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“necessariamente ‘musicada’”

“once it has been ‘sung’, it has also necessarily been ‘turned to music’”

Cartas a João Chiarini

As cartas que aqui se transcrevem, subscritas por Mário de Andrade, escritas e remetidas a menos de dois meses de seu falecimento em 25 de fevereiro de 1945, destinaram-se a João Chiarini (1917-1988), ele também, contumaz estudioso das tradições populares brasileiras, sobretudo musicais. Desde sua inserção no jornalismo, em finais dos anos 1930, e por mais de 50 anos, Chiarini não apenas reuniu uma vasta bibliografia relacionada à cultura folclórica brasileira, como recolheu e catalogou expressões próprias dessa cultura nas suas mais diferentes linguagens. Procedendo da mesma forma em relação aos materiais de divulgação relativos à ocorrência dessas manifestações, como os resultantes de suas próprias ações de agitador cultural à frente do Centro de Folclore de Piracicaba, Chiarini constituiu um acervo bibliográfico de 25 mil volumes, além de recortes de jornais, programas, panfletos, correspondências, fotografias, gravações - testemunhos da chamada cultura caipira - ainda por ser estimado na sua totalidade. Sem que se soubesse de sua existência até uma década atrás, estas duas missivas de Mário de Andrade sobreviveram à verdadeira errância1 1 O acervo de Chiarini inicialmente ficou sob a guarda e nas dependências do antigo jornal O Diário de Piracicaba, depois, foi para o prédio da Faculdade de Odontologia, na rua D. Pedro; em seguida e por muito tempo, nas salas do antigo Fórum de Piracicaba, na rua do Rosário, onde se instalaram a Academia Piracicabana de Letras e o Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba. Cf. ELIAS NETO, Cecílio. Almanak de Piracicaba, Suplemento de A Tribuna de Piracicaba, agosto de 1996, p. 1. de que padeceu o fabuloso acervo do folclorista pela cidade de Piracicaba até que encontrasse sua guarda definitiva, em 1996, junto à Universidade Metodista de Piracicaba.

Uma fina intuição, atuante no processo de organização dessa documentação, com vistas à sua disponibilização pública pelo Espaço Memória do Centro Cultural Martha Watts, em 2006, inscreveu as duas cartas de Mário de Andrade em uma série documental, intitulada “Cartas anteriores a 1960”, composta especialmente da correspondência passiva de João Chiarini, na figura de estudioso do folclore paulista e na figura de presidente do Centro de Folclore. Série documental que, por si só, constitui expressivo testemunho do curso da comunicabilidade, da direção das trocas e da natureza dos intercâmbios estabelecidos entre aqueles que, a partir dos locais de produção dessa cultura, alimentavam a ânsia de conhecimento de intelectuais e acadêmicos e a necessidade de outros que, por obrigação dos cargos públicos ocupados, deviam, além de conceber, implantar políticas de preservação.

As cartas de Mário, ainda que antecedendo em pouco a criação do Centro de Folclore2 2 Criado em 30 de maio de 1945 e declarado de utilidade pública pela lei n. 303, de 9 de junho de 1949, do governo do Estado de São Paulo. e toda a sucessão de intercâmbios entre esse Centro e as autoridades oficiais e acadêmicas do estado, dirigem-se especificamente a Chiarini, estudioso e interessado da cultura musical da região do Médio Tietê. O contato é iniciado com o agradecimento de Mário por receber o programa da festa de cururu3 3 Nos termos do próprio João Chiarini, cururu é “disputa, combate poético”. Cf. CHIARINI, João. Cururu. Revista do Arquivo Municipal. Ano XIII, vol. CXV, Julho/Agosto/Setembro de 1947, p. 81-198; para a citação p.86. , realizada em Piracicaba. O Mário de Andrade que, então, rascunha uma sequência de pedidos encontrava-se em pleno exercício do método que desenvolveu para constituir-se intelectual especialista da chamada cultura brasileira. De um lado, indaga e toma, àqueles, como Chiarini, estreitamente próximos das manifestações culturais que lhe interessavam, os seus precisos contornos; de outro, instrui, revisa e, sobretudo, controla as formulações dos mesmos quando se aventuram na sistematização e decifração das formas e nas genealogias dessas manifestações.

Nesse sentido, podemos ver nas duas missivas aqui consideradas, sucessivamente, o questionamento do autor do Dicionário musical brasileiro4 4 Trata-se do Projeto de Mário de Andrade que até a altura de seu falecimento havia concluído 3.600 verbetes. A partir dos manuscritos deixados pelo escritor, atualmente no patrimônio do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, o projeto seria levado a termo por Oneyda Alvarenga e Flavia Camargo Toni, sendo publicado, em 1986, pela Editora Itatiaia. sobre o léxico relacionado à prática do cururu e, de outro, a oferta de leitura, revisão e controle da linguagem, de conceitos e nomenclaturas adotados na construção de conhecimento sobre o duelo poético5 5 Sob o pseudônimo de O Patriota, Chiarini participou do Concurso de Monografias sobre o Folclore Musical Brasileiro, patrocinado pelo Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, em 1946, com um estudo monográfico sobre o cururu, publicado na Revista do Arquivo Municipal. Ano XIII, vol. CXV, jul/ago./set. de 1947, p. 81-198 e em separata pelo próprio Departamento de Cultura. Na segunda carta, Mário menciona um livro sobre o tema, mas não há indícios dele, apenas esse estudo. .

