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As ninfas dos mares de cá: a ninfa pagã e seu exílio nos trópicos

The nymphs of the seas here: the pagan nymph and her exile in the tropics

RESUMO

O presente artigo tem como mote as chamadas ninfas na arte brasileira do século XIX. Para cumprir tal desígnio, parte-se das premissas teóricas de dois historiadores da arte, Aby Warburg e Georges Didi-Huberman. Foram, então, abordadas quatro personagens outrora literárias que se transformaram em personagens pictóricas pelos pincéis de renomados artistas brasileiros: Lindoia, Moema, Iracema e Marabá. Nas telas de José Maria de Medeiros, Victor Meirelles, Antônio Parreiras e Rodolfo Amoedo, buscamos encontrar a ninfa pagã em seu exílio nos trópicos.

PALAVRAS-CHAVE
Ninfa; arte brasileira; século XIX

ABSTRACT

The motto of this article is the so-called nymphs in Brazilian art of the 19th century. To fulfill this purpose, it departs from the theoretical premises of two art historians, Aby Warburg and Georges Didi-Huberman. Four formerly literary characters were then approached who were transformed into pictorial characters by the brushes of renowned Brazilian artists, namely: Lindoia, Moema, Iracema and Marabá. On the canvases of José Maria de Medeiros, Victor Meirelles, Antônio Parreiras and Rodolfo Amoedo, we seek to find the pagan nymph in her exile in the tropics.

KEYWORDS
Nymph; Brazilian art; 19th century

Breves dizeres sobre as ninfas

A ninfa não constitui nova personagem. Foi no século XIX que um historiador da arte, que costumava falar com as borboletas (DIDI-HUBERMAN, 2015DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa fluida: essai sur le drapé-désir. Paris: Gallimard, 2015., p. 100), fez dela sua personagem teórica. Estranhamente, de tanto perseguir as ninfas, o historiador da arte alemão Aby Warburg também se transformou numa espécie de personagem dessa intensa área de conhecimento sobre a qual tanto pesquisou, escreveu e teorizou. Quando jovem, abriu mão - em favor de seu irmão - de sua condição de herdeiro natural do banco pertencente a sua família por ser primogênito, conquistando estabilidade financeira para poder comprar todos os livros que desejasse (LESCOURRET, 2013LESCOURRET, Marie-Anne. Aby Warburg ou la tentation du regard. Paris: Éditions Hazan, 2013., p. 25). E esses livros foram muitos e muitos, tantos que passaram a compor a Kulturwissenschaftliche Bibliothek, fundada por ele no ano de 1924, na cidade de Hamburgo, ao lado da residência familiar (CHECA, 2010CHECA, Fernando. Introducción. In: SETTIS, Salvatore. Warburg continuatus: descripción de una biblioteca. Barcelona: Ediciones de La Central, 2010, p. 7-23., p. 8). Essa biblioteca veio a se transformar no renomado Warburg Institute, transladado de Hamburgo para Londres em decorrência do nazismo no ano de 1933 (SETTIS, 2010SETTIS, Salvatore. Warburg Continuatus: descripción de una biblioteca. Barcelona: Ediciones de La Central, 2010., p. 55).

No entanto, o primeiro encontro travado entre Aby Warburg e as ninfas não se deu no interior da sala oval de sua biblioteca, mas diante de dois dos afamados quadros de Sandro Botticelli (1445-1510), sobre os quais o historiador da arte defendeu sua tese doutoral, em 1892, na Université de Strasbourg, sob a orientação de Hubert Janitschek (RECHT, 2012RECHT, Roland. L’Atlas mnemosyne d’Aby Warburg. In: WARBURG, Aby. Atlas mnemosyne. Paris: l’Écarquillé, 2012., p. 8): O nascimento de Vênus (1486) e A primavera (1482). Na tese, a ninfa parece percorrer muitas páginas, todavia ganha nome e destaque somente em sua terceira parte: “III Motivação externa dos quadros: Botticelli e Leonardo” (WARBURG, 2015aWARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a., p. 74).

Sem sombra de dúvidas, o texto mais conhecido, e mais poético, que Aby Warburg redigiu sobre as ninfa foi a correspondência fictícia entre ele e o linguista alemão André Jolles: a Ninfa fiorentina, de 1901 (WARBURG, 2015bWARBURG, Aby. Domenico Ghirlandaio. Lisboa: KKYM, 2015b., p. 5). A ninfa de 1901 não era mais a dos quadros de Botticelli, mas a pintada por outro destacado artista do Quattrocento florentino: Domenico Ghirlandaio (1449-1494). Nos afrescos da Igreja Santa Maria Novella, lá estava ela, em O nascimento de São João Batista (1490), na inquietante figura da criada que entra e movimenta a cena do nascimento do primo de Jesus Cristo. A impetuosa donzela cujas roupas reportam a um relevo do mundo antigo fez Jolles questionar Warburg:

Quem é? De onde ela vem? Talvez já a tenha encontrado antes, 1.500 anos atrás? Descende de uma nobre linhagem grega? E a sua antepassada tem talvez relação com alguém da Ásia Menor, do Egito ou da Mesopotâmia? Mas, sobretudo: chegarão as cartas endereçadas a: A ninfa que corre [...]?. (JOLLLES, 2018JOLLES, André. A Ninfa: uma troca de cartas entre André Jolles e Aby Warburg. In: WARBURG, Aby. A presença do antigo: escritos inéditos. V. 1. Campinas, Editora da Unicamp, 2018, p. 65-78., p. 9).

Décadas mais tarde, em 1927, Aby Warburg começou a compor várias imagens de ninfas nas pranchas negras do Bilderatlas mnemosyne (WARBURG, 2010WARBURG, Aby. Atlas mnemosyne. Madrid: Ediciones Akal, 2010.) no interior da sala oval de sua biblioteca. No atlas de imagens, elas fizeram parte de montagens de distintas pranchas sob díspares apresentações. A ninfa foi dada a ver em relevos da Antiguidade clássica, em pinturas do Renascimento italiano e até mesmo em imagens fotográficas do século XX, como bem demonstra a prancha número 77. Torna-se difícil explicar em poucas frases no que constituem as ninfas. Na mitologia clássica, elas eram divindades menores que tinham diferentes formas e nomes. Eram vinculadas às águas e às florestas (AGAMBEN, 2010AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. Valência: Pré-Textos, 2010., p. 40). No entanto, as “ninfas identificadas por Warburg transcendiam esses amplos atributos. Vênus, Vitória, Hora, Aura, Ménade, Judith ou Salomé atravessavam os quadros do Renascimento em múltiplas identificações iconográficas” (SZIR, 2019SZIR, Sandra. La ninfa. In: BURUCUA, José Emilio. Ninfas, serpientes, constelaciones: la teoría artística de Aby Warburg. Buenos Aires: Museo Nacional de Bellas Artes, 2019, p. 22-43, p. 24 - tradução própria).

