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Populismo Temperado: Uma Interpretação Política do Plano de Convertibilidade Argentino de 1991

Resumos

Approaching from the perspective of a political science analysis, the article focuses on the interactions between an economic stabilization plan <FONT FACE="Symbol">3/4</font> Argentina's 1991 Convertibility Plan <FONT FACE="Symbol">3/4</font> and the pro-market program of reforms that was implemented from the beginning of the Carlos Menem Administration. It highlights the political and institutional factors that made it possible to architect and expansive stabilizing policy, the relevance of the political effects of implementing this program, and the crucial interrelationship between the government's coalitional policy, the reform program, and macroeconomic policy.

pro-market reforms; macroeconomic policy; Argentina politics; Convertibility Plan; populism


Ce travail aborde, du point de vue de la politologie, les intéractions établies entre un plan de stabilisation, le Plan de Convertibilité Argentin de 1991, et le programme des réformes axées vers le marché, mis en place dès les débuts du gouvernement du président Carlos Menem. On cherche surtout à souligner la présence de facteurs politiques et institutionnels qui ont permis la mise en forme d'une politique de stabilisation explansible, l'importance des effets politiques de sa mise en place, ainsi que les rapports cruciaux entre la politique de coalition du gouvernement, le programme des réformes et la politique macroéconomique.

Réformes axées vers le marché; Politique macroéconomique; Argentine


pro-market reforms; macroeconomic policy; Argentina politics; Convertibility Plan; populism

Réformes axées vers le marché; Politique macroéconomique; Argentine

Populismo Temperado: Uma Interpretação Política do Plano de Convertibilidade Argentino de 1991 * * Agradeço a Pablo Gerchunoff, Gerardo Munck e Juan Carlos Torre pelos valiosos comentários a uma versão anterior deste trabalho, bem como aos pareceristas anônimos e à editoria de Dados pelas opiniões e sugestões. A tradução do original em espanhol "Populismo Atemperado. Una Aproximación Política al Plan de Convertibilidad Argentino de 1991" é de Vera Pereira.

Vicente Palermo

INTRODUÇÃO

Na Argentina, a conjuntura da década de 80 impôs aos setores populares a experiência dos terríveis efeitos de um ajuste desorganizado. Após a frustrada tentativa de recomposição econômica estatal (o Plano Austral de 1985), esse processo culminou com as hiperinflações de 1989 e 1990. Nos planos econômico e social, essa experiência preparou o terreno para que um governo comprometido com um programa de reformas estruturais de cunho neoliberal lançasse, em virtude de uma peculiar conjugação de fatores político-institucionais, uma política macroeconômica de expansão que chamarei de populismo temperado. Embora, no curto prazo, houvesse uma certa tensão entre esta política e as reformas pretensamente voltadas para o crescimento, a fase do populismo temperado foi muito importante para a política de coalizões e a viabilização do programa de reformas. Isto porque, em sua essência, os custos da transição impostos aos setores populares foram atenuados pelo efeito do câmbio. Assim, o governo pôs em prática simultaneamente políticas populistas (que supõem benefícios distributivos sem custos) e antipopulistas (que supõem a alocação de custos entre setores com interesses em conflito). Examinarei aqui a dinâmica política desse processo.1 1 . Analisando a gestão política das reformas estruturais na Argentina a partir de 1989 (Palermo, 1995), sustento, contrariamente às avaliações em voga, que a passagem de uma longa etapa de ajuste caótico para outra de ajuste organizado havia minorado sensivelmente os custos sociais da transformação econômica e estatal, o que, por sua vez, se mostrara de grande importância para a sustentação política do processo de mudanças. Em um penetrante artigo recentemente publicado, Gerchunoff e Torre (1996) lançam nova luz sobre a questão, ressaltando a maneira como os efeitos expansivos do Plano de Convertibilidade permitiram ao governo suavizar, do ponto de vista de sua base popular, os custos inerentes às reformas. Seguindo essa mesma linha de análise, este artigo se concentra nos requisitos político-institucionais que tornaram possível a implementação dessa política de expansão e na inter-relação da política macroeconômica com a política de coalizões desenvolvida.

O interesse pelo tema apóia-se em duas dimensões. Na primeira, de natureza político-prática, distingo igualmente dois aspectos. Em primeiro lugar, é possível administrar políticas macroeconômicas populistas (PMPs) que, ao mesmo tempo, sejam social e politicamente benéficas e evitem um desfecho catastrófico? Se assim for, quais os requisitos políticos e institucionais indispensáveis para que isto ocorra? Em segundo lugar, será que a execução da PMP contribui de algum modo para os processos de reforma orientados para a superação da crise fiscal e da estagnação econômica? Vários autores têm chamado a atenção para a necessidade de se desenvolver estratégias que compensem os custos sociais inerentes às políticas de reforma, a fim de evitar os efeitos deslegitimadores da democracia causados por uma deterioração das condições de vida do povo, além dos riscos de um bloqueio do processo de mudança implicados nas reações dos setores prejudicados. Mas muitas dessas propostas, como a que foi formulada por Pereira, Maravall e Przeworski (1993), requerem condições prévias, estatais e políticas, dificilmente encontradas em países afetados por agudas crises fiscais e de autoridade pública. O estudo do caso argentino permite investigar uma experiência realizada nas circunstâncias habitualmente encontradas na América Latina; oferece ainda resposta — que não é válida em todos os casos — a uma pergunta recorrente na literatura especializada: existe uma tendência de incompatibilidade entre as reformas orientadas para o mercado e o respaldo popular dado aos governos, incompatibilidade esta que colocaria os governos em um dilema entre a inação e a sanção eleitoral?

Na segunda dimensão, de natureza analítica, três aspectos sobressaem. O primeiro tem a ver com a relação entre populismo e neoliberalismo. Contrariando as interpretações mais simplistas dos processos políticos recentes de redemocratização e reforma econômica na América Latina, os estudiosos têm observado, nos últimos anos, a existência de mais afinidades entre o neoliberalismo e o populismo político do que se pensava inicialmente (Kvaternik, 1992; Faucher, Ducatenzeiler e Rea, 1993; Corrales, 1994; Weyland, 1994; Roberts, 1995; Palermo e Novaro, 1996). Neste artigo também se sugere que a relação entre neoliberalismo e populismo econômico comporta matizes mais ricos. O segundo aspecto refere-se aos vínculos entre política e tecnocracia. Grande parte da literatura que estuda os casos de reforma econômica na América Latina tem o mérito de analisar a dinâmica conflitante entre estilo tecnocrático de gestão e consolidação da democracia (Torre, 1991; O’Donnell, 1993; Malloy, 1993; Williamson, 1994; Diniz, 1995, entre outros). No entanto, ao registrar a freqüência com que as decisões do Executivo e da tecnocracia se reforçam mutuamente para levar a cabo gestões de transformação radical, alguns trabalhos observam que essa conjugação acaba sendo altamente despolitizadora, na medida em que certos componentes específicos da política tout court são aniquilados pela adoção de critérios e racionalidades de natureza claramente tecnocrática.2 2 . Assim, diversos estudos de caso constatam que as lideranças adotam o enfoque tecnocrático, desinteressando-se da tarefa especificamente política de persuasão da sociedade, como se os benefícios das reformas fossem evidentes por si mesmos. O caso argentino sugere, porém, que a política, longe de ser pura e simplesmente deslocada pela implementação tecnocrática das políticas públicas, consegue estabelecer uma relação mais complexa — e talvez mais frutífera — com a tecnocracia do que se poderia pensar.

O terceiro aspecto alude a uma outra faceta dos processos recentes de reforma estatal e econômica e suas interpretações. A análise de várias experiências neoliberais nas novas democracias sugere que os Executivos que governam unilateralmente, amparados por couraças tecnocráticas, consideram desnecessária a complexa tarefa de construir nexos de sentido mais ou menos duradouros entre "representantes" e "representados"; ao mesmo tempo, o imperativo de agir a partir "do fundo do poço" da crise libera as lideranças (e empobrece a política) da tarefa não menos complexa de recompor as coligações de governo e as constituencies das novas instituições econômicas e estatais — conforme se depreende, por exemplo, da rica análise de Conaghan e Malloy (1994) sobre a administração da reforma neoliberal no Peru, no Equador e na Bolívia. Ao contrário, o caso argentino torna manifesta a maneira como a dinâmica política das coligações intervém na seleção de alternativas de política econômica.

OUVIR O CANTO DAS SEREIAS E DEPOIS MUDAR DE RUMO

Sabe-se que as PMPs que visam redistribuir rendas estimulando o aumento da demanda, se lançadas em certas condições favoráveis (recessão e disponibilidade de divisas), dispõem de uma impressionante eficácia na obtenção de resultados de curto prazo muito apreciados pelos políticos: aumento do salário real e do emprego e reativação da economia sem provocar altas inflacionárias. Sabe-se também que essas políticas são tão nocivas a médio prazo quanto vantajosas no curto; em outras palavras, elas são absolutamente insustentáveis (Canitrot, 1975; Hirschman, 1984; Sachs, 1990; Dornbusch e Edwards, 1991).

Pois bem, embora na opinião de boa parte do pensamento econômico ortodoxo essa incongruência entre curto e longo prazo condene definitivamente as PMPs à lata de lixo da má economia, para outros autores respeitados tal conclusão não parece tão definitiva assim. Dornbusch e Edwards (1991, p. 13), por exemplo, afirmam que "as políticas populistas podem ser vitoriosas se mantidas a salvo das restrições de divisas, se insistem na reativação apenas por um breve período inicial e logo depois mudam para políticas de crescimento"; acrescentam ainda que "acima de tudo, elas precisam ser financiadas por uma política fiscal muito ortodoxa e ter uma administração fiscal rigorosa. Dentro desses limites, há uma margem de manobra considerável para os objetivos redistributivos do populismo".

Esta tese implica a existência de "situações keynesianas" nas quais não é má economia fazer uso dos instrumentos habituais das PMPs para ativar a demanda, desde que se saiba frear e mudar de rumo a tempo. Neste caso, estaríamos diante de uma política de expansão anticíclica bem planejada e executada e não necessariamente de uma política populista. Mas isso não muda a natureza das coisas: pela lógica do problema intertemporal das PMPs, a metáfora apropriada para dar conta da recomendação de Dornbusch e Edwards seria a seguinte: é preciso chegar à ilha onde estão as sereias, desfrutar de seu canto e corrigir o rumo a tempo de não nos espatifarmos contra os rochedos. Nem mais nem menos! Trata-se de uma façanha mais apropriada aos temerários do que aos valentes.

Minha afirmativa baseia-se em razões óbvias: as condições políticas e institucionais que geralmente cercam as PMPs oferecem motivos de sobra para uma atitude cética em relação ao destino daqueles que se arriscam a navegar em águas tão perigosas. Para começar, é claro que o nível de aptidão técnica necessário para determinar um rumo crítico (uma estimativa inicial incorreta pode ser fatal para o desenvolvimento de todo o plano) e para corrigi-lo a tempo é muitas vezes maior do que se exige para fixar um rumo sustentável, isto é, não afetado pela incongruência intertemporal das PMPs. De definitivo é que sempre haverá fortes restrições à execução de uma manobra tão complexa e delicada, restrições estas que serão mais ou menos fortes dependendo de uma série de fatores políticos, institucionais e da estratégia das coligações. Em outras palavras, para que o populismo possa se converter em uma estratégia de aproveitamento ótimo de uma "oportunidade keynesiana", é preciso haver um quadro político-institucional muito diferente daquele que costuma acompanhar as políticas populistas.

