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A INSTRUCÇÃO PUBLICA: A REFORMA PELA FAMILIA, PELA PATRIA E PELA HUMANIDADE1 1 A análise deste documento faz parte da pesquisa de doutorado intitulada A primeira reforma da instrução pública de 1892: conflitos e disputas (2014), financiada pela Fapesp.

THE PUBLIC INSTRUCTION THE REFORM THE FAMILY, THE PATRIA AND FOR HUMANITY

Nada de ensino obrigatorio, nem por um dia quanto mais por dez annos. Si a obrigatoriedade do ensino é cousa boa deve ser decretada ad perpetum reipublicae memoriam; si é ruim, como realmente o é, não deve ser tolerada um só dia, um só instante [...]. A acção do poder temporal cessa onde principia a acção individual e as relações da familia (Diário Popular, 8 jan., 1891).

Esse excerto, retirado de uma longa exposição em forma de artigo, do professor normalista José Feliciano de Oliveira, publicada no jornal Diário Popular, de 8 de janeiro de 1891, evidencia um dos momentos cruciais no que se refere ao debate que precedeu a primeira lei que reformou o ensino em São Paulo no regime republicano. Denominada à época de a grande reforma, suscitou intensas discussões, envolveu intelectuais, professores, políticos e outros sujeitos sociais, bem como comportou diferentes projetos de educação e visões de mundo para uma sociedade que votava grandes expectativas à República recém-proclamada.

A reforma foi promulgada pela lei n. 88, de 8 de setembro de 1892, e tinha como finalidade ampliar o acesso à escolarização formal. O sufrágio universal, adotado com a Constituição republicana de 14 de fevereiro de 1891, que estabelecia a alfabetização como condição para o exercício do voto, concorreu para ampliar o papel destinado à escola, levando à necessidade da extensão do ensino às massas populares. O modelo de escolas graduadas, o ensino simultâneo e método intuitivo se constituíram como importantes inovações naquele momento.

Pode-se afirmar que o ano de 1891, especialmente na imprensa paulista, concentrou uma intensidade debates voltados à reforma do ensino: jornais como Diário Popular, Correio Paulistano e o Estado de São Paulo se tornaram um espaço importante para a atuação dos professores públicos. Pouco referida na História da Educação, a atuação do professorado público paulista foi marcante na transição do Império para a República. Segundo Carvalho (2011CARVALHO, José Murilo de. República, democracia e federalismo Brasil, 1870-1891. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 27, n. 45, 2011, p. 141-157.), embora proclamada sem a iniciativa popular, a República despertou certo entusiasmo em algumas camadas sociais quanto às novas possibilidades de atuação. As expectativas de uma maior participação política também se fizeram sentir entre o professorado. Os jornais expressavam, em variadas notas e artigos, a visão corrente de professores, fossem da capital ou do interior, a despeito de suas distintas concepções de educação: de um Império que relegou a instrução popular a segundo plano e a de um regime sem realizações no campo da educação, visto como retrógrado, corrupto, opressor e que representava o velho, o atraso, em contraste com uma República democrática, que por meio da instrução pública levaria o povo a se autogovernar.

Logo após a proclamação os professores se organizaram em comissões para saudar o novo governo e para solicitar com urgência a reforma no Estado. O professor Carlos de Escobar, um dos integrantes da comissão escolhida pelos professores para representá-los diante a Junta Governativa, ao lado dos normalistas Arthur Breves, Pompeu Tomasini e Boa Nova, dirigiu-se ao palácio do governo no dia 18 de novembro, conforme noticiou o Correio Paulistano:

O Grêmio do Professorado [se] apresentou ao Governo Provisório da República, e pelo seu delegado, sr. Carlos Escobar, jurou em nome da Família da Pátria e da humanidade cumprir entusiasticamente o seu dever, estudando, ensinando e consolidando assim a República Federativa Brasileira. O sr. Prudente de Morais saudou a mocidade brasileira representada pelos professores públicos. (18 nov., 1889)