Aby Warburg morreu no ano de 1929, mas as ninfas e a sua relação com elas sobreviveram através das páginas redigidas por ele, seja pela forma organizada de sua tese seja pela forma fragmentada de grande parte de seus escritos. Alguns historiadores da arte continuaram a escrever sobre as ninfas warburguianas, mas um deles merece especial destaque, pois resolveu tomá-las para si.

O historiador da arte francês Georges Didi-Huberman (2013aDIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questões colocadas ao fim de uma história da arte. São Paulo: Editora 34, 2013a.; 2013bDIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e o tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013b.) iniciou seus escritos sobre as ninfas de forma quase que despretensiosa, como em determinadas referências acerca das obras de Aby Warburg em Diante da imagem: questões colocadas ao fim de uma história da arte, cuja primeira edição data de 1990, e em Imagem sobrevivente: história da arte e o tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg, de 2000. Mas foi no ano de 2002 que ela se tornou objeto central de um de seus livros, em Ninfa moderna: essai sur le drape tombe (DIDI-HUBERMAN, 2002DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna: essai sur le drape tombe. Paris: Gallimard, 2002.). Em 2015, tal título, até então isolado, transformou-se numa série publicada pela Editora Gallimard composta de: Ninfa fluida: essai sur le drapé-désir (2015), Ninfa profunda: essai sur le drapé-tourmente (2017) e Ninfa dolorosa: essai sur la mémoire d’un geste (2019).

“Memória, desejo e tempo: a ninfa atravessa a história da arte warburguiana como um verdadeiro organismo enigmático” (DIDI-HUBERMAN, 2002DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna: essai sur le drape tombe. Paris: Gallimard, 2002., p. 10 - tradução própria). As ninfas, em Didi-Huberman, deixaram de ser exclusivamente as ninfas descritas por Warburg, ganhando outras formas e outras apresentações possíveis. E as perguntas elaboradas por Aby Warburg recebem uma sequência, não de respostas, mas de outras tantas perguntas: “Ninfa, Aura, Gradiva... Para onde vão todas as ninfas desse sutil panteão (panteão da memória e do tempo, do vento e do drapeado, do luto e do desejo)?” (DIDI-HUBERMAN, 2002DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna: essai sur le drape tombe. Paris: Gallimard, 2002., p. 11 - tradução própria). Continuamos sem saber quem elas são ou de onde elas vêm. Sabemos apenas que elas vêm de longe e são incapazes de morrer por completo. A ninfa é a heroína do Nachleben warburguiano. A sobrevivência, a supervivência daquilo que não cessa de vir de longe, que é incapaz de morrer por completo.

As ninfas dos mares de cá

Um oceano nos separa, mas também nos une. O oceano Atlântico, com suas profundezas e tormentas, fez aqui chegar uma porção de gente e, com essa gente, seus hábitos, poderes e terrores. Através dos mares, os continentes se comunicaram, se contaminaram de uma maneira quase inimaginada. Atrocidades foram cometidas. Genocídio, trabalho escravo, dominação do outro. Mas as ninfas também nos ensinam que não existe beleza pura, nem simples. Para pintar O nascimento de Vênus, Sandro Botticelli baseou-se no texto de Homero e de Poliziano. Este último descreveu o caos do nascimento da deusa do amor, o rodopiar dos planetas e as tormentas no mar Egeu. A Vênus nasce de um mar em tormenta, repleto de sangue e esperma da castração de Urano por seu filho Saturno (DIDI-HUBERMAN, 1999DIDI-HUBERMAN, Georges. Ouvrir Vénus: Nudité, rêve, cruauté. Paris: Gallimard, 1999., p. 48).

As ninfas dos mares de cá, da mesma forma, nasceram em meio a sangue e esperma de um mar repleto de fúrias. O nosso mar, o nosso oceano Atlântico, na modernidade, é marcado por fluxos e trocas culturais (GILROY, 2001GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001.). Dessas trocas, desses fluxos e refluxos, surgiram muitas coisas, coisas das quais muitas vezes não nos orgulhamos. E outras, que, apesar das suas impurezas e de seus problemas, aprendemos a admitir como nossas. E nessas tantas viagens marítimas, compostas de idas e vindas, situamos nosso primeiro cenário - a cidade do Rio de Janeiro, que acolhe o maior porto escravista de todo o Atlântico e ao mesmo tempo sedia a primeira academia de arte do país, a segunda a ser fundada em toda a América Latina. “A contaminação líquida do mar envolveu tanto mistura quanto movimento” (GILROY, 2001GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001., p. 15).

Se pensarmos num histórico de construção do que nesta pesquisa chamamos de ninfas brasileiras, partimos do século XIX e da cidade do Rio de Janeiro, na qual aportou - após breve estada em Salvador - a corte de D. João VI, no ano de 1808, e que foi sede - ou palco - de seus vários atos durante a permanência da corte portuguesa no Brasil. Atos que tinham como objetivo conferir à cidade e ao país, que à época ensaiava seus contornos, uma infraestrutura compatível com a das nações europeias (MALERBA, 2000MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.). Entre as fundações joaninas, estava a Escola Real de Artes e Ofício, instituída ainda no ano de 1816, que, criada “no bojo da chamada Missão Francesa, teve, no entanto de esperar dez anos para ser efetivamente aberta, em 1826, já como Academia Imperial de Belas Artes” (PEREIRA, 2016PEREIRA, Sônia Gomes. Arte, ensino e academia: estudos e ensaios sobre a Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2016., p. 29). A Academia intentava modificar o sistema artístico no país, estando ele, no período colonial, praticamente concentrado na produção religiosa e na construção de fortificações e engenhos. “A academia em 1826 seguia, sem dúvida alguma, o modelo francês. Ela consolidou no Brasil o ensino artístico em moldes formais, em oposição ao aprendizado empírico dos séculos anteriores” (PEREIRA, 2016PEREIRA, Sônia Gomes. Arte, ensino e academia: estudos e ensaios sobre a Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2016., p. 34). O ensino formal englobava o desenho na estruturação da obra, a composição de paisagens e o estudo criterioso do corpo humano.

A Academia Imperial de Belas Artes (Aiba) alcança notável prestígio principalmente durante o Segundo Império (1840-1889), momento em que se deseja construir uma iconografia para a nação nascente. Tratava-se da fabricação de um projeto histórico. No período, são notórias as encomendas oficiais, principalmente de pinturas históricas. Outros gêneros pictóricos, característicos da arte europeia, são também introduzidos no país. A primeira imagem de nu feminino dessa arte oficial data do ano de 1863, o óleo sobre tela A carioca (1863), pintado por Pedro Américo (1843-1905) entre os anos de 1862 e 1863 em Paris. Contrariando nossa primeira impressão, a tela não apresentava uma habitante da cidade do Rio de Janeiro. A carioca, pela sinuosidade do corpo, consistia numa alegoria do rio homônimo que banhou a cidade do Rio de Janeiro até o início do século XIX, época em que foi canalizado (OLIVEIRA, 2013OLIVEIRA, Claudia de. “A carioca” de Pedro Américo: gênero, raça e miscigenação no Segundo Reinado. Caiana: Revista electrónica de Historia del Arte y Cultura Visual del Centro Argentino de Investigadores de Arte (CAIA), n. 2, año 2013, p. 1-8., p. 6).