FAZER O QUE O POVO QUER

Como costuma se configurar esse quadro político-institucional? Podemos destacar aqui alguns dos seus aspectos mais relevantes e diretamente relacionados à forma pela qual condicionam a opção pelas PMPs e sua instrumentação. De um modo geral, a dinâmica das coalizões de gestões populistas caracteriza-se pelo fato de as lideranças se encontrarem em uma situação eminentemente expressiva e, por isso mesmo, precária— submetidas a fortes pressões para "fazer o que o povo quer", como disse um líder populista latino-americano. Ainda que essas lideranças tenham sido responsáveis pela ativação de cima para baixo da mobilização popular, como aconteceu com Jango Goulart em 1961, no Brasil, mais do que condutoras, elas acabam sendo conduzidas pelo processo desencadeado. Os incentivos para atender às expectativas populares de reparação imediata podem ser de naturezas muito diferentes.

Às vezes essas lideranças emergem de uma profunda cisão nas elites, o que lhes dá a oportunidade de agir com rapidez para criar uma base de sustentação para si mesmas. A solidez de suas posições de poder, ameaçada pelas antigas elites, depende da possibilidade de consolidarem as bases recém-adquiridas e esbarra na necessidade de expressarem os "interesses" desses setores, tal como definidos em suas "demandas", de modo mais intenso do que teriam desejado; foi este o caso de Perón no cenário argentino do pós-guerra. Outras vezes, a oportunidade de ampliar as bases de apoio de uma força política já existente é facilitada por um clima generalizado de deterioração socioeconômica e agitação social. Foi o que aconteceu com Alan García, no Peru, cujo partido, a Aliança Popular Revolucionária, nunca foi o principal representante dos trabalhadores. García, candidato da esquerda da Apra, conseguiu reunir, fora do partido, um grande apoio no mundo do trabalho e nos setores populares em sua caminhada rumo à Presidência da República.

Freqüentemente, a necessidade de consolidar bases de apoio instáveis é exacerbada não tanto pela ameaça da direita quanto pela concorrência da esquerda. Os políticos populistas aproveitam-se de uma inclinação geral "para a esquerda" das preferências sociais, de uma onda de agitação popular, mas, ao mesmo tempo, correm o risco de ter sua liderança desgastada pela ação de populistas ainda mais radicais, como foi o caso do retorno do peronismo na Argentina, em 1973.

Não é raro se observar a presença de um outro mecanismo que" impele" os líderes a adotarem PMPs: a vitória eleitoral, mesmo que pouco contundente, pode ser interpretada pela militância partidária (principalmente se ocorreu dentro de um clima político de grande mobilização) como um mandato para cumprir as promessas do candidato e/ou para corresponder às legítimas expectativas populares. Neste caso, a pressão vinda de dentro da própria base política tenderá a ser intensa e provavelmente irresistível. Mas essa pressão pode ser exacerbada por uma dinâmica de competição interna pelo controle das bases socioeleitorais, ou, inclusive, pelo que se toma como uma necessidade ingente de ampliar a própria base de sustentação, seja ela quantitativamente instável ou insuficiente para se alcançar outros objetivos políticos. Foi este o caso de Allende, no Chile, compelido a buscar a ampliação de seu respaldo eleitoral, porque, sem ele, seria impossível realizar o trânsito democrático para o socialismo.

Em certas ocasiões a opção pela PMP aparece associada a ambições mais terrenas e ao elevado preço imposto à sociedade para satisfazê-las. Por exemplo, o caráter populista da implementação do Plano Cruzado (Pereira, 1994) tem muito a ver com a obstinação do presidente José Sarney em permanecer mais um ano no cargo ao qual teve acesso por razões fortuitas, a despeito de sua escassa autoridade sobre os blocos parlamentares da coalizão governante.

Esta revisão de casos sugere que não existe uma relação necessária entre políticos (ou campanhas eleitorais) populistas e a adoção de PMPs. A relação mais forte parece se dar entre a política populista e a dinâmica das coligações que coloca os líderes em uma situação de liderança precária. Ou seja, o lançamento das PMPs parece estar associado a situações em que os políticos (não necessariamente "populistas") contam com reduzidos graus de liberdade para definir o conteúdo de suas opções de política pública, porque precisam (ou assim o presumem) obter resultados peremptórios.

Os fatores acima expostos levam à adoção da PMP justamente por sua notória efetividade no curto prazo. Agreguemos agora um elemento que se conjuga com os anteriores para favorecer a adoção da PMP e conspira contra as chances de os seus responsáveis presidirem uma transição ordenada e endógena para políticas econômicas sustentáveis. Em um ensaio injustamente esquecido pelas análises mais recentes das PMPs latino-americanas, Hirschman (1984, p. 248) assinala que elas" dão alguma coisa aos grupos populares sem tirar diretamente de outros grupos". Esta é a quintessência do populismo quimicamente puro: a ilusão de organizar o crescimento e a distribuição sem abrir o conflito social nem assumir a função de intermediá-lo. A promessa que os economistas populistas (quando os havia) faziam aos políticos (fundada em uma tênue base conceitual de remotas raízes keynesianas e cepalinas) era a de que, "aumentando o bolo", seria possível satisfazer os trabalhadores e importantes parcelas do empresariado. Tal promessa soa como música nos ouvidos dos políticos que, apoiados em coalizões produtivistas heterogêneas, têm verdadeira aversão ao agravamento de confrontos em seu próprio meio; eles desejam legitimar-se atendendo às demandas dos setores populares, mas não querem que isto lhes custe o apoio do empresariado responsável pelo emprego e pela provisão dos bens necessários a esses setores.

Quando surgem no horizonte macroeconômico os estrangulamentos inerentes às PMPs é que se revela a falsidade daquela promessa. Se até então a economia tinha conseguido "crescer" (isto é, ser reativada), os salários e o emprego haviam aumentado; ao alcançar-se a plena utilização da capacidade instalada — como estuda Canitrot (1975) em um artigo pioneiro — a harmonia de interesses entre trabalhadores e patrões se desvanece e os empresários passam a responder ao aumento da demanda com a elevação dos preços.

Evitar, daí por diante, a espiral regressiva de inflação e deterioração da balança de pagamentos exige passar da distribuição de benefícios para a alocação de custos, o que introduz fortes tensões no interior das coligações. Para encaminhar a negociação dessas tensões são necessárias armas que não constam do arsenal dos líderes populistas. Na falta de meios político-institucionais indispensáveis para solucionar conflitos até então latentes, a resposta organiza-se segundo duas modalidades sucessivas: primeiro, responde-se aos sintomas da crise com "mais do mesmo"; quando se torna evidente que isto não funciona, a debilidade político-institucional disfarça-se em força: lança-se, de surpresa, um duro plano de estabilização preparado em 48 horas. Mas, rapidamente o populismo ativo transforma-se em populismo passivo: impotente para sustentar as alterações dos preços relativos, o governo é atropelado pelas reações defensivas ou preventivas de todos os atores — foi o que se passou na Argentina, em 1975, após a morte de Perón.

Cabe salientar, neste ponto, a importância dos comportamentos estratégicos (cf. Elster, 1989). Ainda que os líderes populistas realmente quisessem "mudar para políticas de crescimento", e dispusessem dos recursos de governo necessários para alocar às suas bases de apoio os custos decorrentes, no momento em que decidissem fazê-lo teriam de enfrentar um problema político adicional, derivado de seus antecedentes, das experiências prévias e do valor atribuído pelos agentes econômicos às credenciais da equipe que se encontrava à frente da gestão da economia: o mundo dos negócios não iria acreditar nem na sua determinação nem no seu empenho (em outras palavras, tenderia a considerar operacionalmente mais valiosa a informação fornecida pelas variáveis econômicas — "quão próximos estamos de nos espatifarmos contra os rochedos" — que aquelas provenientes do governo — "logo corrigirei o rumo"), e passaria a agir de acordo com essa avaliação, criando-se uma espécie de profecia que auto se cumpre.3 3 . Isso deixa claro que os limites entre uma PMP e uma política prudente de expansão anticíclica são difíceis de distinguir: os comportamentos preventivos dos agentes econômicos podem ex post transformar em PMP uma política concebida ex ante como apenas anticíclica. Naturalmente, essa experiência de "brecha de credibilidade" (Rodrik, 1989) é sentida em muitos países nos anos 90.

Já fizemos alusão à escassa margem de erro tolerável para uma PMP projetada para converter-se rapidamente em uma política de crescimento. O requisito de aptidão técnica da sua equipe responsável não deriva tanto da necessidade de coerência substantiva do plano quanto do problema crucial, de caráter estratégico, representado pelas expectativas dos agentes econômicos. Mas, convém esclarecer, de imediato, que por aptidão técnica não nos referimos apenas à competência profissional, e sim, especialmente, ao prestígio e capacidade de coordenação desses agentes. Este conteúdo adicional da aptidão técnica não costuma acompanhar as experiências macroeconômicas populistas por duas razões muito simples: primeiro, porque é possível encontrar economistas competentes em diferentes escolas, mas não é tão fácil encontrar economistas que levem a sério o paradigma populista. Segundo, hoje em dia é fato que os empresários tendem a identificar competência profissional com ortodoxia e dificilmente confiam e organizam suas expectativas da maneira desejada por equipes econômicas afinadas com a escolha de PMP.

MENEM NÃO É PINOCHET (E SABE DISTO)

A discussão até aqui desenvolvida permite encarar por outro ângulo a política econômica argentina a partir do início de 1991. As recomendações de Dornbusch e Edwards sugerem a existência de um aspecto heterodoxo-populista no Plano de Convertibilidade. Ao mesmo tempo, as características mais evidentes do contexto em que foi formulado e implementado esse plano revelam uma situação peculiar: trata-se de uma política" populista" que deu certo por ter sido executada sem os entraves político-institucionais que geralmente impedem a resolução da incongruência intertemporal da PMP.

Vejamos, em primeiro lugar, o contexto de formulação do Plano.4 4 . Para estudos mais amplos da política de reformas do primeiro governo Menem, ver Acuña (1994), Canitrot e Sigal (1994), Gerchunoff e Torre (1996), Palermo (1995), Palermo e Novaro (1996), Torre e Palermo (1995). Evidentemente, havia uma situação econômica recessiva. A recessão era conseqüência do modo como o governo peronista encaminhara a solução dos dilemas político-econômicos que tivera de enfrentar depois da hiperinflação e do fracasso de seu primeiro ensaio, a gestão dos gerentes do grupo Bunge e Born.5 5 . A gestão Bunge e Born começou com o novo governo, em julho de 1989, e terminou após a segunda hiperinflação, em dezembro. A partir de então, Erman González dirigiu o Ministério da Economia até janeiro de 1991, quando foi substituído por Domingo Cavallo. Com a nomeação de Erman González para a pasta da Economia, a ortodoxia monetária não foi escolhida como alternativa político-econômica por suas virtudes intrínsecas, mas como instrumento a serviço de um propósito nitidamente político: reestruturar o comando reformista, respaldando-o nos organismos internacionais (e nos credores externos) para concretizar um distanciamento, visto como indispensável, em relação ao conjunto das pressões provenientes dos agentes econômicos, de um lado, e derivadas da porosidade governamental/estatal diante de suas próprias forças de apoio, de outro. A combinação dessas duas fontes de pressão durante a gestão Bunge e Born havia demonstrado uma capacidade letal de introjeção de tensões e dissensos no comando político; desse modo, o cumprimento do programa de reformas estruturais parecia estar ameaçado e a confiança dos operadores financeiros mostrara-se volátil por ocasião da segunda hiperinflação. Ao optar pela ortodoxia monetária, o governo supunha (corretamente, aliás) que o difuso apoio do campo empresarial não seria interrompido ante um curso de ação que tornava tensas as relações oficiais com os agentes econômicos e afetava interesses individuais e setoriais, porém em nome das políticas identificadas como favoráveis ao mercado.