Poucos dias depois, outra comissão, formada estritamente de professoras, teve atitude semelhante e, num discurso proferido ao governo provisório, as normalistas Guilhermina Weltermer, Galdina Amália Lopes, Olímpia Amélia da Silva e P. Pettit ressaltaram a importância de que fossem construídos edifícios apropriados e em número suficiente para as escolas primárias e que se instituísse a equiparação de direitos e deveres entre os professores das diferentes categorias. Mais além, o papel social da mulher no novo regime político era reclamado pelas professoras:

Deixemos a vós os grandes empreendimentos: da vossa sabedoria depende achar os meios para arrancar a mulher brasileira ao acanhado molde em que até hoje está vazada a existência dela. Quiçá não haverá empreendimento mais urgente senão este, que deve mudar a posição social da cidadã, aumentando seu bem estar material e moral [...]. Ansiosas de caminhar por novos trilhos e guiadas por vossos acenos, vos saudamos em fraternal abraço e damos um viva à República. (Correio Paulistano, 29 nov., 1889)

Embora o debate sobre a reforma do ensino tenha se concentrado em 1891, já nos meses finais de 1889 vários escritos haviam sido publicados por professores nos jornais. Os textos ora estavam voltados à questão da obrigatoriedade, ora expressavam críticas à postura do governo quanto às condições de trabalho do professor. A necessidade de se tornar o ensino obrigatório dividiu a classe.

Nesse contexto de disputas pelos rumos que tomaria o projeto da reforma é que se inscreve o artigo do professor José Feliciano, publicado no Diário Popular. O professor normalista, autor do livro O ensino em São Paulo: algumas reminiscências (1932), já havia criticado a reforma da Escola Normal, empreendida pelo médico e educador Caetano de Campos no ano anterior, pelo fato de que, em sua visão, não adiantava modificarem-se os métodos de ensino sem alterar o pagamento dos professores e melhorar a sua formação2 2 Em 1890 foi confiada ao médico Caetano de Campos a remodelação da Escola Normal da Capital e das escolas-modelo anexas, responsáveis, respectivamente, pela formação e pela prática docente do professorado. . Naquele momento se contrapunha às ideias defendidas pelo também normalista Arthur Breves, eleito deputado à Assembleia Constituinte e que teve um papel preponderante em toda a discussão sobre a reforma. Às vésperas do dia 15 de Novembro havia exposto a necessidade de se tornar o ensino obrigatório em carta constitucional, bem como defendera o fim do ensino religioso nas escolas da Província:

O ensino obrigatório é o único meio de tirar o professor dessa dependência em que está para com os alunos, dependência que o avilta, que o induz a um adulador [...]. Cada chefe de família deve compreender que a sua indiferença para com a instrução popular está cavando a ruína de seus filhos [...]. A secularização do ensino é uma das reformas mais urgentes, que já não está em prática certamente por causa desta mania de nossos legisladores, de adiar as questões. (Diário Popular, 3 out., 1889.)

Para Breves a instrução pública não podia estar separada da política, pois era o caminho para melhorar o "caráter nacional" (p. 2) do país, uma vez que sua disseminação entre a população garantiria a independência do voto. Seu pensamento remetia às ideias defendidas pelos propagandistas da República, como Silva Jardim e Lopes Trovão, que viam no novo regime o ingresso do povo na política (Carvalho, 2006CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.).

Em 5 de janeiro de 1891 o Grêmio de Professores da Escola Normal encaminhou um documento denominado Plano de ensino a Jorge Tibiriçá. O texto, constando de dezenove páginas, foi enviado à futura comissão de Instrução Pública3 3 O documento foi publicado na íntegra: GODOI, Lidiany Cristina de Oliveira. O plano de ensino do grêmio de professores paulistas para a primeira reforma da instrução pública (1891). Hist. Educ. (Online) Porto Alegre, v. 17, n. 40, 2013, p. 345-356. . O plano de ensino gerou polêmica na imprensa, desencadeando a publicação de diversos artigos pelos quais se expressava o posicionamento de vários professores.