Naquele mesmo século XIX, artistas que eram pares de Américo na Aiba passaram a pintar, e a esculpir, personagens do chamado indianismo - literatura romântica característica do Brasil oitocentista. Como é sabido, o indianismo iniciou-se com a palavra escrita e tinha como primordial objetivo exaltar a figura do indígena pela nobreza de caráter e heroísmo (COLI, 2013COLI, Jorge. Fabrique et promotion de la brésilianité: art et enjeux nationaux. Perspective: La revue de l’INHA, v. 2, 2013, p. 213-223., p. 216). Na literatura, os indígenas não estiveram de imediato relacionados ao nacionalismo. Nas suas iniciais apresentações textuais, estavam envoltos nas narrativas acerca da conquista portuguesa, como é notório nos cantos de José Basílio da Gama (1741-1795), em O Uraguai (1769), ou nos versos de Caramuru (1781), redigidos pelo Frei Santa Rita Durão (1722-1784). Contudo, a incorporação, tanto na literatura, como nas artes plásticas, data do século XIX. Foi no decorrer daquele século que indígenas foram apresentados com enfoque romântico e inseridos no mito de origem de uma história nacional. No entanto, cabe ressaltar que, de forma alguma, a exaltação romântica literária ou pictórica estendia-se ao indígena “de carne e osso”, tal qual ocorre em diferentes países latino-americanos nesse período, que têm a exaltação do indígena num chamado “indianismo historicista”. “Nada disso tinha muito a ver com o lamentável estado dos índios, muitos agora vivendo um piores condições do que antes” (ADES, 1997ADES, Dawn. Arte na América Latina: a era moderna, 1820-1980. São Paulo: Cosac & Naify, 1997., p. 35)

As artes plásticas oitocentistas tomam de empréstimos as figuras narradas pela literatura dos séculos XVIII e XIX e criam os personagens que começam a se fazer presentes nas telas que figurariam essa “origem do brasileiro” ou, no caso desta pesquisa, “da brasileira”. A mulher indígena é eleita como musa, e a ela são acrescentadas a paisagem tropical e a mitologia do amor romântico. Entre as personagens do chamado indianismo brasileiro, neste artigo vamos abordar quatro delas: Lindoia, Moema, Iracema e Marabá.

A ninfa e a serpente - Lindoia

No ano 1882, o artista José Maria de Medeiros (1849-1925) pinta o óleo sobre tela intitulado Lindoia, personagem anteriormente descrita nos versos de José Basílio da Gama. Anos depois de ser descrita numa das obras literárias que narrou, de forma romanceada, a disputa do território da América Portuguesa entre jesuítas, indígenas e europeus, a personagem de Gama ganhou os pincéis do então professor de desenho figurado da Aiba, cargo que ocupou entre 1879 e 1891. O pintor não era brasileiro de nascimento, tendo nascido na Ilha de Faial do arquipélago português dos Açores (CAVALCANTI, 2011CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. “Iracema” de José Maria de Medeiros - entre pintura histórica e pintura de paisagem. Revista Z cultural (UFRJ), v. n. 1, 2011, p. 1-10., p. 2) e se mudado, em 1885, para a cidade do Rio de Janeiro, onde cursou o Liceu de Artes de Ofícios e posteriormente a Aiba (AYALA, 1986AYALA, Walmir. Dicionário de pintores brasileiros. Rio de Janeiro: Spala, 1986., p. 750).

Figura 1
José Maria de Medeiros. Lindoia, 1882. Óleo sobre tela, 54,5 x 81,5 cm. Instituto Ricardo Brennand, Recife

No óleo sobre tela, a composição do cenário é paradisíaca. Uma floresta magnífica cuja serpente, apresentada em primeiro plano, faz-nos remeter ao éden bíblico. Envolta na serpente temos a protagonista da tela. O corpo nu da jovem mulher é apresentado em primeiro plano rodeado pela paisagem. A figura é destacada por um fecho de luz que ilumina a cena. A composição corpórea feminina é demasiado musculosa para a época em que foi pintada. O posterior da coxa e os glúteos apresentam-se de forma a marcar volumetricamente os músculos, tal qual a zona peitoral.

A obra recebeu elevado número de críticas à época. Ladislau Netto, na Gazeta de Notícias, escreveu que Medeiros deveria dedicar-se de forma mais esmerada à pintura realista da paisagem. A tela também recebera apreciação negativa na Revista Illustrada. Nas páginas do periódico - muito provavelmente escritas por Angelo Agostini -, a composição da tela é descrita como sofrível (SILVA, 2016SILVA, Maria Antonia Couto da. A repercussão da Exposição do Liceu de Artes e Ofícios realizada em 1882. Revista de História da Arte e Arqueologia, v. 21, 2016, p. 125-145., p.129). O principal elemento criticado foi justamente o corpo em primeiro plano, julgado como incorreto, tanto pelo emprego da cor como pelos arranjos do desenho (SILVA, 2016SILVA, Maria Antonia Couto da. A repercussão da Exposição do Liceu de Artes e Ofícios realizada em 1882. Revista de História da Arte e Arqueologia, v. 21, 2016, p. 125-145., p. 134-135). Tais críticas, advindas da prensa periódica brasileira, datam do ano de 1882 - ano em que a tela Lindoia foi pela primeira vez apresentada, na Exposição Geral do Liceu de Artes e Ofícios.

Medeiros apresenta um nu em escorço. O corpo de Lindoia apresenta-se dramaticamente atirado ao chão. O senso de horizontalidade relaciona a tela a muitas outras obras da história da arte ocidental. Giorgione (1477-1510), ainda no século XVI, de certa forma, inauguraria tal tipologia de composição com Vênus adormecida (1510), mais conhecida como Vênus de Dresden. O artista renascentista pinta a deusa do amor dormindo em meio a uma paisagem. “Em Giorgione, é evidente uma ninfa ou Vênus - apenas os deuses, as ninfas e os sátiros ficam nus na natureza” (ARASSE, 2019ARASSE, Daniel. Nada se vê: seis ensaios sobre a pintura. São Paulo: Editora 34, 2019., p. 104). Um quarto de século mais tarde, Ticiano (1490-1576), baseado na composição de Giorgione, apresentou sua Vênus de Urbino (1538) completamente nua, desperta e no interior de um palácio veneziano (ARASSE, 2016ARASSE, Daniel. História de pinturas. Lisboa: KKYM , 2016., p. 149).

