenta como referência ontológica – e até metafísica – necessária na explicação de todos os demais fenômenos econômicos ( Dussel, 2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 306). Portanto, isso deve ficar metodologicamente registrado em relação ao pensamento de Marx. A produção como porta de entrada ou ponto de partida, ou ainda, como princípio hermenêutico fundamental em todo discurso de Marx, embora a mercadoria possa aparecer como primeira categoria na ordem da exposição – fato que não pode levar a equívoco e definir como sendo este o ponto de partida da análise, na ordem da fundamentação . Então a questão da mais-valia exige lidar, ao mesmo tempo, com as duas dimensões, ou seja, o nível profundo da produção e o nível da superficialidade da circulação. Marx indica claramente esta relação entre o simples e o complexo, ao afirmar que a mais-valia que o capital tem ao final do processo de produção, enfim, esse valor como preço maior somente se realiza na circulação porque já está como todos os demais preços idealmente pressuposto ( Marx, 2011 MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011. , p. 251-251). O nível da compra e venda contém o movimento que vai desde o trabalho vivo (nível profundo da produção) até o “preço do trabalho” (salário) na circulação. A mais-valia é uma categoria sumamente complexa, pois inclui muitas outras categorias mais simples e abstratas, tais como dinheiro, mercadoria, trabalho, todas determinações do capital, e inclui outras mais, como é o caso de trabalho necessário . Como definição a mais-valia consiste no trabalho excedente objetivado . Mas o trabalho excedente é uma categoria que se torna inteligível em sua relação com outra categoria que é a de trabalho necessário. Marx inicia explicitando a questão a partir da necessidade de trabalho do operário para viver. Se este necessita de meia jornada para viver por um dia inteiro, o tempo necessário de trabalho para subsistir será de meio dia.

A segunda metade da jornada é trabalho excedente. Assim, o que do ponto de vista do operário se apresenta como trabalho excedente, do ponto de vista do capital é a mais-valia. A mais-valia resta evidente na medida em que o capitalista pagou só meia jornada de trabalho e recebe no produto uma jornada de trabalho inteira de forma objetivada ( Marx, 2011 MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011. , p. 254-255). Este germe das categorias trabalho necessário e excedente é desde já a origem da teoria da mais-valia. O trabalho excedente entregue pelo operário ao capital no nível profundo da produção é encoberto pelo mesmo capital. É nesse momento do movimento (o capital como processo) que se encontra o surgimento do valor como mais-valia (Marx, 2012, p. 255-256; Dussel, 2011, p. 160) . Enfim, nessa relação na lógica do sistema capitalista tudo se orienta no sentido de reduzir a proporção entre o trabalho necessário e o trabalho excedente. E portanto, a mais-valia consiste no trabalho excedente.

3. Considerações finais.

A exterioridade: Marx e a Filosofia da Libertação.

O próprio Dussel se encarrega da tarefa de fornecer uma síntese das categorias construídas ao longo do livro A produção teórica de Marx: um comentário aos Grundrisse, no capítulo 17 - Os Grundrisse e a Filosofia da Libertação - com a finalidade de mostrar a contradição capital-trabalho diante do movimento que vai da exterioridade ao frente a frente. Sublinha a importância da construção de categorias de categorias, ou seja, categorias as mais abstratas e gerais, tarefa da filosofia em geral. Destaca a categoria da exterioridade (Äusserlichkeit), e embora reconheça nela um sentido espacial, neste momento confere a ela um sentido metafísico, isto é, como o que se situa mais além do horizonte ontológico de um sistema, neste caso, do capitalismo como totalidade.

Esse além ou fora de pode ser caracterizado como exterioridade (1) por anterioridade histórica, (2) por abstrata essencial, e (3) por post festum: pauper . As três formas ( Dussel, 2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 319-324) são definidas como adiante:

1) Exterioridade como anterioridade histórica.