Logo após a publicação do documento no Diário Popular, José Feliciano apresentou um artigo contendo um plano de ensino paralelo ao do Grêmio, completamente diferente das propostas contidas naquele. Lançando uma série de artigos intitulados Instrução pública - a obrigatoriedade do ensino, defendia que era urgente e necessária uma reforma do ensino, dadas as péssimas condições em que este se encontrava, no entanto, a obrigatoriedade se constituiria em um perigo que ameaçava a liberdade espiritual e o governo não deveria jamais intervir naquele domínio. Em sua visão, os limites de ação do governo estavam circunscritos ao domínio temporal e, para melhor desenvolver este ofício, deveria deixar a reorganização das opiniões e dos costumes à livre concorrência das doutrinas capazes de realizá-las. Acreditava que para que o governo obrigasse os cidadãos a se instruírem segundo certo sistema ou doutrina, era antes necessário provar que tal sistema ou doutrina fossem os únicos capazes de produzir bons cidadãos. Caberia, outrossim, ao pai ou mãe de família fornecer ao seu filho a instrução que melhor lhe aprouvesse.

Feliciano também rebatia um dos argumentos defendidos pelos partidários da obrigatoriedade: o de que, uma vez que a ignorância era a fonte causadora de todos os vícios e crimes, o ensino obrigatório contribuiria para reduzi-los, pois tornava o indivíduo esclarecido e mais consciente de suas ações: "Consultem-se as estatísticas e veja-se em geral os maiores perversos são gente lida e às vezes perleúda em várias letras" (Diário Popular, 27 jan., 1890, p. 1). Feliciano, assim como alguns positivistas chamados ortodoxos, eram contrários à obrigatoriedade no ensino primário. O seu pensamento estava consoante à concepção dos seguidores do Apostolado Positivista de Raimundo Teixeira Mendes e de Miguel Lemos. Ambos haviam defendido esta ideia em circulares da Igreja do Apostolado como, por exemplo, no boletim Exposição da doutrina positivista em relação à obrigatoriedade do ensino e no Bases de uma constituição ditatorial federativa para a república brasileira. Teixeira Mendes já havia se posicionado contrário à obrigatoriedade de ensino para crianças de 7 a 14 anos, decretada no Paraná, em 18864 4 Diário Popular, 12 dez., 1890, Diário Popular, 8 jan., 1891. A política positiva: o regulamento das escolas do Exército; contra o ensino obrigatório, 1902, p. 8. .

O artigo de José Feliciano obteve grande repercussão e dividiu as opiniões de parte do professorado público, no entanto, a maioria se voltou a favor da obrigatoriedade e, acompanhando os debates na Câmara, ansiavam que os esforços se concentrassem no ensino primário5 5 O professor Tancredo do Amaral oferece um breve panorama dos embates daquele momento: "Trata-se de reformar o ensino público no estado de São Paulo [... ]. Diversos artigos têm aparecido na imprensa da capital e de localidades do interior, acoroçoando tal ideia e aplaudindo os bons intuitos do governo nesse sentido. Alguns colegas têm se limitado a agitar a questão, a mostrar a necessidade de transformação nesse ramo do serviço público tão importante, apresentando algumas ideias aproveitáveis aconselhadas pela experiência do magistério e pelos modernos preceitos do ensino. Outros, têm ido além, aventando ideias filosóficas e procurando amoldar o ensino aos preceitos do sistema comtista" (Diário Popular, 11 fev., 1891). .

Localizado no Arquivo Público do Estado de São Paulo (34/0017), o artigo publicado pelo normalista se constitui em documento importante, pois expressa os conflitos e embates ocorridos naquele momento, ao passo que problematiza a visão corrente na historiografia da educação de que a reforma da instrução pública se constituiu em um projeto homogêneo resultado do consenso entre uma elite intelectual e o Estado6 6 Ver Oliveira (2014), capítulo 2. .