Segundo Didi-Huberman, a ninfa - como a aura benjaminiana - declina com os tempos modernos. Se, na Antiguidade, ela foi preferencialmente apresentada em sua verticalidade, nos tempos modernos, exibiu-se em movimento de queda. “A questão então se torna em saber até onde a Ninfa é capaz de cair. A Ninfa clássica, já, se lançava sobre o solo, se inclinava, se deitava voluntariamente” (DIDI-HUBERMAN, 2002DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna: essai sur le drape tombe. Paris: Gallimard, 2002., p. 11 - tradução própria). Para tal problematização, o historiador da arte baseou-se numa imagem que outrora fora montada na prancha 4 do Atlas mnesmosyne (WARBURG, 2010WARBURG, Aby. Atlas mnemosyne. Madrid: Ediciones Akal, 2010., p. 21), uma escultura de Cleópatra que consiste numa cópia romana - de 130-140 d.C. feita por um artista desconhecido - de uma obra grega do século II a. C. original da escola de Pérgamo.

Na obra esculpida em mármore, podemos ver um corpo feminino envolto em um levíssimo tecido drapeado, uma túnica cujas formas deixam um de seus seios à mostra. A figura feminina declina-se em direção ao chão e aparentemente está adormecida. Seu braço direito está estendido sobre a cabeça que, por sua vez, está apoiada pelo braço esquerdo formando uma base piramidal. Suas pernas estão estendidas e dobradas. As serpentes podem ser percebidas em dois locais da mesma imagem, relacionando, dessa forma, a obra escultórica a Cleópatra. De tal feita, entendemos que a mulher não está adormecida, mas morta.

Cleópatra, tal qual Lindoia, suicida-se. No entanto, ao contrário de Lindoia, uma personagem literária, Cleópatra teve existência de fato. Cleópatra VII (69-30 a. C.), governante do Egito, que teve afamada relação amorosa com o general romano Marco Antônio (83-30 a. C.), é historicamente conhecida por suicidar-se logo após saber da suposta morte do amado. Todavia, se a rainha do Egito foi uma mulher de “carne e osso”, que teve existência física no século I a. C., ela se transformaria numa espécie de “personagem” da história. Ainda na Antiguidade sua trajetória foi escrita por Plutarco (46-120 d.C.) em Vidas paralelas. A conhecida rainha do Egito Antigo foi também feita imagem em diferentes tempos históricos. “Como exemplos, a peça Antony and Cleopatra de William Shakespeare (1623), o quadro Cleópâtre et César de Jean-Léon Gérôme (1866), a trilogia literária Memoirs of Cleopatra de Margaret George (1997) e o filme Cleópatra de Júlio Bressane (2007)” (BALTHAZAR, 2013BALTHAZAR, Gregory da Silva. A(s) Cleópatra(s) de Plutarco: as múltiplas faces da última monarca do antigo Egito nas Vidas paralelas. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2013., p. 17).

Cleópatra também serviu de referência para José Basílio da Gama compor a personagem Lindoia, ao menos no que se relaciona a sua morte: “Fastosa egípcia, que o maior triunfo/ Temeste honrar do vencedor latino” (GAMA, 2009GAMA, Basílio da. O Uraguai. São Paulo: Via Lettera, 2009., p. 34). Lindoia, por sua vez, constitui uma personagem. Personagem pictórica e, antes disso, literária. Sua existência confina-se em páginas e telas.

Tendo ambas as personagens existência “real” ou não, suas tramas foram finalizadas com semelhante ato final: tiveram suas vidas abreviadas pelo veneno de uma víbora. Lindoia e Cleópatra induziram serpentes a morderem e envenenarem seus corpos. Na tela de José Maria de Medeiros, a serpente atravessa as costas de Lindoia. Já na escultura de mármore da Antiguidade, a víbora forma um bracelete que contorna o braço direito da imagem feminina. Torna-se interessante observar que a mencionada escultura deveras conhecida como Cleópatra fora, no século XVIII, associada a outra personagem feminina: Ariadne. Como bem disserta Jaqueline Namorato Afonso Leitão (2021LEITÃO, Jaqueline Namorato Afonso. Cleópatra, ninfa e Ariadne: uma biografia da escultura dos Museus do Vaticano. Dissertação (Mestrado em Artes). Programa de Pós-Graduação em Artes, Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2021., p. 124), a escultura em questão - atualmente intitulada Ariadne - foi identificada “como Cleópatra, logo associada à iconografia da ninfa adormecida, [o que] levou muito tempo para se desfazer; foram quase três séculos, da sua aquisição em 1512 até a sua atual denominação publicada no catálogo de Ennio Quirino Visconti (1751-1818) em 1784”. A obra atualmente faz parte do acervo dos Museus do Vaticano e foi identificada como Cleópatra justamente pela serpente que compunha uma joia da imagem de forma análoga ao Retrato de Simonetta Vespucci (1490), de Piero de Cosimo (1462-1522), cujo colar era envolto numa serpente. Tela está mencionada na tese de Aby Warburg como Simonetta Vespucci (1453-1476), que por sua vez foi identificada e descrita como ninfa no mesmo trabalho (WARBURG, 2013WARBURG, Aby. A renovação da Antiguidade pagã, contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu. Rio de Janeiro, Editora Contraponto, 2013., p. 78).

Voltando à tela pintada por José Maria de Medeiros, a serpente e a composição da obra nos fazem, ao menos inicialmente, identificar Lindoia com outra personagem deveras frequente da história da arte ocidental: Eva. Tal relação tem como alicerce dois elementos centrais: a nudez do corpo feminino e a paisagem edênica, como anteriormente mencionado. Mas, se nossos olhares logo ultrapassam o primeiro plano do quadro, identificam-se outras figuras humanas, o que nos faz refutar a tese de que se trataria da dita primeira de todas as mulheres. Existem outras figuras humanas no segundo plano da tela, longe de toda a luminosidade centralizada no corpo reclinado em primeiro plano. E o corpo de um homem, também nu, que nos faz retomar a trama descrita em O Uraguai (1769), de José Basílio da Gama.

O personagem que nos faz retornar ao texto épico é Caitutu, que na cena apresenta-se portando um arco, cuja flecha atravessa a serpente envolta na jovem moça. Pois bem, Lindoia é uma ninfa dos trópicos. E, como tal, sua história beira o trágico e o amor. Suas primeiras apresentações pictóricas deste lado do Atlântico estão envoltas na morte em virtude de uma trama amorosa. As ninfas por cá morrem.