Ao final de um ano, esse curso de ação também revelava insolúveis limites políticos. De um lado, o equilíbrio entre as principais variáveis macroeconômicas mostrava-se gravemente atingido: as ferramentas ortodoxas de restrição monetária eram recessivas e os efeitos da recessão não eram somente positivos (antiinflacionários), mas também negativos, tornando vulneráveis as contas públicas que a ortodoxia fora convocada a salvar. Nessas circunstâncias, o governo estava preso a uma série de dilemas. Se emitisse, para sustentar o câmbio, jogava lenha na fogueira inflacionária; se não emitisse, alimentava a perniciosa defasagem cambial. Se atualizasse as tarifas públicas, estimulava a inflação; se não o fizesse, a situação fiscal ficava pior ainda. Se não aumentasse a pressão tributária criando impostos de emergência, ou se sucumbisse à demanda dos exportadores que pediam a redução das retenções, outro tanto acontecia; se o fizesse, agravava os efeitos recessivos ou a inquietação decorrente do atraso cambial. O recurso à restrição monetária comprovava, enfim, que, como qualquer grupo de instrumentos de gestão político-econômica, a própria ortodoxia era portadora de uma efetividade sujeita a variáveis políticas e estatais.

Por outro lado, o rumo da ortodoxia monetária havia levado os efeitos recessivos a um ponto que presumivelmente batia o non plus ultra de tolerância política, medido não nos termos do surgimento de conflitos trabalhistas — que eram improváveis, pois a capacidade sindical de contestação estava cerceada pela ameaça do desemprego —, mas por uma erosão do consentimento popular quanto à orientação geral definida pelo governo, e que poderia vir a se expressar por ocasião do seu primeiro teste eleitoral, em novembro de 1991. Em fins de 1990, em síntese, o nível de atividade encontrava-se no ponto mais baixo do último declive recessivo, iniciado em 1988, e a situação de precariedade política do presidente era patente.

Em meio a essas dificuldades, a contrapartida da capacidade produtiva ociosa e de um nível de desemprego não dramático, mas significativo, era a boa saúde do setor externo, que havia permitido ao Banco Central acumular reservas líquidas disponíveis no montante de US$ 3,2 bilhões.6 6 . A conta comercial de 1990 tinha sido muito superavitária (US$ 8 bilhões), permitindo obter, pela primeira vez desde 1977, um saldo positivo em conta corrente, resultado tanto do crescimento das exportações quanto da queda das importações (Canitrot, 1992). Era indiscutível que, no difícil contexto de princípios de 1991, se aventurar em uma PMP aberta (aumentando o gasto público, o que somente seria viável com a emissão de dinheiro ou a venda de reservas) equivalia a um suicídio político. Nesse sentido, o governo optou por tirar proveito de uma situação keynesiana associada a uma frente externa favorável para induzir a uma forte monetização da economia com o propósito de reativá-la.

Nem todos os economistas e consultores aos quais, por afinidade ou influência, o governo dava ouvidos achavam que o rumo escolhido era o melhor. Não faltaram recomendações no sentido de superar os graves dilemas causados pela receita ortodoxa posta em prática durante o ano de 1990 por meio da administração mais intensa dos mesmos remédios, de modo que a recessão provocasse o desemprego aberto, e este gerasse condições estruturais antiinflacionárias pela via da redução do salário. Este era um objetivo mais compatível com Pinochet do que com Menem: diante de um horizonte de desemprego e repressão indefinida do gasto público, o governo se condenava a minar os pressupostos básicos do consenso de fuga para a frente muito antes que as novas regras do jogo e um" correto" esquema de preços relativos rendessem os prometidos dividendos de longo prazo.7 7 . Pela expressão consenso de fuga para a frente (Torre e Palermo, 1995; Palermo, 1995) referimo-nos a uma característica central da dinâmica política reformista na longa etapa inicial do governo Menem: o respaldo da população não resultava tanto de sua confiança no futuro valor das reformas de mercado, e a conseqüente disposição para arcar com seus custos inerentes, quanto do medo do retorno a um passado — a hiperinflação — cuja dureza extrema era conhecida por todos. Nessa situação, o julgamento popular a respeito do programa de reformas radicais adotado pelo governo não se prendia aos seus custos (que estavam sendo pagos por antecipação), mas à crença na promessa de que a saída do "vale de lágrimas" seria rápida e definitiva. O que chama a atenção não é tanto que o governo tenha se privado de se embrenhar por esse rumo, não menos suicida do que uma PMP clara, mas que ele tenha conseguido gerir de maneira vitoriosa uma política de expansão acompanhada por um forte incremento do gasto público e por uma impressionante eficácia antiinflacionária.

Com efeito, um ano e meio depois de implantada a convertibilidade o governo Menem parecia ter encontrado a quadratura do círculo (dar novo estímulo à economia e simultaneamente reduzir o nível de inflação). Examinemos, primeiro, os fatores político-institucionais que permitiram esse efeito. Depois, vejamos como a PMP interagiu com o programa de reforma estrutural e que dimensões políticas são relevantes para entender tal interação.

Quanto à primeira questão, o que importa é que o governo se desembaraçou de todas as condições político-institucionais desfavoráveis que geralmente acompanham as PMPs. Um elemento central era a credibilidade; nesse caso, o governo beneficiou-se de tudo o que havia aprendido até então. Como abandonar a ortodoxia monetária restritiva em um mundo de agentes econômicos que não confiam na moeda nacional? Para erradicar essa fonte de ingovernabilidade, optou-se pelo recurso político extremo de atar-se a si mesmo.

O novo plano de estabilização estipulou a livre convertibilidade do austral a uma taxa de câmbio fixada por lei. Tratando de suscitar uma substancial expansão da base monetária, requisito indispensável para sair de vez da recessão profunda, a convertibilidade, como dispositivo de auto-inibição, propiciou as garantias necessárias para tanto, porque essa expansão pode acontecer, mas somente um fluxo líquido positivo de divisas é capaz de induzi-la.8 8 . Acompanhamos aqui a descrição técnica do plano feita por Canitrot (1992), Fanelli, Frenkel e Rozenwurcel (1992) e Rozenwurcel (1992). A expansão da oferta de base monetária é inteiramente determinada pelo desejo dos agentes privados de incrementar sua demanda de moeda doméstica e esse interesse é incitado por um procedimento que eleva substancialmente o valor fiduciário dessa moeda.9 9 . A convertibilidade consiste essencialmente em uma desdolarização (põe fim à fuga dos agentes privados da moeda doméstica para o dólar, salvo a obtenção de rendas extraordinárias via especulação garantida) confiável (mediante reservas e controle fiscal) da economia. Batista Jr. (1993), em uma aguda análise das opções de política econômica brasileira voltadas para a estabilização, qualifica o plano argentino como um regime monetário semelhante ao padrão-ouro, com o dólar no papel de "relíquia bárbara". Mas é a fixação da taxa de câmbio através de lei que cumpre a finalidade de garantir a credibilidade da paridade decidida. Como, do ponto de vista técnico, a paridade resultava da divisão da base monetária existente pela quantidade de dólares disponíveis em poder do Banco Central, o governo estava em condições de sustentar tal paridade em face de eventuais corridas cambiais (podia vender à paridade estabelecida todos os dólares que os detentores de austrais quisessem comprar). Entendeu-se que isto não bastava; tendo o governo conservado o arbítrio de alterar o tipo de câmbio, os operadores sempre teriam em mente o dado de que o governo poderia fazê-lo a qualquer pretexto (corrigir desequilíbrios, ceder a pressões etc.).

Atar-se a si mesmo, consiste, portanto, no fato de que, para se fazer acreditar (no que diz respeito ao abandono de uma política monetária restritiva), o governo abre mão de faculdades de grande relevância:10 10 . O conceito de atar-se a si mesmo foi elaborado por Elster (1989); a auto-inibição atende ao interesse de reduzir a probabilidade de condutas próprias futuras consideradas, convicta e racionalmente, como indesejáveis. Faço um uso livre dessa idéia básica; neste caso, a estratégia de preservar a "fraqueza da vontade" atende ao propósito de se fazer acreditar por outros. renuncia a modificar o tipo de câmbio e, ao mesmo tempo, impõe a si mesmo — também por via legislativa — uma severíssima restrição quanto ao manejo da política monetária.

A frágil confiança dos operadores financeiros na capacidade governamental de resguardar a agenda econômica das pressões políticas e setoriais tinha sido conquistada a duras penas durante a gestão solitária de Erman González, mas fora novamente perdida durante a fase recidiva da crise que ocorreu em fins de 1990. Politicamente, o dispositivo de auto-atamento restabelece essa confiança, fundamentando-a em bases mais sólidas. Se era necessário abandonar a ortodoxia monetária graças à qual havia se tornado possível, ao longo de 1990, preservar a gestão da economia dos efeitos daquelas pressões, o complemento absolutamente indispensável era o governo atar-se a uma nova opção de ortodoxia, a da conversão. Com as abdicações inerentes a esse dispositivo, o governo impede a si mesmo de ceder a tais pressões e, em contrapartida, obriga-se a desenvolver as capacidades necessárias para extrair da sociedade, por meios genuínos, os recursos de que necessita. Se, por exemplo, o governo precisa de dólares para atender aos pagamentos da dívida externa, o Tesouro deve comprá-los como faz qualquer agente privado, e deve fazê-lo recorrendo ao superávit fiscal operacional resultante do controle sobre seus gastos e da melhora de sua performance tributária (ou então vender parte de seus ativos).11 11 . O governo beneficiou-se, por outro lado, de uma mudança ocorrida no contexto internacional, mudança ocorrida na dimensão denominada por Stallings (1992) de leverage: um novo ânimo por parte dos protagonistas do chamado Consenso de Washington de aceitar reprogramações manejáveis das dívidas externas sem forçar desvalorizações diante da evidente esterilidade, tanto do ponto de vista do devedor quanto do credor, dos planos clássicos de estabilização.

A rigor, a adoção por parte do governo do recurso de auto-atamento não era, em princípios de 1991, inteiramente nova. A "brecha de credibilidade" (em uma economia indexada e dolarizada) empurrara o governo para o auto-atamento praticamente desde o começo de sua gestão, quando descobriu que quanto mais instrumentos tinha à sua disposição (ou seja, quanto maiores eram seus graus de liberdade) menos confiável se tornava. Os instrumentos que incidiam sobre a política macroeconômica eram percebidos pelos consultores e operadores financeiros fundamentalmente como oportunidades de erro (isto é, como sinais de fraqueza diante dos grupos e da" política" — ambições do próprio governo, do partido etc. — que possibilitavam a introjeção de pressões e eram fontes de descontinuidade ou interrupção do processo de ajuste estrutural). Tal convicção fundamentava-se no diagnóstico de que, enquanto o governo conservasse sua autonomia "peronista" para decidir, não seria confiável, porque um governo peronista que goze de graus de liberdade necessariamente incorrerá em populismo econômico.

Dessa maneira, o governo conseguiu monetizar a economia e pôde estimular a demanda sem desencadear pressões inflacionárias. Por isso mesmo, foi capaz de cumprir o primeiro requisito apontado por Dornbusch e Edwards para fazer um populismo com prudência: manter a gestão macroeconômica temporariamente afastada das restrições de divisas.12 12 .Já que os dispositivos criados induziram a uma rápida repatriação de capitais, como se verá a seguir. Assim, por meio das restrições cambiais e fiscais impostas a si mesmo, o governo criou as condições necessárias — mas não suficientes — para uma experiência de populismo temperado.

Cabe lembrar aqui outros requisitos aparentemente indispensáveis para um exercício desse teor: a necessidade de uma dose apreciável de aptidão técnica, condição difícil de cumprir dada a escassa afinidade eletiva entre economistas competentes ou prestigiados e PMP. Este problema foi solucionado de maneira ótima: instalou-se uma gestão populista confiada a economistas ortodoxos.