Cabe, ainda, considerar o papel importante que tiveram os professores positivistas ortodoxos. Embora tenham sido derrotados no que se refere à obrigatoriedade do ensino primário, algumas de suas ideias foram incorporadas à reforma, como a adoção de escolas ambulantes e as suas preocupações quanto à necessidade de prover o Estado de edifícios escolares para as escolas primárias7 7 Nas escolas ambulantes, que funcionavam em localidades de baixa densidade populacional, o professor se deslocava de uma região à outra para ministrar o ensino (Reis Filho, 1984). Esta concepção apareceu pela primeira vez em um dos boletins positivistas de 1886. Em uma reedição de 1902 o professor José Mariano de Oliveira, ao criticar fortemente a adoção do ensino obrigatório no Estado do Paraná, encontrava como resposta para a ampliação da oferta de escolarização a introdução das escolas ambulantes, pois presenciara esta experiência no Rio Grande do Sul. O positivista destacava que "escolhidos homens dedicados e capazes de ser realmente professores, eles chegarão, ensinando de um a dois anos em cada localidade a reunir ali o maior número de indivíduos em idade de aprender" (A política positiva,1902). . Acredita-se que essa demanda influenciou fortemente o professorado paulista como um todo, que passou a defendê-la inconteste (Diário Popular, 11 out. 1891).

Ao se posicionarem contrários ao ensino obrigatório também apontavam para os limites de ação do Estado. Como garantir o acesso a todos? O professor Joaquim da Silveira expôs em nota que, para decretar a obrigatoriedade, seria preciso que se instituíssem profusamente escolas por todos os lugares e o governo deveria fornecer condições materiais necessárias às famílias pobres. Acreditava que a proposta de ensino de José Feliciano estava mais próximo da realidade da instrução pública paulista. O ponto principal que o fazia concordar com o colega era o fato de que a obrigatoriedade interferia na liberdade espiritual. O governo deveria apenas colocar o ensino à disposição de todos: "Não é uma verdadeira tirania obrigar um pai a mandar à escola o filho, embora não lhe mereça o professor nenhuma confiança, embora lhe repugne o programa oficial?" (Diário Popular, 28 jan., 1891).

Ciente da necessidade de ampliação da oferta de ensino José Feliciano apontava para a importância de se criarem escolas em todos os bairros, vilas e freguesias pelas representações feitas pela população. Pontos que não foram objeto de reflexão dos signatários do Plano de ensino do Grêmio e que permitem relativizar a ideia de que os seguidores do Apostolado estavam estritamente voltados a sua doutrina e não atentavam para as condições reais do ensino em São Paulo. Alguns anos posteriores, com as mudanças já em curso ocasionadas pela reforma, o projeto republicano de escolarização das massas enfrentou alguns obstáculos, como a não aceitação das escolas do Estado em alguns bairros por parte de imigrantes ou a resistência em se adotar o currículo escolar em algumas localidades, além do surgimento das escolas anarquistas, comportando projetos completamente distintos.