Nossa heroína do Nachleben warburguiano, em sua encarnação como indígena, Lindoia, casa-se com o cacique Cacambo. A indígena de linhagem nobre é apaixonada por seu jovem e poderoso esposo, que é preso e em seguida envenenado pelo padre Balda, que, com a morte de Cacambo, torna cacique um apadrinhado, Baldetta, com quem Lindoia deveria casar-se antes mesmo de cumprir seu luto. Desesperada, a jovem recorre a uma feiticeira para reencontrar o amor perdido, que a leva para uma gruta e prepara uma poção com a água da fonte. Ao beber a água da feiticeira, ao invés de encontrar o cacique Cocambo morto, Lindoia tem visões do terremoto que acometera a cidade de Lisboa no ano de 1755. Prontamente, visualiza as benfeitorias incrementadas pelo Marquês de Pombal, como a reconstrução da capital portuguesa.

Em desacordo com o próximo enlace matrimonial, Lindoia adentra o antigo bosque e lá se faz morder por uma peçonhenta serpente, que lhe tira a vida. Seu irmão, Caitutu, desesperado, ao ver a cena, tenta acertar a cobra com suas flechas, mas apenas a terceira a mata, tendo o veneno da serpente matado antes sua bela irmã. Morre, então, Lindoia, envolta pela serpente verde em meio aos fúnebres ciprestes no remoto bosque.

Na cena apresentada por Medeiros, Lindoia não parece estar morta, mas adormecida, tal qual a escultura identificada como Cleópatra dos Museus do Vaticano ou tantas outras Vênus adormecidas e reclinadas que tomaram a cena artística europeia, principalmente depois do Renascimento, para as quais a escultura Cleópatra parece ter servido de referencial: “A colocação da estátua no Pátio do Belvedere, dentro de uma fonte sobre um sarcófago, foi simultânea à difusão de figuras de deusas reclinadas, ninfas e mênades adormecidas. A Vênus adormecida de Giorgione é citada como um exemplo por excelência” (LEITÃO, 2021LEITÃO, Jaqueline Namorato Afonso. Cleópatra, ninfa e Ariadne: uma biografia da escultura dos Museus do Vaticano. Dissertação (Mestrado em Artes). Programa de Pós-Graduação em Artes, Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2021., p. 53).

A ninfa e o mar - Moema

Tal qual Lindoia, Moema também “morre de amor”. A estreia de Moema como protagonista de uma tela histórica deu-se pelos pincéis habilidosos de outro pintor da Aiba: Victor Meirelles (1832-1903) . No entanto, a ninfa brasileira de Meirelles não fora pintada deste lado do oceano Atlântico, mas do lado de lá - em Paris, no ano de 1863. O mencionado pintor nasceu na cidade de Nossa Senhora do Desterro, atualmente Florianópolis, onde teve suas primeiras lições de desenho (ROSA; PEIXOTO, 1982ROSA, Ângelo de Proença; PEIXOTO, Elza Ramos. Biografia. In: ROSA, Ângelo de Proença et al. Victor Meirelles de Lima 1832-1903. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1982, p. 27-51, p. 27). Com ainda 15 anos incompletos, muda-se para a capital do Império, onde ingressa na Aiba no ano de 1847. Muitas aulas e lições depois, conquista uma bolsa de viagem com a tela São João Batista no Cárcere (1852) na Exposição Geral de Belas Artes de 1852. Desembarcou na Europa em 1853 e instalou-se primeiro em Roma e três anos depois em Paris.

Na tela Moema, vemos em primeiro plano um copo nu escultórico. Meirelles pinta a tela em Paris, mas segue “as inúmeras instruções da Academia Imperial de Belas Artes para o apuro de sua formação artística” (TURAZZI, 2009TURAZZI, Maria Inez. Um patrimônio e suas leituras. In: TURAZZI, Maria Inez (Org.). Victor Meirelles: novas leituras. São Paulo: Studio Nobel, 2009, p. 14-31., p. 16). O corpo feminino apresenta-se então na sua horizontalidade. A mulher parece ter sido cuidadosamente encaixada entre a água do mar e a areia da praia. As duas pernas estão estendidas, assim como seu braço esquerdo. O braço direito - que não é apresentado - provavelmente está deitado, já que sua mão direita está posta sobre a região abdominal. Suas partes genitais estão encobertas por um cocar. As formas arredondadas do quadril e dos seios colaboram para a construção de um corpo desejável e erótico. As pele foi pintada em tons terrosos, como se esperaria de uma heroína brasileira oitocentista.

Moema, tal qual outras personagens pictóricas, fora anteriormente uma personagem literária. Frei Santa Rita Durão (2003)DURÃO, José de Santa Rita. Caramuru: poema épico. Cidade: Editora, 2003. descreveu-a nos versos de seu poema épico Caramuru (1722-1784). O texto narra uma historieta ambientada no século XVI, na qual Diogo Álvares Correia, um jovem conquistador português, estabelece relação com os Tupinambás. O jovem, chamado pelos indígenas de Caramuru, residira por anos entre os Tupinambás, inclusive esposando Paraguaçu, a filha do cacique.

Figura 2
Victor Meirelles. Moema, 1866. Óleo sobre tela, 129 x 190 cm. Coleção Masp, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand

O texto romantiza a relação que Caramuru teve com muitas das indígenas que, segundo Durão, apaixonaram-se pelo jovem. No retorno a Portugal, Diogo Álvares Correia leva consigo Paraguaçu, sua esposa. Nos versos, descreve-se que Moema - irmã de Paraguaçu -, entre outras mulheres Tupinambás, atira-se ao mar e nada desesperadamente atrás do navio de Caramuru. Santa Rita Durão, em seu poema épico, já anunciara Moema como ninfa. Ele escreve que a moça morrera na baía com as belas ninfas.

No versos, Moema fora apenas coadjuvante. No entanto, Meirelles apresenta-nos a cena não descrita no poema. Constrói um belo corpo feminino escultórico e o coloca em primeiro plano. Na tela Moema, as referências pictóricas se sobressaem às literárias. Meirelles não pintou nem a primeira nem a última versão de Moema, mas em sua tela a personagem alcançou memorável evidência. Pelos pincéis de Victor Meirelles, uma entre tantas personagens do poema épico Caramuru (1784) transforma-se em protagonista. Segundo Alexander Gaiotto Miyoschi, a primeira versão imagética da personagem antes literária foi pintada em menores dimensões num quadro que apresentava a história de Caramuru. A imagem, sem datação, situava-se outrora na Igreja da Graça em Salvador (MIYOSHU, 2010MIYOSHI, Alexandre Gaiotto. Moema é morta. Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010., p. 17).

A Moema de Victor Meirelles faz alusões a diferentes nus da arte ocidental. Sua composição faz referência tanto a fórmulas clássicas de nus reclinados do Renascimento, quanto a muitas telas do século XIX, como Mulher com papagaio (1866), de Gustave Courbet (1819-1877), e O nascimento de Vênus (1863), de Alexandre Cabanel (1823-1889). Jorge Coli (1998)COLI, Jorge. A pintura e o olhar sobre si: Victor Meirelles e a invenção de uma História visual no século XIX brasileiro. In: Marcos Cezar de Freitas. (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. V. 1. 1. ed. São Paulo: Contexto, 1998, p. 375-404. sublinha que ambas as telas abordaram o exotismo, também visível através dos habilidosos pincéis do artista brasileiro.