Esta forma de exterioridade é o suposto de sua existência no tempo que dissolvido deu origem ao novo sistema, como ao capital, para exemplificar, quando Marx observa que “o capitalista tem origem, em parte, no servo emancipado” (2011, p.385). Essa são formas de apropriação pré-burguesas, pré-capitalistas, o que como tal indica o outro da sociedade capitalista, por anterioridade histórica. Essa é exterioridade do capital na condição de anterioridade histórica ao mesmo. O outro da sociedade capitalista situa-se numa anterioridade histórica, nas formas pré-capitalistas. Exterioridade prévia à constituição da totalidade capitalista;

2) Exterioridade essencial abstrata:

A exterioridade pode ser o além, este fora de por sua própria condição, como exterioridade metafísica, assim como o trabalho vivo é o outro do capital, antes capital- trabalho na totalidade, ou seja ante rem. A exterioridade assim entendida se estabelece entre o capital já originado e o trabalho vivo, pois o trabalho vivo, ou seja o trabalhador é o outro absoluto que enfrenta o capital desde sua exterioridade. Trata-se da classe trabalhadora como outra em relação à classe capitalista; nação periferia (África, Ásia, América Latina) como outra da nação capitalista (Inglaterra, França). Neste momento Dussel reúne diversos desdobramentos dessa condição, cuja descrição vale a pena:

A “exterioridade” é “alteridade: ser outro enquanto distinto da totalidade estabelecida, dominadora, existente a partir de si e por si: o capital. “ O outro” é, deste modo, “um pleno nada” (cf. 7.1a.1, o texto do II dos Manuscritos de 1844 ). “Nada” por não ter sentido; “nada” por não ter valor ainda, não ser matéria-prima ainda, ser não instrumento. Sua objetividade “pode ser somente uma objetividade não separada da pessoa (Person)”. A própria “pessoa” (o rosto do outro), sua corporalidade, sua sensibilidade está aí, fora: é sua pele que o colocará à venda e seu destino será o curtume – como Marx escreverá n’O capital. O outro, sensível, que Feuerbach descobrira na relação “eu-tu” - em que se inspirarão Rozenzweig e Levinas -, é aplicado por Marx ao trabalhador, ao outro do capital, cuja “objetividade coincide com a sua imediata corporalidade (Leiblichkeit)”, carnalidade, com sua pele; a pele que a prostituta vende para comer, a pele que é objeto do sadismo do torturador na repressão política, a pele do trabalhador ferida e mutilada pelo futuro trabalho excedente. Esta pele do outro é ainda exterior ao capital, como o “absolutamente contraditório”. (2012, p. 322)

Nesse sentido, Dussel compreende a exterioridade como alteridade, sempre distinta da totalidade estabelecida. Trata-se da exterioridade enquanto enfrentamento do capital.

3) Exterioridade post festum: pauper:

Embora o trabalhador seja o outro do capital, como vimos, deixa esta condição uma vez subsumido na lógica do capital como totalidade pelo trabalho objetivado, por exemplo, no qual resta alienado, vendido. No entanto, nem por isso deixa de ser sempre de novo potencial ou atualmente, o outro do capital. Marx adverte que no conceito de trabalhador livre já está implícita sua condição de trabalhador pauper, pobre. É um pobre virtual, na medida em que o capitalista não necessita da mais-valia do operário, e assim este não pode mais realizar o trabalho necessário para produzir seus meios de subsistência, e portanto, virtualmente é um pobre ( Marx, 2011 MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011. , p. 502). Assim, a exterioridade se apresenta também por processo de exclusão do capital porque posto à margem (ausser) das condições nas quais o trabalhador pode viver, transformando-o novamente no outro do capital. Esta é a exterioridade post festum como momento necessário do capital em sua tendência de colocar sempre mais tempo excedente de trabalho, diminuindo o trabalho necessário. Em outros termos, todo trabalhador é potencialmente um pobre – exército industrial de reserva. Enfim, o trabalhador subsumido (alienado) é potencial ou atualmente sempre de novo o outro do capital: desde que a lógica do capital não mais dele necessite. O outro na condição de fruto da exploração do próprio capital. Dussel conclui esta expressão da exterioridade assim:

“O outro”, como pobre, é um indivíduo – individualmente que, tendo passado pela experiência do trabalho livre, desenvolveu-se ao máximo: é pessoa num sentido novo, mais maduro que nos anteriores modos de apropriação -, é potencialmente uma classe (a classe trabalhadora) e, noutro nível, uma nação.