Referências

  • A POLÍTICA POSITIVA: o regulamento das escolas do exército. Teixeira Mendes. Igreja do Apostolado Pozitivista do Brazil, 1902. Acervo do Centro de Referência para Pesquisa Histórica em Educação, Unesp, Araraquara.
  • ANAIS DA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DO ESTADO DE SÃO PAULO. 1891. Acervo da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
  • CORREIO PAULISTANO. 1891. 0401043. Arquivo Público do Estado de São Paulo.
  • DIÁRIO POPULAR. 1889 -1891. 34/0017. Arquivo Público do Estado de São Paulo.
  • A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO. Janeiro de 1889 a dezembro de 1889. Arquivo Público do Estado de São Paulo.
  • O ESTADO DE SÃO PAULO. 1890-1891. 001016. Arquivo Público do Estado de São Paulo.
  • PLANO de Ensino Instrução Pública Paulista ao Governador do Estado de São Paulo, Jorge Tibiriçá. São Paulo, 5 de janeiro de 1891. Instrução Pública. Ordem 5014. Arquivo Público do Estado de São Paulo.
  • BOEHRER, George. Da monarquia à república: história do Partido Republicano do Brasil (1870-1889). Rio de Janeiro: MEC, 1954.
  • CARVALHO, José Murilo de. República, democracia e federalismo Brasil, 1870-1891. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 27, n. 45, 2011, p. 141-157.
  • CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  • DEGANI, Maria Therezinha. Aspectos mais significativos da instrução no Estado de São Paulo na Primeira República. Araraquara: FFCL, 1973. 183f. Tese (doutorado em Educação). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
  • GODOI, Lidiany Cristina de Oliveira. O plano de ensino do grêmio de professores paulistas para a primeira reforma da instrução pública (1891). Hist. Educ. (Online) Porto Alegre, v. 17, n. 40, 2013, p. 345-356.
  • GODOI, Lidiany Cristina de Oliveira. A escola primária na boca do sertão paulista: história do grupo escolar de Botucatu. Jundiaí: Paco, 2013.
  • GODOI, Lidiany Cristina de Oliveira. O papel dos professores na primeira reforma da instrução pública paulista (1892-1896). Quaestio, Sorocaba, v. 11, n. 1, 2009, p. 27-36.
  • OLIVEIRA, José Feliciano de. O ensino em São Paulo: algumas reminiscências. São Paulo: Tipografia Siqueira, 1932.
  • OLIVEIRA, Lidiany Cristina de. A reforma da instrução pública de 1892: conflitos e disputas. Campinas: Unicamp, 2014. 198f. Tese (doutorado em Educação). Universidade Estadual de Campinas.
  • OLIVEIRA, Lidiany Cristina de. Botucatu e a expansão do ensino na Primeira República: história do grupo escolar dr. Cardoso de Almeida (1895-1920). In: SANFELICE, José Luís; JACOMELI, Mara Regina Martins; PENTEADO, Ana Elisa de Arruda (org.). História de instituições escolares: teoria e prática. Campinas: Margem da Palavra/Uratau, 2016, p. 47-71.
  • REIS FILHO, Casemiro dos. A reforma republicana do ensino paulista. São Paulo: PUCSP, 1974. 276f. Tese (doutorado em Educação). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
  • TANURI, Leonor Maria. O ensino normal no Estado de São Paulo. São Paulo: USP, 1979. 310f. Tese (doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo.
  • 1
    A análise deste documento faz parte da pesquisa de doutorado intitulada A primeira reforma da instrução pública de 1892: conflitos e disputas (2014), financiada pela Fapesp.
  • 2
    Em 1890 foi confiada ao médico Caetano de Campos a remodelação da Escola Normal da Capital e das escolas-modelo anexas, responsáveis, respectivamente, pela formação e pela prática docente do professorado.
  • 3
    O documento foi publicado na íntegra: GODOI, Lidiany Cristina de Oliveira. O plano de ensino do grêmio de professores paulistas para a primeira reforma da instrução pública (1891). Hist. Educ. (Online) Porto Alegre, v. 17, n. 40, 2013, p. 345-356.
  • 4
    Diário Popular, 12 dez., 1890, Diário Popular, 8 jan., 1891. A política positiva: o regulamento das escolas do Exército; contra o ensino obrigatório, 1902, p. 8.
  • 5
    O professor Tancredo do Amaral oferece um breve panorama dos embates daquele momento: "Trata-se de reformar o ensino público no estado de São Paulo [... ]. Diversos artigos têm aparecido na imprensa da capital e de localidades do interior, acoroçoando tal ideia e aplaudindo os bons intuitos do governo nesse sentido. Alguns colegas têm se limitado a agitar a questão, a mostrar a necessidade de transformação nesse ramo do serviço público tão importante, apresentando algumas ideias aproveitáveis aconselhadas pela experiência do magistério e pelos modernos preceitos do ensino. Outros, têm ido além, aventando ideias filosóficas e procurando amoldar o ensino aos preceitos do sistema comtista" (Diário Popular, 11 fev., 1891).
  • 6
    Ver Oliveira (2014), capítulo 2.
  • 7
    Nas escolas ambulantes, que funcionavam em localidades de baixa densidade populacional, o professor se deslocava de uma região à outra para ministrar o ensino (Reis Filho, 1984). Esta concepção apareceu pela primeira vez em um dos boletins positivistas de 1886. Em uma reedição de 1902 o professor José Mariano de Oliveira, ao criticar fortemente a adoção do ensino obrigatório no Estado do Paraná, encontrava como resposta para a ampliação da oferta de escolarização a introdução das escolas ambulantes, pois presenciara esta experiência no Rio Grande do Sul. O positivista destacava que "escolhidos homens dedicados e capazes de ser realmente professores, eles chegarão, ensinando de um a dois anos em cada localidade a reunir ali o maior número de indivíduos em idade de aprender" (A política positiva,1902).