A tela Moema teve sua exibição pública no Brasil na Exposição de Belas Artes de 1866. Nela, alcança as graças da crítica de arte e do próprio imperador, D. Pedro II, que adquire a obra nessa ocasião. Alguns anos depois, Rodolfo Bernardelli (1852-1931) fez sua própria versão escultórica de Moema (1895) inspirado na pintura de Victor Meirelles.

Para Luciano Migliaccio (2015MIGLIACCIO, Luciano. A arte no Brasil entre o Segundo Reinado e a Belle Époque. In: BARCINSKI, Fabiana Werneck (Org.). Sobre a arte brasileira da Pré-história aos anos 1960. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 174-231., p. 181), na afamada tela Meirelles “consegue concentrar no corpo feminino reflexões históricas acerca do destino de todo um povo e de uma cultura. As Iracemas e Marabás de Rodrigues Duarte, de Amoedo e de Parreiras ecoam a mesma triste poesia, que Meirelles soube primeiro intuir”. Meirelles apresenta o nu feminino na paisagem, tema caro e recorrente na arte oriental. Todavia o pinta numa versão brasileira e trágica. Dá-nos a ver uma espécie de “Vênus indígena”. Sua Vênus não nasce como a deusa do amor de Botticelli ou de Cabanel, mas morre. Tal qual como na história narrada pelo Frei Santa Rita Durão, a imagem de Meirelles também encontra, ao final, a morte. Victor Meirelles pintou a mulher que morreu pelo homem que amara, por ter sido rejeitada por ele. Nossa Moema morre de amor, em boa verdade, de desamor, como desejável de uma heroína romântica.

A ninfa dos lábios de mel - Iracema

José Maria Medeiros e Antônio Parreiras (1860-1937) pintaram, cada qual, a heroína indígena descrita nas páginas de papel por José de Alencar (1829-1877). O óleo sobre tela Iracema (1881) foi pintado por José Maria de Medeiros quando ocupava a cadeira de professor de desenho figurado na Aiba. Como bem aponta Ana Maria Tavares Cavalcanti (2011)CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. “Iracema” de José Maria de Medeiros - entre pintura histórica e pintura de paisagem. Revista Z cultural (UFRJ), v. n. 1, 2011, p. 1-10., o ano de chegada do artista nascido no arquipélago dos Açores ao Brasil coincide com a primeira edição do romance Iracema (1865), obra que finalizaria a trilogia indianista do escritor cearense também composta de Ubirajara, cuja primeira publicação antecedia um ano, 1874, e O Guarani, de 1857.

Com o óleo sobre tela Iracema, José Maria de Medeiros recebeu a medalha de ouro da Exposição Geral de Belas Artes (PEREIRA, 2016PEREIRA, Sônia Gomes. Arte, ensino e academia: estudos e ensaios sobre a Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2016., p. 96). No primeiro plano da premiada tela, identificamos a protagonista descrita por Alencar. A indígena é encenada num nu acadêmico, ou seja, o pintor português utiliza os preceitos aprendidos e ensinados por ele na academia carioca para o constructo de tal corpo. Segundo Kenneth Clark (1956, p. 26),CLARK, Kenneth. O nu: um estudo sobre o ideal em arte. Lisboa: Ulisseia, 1956. “o nu não é assunto da obra de arte, mas forma de arte”.

Figura 3
José Maria de Medeiros. Iracema, 1883. Óleo sobre tela, 168,3 x 255 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro

Diferentemente da estatuária da Antiguidade, o que cobre a região pubiana da indígena Iracema não é sua mão direita, mas uma tanga composta de penas vermelhas, brancas e verdes. Sua mão e seu braço direito apresentam-se elevados e formam um triângulo que cobre seu seio direito. A figura feminina não está completamente nua, porta adornos. E o corpo não é voluptuoso e por isso foi, à época, criticado não só pelos professores da Aiba como também pela crítica de arte. Angelo Agostini julgou-a incapaz de provocar paixão no espectador (CAVALCANTI, 2011CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. “Iracema” de José Maria de Medeiros - entre pintura histórica e pintura de paisagem. Revista Z cultural (UFRJ), v. n. 1, 2011, p. 1-10., p. 4-5).

No entanto, a paisagem parece efetivamente ter atraído o olhar daqueles experientes espectadores, como o do crítico de arte Gonzaga , que assim descreve a Iracema de Medeiros em seu A arte brasileira (1995). “A tela era vasta - ao fundo uma montanha, à frente o mar, depois a praia onde está a flecha fincada na areia, traspassando um guaiamum e um ramo de maracujá, a flor da paixão, e defronte do ramo simbólico a filha dos Tabajaras” (GONZAGA, 1995GONZAGA, Duque. A arte brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995., p. 205). Sendo assim, na tela Iracema de Medeiros, o tema indianista recebeu como cenário uma cuidadosa e sensível natureza. No mar azul-esverdeado, quase conseguimos sentir as texturas da branca espuma que alcança a areia. Uma onda foi meticulosamente pintada, afastando-se da praia. A vegetação tropical parece englobar - quase abraçar - o cenário da praia paradisíaca no momento do pôr do sol. O céu azul iluminado faz um degradê até as tonalidades róseas ao encontrar o mar. Pela coloração, sabemos que o dia se finda e o sol se põe naquela paradisíaca praia cearense. Uma das mais potentes questões percebidas nas imagens de paisagem é o passar do tempo.

O mar, que em Botticelli ganhou ondas simploriamente pintadas no nascimento da deusa do amor. Ou que, nas palavras ou nos traços de Victor Hugo (1802-1885), teve intensa apresentação da tormenta. “Hugo tornou indissociáveis os três motivos da mulher como problema do desejo, do mar como meio de luta e, enfim, da morte como destino comum do desejo e da luta” (DIDI-HUBERMAN, 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa profunda: essai sur le drapé-tourmente. Paris: Gallimard, 2017., p. 8 - tradução própria). O mar de José Maria de Medeiros parece justamente anunciar o final da história contada na prosa de José de Alencar, na qual a bela Iracema encontra a morte como destino de sua luta amorosa.