Creio que aqui seja oportuno acrescentar que desde a Filosofia da Libertação , desde a década de 1970 Dussel concebe o outro como realidade comunitária: o rosto do outro, primeiramente como pobre e oprimido, mostra antes um povo que uma pessoa singular, o outro como história de um povo antes que uma biografia singular. É o rosto mestiço sulcado pelo trabalho centenário do índio, do escravo africano, enfim, cada rosto singular e único é o rosto de um sexo, de uma geração, de uma classe social, de uma nação, de um grupo cultural, de uma idade da história, registra o autor (1977, p. 50).

Os três diferentes modos de exterioridade revelam três tipos diferentes de ser outro: como a novidade na história, como o enfretamento com o capital, e como a expulsão do capital.

A contradição capital-trabalho no trânsito que vai da exterioridade ao cara-a-cara (o frente a frente) se acentua e se radicaliza com os desdobramentos da exterioridade em suas diferentes modalidades. E se por certo a questão pode até ser vista de outra maneira, como no caso em que o cara-a-cara é tido como uma experiência existencial positiva por ser um abrir-se ao outro como outro no respeito e justiça (tese de Levinas), o enfrentamento na totalidade do capital entre trabalhador e capitalista, ou seja, diante do ser do capital o trabalhador que o enfrenta – no cara-a-cara – é o não ser. Marx define tal situação como figuras autônomas, um alheio ao outro, e em contradição (2011, p. 206). Portanto, de qualquer modo no frente a frente do capitalista com o trabalhador no instante acrônico anterior à questão da produção, ou seja, do trabalho objetividado, ou ainda da proposta que envolve pagamento de salário de um lado, e de disponibilidade para alienar a capacidade de trabalho de outro, nesse instante se dá o momento supremo da intensidade ética por excelência. Momento de enfrentamento no qual um ser humano enfrenta ao outro como ser humano, como outro, como distinto. Na negociação propriamente, salário e demais condições de trabalho frente à disponibilidade da capacidade de trabalho, o frente a frente originário já ficou para trás com o contrato de troca desigual que inicia sua obra destruidora - o caminho desde o trabalho vivo – exterioridade – até o trabalho objetivado – totalidade – ( Dussel, 2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 324-325).

Nesse frente a frente inicial ainda não há troca. No entanto, a partir do momento em que o trabalhador vende a sua capacidade de trabalho, ou seja, realiza a troca, deixa de ser o outro do capital, sua contradição, sua exterioridade, para ser subsumido pelo capital, para ser uma de suas mediações – a mediação por excelência, o valor como mais-valia. É o momento da passagem da proximidade à subsunção formal. Este ato é designado por Marx e Dussel como alienação, pois é o ato pelo qual o outro é negado em sua alteridade porque subsumido na identidade do capital. Em Marx isso ocorre porque no contrato de trabalho o trabalho vivo é subsumido pelo capital, incorporado à essência do capital. Dussel subsume essa ideia, mas lembra que no sentido filosófico geral (metafísico) definia na década de 1970 a alienação como o ato no qual o outro é incorporado ao estranho, à totalidade alheia. Totalizar a exterioridade, sistematizar a alteridade, negar o outro como outro é a alienação (1977, p. 58). No entanto a alienação material ou real do trabalhador na totalidade capitalista ocorre pela introdução da máquina no processo produtivo. Há um novo enfrentamento, o do trabalhador como a máquina. Assim, o trabalho vivo e a maquinaria uma vez subsumidos – ambos como capital – passam a ser os momentos produtivos por excelência e o segredo do mistério da criação de mais-valia ( Dussel, 2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 334).

É nesse contexto da definição da alienação do trabalho, da negação da alteridade, da exterioridade, na dinâmica da degradação do frente a frente na proximidade, transformando o outro como mediação, como instrumento, subsumido como mero valor de uso fundado no ser do capital que Dussel situa o mal originário, sob o ponto de vista ético, como sendo a perversidade ética por excelência da realidade capitalista (2012, p. 335), do mesmo modo como Marx expressa o sentido ético perverso da totalização do mundo capitalista, no exemplo claro da essência não-ética da mais-valia, caso nítido de injustiça. Nesse sentido, Dussel assinala que Marx descobriu a essência da moral burguesa e fundou uma ética da emancipação do assalariado (2012, p. 335-336):

Marx demonstrou, definitivamente, a essência da mais-valia como o roubado, apropriado pelo capital sem contrapartida. É a essência mesma do que a moral burguesa “oculta” e que uma ética da emancipação “descobre”. Marx é assim, filosoficamente falando, o ético mais significativo na crítica à essência perversa do capital.