A INSTRUCÇÃO PUBLICA: A REFORMA PELA FAMILIA, PELA PATRIA E PELA HUMANIDADE

À vista do projecto de reforma, que alguns professores apresentaram ao governo cumpre-me interromper a sequencia destes artigos para antecipadamente expôr os princípios básicos em que, no meu entender, deve assentar a reforma. A exposição completa que pretendo dirigir ao governo e a continuação de meus artigos preencherão as lacunas deste escripto.

Assentemos desde já que a verdadeira educação, destinada a prevalecer, será integral e ha de ser fornecida pela familia até os 14 annos e pelo poder espiritual dos 14 annos aos 21.

Portanto, qualquer reforma, que agora se queira fazer, deve respeitar as idéas que visam ao estabelecimento normal, deve ser feita em modo a não obstar a seu proximo advento.

Como condições geraes dessa reforma temos, quanto ao ensino:

1) O ensino ha de ser leigo, quer dizer, não se deve, ensinar nas escolas doutrinas que offendam as crenças reinantes. O programma de ensino deve, pois constar de materias que qualquer cidadão pode aprender, sem offensa a suas doutrinas, sem offensa a seus credos quaesquer. Laicidade do ensino não significa só a suppressão do cathecismo catholico, mas também a supressão de quantas balelas padantescas se queiram impinhir ao povo. Consequentemente, na escola primaria não se hão de ensinar doutrinas sobre as funcções da alma, doutrinas sobre a familia, etc.

2) O ensino deve ser livre, porque si houver paes que melhor ensinem seus filhos em casa, não se ha se coarctar sua liberdade, obrigando-os a mandar os filhos á escola ou obrigando-os a lhes ensinar as materias ja de antemão progamatisadas. A acção do poder temporal cessa onde principia a acção individual e as relações da familia. O governo nada tem que ver com o modo por que o cidadão dirige o ensino de seus filhos. A sociedade só olha as consequencias desse ensino. A tutella do estado é tyrannica e offensiva quando se quer intrometter nas relações particulares do individuo e da familia.

Por uma razão identica não deve haver monte pio obrigatorio. Que tem o governo com o modo por que os funccionarios publicos economisam seu dinheiro? O governo quer então administrar meus bens? Eu não posso ter um modo melhor de collocar minhas economias? Que tem o governo com os gastos que faço? Nesse andar, o governo chegará a decretar a suppressão do obnoxio uso do fumo, chegará a regular a alimentação e a bebida para promover o augmento dos sobrios e abstemios.

3) O ensino leigo e livre deve ser esthetico, deve ser sobretudo mais moral que theórico. Constará de leitura, escrita, calculo, canto e desenho. Haverá, pois, só escolas do primeiro grau, onde se ensine a ler obras primas (moraes e estheticas), onde se ensine a redigir bem, a calcular com acerto a precisão, a cantar com alma e melodia, a desenhar com regularidade cousas, animaes e pessoas. Si até agora não pudemos instituir boas escolas de primeirto grau. Como vamos ensaiar escolas de outros graus, que a experiencia já mostrou serem inexequiveis? Mais tarde, si quizerem muito, poderão tratar de escolas, onde se faça o estudo pratico das linguas vivas, onde se coordenem as noções sobre o mundo, a sociedade e o homem, onde se ensine um qualquer officio mecanico.