O romance Iracema, narrado por José de Alencar, descreve uma historieta de amor ambientada no século XVIII. Como característica dos textos românticos, uma bela e jovem indígena enamora-se de um colonizador português, Martim. Iracema, “a virgem dos olhos de mel”, trava enlaço amoroso com Martim em meio à mata cearense. Do enlace, resulta uma gravidez indesejada. Todavia, o moço português tinha nítidos anseios de retornar à Europa. De tal feita, após o nascimento da criança - Moacir -, a protagonista Iracema definha e morre por tamanha tristeza. Como bom romance oitocentista, corrobora com a ideia de que o Brasil é um país mestiço. Nas palavras do próprio Alencar (1997ALENCAR, José. Iracema. São Paulo: Publifolha, 1997., p. 260), as várias raças fizeram “nesse exuberante solo o amálgama de sangue, tradições e línguas”. Assim sendo, Moacir é o primeiro cearense, filho da união entre “duas raças”, uma indígena e um português.

Mais de 20 anos depois de José Maria de Medeiros, outro artista fez da protagonista de José de Alencar a musa, ou melhor, a ninfa de sua tela. Antônio Parreiras pintou com a linguagem pictórica que lhe era própria outra Iracema, agora visivelmente em prantos. Antônio Diogo da Silva Parreiras, no ano de 1883, ingressou como aluno livre na Aiba, onde estudou até 1884 (AYALA, 1986AYALA, Walmir. Dicionário de pintores brasileiros. Rio de Janeiro: Spala, 1986., p. 168), ano em que passou a frequentar o grupo livre de pintura de George Grimm (1846-1887). Em 1888, conquistou o prêmio de viagem da Aiba e instalou-se na cidade de Veneza. Dois anos depois, retornou ao Brasil e teve outra curta colaboração na antiga Aiba - agora Escola Nacional de Belas Artes (Enba) - como professor de pintura de paisagens. Curta, pois acabou por se dedicar à Escola do Ar Livre, a qual fundou com o intuito de efetuar e ensinar a pintura de paisagens en plein air (GONZAGA, 1995GONZAGA, Duque. A arte brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995., p. 197).

Tal qual a tela de Medeiros, a de Parreiras também merece especial destaque pela paisagem. Na tela, é visível a prática da paisagem en plein air e as pinceladas largas e soltas. A primazia da cor é perceptível, é ela que dá plasticidade e concebe a imagem. Areia, pedras e árvores compõem praticamente toda a extensão da tela, ficando reservado ao céu menos de um quarto dela. O mar, que se espalhava na composição de Medeiros, aqui é apresentado numa porção ínfima, uma estreita faixa entre a clara areia e o céu repleto de nuvens brancas. Quatro troncos de árvore compõem a verticalidade esquerda da tela, e a vegetação rasteira verde rompe a luminosidade da areia e do céu.

Figura 4
Antônio Parreiras. Iracema, 1909. Óleo sobre tela, 60,5 x 93 cm. Museu de Arte de São Paulo

Na tela Iracema (1906) de Parreiras, a jovem mulher apresenta-se sentada sobre suas pernas, que, por sua, vez estão dobradas. O braço e a mão esquerda estão erguidos e formam um triângulo. A mão não cobre seus seios, mas o rosto da moça. Sua Iracema está em prantos. E nós sabemos de seu choro não apenas porque lemos as páginas escritas por José de Alencar. A gestualidade de seu corpo indica sua lamentação. Ela é uma Ninfa dolorosa (DIDI-HUBERMAN, 2019DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa dolorosa: essai sur la mémoire d’un geste. Paris: Gallimard, 2019.), a memória de seu gesto a relaciona com páthos, que foi problematizado por Aby Warburg. Georges Didi-Huberman escreve acerca desses páthos, dessas gestualidades emotivas. Segundo o historiador da arte francês, as emoções são também expressas por gestos que nós, seres humanos, efetuamos “sem nos darmos conta de que vêm de muito longe no tempo. Esses gestos são como fósseis em movimento. Têm uma história muito longa e muito inconsciente. Eles sobrevivem em nós, mesmo se somos incapazes de observá-los claramente em nós mesmos” (DIDI-HUBERMAN, 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa profunda: essai sur le drapé-tourmente. Paris: Gallimard, 2017., p. 32 - tradução própria).

Nas pranchas do Atlas mnemosyne, Aby Warburg montou uma constelação de imagens. Nelas, fazem-se perceptíveis expressões de emoções que atravessam a história, principalmente através dos gestos (DIDI-HUBERMAN, 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa profunda: essai sur le drapé-tourmente. Paris: Gallimard, 2017., p. 35). Na prancha 41a, Warburg dedicou-se ao tema da “Expressão do sentimento, morte do sacerdote” (WARBURG, 2010WARBURG, Aby. Atlas mnemosyne. Madrid: Ediciones Akal, 2010., p. 75). “Não por acaso, essa prancha é diretamente precedida por uma com numerosas montagens dedicadas à figura paradigmática da Ninfa: é um conjunto de imagens em que o motivo da feminilidade se aproxima perigosamente da negatividade violenta e mortífera” (DIDI-HUBERMAN, 2019DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa dolorosa: essai sur la mémoire d’un geste. Paris: Gallimard, 2019., p. 21 - tradução própria).

Figura 5
Andreas Schlüter. Escultura do Sarcófago do Rei Frederico I, 1712. Catedral de Berlim, 1712

Na Catedral de Berlim, uma escultura de bronze apresenta uma mulher com gestualidade similar à Iracema de Antônio Parreiras. A obra em questão foi esculpida por um conterrâneo de Aby Warburg, Andreas Schlüter (1658-1714). Sua ninfa dolorosa está em prantos pela morte de um homem, que não é um jovem português que retornará para a Europa, mas Frederico I (1657-1713), o rei da Prússia, já que se trata de uma escultura que compõe o sarcófago imperial

A pathosformel aqui apresentada expressa a dor do lamento, a tristeza revelada pelo corpo e o som do soluço que emerge do choro. Uma distância técnica, geográfica e temporal separa essas obras. Uma pintada por um artista brasileiro do século XIX; outra esculpida por um artista alemão do século XVIII. A Iracema de Medeiros está exposta numa das salas do Museu de Arte de São Paulo (Masp), e a outra parece continuar a chorar apoiada ao túmulo que tem ainda lugar na catedral de Berlim. Analisando bem as duas imagens, não vemos lágrima alguma, não vemos sequer a feição de seus rostos, mas seus gestos podem nos fazer afirmar que as duas ninfas choram e continuam a chorar. Da mesma forma que “Das bacantes pagãs às chorosas cristãs, passando pelas kinah judia ou a plena mulçumana, é todo o motivo - essencialmente trágico - de uma ninfa dolorosa que Warburg esboçava nas pranchas de seu atlas” (DIDI-HUBERMAN, 2019DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa dolorosa: essai sur la mémoire d’un geste. Paris: Gallimard, 2019., p. 21 - tradução própria).