A bem dizer, esse resultado foi contingente. O ingresso de equipes técnicas na área de formação da política econômica não fora nem linear nem rápido na nova administração peronista. Em plena hiperinflação, a administração não precisou de nenhum esforço persuasivo por parte dos economistas para se convencer de que era imperioso adotar decisões de reforma estrutural. As equipes econômicas foram afastadas no momento de formulação da reforma, em sua primeira fase em meados de 1989. O governo elaborou, além disso, uma primeira fórmula de constituição do comando político reformista que relegou os economistas a posições secundárias na fase de implementação. Apesar desse pálido desempenho inicial, o papel preponderante das equipes técnicas foi crescendo com o tempo, chegando a assumir uma importância de primeira ordem, mas isto somente ocorreu após várias convulsões e depois de uma longa etapa durante a qual, embora Menem permitisse que Cavallo tivesse influência sobre a arena de decisões político-econômicas, ele o manteve afastado das responsabilidades diretas no assunto.

As causas dessa demora foram de caráter político ou decorreram da estratégia de coalizões. Cavallo e sua equipe tinham profundas raízes no mundo empresarial: além de laços estritamente pessoais, contavam com uma entidade, a Fundação Mediterrânea, que não era um centro de pesquisas acadêmicas, mas um laboratório de pensamento econômico empresarial, cujas linhas de investigação se orientavam, no nível da política econômica aplicada, por uma concepção global unificadora.13 13 . Na Fundação Mediterrânea, os técnicos que desenvolviam atividades em equipe chegavam a mais de duzentos. Eram portadores, em suma, de um forte capital acumulado no setor definido estrategicamente pelo presidente como seu objetivo político prioritário: aquele cuja confiança deveria ser conquistada como requisito indispensável de governabilidade e cuja cooperação se buscava com afinco, como elemento fundante de uma nova coalizão da qual ele mesmo e nenhum outro deveria ser o articulador. É claro que, diante de um governante que se movia em um terreno extremamente escorregadio, como Menem entre 1989-90, tudo isso fazia de Cavallo um elemento excepcionalmente valioso. Mas, ao mesmo tempo, tornava-o mais temível. Os receios do presidente somente foram vencidos quando ficou claro que não havia alternativa.

O que significa exatamente não restar alternativa? A verdade é que a presença de Cavallo e sua equipe completava o dispositivo de auto-atamento a que o governo teve de recorrer. Este dispositivo não consiste exclusivamente dos mecanismos institucionais já referidos, mas também envolve a utilização da aptidão técnica para as mesmas finalidades políticas. Mais do que o mérito intrínseco de uma equipe qualificada do ponto de vista da capacidade de gestão, sua admissão no cerne das decisões acrescenta sempre um valor político-simbólico (Markoff e Montecinos, 1994). No caso que analiso, este valor era muito alto. A informação que se pretendia transmitir aos agentes econômicos — destinada a incidir sobre suas expectativas — e ao mundo político eram as seguintes: que o adeus do governo peronista ao populismo e sua opção pela racionalidade não são temporários; que a orientação pró-mercado e a disciplina fiscal adotadas serão duradouras. Se pairam dúvidas sobre nossas palavras ¾ sugere o governo ¾ , então que se acredite nas restrições que nos impomos; transferimos o poder de decisão aos saberes técnicos — a política entregou sua alma inquieta à disciplina e à temperança daqueles que administrarão os assuntos públicos segundo esses saberes. O governo e a economia já não terão de se deparar com surpresas.

Claro está que Menem já tinha feito muito, durante um ano e meio, para convencer disso os formadores da opinião do empresariado; mas sempre agindo sob o domínio da mais absoluta premência. A reorganização forjada em 1991 também se deu sob o impulso de outra crise, mas, naquele momento, o governo formulava a situação a partir de duas informações básicas: (a) não haveria uma nova crise; e, não obstante, (b) o rumo não seria alterado. Embora já não estivesse com a corda no pescoço, as linhas mestras de sua ação seriam mantidas, comunicava o governo. Dessa forma, as conquistas obtidas em diferentes planos, sob pressão da urgência, permitem agora tomar uma certa distância dessa pressão, mas o efeito político das conquistas obtidas será nulo se não houver essa rede de medidas (políticas) de auto-atamento.

A renovação da equipe econômica anterior ao Plano de Convertibilidade permitiu o acesso à área de implementação do programa de uma tecnocracia portadora de uma concepção comum, uma coerência interna e uma massa crítica sem precedentes na política argentina nas últimas décadas. Essa densidade técnica trouxe consigo um notável alargamento do poder de ação do setor público, decisivo na sua implementação, já que esta pôde se tornar mais abrangente e refinada. Importou, portanto, no desempenho de um papel eminentemente político: o surgimento de um núcleo governamental que estava em condições de disputar com os consultores financeiros a coordenação da ação empresarial e de organizar a interação do governo com os agentes econômicos sobre bases distintas do caminho de implacável rigor proposto pelos consultores. Enfim, a utilização da racionalidade tecnocrática foi um recurso eminentemente político-instrumental destinado a administrar o remédio para os que nele acreditavam.

O governo estava, portanto, disposto a levar a cabo uma gestão de traços populistas administrada por technopols (no sentido de Williamson, 1994) não populistas, o que eliminava os problemas de credibilidade e capacidade de coordenação necessários à tarefa. Ademais, graças à concepção comum, à coerência e à densidade da massa crítica da equipe, o próprio staff reformista governamental elevaria seu baixo nível de coerência interna, um ponto fraco desse governo desde seu turbulento começo e que representava um obstáculo de peso para enfrentar de maneira eficiente uma gestão voltada para a expansão da demanda. A vulnerabilidade às reivindicações provenientes das suas próprias bases de sustentação é uma característica da implementação das PMPs. As manifestações de uma coalizão heterogênea e articulada precipitadamente, na ausência de estruturas políticas dotadas de capacidade de agregação e arbitragem, transferem-se para a formulação e execução de decisões econômicas, e essa extrema porosidade costuma ser sensível a todos os integrantes da coalizão: trabalhadores, empresários, máquinas clientelísticas, burocracias públicas. Ao contrário do que era usual, confiando a gestão da economia àquela equipe, o governo adquiriu uma capacidade de ordenar a relação entre a política de coalizões e os outputs macroeconômicos, ordem esta que até então havia sido alcançada pelo procedimento brutal e insustentável no longo prazo da mais estrita restrição monetária.

AGITANDO A BANDEIRA DA PARTILHA

O governo passou a atuar com a convicção de que, reduzindo drasticamente os índices inflacionários, poderia se beneficiar de uma visível reativação da economia graças à qual — em convergência com as reformas tributárias em curso — seus passos haveriam de ser dados em um terreno de maior solvência fiscal. Em linhas gerais, o resultado do "choque de estabilização" (Llach, La Nación, 27/11/1991) correspondeu ao esperado. A redução da incerteza quanto à paridade cambial a curto prazo produziu os resultados que o governo almejava: um forte processo de remonetização da economia. A inflação caiu acentuadamente, assim como as taxas de juros, o poder aquisitivo dos salários aumentou e verificou-se uma retomada do crédito comercial. Tudo isso trouxe um substancial impacto reativador. O reaquecimento industrial foi particularmente importante no setor de bens duráveis; dentre os setores líderes destacaram-se as "vacas sagradas" do modelo de desenvolvimento "orientado para o mercado interno" (inward-oriented), como a produção de automóveis. A construção civil cresceu vigorosamente e o número de falências reduziu-se de modo notável.

A recuperação da demanda agregada e dos níveis de atividade passou a estimular um apreciável reaquecimento da arrecadação tributária. Os resultados fiscais permitiram manter a razão base monetária/reservas exigida por lei e, ao mesmo tempo, recompor os níveis do gasto público, sem deixar de alcançar um resultado operacional positivo para o setor público consolidado.

Por volta de setembro de 1991, a queda dos preços ao consumidor era espetacular (1,8%). A inflação mensal de dezembro foi a mais baixa desde 1974. A taxa média do período abril-dezembro de 1991 foi de 2,2% mensais pelo índice de preços ao consumidor, mas próxima de zero pelo índice dos preços por atacado. A arrecadação tributária continuou aumentando (e as rendas provenientes das privatizações e licitações petrolíferas foram superiores ao planejado); tudo isso foi decisivo para a eliminação do rombo fiscal. Os resultados fiscais permitiram manter em vigor o acordo de stand by inicial firmado com o FMI e liberar empréstimos já aprovados pelo Banco Mundial e pelo BID, abrindo caminho para a negociação de um empréstimo de facilidades ampliadas (extended fund facility), o qual, em meados de 1992, abriu caminho para a assinatura de um acordo com os bancos credores no âmbito do Plano Brady. Em virtude do cumprimento das metas fiscais pactuadas e da regularização do panorama dos compromissos financeiros externos, a credibilidade da regra cambial consolidou-se.

Maior solvência fiscal e menor exposição aos persistentes problemas de credibilidade permitiram ao governo ampliar suas margens de ação: era a diferença entre o perigo constante de asfixia e a tranqüilidade de poder respirar sem medo de perder pé a qualquer momento. Esses maiores graus de liberdade não eram contraditórios com a perda de outras liberdades, por conta do auto-atamento. Pelo contrário, exatamente para poder alcançá-los, e utilizá-los, o governo teve de atar-se a si mesmo, uma conditio sine qua non, diante do contexto político, para fazer uso de suas capacidades adquiridas pelo abandono da ortodoxia monetarista recessiva.

As capacidades adquiridas, tanto em termos de aptidão técnica quanto de gestão política, são cruciais para que a execução da gestão expansiva seja efetivamente moderada. Recordemos, mais uma vez, o que dizem Dornbusch e Edwards: para serem bem-sucedidas, as políticas populistas precisam ser financiadas por uma política fiscal muito ortodoxa e ter uma administração fiscal rigorosa. Em nosso caso, a ortodoxia fiscal e a administração rigorosa, garantidas pelos dispositivos de auto-atamento, acabaram por incitar a reativação econômica, devido à mudança de expectativas que suscitaram nos agentes econômicos. Aliada às reformas tributárias postas em ação a partir de 1990, essa reativação produziu uma solvência fiscal que há muito o setor público argentino não conhecia.

Diante desse quadro, como o governo utilizou os novos graus de liberdade adquiridos? Dornbusch e Edwards afirmam que as políticas populistas devem fincar pé na reativação apenas durante um breve período inicial e logo dar lugar a políticas de crescimento. O que distingue o caso argentino, no entanto, é que populismo temperado e política de crescimento foram administrados de modo simultâneo, e não sucessivo. A política de crescimento começou muito antes que tivesse terminado o populismo temperado; este, por sua vez, se prolongou até muito depois de a política de crescimento ser convertida no eixo central da gestão da equipe econômica. A recomendação de Dornbusch e Edwards não foi seguida: não houve apenas um breve período inicial; apesar disso, a PMP não impediu a presença da política de crescimento na agenda governamental. Em resumo, o governo pôs em execução simultaneamente políticas populistas e de crescimento. Mas, como interagiram estas políticas? Fundamentalmente, de modo harmônico e ao mesmo tempo contraditório.

Vejamos, primeiramente, como as duas políticas se harmonizaram. Durante uma etapa relativamente longa, elas se conjugaram: o governo viabilizou a transformação market-oriented da organização econômica argentina tanto no que diz respeito à distribuição dos custos a ela inerentes, quanto no que concerne aos requisitos políticos das coalizões — tal como estes foram concebidos pelo próprio governo.

A política de crescimento, "por definição", começara muito antes, se a entendermos como o grupo de medidas de ajuste e reforma estrutural market-oriented que o governo começou a pôr em prática desde seu início. A nomeação de Cavallo e a execução de um plano de expansão não implicaram uma interrupção desse caminho, mas um novo impulso e uma execução palpavelmente mais refinada e não mais guiada pelo acicate de vencer a qualquer preço o desequilíbrio fiscal e a extrema instabilidade, mas pela busca de eficiência alocativa.