A crítica ética permite pensar na sociedade futura, na utopia como horizonte de realização da individualidade na comunitarização de toda atividade humana. Portanto, a superação da lógica do capital é anunciada por Marx como sendo a grande utopia. Na interpretação de Dussel, a utopia consiste no “mais além” em relação ao horizonte ontológico do capital: o oprimido, alienado porque subsumido no capital, tem a sua utopia, seu projeto de libertação, situado no futuro. É deste lugar que Marx realizou sua crítica à totalidade do capital, com base numa exterioridade.

Desde os Grundrisse e em especial neles – mas também na obras posteriores, inclusive n’O capital - a teoria de Marx tem em vista no limite o roubo que se opera no trânsito do trabalho vivo ao ser subsumido na totalidade do capital. Segundo Dussel, Marx pode negar esta negação e o faz a partir do não capital, do não ser do valor. A sociedade futura não surgirá do seio do capitalismo, como da passagem da potência ao ato, mas surgirá a partir das experiências, dos momentos, da cultura do “pleno nada”, do “não-ser”, enfim, desde a afirmação da exterioridade, articulada à negação da negação do capital ( Dussel, 2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 347).

Essa relação da totalidade e da exterioridade permanece decisiva no pensamento de Marx. E embora Dussel reconheça a importância da totalidade, considera-a categoria central na medida em que por ela se entenda aquele horizonte do ser que funda os entes compreendidos em seu âmbito, pois assim, o ser do capital como valor que se valoriza, funda ontologicamente o dinheiro, a mercadoria, e assim por diante, já que a totalidade é a categoria fundamental da ontologia, sempre como um mundo ou sistema dado (1988, p. 365). A totalização de uma totalidade como lógica da dominação (em nosso caso, o capital como totalidade) é denunciada a partir da alteridade (utopia futura), desde a exterioridade (o pobre, concebido como trabalho vivo, despojado da “riqueza”, que se define e adquire sentido, no interior da lógica do capital - ente visto fundado no ser). E esta exterioridade configura o novo lugar do sentido determinante, do sentido fundante. A afirmação da exterioridade, nunca aniquilada completamente (porque, no caso do trabalho, é sempre virtualmente pelo menos, trabalho vivo, e portanto, exterior à totalização do capital), é o ponto de apoio para o rompimento da lógica da totalização em todos os níveis (na histórica, na política, na erótica, na pedagógica, no jurídico etc.), e seu sentido originário fundante é um sentido de justiça . Dussel (1988 DUSSEL, Enrique D . Hacia un Marx desconocido: un comentario de los manuscritos del 61-63. México: Siglo Veintiuno, 1988. , p. 372) conclui dizendo:

Pela categoria da 'totalidade' o oprimido como oprimido no capital é só classe explorada; mas no caso de constituirmos também a categoria da 'exterioridade', o oprimido como pessoa, como homem (não como assalariado), como trabalho vivo não-objetivado, pode ser pobre (singularmente), e povo (comunitariamente). A 'classe' é a condição social do oprimido como subsumido no capital (na totalidade); o 'povo' é a condição comunitária do oprimido como exterioridade.

Embora não se trate ainda, nem em Marx, nem em Dussel, de uma teoria do Direito propriamente, sem dúvida, na perspectiva até agora exposta, a exterioridade como categoria de categorias, constitui-se como categoria fonte, e como tal, ponto de partida e de chegada da justiça. Além (“fora”) do horizonte da lógica da ontologia dialética de totalização, na qual a totalidade é fundante e constitutiva do sentido da justiça dada, mas que se revela como injustiça, situa-se a dimensão analétic a, ou metodologicamente o momento analético da dialética. Nela a categoria da exterioridade é a reserva crítica que possibilita romper o sentido do que é justo na lógica da totalidade – moral e juridicamente -, mas que se revela injusto a partir de uma compreensão com base na exterioridade. Ou então, a partir desse “novo lugar” pode revelar um “outro” justo, ou uma “outra” justiça: o não-ser como ser da justiça.