São Paulo, 4 de janeiro de 1945.

Meu caro João Chiarini.

Estou escrevendo a você para lhe enviar o meu abraço de início de ano-novo.

Recebi o programa da festa de Cururu, realizada aí, e creio que a coisa foi interessante.

Acontece que lendo o programa deparei com uma palavra “canturiões”. Será isso mesmo, ou um erro tipográfico? Caso esteja certo será uma palavra que eu não conhecia, e que irá enriquecer o meu dicionário de termos musicais, em elaboração.

Queira receber o abraço de

Mário de Andrade

P.S. “Canturiões” é o mesmo que “cantadores”? Se não for mande me dizer, por favor.

Carta datada: “S. Paulo, 4 de janeiro de 1945”, datiloscrito a fita preta; autógrafo a tinta preta; papel branco, 1 folha; 28,4 x 21,4 cm. (Acervo João Chiarini, Centro Cultural Martha Watts, Unimep).

São Paulo, 10 de fevereiro de 1945.

Meu Caro Chiarini.

Só agora posso acusar recebimento sua carta e recortes. Muito obrigado por tudo. A conferência creio que não posso fazer, ando tão sem jeito, negando, negando pra todo lado. Se aceitasse abria um precedente danado.

Guardei os recortes com muito carinho pra meu uso. Mas quando?... Quando poderei mexer nessas coisas!... Aliás, sei que você vinha preparando um livro folclórico sobre o cururu, como vai ele? A sua terminologia musical é muito indecisa, creio que já lhe falei nisso. É natural porque você não é especialista. Ainda nestes recortes reparo nisso. “O cururu é uma festa cantada e musicada de fundo folclórico”, você principia um dos artigos. O que você quer dizer com isso? Se é “cantada”, é necessariamente “musicada”. Eu temo6 6 Rasura: “tenho”. que o seu livro traga incertezas assim, porque fatalmente falará muito de música. Se você quiser depois de pronto ele, eu me ofereço pra ler os originais e controlar suas expressões musicais7 7 “musicais”, acrescentado em uma segunda etapa de escrita. . Estou às suas ordens com o maior prazer, gosto de ajudar. E é só por hoje. Com o abraço grato do

Mário de Andrade.

Carta datada: “S. Paulo, 10-II-45”, autógrafo a tinta preta; papel branco; 1 folha; 28,4 x 21,4 cm. (Acervo João Chiarini, Centro Cultural Martha Watts, Unimep).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • CHIARINI, João. Cururu. Revista do Arquivo Municipal. Ano XIII, vol. CXV, Julho/Agosto/Setembro de 1947, p. 81-198; para a citação p.86.
  • ELIAS NETO, Cecílio. Almanak de Piracicaba, Suplemento de A Tribuna de Piracicaba, agosto de 1996, p.1.
  • CAMILOTTI, Virginia. “necessariamente ‘musicada’”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 67, p. 270-274, ago. 2017.
  • 1
    O acervo de Chiarini inicialmente ficou sob a guarda e nas dependências do antigo jornal O Diário de Piracicaba, depois, foi para o prédio da Faculdade de Odontologia, na rua D. Pedro; em seguida e por muito tempo, nas salas do antigo Fórum de Piracicaba, na rua do Rosário, onde se instalaram a Academia Piracicabana de Letras e o Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba. Cf. ELIAS NETO, Cecílio. Almanak de Piracicaba, Suplemento de A Tribuna de Piracicaba, agosto de 1996, p. 1.
  • 2
    Criado em 30 de maio de 1945 e declarado de utilidade pública pela lei n. 303, de 9 de junho de 1949, do governo do Estado de São Paulo.
  • 3
    Nos termos do próprio João Chiarini, cururu é “disputa, combate poético”. Cf. CHIARINI, João. Cururu. Revista do Arquivo Municipal. Ano XIII, vol. CXV, Julho/Agosto/Setembro de 1947, p. 81-198; para a citação p.86.
  • 4
    Trata-se do Projeto de Mário de Andrade que até a altura de seu falecimento havia concluído 3.600 verbetes. A partir dos manuscritos deixados pelo escritor, atualmente no patrimônio do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, o projeto seria levado a termo por Oneyda Alvarenga e Flavia Camargo Toni, sendo publicado, em 1986, pela Editora Itatiaia.
  • 5
    Sob o pseudônimo de O Patriota, Chiarini participou do Concurso de Monografias sobre o Folclore Musical Brasileiro, patrocinado pelo Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, em 1946, com um estudo monográfico sobre o cururu, publicado na Revista do Arquivo Municipal. Ano XIII, vol. CXV, jul/ago./set. de 1947, p. 81-198 e em separata pelo próprio Departamento de Cultura. Na segunda carta, Mário menciona um livro sobre o tema, mas não há indícios dele, apenas esse estudo.
  • 6
    Rasura: “tenho”.
  • 7
    “musicais”, acrescentado em uma segunda etapa de escrita.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017
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