Mas, convém relembrar o fato essencial de que uma política de crescimento inevitavelmente implica alocar custos, e que, para um governo de origem popular, esses custos têm como destinatário principal suas próprias bases sociais. Nas privatizações, na liberalização comercial, na reforma tributária, na "racionalização" da administração pública, na desregulamentação do mercado de trabalho, na reforma do sistema previdenciário, em tudo isso o governo avançou nas políticas de reforma tornando efetiva essa destinação de custos. Enquanto isso, o populismo temperado carreava para o governo altos dividendos políticos, convalidando a eficácia de sua gestão, assim como a possibilidade de valer-se da expansão para atenuar e/ou compensar os custos da continuação e aprofundamento da política de crescimento, neutralizar resistências diante de algumas reformas e administrar, em sintonia com os fatores políticos e a estratégia de coalizões, o timing de outras mudanças.

Com o intuito de manter o apoio dos setores mais atingidos pela prolongada crise que culminou com a hiperinflação de 1989, Menem, no início de seu mandato, apelou para as suas credenciais políticas para solicitar a esses setores que enveredassem por um caminho desconhecido a fim de fugir das privações associadas à inflação. Para tanto, conseguira criar fortes nexos de sentido entre a estabilidade e as reformas estruturais como núcleo de um consenso de fuga para a frente segundo o qual, após cada crise, obtinha o respaldo popular para aprofundar o rumo traçado em vez de recuar. Evocando a imagem bíblica da travessia do deserto, pode-se dizer que Menem conquistava o consentimento e a adesão popular para percorrer terras inóspitas — sob o rigor da ortodoxia duramente recessiva a hiperinflação era afastada, mas também o era qualquer esperança de reparação social próxima. A disposição para atravessar o deserto provinha, em primeiro lugar, do valor das credenciais do presidente — que tornou possível superar a segunda hiperinflação sem graves fissuras na confiança nele depositada — e, em segundo, do fato de que, ao longo de toda aquela etapa, embora a areia queimasse debaixo dos pés, a hiperinflação não voltava.

Os resultados macroeconômicos perceptíveis desde meados de 1991 confirmavam os pressupostos básicos do consenso de fuga para a frente: os nexos constituídos entre estabilidade e reformas estruturais e o apelo presidencial à confiança em sua capacidade executiva (de pôr ordem onde havia o caos, de definir um rumo e sustentá-lo, em oposição à falta de rumo). A estabilidade, a recuperação econômica, a sensação coletiva de garantia da ordem, corroboraram o pacto de sentido estabelecido em 1989: se Menem, adotando o mais puro tom populista, apelara para que o seguissem, prometendo (unicamente)" não decepcionar", lá estavam os sinais de que este apelo havia fincado raízes. Já não se tratava apenas de atravessar um deserto: a persistência no rumo permitia alcançar regiões mais férteis.

A inflação diminuiu progressiva e firmemente: foi de 84,1% em 1991, de 17,5% em 1992, chegando a 7,4% em 1993, um índice que a economia argentina não conhecia desde princípios dos anos 50. A brusca desinflação, seu impacto positivo sobre o poder aquisitivo dos salários, a redução da taxa de juros, o reaparecimento do crédito para o consumo e a maior segurança convergiram para o efeito de expansão da demanda (Fanelli, Frenkel e Rozenwurcel, 1992).14 14 . Em matéria salarial, deve-se acrescentar ao efeito da redução da inflação sobre o poder aquisitivo o aumento da renda salarial per capita (devido a um sensível aumento das horas trabalhadas por parte do pessoal já ocupado), que compensou a efetiva queda do salário real medida por unidade de tempo trabalhado. De fato, no quadriênio 1991-94, o PIB cresceu 7% ao ano em média (8,9% em 1991, 8,7% em 1992, 5,5% em 1993 e 4,9% em 1994). Relativamente a 1990, o consumo cresceu 31% e o investimento 78% (Fanelli e Frenkel, 1994).15 15 . Para importantes setores assalariados de rendas médias e baixas, a recuperação do crédito permitiu o acesso a bens de consumo duráveis (alguns deles importados) depois de muitos anos em que o crédito havia desaparecido. Também houve um visível aumento do emprego que, impulsionado pela reativação da economia, acompanhou o plano em seus primeiros anos (Frenkel et alii, 1991; Fanelli, Frenkel e Rozenwurcel, 1992; Monza, 1993; Beccaria e López, 1995).

Já observamos que, em matéria tributária, o governo apostou, e acertou, na reativação econômica como mecanismo endógeno de aumento da arrecadação. Isto se refletiu no comportamento do gasto público16 16 . Os dados correspondem ao governo central, empresas públicas, províncias, municípios, seguridade social e obras sociais (Secretaria de Programación Económica, 1993). ¾ as despesas totais, em 1987, perfizeram 46,36% do PIB; já em 1988, elas caíram para 44,05% do mesmo, enquanto em 1989 baixaram para assustadores 36,74%. Em 1990, sofreram outra queda: para 35,51% do PIB. Daí para a frente, o gasto total recuperou-se: 1991, 36,77%; 1992, 39,88%; e 1993, 41,46% do PIB (Secretaria de Hacienda, 1994). Os gastos sociais não seguiram exatamente a mesma evolução, mas apresentaram variações significativas no quadro financeiro mais apropriado para a provisão de serviços públicos oferecidos pelo novo contexto macroeconômico e fiscal (Beccaria e Carciofi, 1993). Tomando-se o conjunto do gasto público social e em recursos humanos, o ano de 1987 registra o valor mais elevado desde 1981: 25,66%. A queda verificada em 1989 é quase inacreditável: 19,10%. Mas daí para a frente, o gasto público se eleva e alcança níveis superiores aos de 1987 e 1988 (não teria relevância comparar esses índices apenas com os de 1989): 1990, 22,41%; 1991, 24,43%; 1992, 25,23%; 1993, 28,01%. A observação desses mesmos dados em toda a série 1980-93 revela que 1981 (25,42%), 1987 (25,66%), 1992 e 1993 foram os anos de valores mais altos (Secretaria de Hacienda, 1994).17 17 . O comportamento do gasto social desde 1990 revela-se menos impressionante se levarmos em conta que a liderança dos dispêndios coube à rubrica "seguridade social" (emolumentos destinados ao setor passivo) que recebeu mais de 12% dos 28% em 1993 (entre 1988 e 1993 a rubrica cresceu cerca de 46%). Em um artigo em que são avaliadas suas magnitudes não como porcentagem do PIB, mas estimadas por seu valor real, a performance em gastos sociais parece menos brilhante. O valor real do gasto total orçamentário para 1993 é ainda mais elevado que o de 1987, mas a predominância da rubrica seguridade social é mais acentuada (cf. Flood, Gerchunoff e Lumi, 1993).

Por outro lado, a preponderância das verbas co-participadas,18 18 . Recursos co-participados são a parcela do gasto público repartida entre as diferentes esferas de governo: central, provincial e municipal. em detrimento das não co-participadas, resultado das reformas tributárias realizadas a partir de 1989, fez com que as províncias se vissem diante de uma soma muito maior de recursos financeiros, e de modo inesperado. Mas, até 1993, o governo central agiu com grande morosidade no que diz respeito ao ajuste das finanças das administrações locais.19 19 . Essa situação começou a se modificar quando o governo central delegou às províncias o encargo dos serviços de educação e saúde e forçou-as a colaborar nas despesas de manutenção de ramais ferroviários.

É também importante assinalar o efeito de políticas mais particularizadas de gasto público. Sucessivas alterações na legislação tributária, introduzidas entre fins de 1991 e princípios de 1992, especificaram que uma porcentagem dos aumentos previstos fosse destinada aos programas sociais da região da Grande Buenos Aires; com isso, o governo da província de Buenos Aires, tendo em vista as eleições legislativas de novembro, gastou, durante 1993, por intermédio de um "Fundo de Reparação Histórica", mais de US$ 1 milhão por dia, cifra esta que, aliás, não se reduziu em 1994. A maior parte desses fundos se destinou à construção de infra-estrutura urbana e equipamentos coletivos; sua distribuição, caracterizada por forte inclinação clientelista, convergiu para uma das áreas de maior concentração de domicílios pobres.

Tudo isso se reflete na informação disponível sobre a renda e os níveis de pobreza (Beccaria e Orsatti, 1992). Conforme observa Beccaria

"[...] a recuperação do nível de atividade e a diminuição da inflação permitiram que as rendas reais de todo tipo de recebedores também melhorassem [...] as rendas de crescimento proporcionalmente mais elevado foram as dos ocupados não assalariados (40% entre setembro de 1990 e setembro de 1992); as rendas de assalariados e aposentados aumentaram em 20%. A renda familiar per capita teve uma expansão de 26%, favorecida pelo crescimento do emprego [...]. A melhor participação dos estratos médios na distribuição da renda do conjunto de recebedores entre 1990 e 1992 reflete uma clara diminuição da desigualdade no caso dos assalariados — entre os quais se observa uma melhoria da posição relativa tanto do grupo médio quanto do inferior — e a manutenção do nível de renda dos demais grupos" (Beccaria, 1993, p. 147).

Quanto aos níveis de pobreza, os dados indicam que a tendência observável até 1989 teria sido parcialmente revertida entre 1991 e 1993: a proporção de pobres na Grande Buenos Aires caiu de 34% em 1990 para 27% em 1992, e a proporção de famílias vivendo abaixo da linha de pobreza diminuiu de 38% em 1989 para 14% em 1993.20 20 . Estimativas baseadas na Pesquisa Permanente de Domicílios (Beccaria, 1993). Em síntese,

"[...] a política de expansão da demanda permitiu atenuar os efeitos dos custos distributivos das reformas, pondo em ação mecanismos compensatórios ou moderadores de diversas naturezas, desde os que operaram no âmbito dos grandes agregados macroeconômicos até os que deram resultados mais seletivos. O boom econômico abriu as portas para um conjunto de políticas que não dispunham até então de financiamento. A arrecadação tributária em expansão permitiu destinar recursos crescentes a quase todas as parcelas do orçamento público, além de pôr em ação mecanismos de compensação direta. As crises recorrentes das finanças provinciais foram mais fáceis de manejar; com o efeito suspensivo do boom sobre o ajuste na esfera regional, as autoridades centrais conseguiram, em contrapartida, o apoio legislativo necessário para fazer avanços em sua própria política de reformas" (cf. Gerchunoff e Torre, 1996, pp. 751-752).

Vejamos agora como a PMP e as políticas de crescimento mantiveram-se em tensão; comecemos por explicitar o óbvio: uma PMP, ainda que moderada, não está isenta dos problemas inerentes às PMPs. Ou seja, quando o governo optou por essa alternativa, em 1991, admitiu uma distorção dos preços relativos. Em uma primeira instância, a fixação do tipo de câmbio importa, per se, em uma valorização cambial; não há nada de assombroso nisto. Como explica Canitrot,

"[...] o câmbio fixo é a âncora dos preços nos programas de estabilização aplicados a economias abertas ao movimento de capitais. Enquanto cumpre esse papel, a defasagem cambial é inevitável. O problema, porém, não está na existência desse atraso, mas saber se poderá ser sustado e que magnitude irá atingir quando tal coisa ocorrer" (Canitrot, 1992, p. 49).

Na realidade, a equipe econômica contava que se produzisse uma deflação de certa magnitude (Damill e Keifman, 1991; Frenkel et alii, 1991); supunha que a deflação fosse causada pela redução da incerteza cambial e permitisse melhorar a paridade real. Mas a redução dos preços nominais não colaborou para isso. E era difícil que o fizesse em um quadro de forte reativação induzida; de fato, a inflação "residual" que se seguiu ao lançamento do plano, mostrou-se de início muito alta em comparação com os níveis internacionais e continuou aprofundando o descompasso cambial.21 21 . Para isso foi determinante o comportamento distinto dos preços dos bens negociáveis ou não no mercado internacional (ver Fanelli e Frenkel, 1994).

Em pouco tempo tornou-se visível que a defasagem gerava um desequilíbrio em conta corrente (Fanelli e Frenkel, 1994; Gerchunoff e Machinea, 1995). Foi por isso que o nível das importações, da atividade interna e do gasto público manteve-se em precário equilíbrio: a repatriação de capitais permitia sustentar o nível da atividade econômica; esta, por sua vez, sustentava o equilíbrio fiscal, apesar do elevado gasto público, por intermédio da arrecadação tributária.