A exterioridade pode ser concebida em níveis diversos. Primeiro como uma categoria de categorias, um conceito de conceitos, e nesse nesse caso, na condição de abstração em geral, constitui-se filosoficamente na exterioridade em relação à totalidade (lógica da exterioridade/lógica da totalidade). Segundo, pode ser uma chave hermenêutica também ao nível concreto, como vimos em diversos aspectos e momentos. Poe isso, periferia real (América Latina), histórica e geopoliticamente em relação aos países centrais (Europa, Estado Unidos, Japão); ou trabalho vivo em relação ao capital (do capitalismo mundial); ou trabalho vivo em relação ao capital (do capitalismo periférico, subdesenvolvido, onde surge a ainda urgente e decisiva “questão da dependência”); também a questão, classe econômica e socialmente dominada (com reserva de exterioridade - trabalho vivo) em relação à classe detentora do poder; sexo dominado (com reserva de desejo, como fonte viva exterior à dominação) na totalização erótica machista; educando reduzido à ignorância (como reserva do ainda-não, do “novo” de sentido) na totalização pedagógica; excluído (como reserva de justiça desde a exterioridade) na lógica de totalização do Direito dominante, como diversas vezes apontado.

Para concluir, creio que Dussel alcança com as reflexões sobre a obra de Marx mais precisão para expressar as categorias da filosofia da libertação . Maior precisão categorial para as intuições mais profundas de seu pensamento que desde a década de 1960 vem elaborando, fato que ele próprio anuncia e reconhece. Ainda mais, percebo que a relação do pensamento de Dussel com o de Marx não permite separações que os coloquem em continentes filosóficos e epistemológicos separados, estanques e intocáveis. Pois, o próprio Dussel afirma que tenta apreender na obra de Marx um discurso implícito, mas que seja coerente com seu discurso explicito , e como tal não é simplesmente história da filosofia, mas é filosofia, que por ser um discurso latino-americano leva em conta a problemática real do momento. É um discurso que continua Marx porque não trai sua lógica nem seus fundamentos, e ao mesmo tempo é criador na medida em que abre novos horizontes (2012, p. 319-320). Particularmente acho que é isso que acontece. Dussel vai a Marx – subsume aspectos essenciais de sua reflexão, passa por ele, e segue produzindo filosofia da libertação .