Como condições particulares da reforma, temos:

1) Quanto aos professores. - Devem ser escolhidos por concurso, sem nenhum provilegio de diploma, e devem ter seguridade em seu ofício por um ordenado concernente, dois terços mais que o actual pela vitaliciedade e pela aposentadoria. As nomeações devem ser feitas tendo em vista os talentos mostrados em concurso, as virtudes privadas e publicas, os serviços que os concorrentes tenham prestado ou possam prestar. Aos actuais professores não preparados a bem ensinar as materias do ensino primario, se concederá licença para se habilitarem durante um certo praso, findo o qual perderão as respectivas cadeiras, si não se mostrarem aptos para o mister. A activa fiscalisação do governo terá especial cuidado de apontar os remissos no cumprimeto do dever.

2) Quanto ás escolas e ensino. - As escolas devem ser estabelecidas em casa proprias ou alugadas com as condições hygienicas, recreativas e outras que forem indispensáveis ao bom andamento dos trabalhos. O ensino não se ha de sujeitar a programmas parciaes e a compendios adoptados préviamente. O professor adoptará os livros que quizer e ensinará como entender, cabendo ao governo fiscalisar sua conducta e os resultados de seu ensino. Deve haver escolas em todas as cidades, villas, freguezias e bairros, cujos moradores representarem ao governo sobre a conveniencia de sua creação. O numero de alumnos numa escola se[r]á determinado pelas condições do ensino, cabendo aos inspetores a vigilancia a respeito.

Numa localidade haverá tantas escolas quantas forem julgadas necessarias, á vista das informações dos inspectores e fiscaes do governo.

Haverá tres escolas nas classes, cada uma das quaes terá no máximo 1 hora e 20 m[sic] de aula. Cada classe irá á escola á hora de sua lição e entre uma classe e outra medeará o intervallo de 10 minutos.

Poderá haver duas vezes por semana uma aula de canto coral para toda a escola, podendo-se instituir passeios hebdomadarios a diversos sitios adaptados ao exercicio dos sentidos, da destreza, afim de preparar os meninos para a observação e para a ação.

Não haverá lições ás quintas-feiras, nem haverá ferias de inverno, e as ferias de Dezembro serão ampliadas de modo a não haver aula durante o tempo do calor forte, da canicula incompativel anti-hyginenica.

É impossivel manter a actual organisação de nossas escolas. Entre paredes de uma quadra estreita, não podem estar 3 classes com um mestre que aqui ralha, alli ensina, acolá apartar brigas, sendo ao mesmo tempo obrigado a responder perguntas, a attender pedidos.

Hoje os meninos vão á escola como quem vai passar o dia na casa dos outros. Ahi preparam as lições, ahi aprendem as novas, ahi conversam, communicam as impressões do estudo e do brinquedo: ahi brincam, comem; ahi fazem tudo quanto crianças fazem. Naturalmente assim perdem o amor á familia, ao lar: não adquirem habitos de estudo em casa, nem na escola; afazem-se á idéia de que só se lê, so se escreve e só se aprende deante do mestre, entre as quatro paredes de uma escola ruidosa e suja.

3) Quanto á vigilancia e á fiscalização. - A vigilancia materna tem por mira insinuar na escola a ingerencia da familia. O menino sob as vistas de sua mãi, preparará em casa as lições e estará menos tempo na escola onde só irá para fazer os exercícios necessários, para dar lição e aprender materia nova. Objectarão talvez que as mãis não se importam com esse mister. Pois hão de importar-se. O peor é faze-las esquecer-se de seus deveres, é lhes fazer crer que o professor incumbe tratar de tudo, que a ellas so pertence mandar para a escola seus demoninhos, descobrir-lhes as mazellas, recommendar ao mestre que lhes dê tareias...de mestre, e pôr-se muito livres de mais incommodos.

Em todo o caso si com a desidia de muitas mãis houver educações completamente falhas, talvez sejam em menor numero do que se prescindissemos de seu auxilio. As lacunas ahi têm a vantagem de estarem no organismo normal, sempre de mais facil progresso. Tudo é mais anarchico, tudo é mais difícil no mestre, que exercita só uma parcella da missão educativa. A fiscalização immediata do governo será exercida por inspectores districtaes. Os administradores do municipio, que agora devem ser remunerados, bem podem ter mais um ou dois inspectores, todos remunerados, para que cuidem de seus deveres sem os multiplos trabalhos de outra ordem.