Nesse ponto, esbarramos, então, em um velho fantasma das PMPs: a valorização cambial; a faceta populista do plano de convertibilidade conspirava contra políticas de "crescimento genuíno" por fixarem mal os preços. O problema é que o que teria fixado "bem" os preços no início de 1991 era a opção por uma recessão ainda mais profunda do que a que se experimentava, mas isso não só carecia de viabilidade política como, ao mesmo tempo, significava submeter um Estado já esquálido a uma espiral de enfraquecimento ainda maior (um absurdo para qualquer perspectiva orientada para o crescimento, exceto na visão dos defensores obsessivos da panacéia neoliberal).

O governo, portanto, tinha fechado as portas e jogado fora a chave — lembremos que ele não estava em condições de desvalorizar o câmbio nominalmente;22 22 . Em termos de políticas de ajuste, isso equivaleria a um programa de estabilização clássico de reversão de um ciclo populista de expansão. nessa situação, a solução racional era manter a moderação das PMPs e empenhar-se a fundo em fazer com que as políticas de reforma estrutural corrigissem os preços relativos sem tocar na paridade nominal. Tratava-se de uma corrida contra o tempo, entre a duração da confiança externa (sustentando-se o desequilíbrio da balança comercial induzido pela reativação e a defasagem cambial) e a capacidade do governo de ajustar os preços relativos a uma paridade nominal intocável. É claro que a moderação é importante: freia a velocidade de aproximação do abismo do desequilíbrio comercial, permitindo, com isso, ganhar tempo para que as reformas comecem a produzir efeitos.

O governo não se resignou inteiramente a transitar por esse estreito desfiladeiro; aproveitando-se de circunstâncias que operavam a seu favor, não se limitou a manter sua gestão macroeconômica dentro de padrões os mais moderados possíveis. Vejamos o que aconteceu.

Por um lado, fatores político-institucionais já analisados colaboraram para a moderação. O desempenho fiscal foi relativamente equilibrado: os orçamentos nacionais, pela primeira vez em muitos anos, foram enviados ao Congresso com a antecedência estipulada por lei e sua execução foi bastante rigorosa. Ao mesmo tempo, o Executivo tendeu a reforçar a percepção coletiva de que podia manter a situação política suficientemente controlada para dar prosseguimento ao seu programa de reformas.23 23 . Um alvo especial para isso foram os sindicatos; o governo fez questão de demonstrar que tinha capacidade para enquadrá-los em sua política de desindexação dos preços. Em julho de 1991, editou o Decreto 1334 que sujeita a negociação de melhorias salariais aos incrementos de produtividade. Alguns itens da agenda, como as privatizações, também serviram para facilitar a implementação de outras reformas, eliminando obstáculos políticos, e para estimular a atividade econômica; mas esses objetivos só foram realizados de forma muito contida.24 24 . O melhor exemplo é a privatização da Yacimientos Petrolíferos Fiscales, a maior de todas, com a qual o governo, mediante a distribuição de ações aos aposentados, procurou, de um lado, minorar suas resistências à reforma do sistema de seguridade social, e, de outro, promover o consumo interno, autorizando a venda dessas ações. Mas isso foi feito de modo gradual e complementado por medidas que recompensavam a retenção das ações.

Por outro lado, não se levou a cabo um prudente retrenchment. Para explicar por que isso aconteceu, lembremos mais uma vez a advertência feita por Dornbusch e Edwards: as experiências populistas só devem defender a expansão durante um breve período inicial. O problema é que esses autores somente forneceram uma informação qualitativa: quão breve deveria ser esse período inicial? (E, retomando a consagrada metáfora de Elster, quão distante está o governo do abismo do qual se aproxima?) A resposta que um leigo pode extrair dos textos que analisam o ciclo das PMPs desde seu início triunfal até seu desenlace fatal é que a duração aconselhável do período inicial é uma função da distância temporal em que se farão presentes os estrangulamentos clássicos dessas políticas (caso o rumo não seja corrigido a tempo): a plena ocupação da capacidade instalada e/ou o desequilíbrio externo.

Na experiência argentina, as razões que explicam a duração das PMPs, ainda que moderadas, sem retrenchment, parecem claras: o "período inicial" assumiu uma grande elasticidade que decorreu, em parte, da própria moderação, mas que se alargou inesperadamente com a afluência simultânea de uma modificação muito favorável no contexto externo. Às conseqüências do retorno de capitais iniciais (de origem doméstica, diríamos), agregou-se a entrada de grandes investidores institucionais provenientes dos centros financeiros internacionais, os quais expulsos do Norte pela redução das taxas de juros iniciaram um movimento em direção às economias emergentes, beneficiando indiscriminadamente países que já estavam adiantados em suas reformas estruturais e outros que ainda não tinham chegado a tanto, como é o caso do Brasil.

Mas, nem tudo que é possível é aconselhável. A expansão da atividade econômica a todo vapor que o aumento da entrada de capitais havia permitido financiar, bem como o incremento do gasto público ao nível máximo que a reativação econômica tornara factível, afastavam-se da recomendação de Dornbusch e Edwards, acabando por expor a economia a uma grande vulnerabilidade. Apesar disso, a longa duração da PMP foi muito bem-vinda para o governo devido à concorrência de dois fatores. O primeiro, uma gradual mutação do ambiente político-social, conseqüência do próprio êxito econômico do plano de convertibilidade e de seus efeitos sociais. O segundo, a forma como o presidente Menem concebeu a sustentação de sua política de coalizões.

Em resumo, pode-se dizer que o difuso respaldo político dado ao governo foi mantido no novo ambiente político, mas combinou-se com uma progressiva repolitização da sociedade e com tensões no interior das próprias forças justicialistas. Não é insólito que se trate de conseqüências não desejadas da política econômica oficial:25 25 . Ver, por exemplo, a rica análise de Acuña e Smith (1994) que buscam explicações teóricas para essa mudança. sob o efeito paralisador da experiência hiperinflacionária, muitas demandas e expectativas de reparação tinham permanecido latentes; agora que, pouco a pouco, se configurava na população a convicção de que a economia argentina havia superado, de uma vez por todas, sua história inflacionária — não vem ao caso se da maneira certa ou errada —, elas ressurgiam na cena política nas diversas formas de ação coletiva. Além disso, e pelas mesmas razões, havia uma menor passividade dos diferentes setores e grupos sociais atingidos pelas várias políticas de reforma. Sobre esse pano de fundo, pode-se perceber, por outro lado, um progressivo relaxamento da disciplina dos blocos parlamentares peronistas ante o Executivo e um rebaixamento da tolerância das máquinas provinciais e das organizações sindicais ao unilateralismo com o qual o Executivo havia se desincumbido até então da formulação e implementação de iniciativas.26 26 . Isto se evidencia, por exemplo, nas dificuldades em que tropeçava o governo para levar adiante suas iniciativas em matéria trabalhista e previdenciária.

A pedra angular da estratégia de coalizões do governo foi definida pelo presidente, por volta de 1993: a reforma constitucional que prepararia o caminho para sua reeleição.27 27 . A Constituição então em vigor estabelecia um mandato de seis anos para um presidente não reelegível. Assim sendo, o governo considerou impopular adotar um retrenchment da PMP moderada porquanto os custos sociais inerentes às políticas de reforma (principalmente o desemprego que já antes da crise em cadeia, iniciada no México em dezembro de 1994, superava os 9%)28 28 . Em dezembro de 1992, o desemprego tinha atingido seu ponto mais baixo desde 1988: 5,6%. se tornavam mais visíveis e era cada vez mais necessário atenuar o descontentamento que surgia em suas próprias fileiras.

Em abril de 1994, as eleições para a Convenção Constituinte deram resultados excelentes para um novo agrupamento de centro-esquerda (Frente Grande) e aceitáveis para a direita nacionalista (MODIN). Firmou-se então na opinião pública a idéia de uma derrota oficial nas futuras eleições presidenciais. Em plena Convenção Constituinte, o ânimo dos peronistas passava por uma crise de confiança. Reflexo emblemático disto foi a maneira como o senador Augusto Alasino se referiu ao Partido Justicialista e seu governo, de surpreendente sinceridade:

"[...] estamos sendo sacudidos pelos questionamentos internos [...]. Mas não vamos deixar que o peronismo tenha feito todo esse trabalho e todo esse sacrifício para reformar o Estado só para que a Frente Grande venha recolher seus frutos agitando a bandeira da repartição. Com essa preocupação reaparece o tema da repartição e eu sei que Menem vai lhe dar ouvidos" (declarações do senador Augusto Alasino, junho de 1994).

Em outras palavras, as urnas e as ruas transmitiam sinais inquietantes e o peronismo não queria perder. Era preciso começar a repartir.

Os dispositivos político-institucionais estruturados em torno do change team Menem-Cavallo, contudo, permitiram um manejo bastante firme da situação em face dessas pressões, sob os cuidados dos operadores financeiros cuja confiança era imperioso para o governo reter.29 29 . De fato, os consultores financeiros esmeravam-se em propalar que consideravam Menem e Cavallo (especialmente este último) como o único escudo possível contra o retorno do populismo, retorno este que o Partido Justicialista, em meio a uma convulsão interna, não garantia evitar. Contudo, as novas circunstâncias evidenciavam a complexidade da tarefa: compatibilizar uma gestão macroeconômica consistente com a manutenção da unidade da heterogênea coligação governamental que Menem vinha articulando em torno de sua pessoa desde 1989. Nessa situação, manter o populismo temperado a qualquer preço (por intermédio do retrenchment) revelou-se impraticável.

Isso porque se tratava, de um lado, sob pena de perder a confiança do mundo dos negócios, de excluir da tomada de decisões aqueles que, em seu próprio campo de forças, faziam pressão sobre o gasto público ou expressavam resistências às políticas fiscais ou desregulatórias orientadas para estimular a competitividade empresarial — isto é, os que pugnavam por um populismo aberto. Mas, de outro lado, era indispensável não se submeter às reclamações dos defensores do rigor neoliberal que instavam o governo a se decidir por um retrenchment: limitar a entrada de capitais, provocando a elevação das taxas de juros, com o propósito de esfriar a atividade econômica para equilibrar a balança comercial. Tratava-se de evitar a enfermidade administrando ao doente, antecipadamente, os dolorosos remédios recessivos, o que não era politicamente interessante para o governo. Já que este tinha feito a opção pelo populismo temperado no começo de 1991, esta não era a maneira mais prudente de sair dele.

Do ponto de vista técnico, o governo dispunha de um instrumento alternativo de retrenchment: reduzir a expansão do gasto público, evitando o perigo de sustentá-lo no que podia não ser mais do que a fase expansiva de um ciclo. Do ponto de vista político, essa opção se revelou totalmente inverossímil. Um leitor argentino poderia lembrar-se, por exemplo, da insatisfação dos aposentados, da ampla mobilização de um dos seus segmentos, da repercussão pública de seus protestos.30 30 . Uma iniciativa da Frente Grande destinada a fazer com que o projeto de reforma do sistema previdenciário fosse submetido a uma consulta popular obteve o apoio de um milhão de pessoas. É difícil imaginar o governo tendo de explicar que teria de contrair o gasto público para gerar superávit fiscal e montar um fundo destinado a contrabalançar um eventual ciclo recessivo.31 31 . O que equivalia, na prática, a uma previsão de recessão por parte do governo (por nada ser dito a respeito do efeito em espiral da retração do gasto sobre o nível da atividade e a arrecadação tributária).

Por isso, o governo preferiu estender a PMP, aproveitando a margem de ação permitida pela maneira moderada como a realizou e pela entrada de capitais; nesse sentido, procurou aprofundar as políticas "orientadas para o crescimento": empenhou grandes esforços para corrigir os preços relativos a fim de inverter o sinal negativo da balança comercial, o calcanhar de Aquiles do Plano de Convertibilidade, acrescentando à realização das reformas medidas tendentes a atenuar essa deficiência.