  • 1
    Para obter informações complementares, consultar ( FORNET-BETANCOURT, 2004 FORNET-BETANCOURT, Raúl (org.). Filosofía para la convivencia – caminos de diálogos norte-sur. Sevilha: Ed. MAD, 2004. ).
  • 2
    Em português: A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
  • 3
    Em diversas ocasiões Dussel faz menção ao fato, como pode ser observado em notas de rodapé da obra A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. Transcrevo algumas delas para a compreensão da questão. A começar pela nota 15 do Capítulo 18, p. 379: “Esta é a posição de H. Cerutti na op. cit., quando escreve (p. 318): “no discurso populista se verifica em aspectos fundamentais e decisivos [...] a reiteração do conceito de povo’. Ou seja: para este autor, ou se opera uma interpretação classista (que é abstrata) ou se cai no populismo porque se emprega a categoria ‘povo’. Neste caso, Fidel Castro, Borges etc. seriam, para Cerutti, populistas”. E já na nota 16: “Crer é ter fé. Para Cerutti, op. cit., isto seria cair no fideísmo. Ele parece ignorar a problemática filosófica, estritamente filosófica , da questão da ‘fé’. [...] A referência crítica a um ‘populismo fideísta’ é simplesmente demonstração da ignorância da problemática filosófica da ‘fé antropológica’. Castro se situa no nível de uma fé política”. A seguir pela a nota 32 do Capítulo 18, p. 382: “Cerutti também me acusa, repetidas vezes, de ser populista por ser ‘etapista’. Por isso, deveria antes criticar-me como leninista, stalinista ou por assumir a posição de Mao em ‘A nova democracia’ – mas eu não seria populista por causa disto. Ele parece confundir o sentido de um texto de Lenin: ‘O populismo se converteu quase completamente em ideologia pequeno-burguesa, erguendo uma barreira entre ele e o marxismo (op. cit., p. 156). Talvez por isso insista ele tanto sobre o meu ‘antimarxismo’ dos anos 1960 (que, na realidade, era antidogmatismo, antialthusserianismo ou recusa da posição política do PC argentino, que já se separava do povo ao seguir a linha stalinista de ordens e contraordens). Mas não se deve tentar denegrir as pessoas mediante uma ‘imputação ideológica’ de antimarxismo (como outros, ao mesmo tempo e por razões igualmente políticas, me imputam por ser marxista). A última nota do livro sobre este assunto, a nota 44, Capítulo 18, p. 388, retoma o tema: “Este é o erro de fundo de Cerutti na op. cit.” [Dussel refere-se ao erro de “confundir ‘povo’ com “populismo’]. Já anteriormente, na nota 25 deste Capítulo 18, p. 381, Dussel após apresentar algumas expressões de Marx que contêm os termos “povo” e “pobre”, pergunta: “Também Marx será populista por usar a categoria povo ligada a pobre? Decerto que sim, para Cerutti”. E acrescenta na nota 39 deste Capítulo 18, p. 386, transcrevendo afirmação de Cerutti: “Como se verá, a noção de pobre é uma das noções-chave da filosofia da libertação” (Cerutti, op. cit. , p. 30), ao que Dussel acrescenta “- claro que, para o crítico [Cerutti], trata-se de um conceito ambíguo por excelência”. Ainda para reportar equívocos da crítica de Cerutti, pode-se observar, especialmente a nota 21 do Capítulo 17, p. 330, onde assim se expressa ao avaliar a relação de suas primeiras obras com as do período dos estudos de Marx: “Estas categorias (ontológicas ou metafísicas), nós as descrevemos em nossa Filosofía de la liberación, ed. cit.: Mediações e 2.3. Totalidade; igualmente, em Para una ética de la liberación latinoamericana, ed. cit: totalidade (t.I, pp. 33 e ss.), mediações (pp. 65, e ss.). Cerutti, op. cit., opera uma verdadeira “mistura” em sua pretensa apresentação do nosso pensamento (pp. 38-43), revelando que, antes de realizar uma crítica, é necessário compreender o que se pretende criticar. O que, desde 1969, expressei através de uma categorização heideggeriana, posso agora, com maior precisão (mas respeitando as intuições de fundo), expressar a partir de Marx. E ainda, para ilustrar a questão sob outro enfoque, a nota 2, p. 323, do mesmo Capítulo: “‘O outro’ como realidade comunitária (cf. Filosofía de la liberación , ed. cit., 2.4.5.1, p. 59: “O rosto do outro, primeiramente como pobre e oprimido, revela antes um povo que uma pessoa singular [...]; é rosto de um sexo, de uma geração, de uma classe social, de uma nação...”). Cerutti, op. cit. , p. 38, comete todo tipo de confusões - fala mesmo da ‘alteridade do ente’, o que é absurdo -, negando o sentido também comunitário do outro”. E por fim, ao se referir à categoria da exterioridade, assim se manifesta na nota 37 do Capítulo 18, p. 385: “Cf. Parágrafo 17.1.b e c. Chamamos a esta ‘exterioridade’ o momento ‘escatológico’, o ‘mais além’ do sistema. Esta denominação oferece, novamente, oportunidade para que Cerutti ‘clericalize’ depreciativamente a questão. Pode-se, também, falar de ‘transcendentalidade’”.
  • 4
    Recentemente foi lançado o livro 16 Tesis de economía política: interpretación filosófica. México: Siglo XXI Editores, 2014. Ver especialmente Tesis 12, [12.7] La totalidad y la exteriodad económica.