Taes inspectores deverão percorrer todas as semanas as escolas de seu districto, passando no fim do mez o attestado que o professor serve de via para receber seus vencimentos.

Em suas visitas examinarão o adiantamento dos alumnos, verão a conducta dos professores, seu zelo e assiduidade. Saberão da frequencia escolar, da matricula, das expulsões, etc., de tudo apresentando em relatórios trimestraes. Emfim, taes inspecções devem ser moraes, estatisticas, didacticas e disciplinares.

Haverá também tres fiscaes do governo, circumscriptos a determinadas zonas, para examinaresm a inspecção distrital, para ouvirem directamente os professores, para conhecerem melhor as necessidades, as lacunas, os vicios das escolas e dos mestres, afim de apresentarem anualmente relatorios circumstanciados, além das mais informações que lhes forem pedidas durante o ano lectivo.

Havendo um secretario de estado incumbido dos negocios da instrucção, desnecessário será manter uma directoria geral, e muito menos um conselho director, composto de tres membros eleitos pelos professores. Pois a experiencia ainda não demostrou a inutilidade de um conselho director, caricato arremedo do systema parlamentar?

Si ha um secretario de estado, para que uma repartição geral da instrucção? Onde os papeis se accumulam, de onde nada surde [sic] regular? Querem o regimem do papelorio, segundo o qual nada póde ir a certo destino sem passar por um canal competente?

Os fiscaes do governo devem ser nomedos por concurso, attendendo-se ás demais condições precedentemente exaradas para as nomeções de professores. Dêm-se aos professores os meios de vacar as suas obrigações, e fiscalisem-nas convenientemente, vejam quaes cumprem e quaes não cumprem com seus deveres.

Do implemento destas condições depende o futuro da instrucção primaria e da educação integral, que tem ahi seu indispensavel preambulo. Sem isso o melhor é dizer que a instrucção publica não é cousa séria, que está ahi para fugura de encher e que nós devemos forcejar por viver como pudermos.

Um pouco de boa vontade, um pouco de patriotismo, de preoccupação social e tudo se executará pelo melhor. A reforma do ensino primário não é, como se vê, cousa facilima. O parlamentarismo ronceiro é que tudo entrava e difficulta por meio de comités, discussões e não sei que mais.

Nada de corporações consultivas ou deliberativas para uma cousa já deliberada e feita.

Nada de nomeções só á vista de um diploma falsidico que não dá capacidade a ninguem.

Nada de ensino obrigatorio, nem por um dia quanto mais por dez annos. Si a obrigatoriedade do ensino é cousa boa deve ser decretada ad perpetum reipublicae memoriam; si é ruim, como realmente o é, não deve ser tolerada um só dia, um só instante.

Nada de niquices scienticas e subersivas que transtornam a cabeça e corrompem o coração. Antes a moral catholica na phrase chan dos peccados mortaes e dos mandamentos classicos.

Nada de obrigar os professores a estudar o que não querem, num certo estabelecimento que póde não ser de sua confiança. Si, depois de licenciados, para se habilitaresm como e onde quizerem, os mestres ainda regem mal suas escolas, sujeitem-nos ás penas disciplinares, estabeleçam-lhes processos administrativos e demittan-nos em ultimo caso.

Nada de montepio obrigatorio, que vem impôr a economia a quem até aqui só recebeu do governo as migalhinhas do orçamento. Pois o professor tem dignidade tão romba para se sujeitar a esta opressão? O professor que deve ensinar á creança a economia, a parcimonia, o preceito do - vintem poupado vintem ganho: o professor, que deve ser parco e economico, precisa da tettula governamental justamente naquillo que deve melhor saber e praticar?

São Paulo, 5 de Moysés de 103 (5 de janeiro de 1891).

José Feliciano (Diário Popular, 8 de janeiro de 1891).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2016
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