Nessa corrida contra o tempo o governo foi finalmente derrotado: a restrição externa sobreveio em dezembro de 1994, depois da desvalorização mexicana. A súbita mudança das condições contextuais revelou toda a fragilidade da recuperação econômica que vinha sendo induzida desde 1991, bem como a vulnerabilidade criada pela relativa destemperança da PMP. Nesse momento, a ajuda dos organismos internacionais cobriu parte do rombo financeiro, adiando o problema. Mas o efeito em cadeia da crise externa foi, assim mesmo, sério: em 1995, o PIB caiu 4%, o desemprego cresceu acentuadamente, atingindo 18%, o setor financeiro defrontou-se com as dificuldades decorrentes da insolvência dos devedores privados e o setor público mostrou que a solidez fiscal dependia de um nível insustentável de atividade interna.

É comum as PMPs acabarem deixando seus pretensos beneficiários em uma situação pior do que a anterior: com a crise, os salários caem abaixo dos níveis iniciais. É difícil afirmar se foi isso que aconteceu, embora o nível de desemprego tenha sido muito afetado pela retração econômica. O governo pôde contar com mecanismos que suavizaram o processo de ajuste, uma vez desencadeada a crise: não se viu forçado a proceder segundo as antigas receitas estabilizadoras centradas na desvalorização nominal da moeda, e isso, por sua vez, possibilitou uma reversão parcial da fuga de capitais. As forças peronistas que até a irrupção da crise se mostravam cada vez mais inquietas, fecharam questão em torno do chefe do Executivo, intuindo, acertadamente, que o voto popular não lhe seria negado. E, com efeito, mais eleitores optaram pela continuidade de uma gestão que contava a seu favor com o mérito de ter levado adiante um vertiginoso processo de transformações.

Apesar disso, ao cabo de seis anos de reformas persistentemente voltadas para a solução dos graves desequilíbrios da economia e do Estado argentinos, via-se claramente que a possibilidade de uma saída sem dor da conturbada estagnação dos anos 80 era pura ilusão. Aos custos inerentes à desorganização iniciada nos anos 70 acrescentavam-se agora os custos envolvidos nas reformas destinadas a superar tal desordem. A situação estava melhor do que na época da hiperinflação para muitos setores, mas os 18% de desocupados punham a nu que a Argentina ainda não tinha encontrado um modo sustentável de crescimento e inserção no cenário econômico internacional.

CONCLUSÕES

Não há afinidade, em matéria econômica, entre populismo temperado e política de crescimento, pelo menos a curto prazo. No longo prazo, porém, pode não ser assim: em situações de extrema deterioração social — como a da Argentina em 1989— mitigar rapidamente tal deterioração pode ser indispensável para evitar danos irreparáveis, que, uma vez produzidos, tornam inútil qualquer set de incentivos" bem empregados". O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao Estado: a perda de suas capacidades pode ser tão profunda que ele se veja impossibilitado de exercer com alguma eficiência até mesmo as funções que o minimalismo considera adequadas ao desenvolvimento das forças de mercado. De modo que os efeitos transicionais da PMP moderada podem ter desempenhado, afinal, um papel decisivo. Se fossem mais do que passageiros, e adicionando-se a eles as melhorias auto-sustentáveis resultantes das mudanças estruturais (se a promessa do market friendly approach fosse correta), esses efeitos poderiam incidir positivamente sobre a capacidade de crescimento.

Contudo, embora esse raciocínio esteja correto, tem pouco a ver com a verdadeira lógica política do governo (que, por exemplo, "protegeu" mais os aposentados do que as crianças das escolas públicas). O populismo, inclusive em sua versão temperada, continua sendo justificado por razões políticas e por estratégias de coalizão: manter unidas suas próprias forças, assegurar a liderança — definida ao sabor da vontade do líder, i.e., mediante a reeleição —, viabilizar politicamente as reformas "de crescimento", legitimar socialmente o curso global das transformações, ganhar eleições. Em suma, politicamente falando, a funcionalidade do populismo temperado é evidente, pois confere viabilidade às reformas (supostamente) orientadas para o crescimento. Isto é particularmente importante nos contextos democráticos e mais ainda quando, como salientaram Gerchunoff e Torre (1996), as reformas são levadas a cabo por governos de base social popular.

Nessas situações, suas lideranças, chegando ao Executivo, formam alianças heterogêneas: a mistura das bases históricas do modelo de desenvolvimento voltado para dentro, com o mundo dos negócios ideologicamente articulado pelos consultores financeiros. O problema principal desse curso de ação é organizar o apoio das forças cuja adesão se procura obter, sem ameaçar o acompanhamento das próprias bases. A relação entre o comando político da reforma e o velho componente da nova coalizão evoca, para usar uma metáfora brasileira, o voto de cabresto do coronelismo. Mais do que conduzir pelas rédeas, trata-se de puxar pelo cabresto: suas próprias forças avançam sem a menor vontade de fazê-lo. Enquanto isso, o apoio difuso dos homens de negócios é assegurado pela convicção de que, por necessidade ou por virtude, o governo realiza suas aspirações — o que não exime o comando reformista da necessidade de também manter firmes as rédeas. Estabelecido sobre uma coalizão tão heterogênea, não se estranha que o terceiro governo peronista se visse compelido a fazer populismo e antipopulismo ao mesmo tempo.

Desde fins dos anos 80, uma ampla gama de economistas, cientistas políticos, historiadores econômicos, de diferentes tradições analíticas, têm questionado a concepção dominante que atribui ao Estado um papel puramente negativo no desenvolvimento econômico. É o que Evans (1992) denomina de" terceira onda" de reflexões sobre o tema, a qual considera pouco promissoras as políticas de reforma de mercado que não são acompanhadas por uma adequada reconstrução das capacidades do Estado. Pereira, Maravall e Przeworski (1993) argumentam convincentemente no mesmo sentido, mas enfatizam que, mesmo quando os programas de reforma se integram em uma estratégia correta de desenvolvimento, inevitavelmente implicam elevados custos sociais de transição (redução do consumo, desemprego etc.). Por conseguinte, dizem eles, "a questão adicional que se coloca é saber se essas reformas continuarão ou não a ser um veredicto do processo democrático" (p. 18). Daí que um componente-chave do approach social-democrata é que o processo de reformas seja acompanhado por uma rede de proteção social para os setores mais prejudicados pelas mudanças. Esses autores se baseiam empiricamente no caso espanhol, cujo traço distintivo foi a ampliação do alcance das políticas sociais e a existência de políticas ativas para o mercado de trabalho.

As reformas argentinas não se caracterizaram por uma recomposição substancial das políticas sociais e as mudanças no setor trabalhista foram essencialmente destinadas a desmantelar, em vez de reconstruir, as redes de proteção dos trabalhadores. Todavia, na frase "os efeitos políticos [da proteção social] foram que, na Espanha, o PSOE, que liderou o processo de reformas, pôde ganhar quatro eleições consecutivas apesar de um grave desemprego [...]" (ibidem), seria perfeitamente possível substituir a Espanha pela Argentina e o PSOE pelo Partido Justicialista. Só que, em sintonia com suas tradições, a política argentina respondeu, a seu modo, aos problemas da transição e em lugar de um enfoque social-democrata o que tivemos foi um approach populista. No caso, o pior não era a índole populista da política macroeconômica, cuja execução foi marcada por uma firmeza que raramente acompanha as PMPs; o pior de tudo foram os ingredientes clientelistas, o particularismo e a corrupção predominantes na distribuição de recursos em si escassos.

De uma perspectiva geral, a gestão peronista a partir de 1989 permite ver os traços distintivos de uma política de reformas neoliberais executada por um governo cuja força eleitoral residia nos setores populares. Resta, porém, esclarecer uma questão: embora a moderação com a qual a PMP foi executada tenha se mantido ao longo do tempo, a recomendação de limitar a um breve período a fase de expansão induzida não foi seguida. Mesmo que isso não impedisse a execução das "políticas de crescimento", estas tiveram de ser introduzidas a curto prazo com o objetivo de corrigir as distorções dos preços relativos (Gerchunoff e Machinea, 1995), e a firmeza que caracterizou sua implementação não chegou a neutralizar a vulnerabilidade criada pela "imprudência" de não se ter corrigido o rumo a tempo.

* * *

Afirmei que o governo acreditava não ter alternativas, ou não se interessou em examiná-las. Mas, tecnicamente, elas existiam, como indicaram vários economistas. Além do retorno a uma ortodoxia recessiva, ou da passagem para uma gestão populista típica, havia a alternativa do retrenchment, congruente com a recomendação de Dornbusch e Edwards, e que poderia livrar a economia de sua vulnerabilidade externa. Contudo, uma compreensão mais profunda da questão não parece se encontrar no terreno estritamente político-econômico, mas sim, outra vez, no campo da política de coalizões. Já discuti as restrições que afastaram o governo desse caminho: ele agiu compelido por mudanças ocorridas no ambiente social e político geral em que a política econômica se desenvolveu e pela opção do presidente Menem de privilegiar o objetivo de reforma da Constituição para poder reeleger-se. Apesar disso, a rigidez com que o governo se aferrou ao seu êxito parece nos falar de problemas mais universais, próprios da natureza política dos processos de reforma.

Refletindo sobre as margens de manobra de que dispõem os líderes diante dessas vicissitudes, Peter Gourevitch sustenta que nem a perspectiva teórica dos grupos de interesse nem a abordagem institucionalista oferecem uma resposta satisfatória, porque não havendo uma avaliação perfeita das preferências, ou uma formulação perfeita das instituições, sempre existe

"[...] alguma frouxidão, em proporções variáveis, na interação entre preferências, instituições, escolhas e resultados. Onde há incerteza, há margem de manobra, discrição, arbítrio. Isso abre a porta para escolhas a todos os atores, em particular aos líderes [...] que têm algum grau de escolha no que se refere à forma de articular as coalizões de que precisam para governar" (Gourevitch, 1993, pp. 440-443).

O mais interessante da análise de Gourevitch está em sua explicação da forma como a margem de manobra dos líderes vai sendo transformada por sua própria ação. Depois de sugerir que" os governos têm inicialmente algum grau de liberdade quanto ao raio de manobra", Gourevitch encerra essas reflexões com uma frase aparentemente misteriosa: "Uma vez aproveitadas, as oportunidades se perdem" (ibidem).

Por que? A gestão reformista discutida neste artigo ilustra o problema. Afirmei que a coligação articulada por Menem era heterogênea; simplificando, podemos dividi-la em duas grandes vertentes: a velha (popular) e a nova (os empresários). Este encaixe de coalizões é um exemplo irretocável de aproveitamento de graus de liberdade. Mas a gestão posterior da política econômica evidencia as restrições ao mesmo tempo criadas pelas novas circunstâncias da política de coligações.

Em 1991, o governo induziu a uma política de expansão que obteve ótimos resultados, baseados em uma remonetização da economia que se apoiava na repatriação de capitais; porém, um pouco mais tarde, uma notável mudança no contexto econômico internacional estimulou um fluxo de capitais externos muito superior ao esperado, em face do qual o governo decidiu não alterar a adaptação passiva das variáveis econômicas internas. Naquela oportunidade, a redução das margens de ação do governo derivou de sua necessidade de atender ao velho componente da coalizão.