  • 5
    DUSSEL DUSSEL, Enrique D . Hacia un Marx desconocido: un comentario de los manuscritos del 61-63. México: Siglo Veintiuno, 1988. , Enrique D. Hacia un Marx desconocido: un comentario de los manuscritos del 61-63. México : Siglo Veintiuno Editores, 1988; La producción teórica de Marx: un comentario a los grundrisse; El último Marx (1863-1882) y la liberación latinoamericana; Fundamentación de la ética y filosofia de la liberación.
  • 6
    Dussel procura mostrar que, ao contrário do que afirmam Karel Kosik e Georg Lukács, a categoria da totalidade, só é a categoria fundamental do capital "já dado"; e que a possibilidade do devenir originário do capital se dá desde a categoria da exterioridade. Cf. Hacia un Marx, p. 57 e segs.
  • 7
    Embora o horizonte seja a o pensamento de Marx no sentido geral, a reflexão deste pequeno texto tem em conta em especial os Grundrisse, tendo em vista a obra de Dussel já tantas vezes anunciada (2012)
  • 8
    Na esfera mais concreta da produção (embora ainda em caráter abstrato), devem ser consideradas as outras determinações: o consumo, a distribuição e a troca. Estas determinações devem ser tratadas metodicamente por meio de relações co-implicantes: produção-consumo, produção-distribuição e produção-troca; ( Dussel, 2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 39-47).
  • 9
    A questão é bastante árdua e complexa. É de conhecimento que a investigação marxiana parte da produção material que é e não pode ser outra que não a produção de indivíduos produzindo em sociedade, como afirma. José Paulo Netto (2011, p. 39) sintetiza tal movimento desta maneira: “para elaborar a reprodução ideal (teoria) do seu objeto real (que é a sociedade burguesa), Marx descobriu que o procedimento fundante é a análise do modo pelo qual nele se produz a riqueza material”. Bom lembrar que as condições materiais da vida social não envolvem apenas a produção , mas incluem os momentos do consumo, da distribuição e da troca (com toda a dialética entre os distintos momentos, na totalidade concreta do capital). Há uma interação entre estes momentos – uma dialeticidade intensa -, embora seja a produção o momento dominante. Assim, Marx como bom dialético e como bom materialista distingue o campo da realidade – do objeto – do que é da ordem do pensamento – o conhecimento produzido pelo sujeito -. Portanto, o processo dialético de Marx pode ser explicitado em seus diversos e distintos momentos. O ponto de partida (1) é o real concreto (o existente, ponto de partida de toda investigação), de onde se procede o “ascenso” dialético para a (2) representação plena (como totalidade caótica, inicialmente sempre confusa, mas de todo modo já situada no “mundo conceituado”, mas que não pode ser confundido com o real que mantém uma exterioridade a todo conhecimento possível), depois para as (3) determinações abstratas (conceitos definidos), a seguir avança – é o elevar-se ou ascender , momento dialético por essência – para a (4) totalidade construída (concreta, ainda que abstrata em face dos momentos posteriores do método, ou seja no movimento de retorno e descenso) “em geral”; deste ponto se inicia o caminho da volta da totalidade (abstrata) para as (5) categorias explicativas, para alcançar a (6) totalidade concreta histórica explicada, e por fim, chegar na (7) realidade conhecida. Nesse movimento o ponto 1 e o ponto 7 indicam o “mundo real”, enquanto o movimento que vai do ponto 2 ao 4 e retorna deste ao 6 indicam o “mundo conceitualizado”, em livre explicação do esquema apresentado por Enrique Dussel (2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 51) sobre os diversos momentos metodológicos em Marx. Enfim, o concreto como síntese de múltiplas determinações.
  • 10
    Se a riqueza é o capital, o que está fora é a pobreza “absoluta”. Nada de sentido, nada de realidade, improdutivo, inexistente, “não valor”. Chamamos “o Outro” a esta posição da pessoa. Mas deve-se levar em conta que o trabalhador, enquanto homem, pode sempre tornar-se – mesmo quando um assalariado – “o Outro” da totalidade do capital. ( DUSSEL, 2012 DUSSEL, Enrique D. A produção teórica de Marx: um comentário aos grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. , p. 138)
  • 11
    Neste ponto, Dussel (1988 DUSSEL, Enrique D . Hacia un Marx desconocido: un comentario de los manuscritos del 61-63. México: Siglo Veintiuno, 1988. , p. 64) assinala que o pensamento de Marx se constrói desde a exterioridade do trabalho vivo – o criar desde o nada -, e que ou se equivoca ele em tal interpretação, ou se equivocam na leitura "Lukács, Kosik e tantos outros" ao considerarem a totalidade como categoria fundamental em Marx, como já referido em nota anterior.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
  • Data do Fascículo
    Set 2018

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2018
  • Aceito
    05 Ago 2018
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