Dois anos depois, as restrições novamente se manifestaram, dessa vez por influência do novo elemento integrante da coalizão. Sob o impacto da crise desencadeada em 1995, e ante a evidência de que os efeitos do Plano de Convertibilidade não eram milagrosos, o peronismo fechou questão em torno do apoio ao governo, mas não escondeu seu descontentamento com o ministro da Economia. Esse mal-estar foi estimulado por Menem que acreditava ter chegado a hora de ajustar contas com Cavallo, a quem precisou se aliar em 1991, e que, agindo com uma margem de independência política intolerável, lançou-se candidato a presidente da República para as eleições de 1999. Dessa vez, foi a nova vertente da coalizão que fixou os limites: a reação negativa dos mercados e dos porta-vozes da comunidade financeira local e internacional deixou claro que o mundo dos negócios somente consideraria o governo peronista confiável enquanto estivesse protegido contra as pressões populistas da velha vertente popular pelo "escudo" formado por Cavallo e sua equipe de tecnocratas. Esses conflitos permitiram a Menem confirmar que seus temores de 1991 não eram infundados: havia amarrado as próprias mãos e ainda por cima não podia afastar o ministro.

Na linha de reflexão de Gourevitch, as oportunidades que se oferecem aos líderes são como revólveres de uma só bala. Quando usadas, criam uma nova situação na qual os líderes caem na própria armadilha. São oportunidades para a ação" livre", mas essa ação implica eleição, opções, e as escolhas continuamente estreitam o campo de ação posterior dos líderes. "À medida que agem, assumem compromissos e praticam ações que passam a ser julgadas, e que rapidamente os limitam" (ibidem). Donde se conclui que, uma vez aproveitadas, as oportunidades são perdidas.

(Recebido para publicação em abril de 1996)

NOTAS:

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ABSTRACT

Moderate Populism: A Political Interpretation of Argentina’s 1991 Convertibility Plan

Approaching from the perspective of a political science analysis, the article focuses on the interactions between an economic stabilization plan ¾ Argentina’s 1991 Convertibility Plan ¾ and the pro-market program of reforms that was implemented from the beginning of the Carlos Menem Administration. It highlights the political and institutional factors that made it possible to architect and expansive stabilizing policy, the relevance of the political effects of implementing this program, and the crucial interrelationship between the government’s coalitional policy, the reform program, and macroeconomic policy.

Keywords: pro-market reforms, macroeconomic policy, Argentina politics; Convertibility Plan; populism

RÉSUMÉ

Populisme Tempéré: Une Interprétation Politique du Plan de Convertibilité Argentin de 1991

Ce travail aborde, du point de vue de la politologie, les intéractions établies entre un plan de stabilisation, le Plan de Convertibilité Argentin de 1991, et le programme des réformes axées vers le marché, mis en place dès les débuts du gouvernement du président Carlos Menem. On cherche surtout à souligner la présence de facteurs politiques et institutionnels qui ont permis la mise en forme d’une politique de stabilisation explansible, l’importance des effets politiques de sa mise en place, ainsi que les rapports cruciaux entre la politique de coalition du gouvernement, le programme des réformes et la politique macroéconomique.

Mots-clé: Réformes axées vers le marché; Politique macroéconomique; Argentine – politique

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  • 1
    . Analisando a gestão política das reformas estruturais na Argentina a partir de 1989 (Palermo, 1995), sustento, contrariamente às avaliações em voga, que a passagem de uma longa etapa de ajuste caótico para outra de ajuste organizado havia minorado sensivelmente os custos sociais da transformação econômica e estatal, o que, por sua vez, se mostrara de grande importância para a sustentação política do processo de mudanças. Em um penetrante artigo recentemente publicado, Gerchunoff e Torre (1996) lançam nova luz sobre a questão, ressaltando a maneira como os efeitos expansivos do Plano de Convertibilidade permitiram ao governo suavizar, do ponto de vista de sua base popular, os custos inerentes às reformas. Seguindo essa mesma linha de análise, este artigo se concentra nos requisitos político-institucionais que tornaram possível a implementação dessa política de expansão e na inter-relação da política macroeconômica com a política de coalizões desenvolvida.
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    . Assim, diversos estudos de caso constatam que as lideranças adotam o enfoque tecnocrático, desinteressando-se da tarefa especificamente política de persuasão da sociedade, como se os benefícios das reformas fossem evidentes por si mesmos.
  • 3
    . Isso deixa claro que os limites entre uma PMP e uma política prudente de expansão anticíclica são difíceis de distinguir: os comportamentos preventivos dos agentes econômicos podem
    ex post transformar em PMP uma política concebida
    ex ante como apenas anticíclica.
  • 4
    . Para estudos mais amplos da política de reformas do primeiro governo Menem, ver Acuña (1994), Canitrot e Sigal (1994), Gerchunoff e Torre (1996), Palermo (1995), Palermo e Novaro (1996), Torre e Palermo (1995).
  • 5
    . A gestão Bunge e Born começou com o novo governo, em julho de 1989, e terminou após a segunda hiperinflação, em dezembro. A partir de então, Erman González dirigiu o Ministério da Economia até janeiro de 1991, quando foi substituído por Domingo Cavallo.
  • 6
    . A conta comercial de 1990 tinha sido muito superavitária (US$ 8 bilhões), permitindo obter, pela primeira vez desde 1977, um saldo positivo em conta corrente, resultado tanto do crescimento das exportações quanto da queda das importações (Canitrot, 1992).
  • 7
    . Pela expressão
    consenso de fuga para a frente (Torre e Palermo, 1995; Palermo, 1995) referimo-nos a uma característica central da dinâmica política reformista na longa etapa inicial do governo Menem: o respaldo da população não resultava tanto de sua confiança no futuro valor das reformas de mercado, e a conseqüente disposição para arcar com seus custos inerentes, quanto do medo do retorno a um passado — a hiperinflação — cuja dureza extrema era conhecida por todos. Nessa situação, o julgamento popular a respeito do programa de reformas radicais adotado pelo governo não se prendia aos seus custos (que estavam sendo pagos por antecipação), mas à crença na promessa de que a saída do "vale de lágrimas" seria rápida e definitiva.
  • 8
    . Acompanhamos aqui a descrição técnica do plano feita por Canitrot (1992), Fanelli, Frenkel e Rozenwurcel (1992) e Rozenwurcel (1992).
  • 9
    . A convertibilidade consiste essencialmente em uma desdolarização (põe fim à fuga dos agentes privados da moeda doméstica para o dólar, salvo a obtenção de rendas extraordinárias via especulação garantida) confiável (mediante reservas e controle fiscal) da economia. Batista Jr. (1993), em uma aguda análise das opções de política econômica brasileira voltadas para a estabilização, qualifica o plano argentino como um regime monetário semelhante ao padrão-ouro, com o dólar no papel de "relíquia bárbara".
  • 10
    . O conceito de atar-se a si mesmo foi elaborado por Elster (1989); a auto-inibição atende ao interesse de reduzir a probabilidade de condutas próprias futuras consideradas, convicta e racionalmente, como indesejáveis. Faço um uso livre dessa idéia básica; neste caso, a estratégia de preservar a "fraqueza da vontade" atende ao propósito de se fazer acreditar por outros.
  • 11
    . O governo beneficiou-se, por outro lado, de uma mudança ocorrida no contexto internacional, mudança ocorrida na dimensão denominada por Stallings (1992) de
    leverage: um novo ânimo por parte dos protagonistas do chamado Consenso de Washington de aceitar reprogramações manejáveis das dívidas externas sem forçar desvalorizações diante da evidente esterilidade, tanto do ponto de vista do devedor quanto do credor, dos planos clássicos de estabilização.
  • 12
    .Já que os dispositivos criados induziram a uma rápida repatriação de capitais, como se verá a seguir.
  • 13
    . Na Fundação Mediterrânea, os técnicos que desenvolviam atividades em equipe chegavam a mais de duzentos.
  • 14
    . Em matéria salarial, deve-se acrescentar ao efeito da redução da inflação sobre o poder aquisitivo o aumento da renda salarial
    per capita (devido a um sensível aumento das horas trabalhadas por parte do pessoal já ocupado), que compensou a efetiva queda do salário real medida por unidade de tempo trabalhado.
  • 15
    . Para importantes setores assalariados de rendas médias e baixas, a recuperação do crédito permitiu o acesso a bens de consumo duráveis (alguns deles importados) depois de muitos anos em que o crédito havia desaparecido.
  • 16
    . Os dados correspondem ao governo central, empresas públicas, províncias, municípios, seguridade social e obras sociais (Secretaria de Programación Económica, 1993).
  • 17
    . O comportamento do gasto social desde 1990 revela-se menos impressionante se levarmos em conta que a liderança dos dispêndios coube à rubrica "seguridade social" (emolumentos destinados ao setor passivo) que recebeu mais de 12% dos 28% em 1993 (entre 1988 e 1993 a rubrica cresceu cerca de 46%). Em um artigo em que são avaliadas suas magnitudes não como porcentagem do PIB, mas estimadas por seu valor real, a
    performance em gastos sociais parece menos brilhante. O valor real do gasto total orçamentário para 1993 é ainda mais elevado que o de 1987, mas a predominância da rubrica seguridade social é mais acentuada (cf. Flood, Gerchunoff e Lumi, 1993).
  • 18
    . Recursos
    co-participados são a parcela do gasto público repartida entre as diferentes esferas de governo: central, provincial e municipal.
  • 19
    . Essa situação começou a se modificar quando o governo central delegou às províncias o encargo dos serviços de educação e saúde e forçou-as a colaborar nas despesas de manutenção de ramais ferroviários.
  • 20
    . Estimativas baseadas na Pesquisa Permanente de Domicílios (Beccaria, 1993).
  • 21
    . Para isso foi determinante o comportamento distinto dos preços dos bens negociáveis ou não no mercado internacional (ver Fanelli e Frenkel, 1994).
  • 22
    . Em termos de políticas de ajuste, isso equivaleria a um programa de estabilização clássico de reversão de um ciclo populista de expansão.
  • 23
    . Um alvo especial para isso foram os sindicatos; o governo fez questão de demonstrar que tinha capacidade para enquadrá-los em sua política de desindexação dos preços. Em julho de 1991, editou o Decreto 1334 que sujeita a negociação de melhorias salariais aos incrementos de produtividade.
  • 24
    . O melhor exemplo é a privatização da Yacimientos Petrolíferos Fiscales, a maior de todas, com a qual o governo, mediante a distribuição de ações aos aposentados, procurou, de um lado, minorar suas resistências à reforma do sistema de seguridade social, e, de outro, promover o consumo interno, autorizando a venda dessas ações. Mas isso foi feito de modo gradual e complementado por medidas que recompensavam a retenção das ações.
  • 25
    . Ver, por exemplo, a rica análise de Acuña e Smith (1994) que buscam explicações teóricas para essa mudança.
  • 26
    . Isto se evidencia, por exemplo, nas dificuldades em que tropeçava o governo para levar adiante suas iniciativas em matéria trabalhista e previdenciária.
  • 27
    . A Constituição então em vigor estabelecia um mandato de seis anos para um presidente não reelegível.
  • 28
    . Em dezembro de 1992, o desemprego tinha atingido seu ponto mais baixo desde 1988: 5,6%.
  • 29
    . De fato, os consultores financeiros esmeravam-se em propalar que consideravam Menem e Cavallo (especialmente este último) como o único escudo possível contra o retorno do populismo, retorno este que o Partido Justicialista, em meio a uma convulsão interna, não garantia evitar.
  • 30
    . Uma iniciativa da Frente Grande destinada a fazer com que o projeto de reforma do sistema previdenciário fosse submetido a uma consulta popular obteve o apoio de um milhão de pessoas.
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    . O que equivalia, na prática, a uma previsão de recessão por parte do governo (por nada ser dito a respeito do efeito em espiral da retração do gasto sobre o nível da atividade e a arrecadação tributária).
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    Agradeço a Pablo Gerchunoff, Gerardo Munck e Juan Carlos Torre pelos valiosos comentários a uma versão anterior deste trabalho, bem como aos pareceristas anônimos e à editoria de
    Dados pelas opiniões e sugestões. A tradução do original em espanhol "Populismo Atemperado. Una Aproximación Política al Plan de Convertibilidad Argentino de 1991" é de Vera Pereira.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Out 1998
    • Data do Fascículo
      1997

    Histórico

    • Recebido
      Abr 1996
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