A ninfa triste - Marabá

Marabá (1882) ganhou formas pelos pincéis do renomado artista baiano Rodolfo Amoedo (1857-1941) quando estava em estada na França, tal qual Victor Meirelles quando concebeu Moema. Amoedo residiu em Paris entre 1879 e 1887. Na capital francesa, ele se matriculou na École de Beaux-Arts e recebeu orientações de destacados nomes da época, como Alexandre Cabanel (1823-1889). A permanência na Europa foi custeada pela Aiba, tendo Rodolfo de Amoedo conquistado o Prêmio de Viagens ao Exterior, no ano de 1878, com a tela O sacrifício de Abel (AYALA, 1986AYALA, Walmir. Dicionário de pintores brasileiros. Rio de Janeiro: Spala, 1986., p. 43). Amoedo, que se dizia carioca, nasceu e cresceu na cidade de Salvador, na Bahia. Tendo se mudado para o Rio de Janeiro em 1868, na cidade carioca teve contato com o mundo das artes. Em 1873, ingressou no Liceu de Artes e Ofícios e, em 1874, na Aiba, onde foi aluno de pintura de Victor Meirelles. Na mesma academia foi nomeado professor honorário de pintura quando de seu retorno da França, em 1888, e lá ocupou cargos de direção após a proclamação da república.

Nossa Marabá, além de ter sido pintada na França, lá foi exposta pela primeira vez em 1882. Apenas dois anos depois, em 1884, foi dada a ver ao público brasileiro na Exposição de Belas Artes do Rio de Janeiro (JORGE, 2010JORGE, Marcelo Gonczarowska. As pinturas indianistas de Rodolfo Amoedo. Revista 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 2, abr. 2010. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/obras/ra_indianismo.htm. Acesso em: abr. 2023.
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, p. 5). Como as demais imagens aqui analisadas, Marabá foi primeiramente uma personagem literária para depois então tornar-se personagem pictórica, protagonista do poema homônimo que compunha a obra Últimos contos (1851) de Gonçalves Dias (1823-1864).

Segundo Barata (1983BARATA, Mário. Século XIX. Transição e início do século XX. In: ZANINI, Walter. História geral da arte no Brasil. V. 1. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles: Fundação Djalma Guimarães, 1983, p. 377-451., p. 618), “Em Marabá (1882) e O último tamoio (1883), telas igualmente pintadas em Paris, ele demonstrou o seu apego à expressão literária indianista, que chegaria tardiamente à pintura”. Ele teria conservado a mesma fatura e as mesmas convicções estéticas em diferentes temas que pintou desde então, tenham sido eles mitológicos, bíblicos, retratos, entre outros.

Figura 6
Rodolfo de Amoedo. Marabá, 1882. Óleo sobre tela, 171 x 120 cm. Museu Nacional de Belas Artes (MNBA)

Na tela, que atualmente integra o acervo do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), vemos em primeiro plano a imagem de um corpo feminino completamente nu, que ocupa a porção central da tela. Seus dois braços apoiam-se numa pedra, e sua cabeça dispõe-se sobre eles. Seu corpo apresenta-se reclinado, tal qual a Lindoia de José Maria de Medeiros. Seria mais uma ninfa em movimento de queda (DIDI-HUBERMAN, 2002DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna: essai sur le drape tombe. Paris: Gallimard, 2002., p. 11). Suas pernas foram apresentadas dobradas, estando a esquerda disposta sobre a direita. A composição corpórea forma uma espécie de zigue-zague e é iluminada por um foco de luz. Marabá é apresentada em meio à paisagem, como as demais personagens neste artigo analisadas. O quadril é relativamente avantajado se comparado às demais proporções corpóreas apresentadas, como, por exemplo, o torso. Vale salientar a formação acadêmica do artista e, com isso, sua experiência ao pintar corpos nus a partir de modelos vivos. Dessa feita, tal desproporção mimética do corpo provavelmente foi ocasional. E nos faz relacionar com um icônico nu da arte moderna europeia: A grande odalisca (1814), de Dominique Ingres (1780-1867).

O nu de Marabá pode ser considerado realístico, uma vez que sua heroicidade não se relaciona com uma idealização completa do corpo. O erótico na imagem está justamente colocado na carnalidade de um corpo feminino. Amoedo não pintou uma escultura, mas uma modelo. Seu olhar ligeiro direciona-se para fora das molduras do quadro. A boca rósea e volumosa está entreaberta. “Rodolfo de Amoedo serviu-se do mito indígena para garantir sua representação erótica e sensual do corpo feminino com a indicação literária” (BATISTA, 2010BATISTA, Stephanie Dahn. O corpo falante: narrativas e inscrições num corpo imaginário na pintura acadêmica do século XIX. R. Cient./FAP, Curitiba, v. 5, jan.-jun. 2010, p. 125-148., p. 142). Ele constrói, assim, um corpo nu envolto ao erotismo e ao realismo corpóreo, todavia ainda dentro do que podemos chamar de moralismo formal das academias de arte do século XIX. Sublinha-se que a crítica francesa à época foi bastante elogiosa à tela, tendo seu professor Alexandre Cabanel tecido elogios ao nu no salão parisiense de 1882.

A jovem mulher tem a pele clara e olhos castanho-escuros. Suas madeixas longas são ondulantes e acastanhadas. A alvura da pele causa certa estranheza, já que a personagem é uma mulher indígena. A crítica brasileira da época elenca justamente o problema da coloração que distancia Marabá de uma, chamada à época, mestiça. No entanto, ao buscar o poema, percebemos que Gonçalves Dias a descreve com características físicas deveras díspares, sendo ela, no poema, loira de olhos azuis (GONZAGA, 1995GONZAGA, Duque. A arte brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995., p. 185), descrição essa que corrobora com o mito de branqueamento racial, bastante em voga no Brasil do século XIX e sobre o qual geralmente é mencionada a obra A redenção de Cam (1895), de Modesto Broco (1852-1936).

Segundo Sonia Gomes Pereira, ao analisar as obras pintadas por Rodolfo de Amoedo durante seu pensionato na Europa no século XIX, vislumbra-se um mundo repleto de transformações. Mundo em que se estimavam valores relativos a diferentes culturas e épocas. “É neste contexto que o interesse pelas histórias, personagens e motivos nacionais aparece, abrindo espaço para valorização do elemento não europeu - no nosso caso, o indianismo, como vemos em Marabá (1882) e O Último Tamoio (1883)” (PEREIRA, 2011PEREIRA, Sônia Gomes. Arte brasileira no século XIX. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2011., p. 92).

No poema oitocentista, Marabá era filha de uma mulher indígena com um pai português. Segundo Gonçalves Dias, a jovem era considerada feia e exótica pelos demais indígenas e, por isso, não era aceita entre eles. A tela apresenta uma paisagem e um corpo iluminados. A economia de elementos no cenário potencializa a impressão de solidão da jovem. “O enquadramento escolhido por Amoedo transmite a sensação de confinamento, de opressão sobre a figura da mestiça. A perfeição da modelagem e das cores atribui um realismo impressionante para o nu” (JORGE, 2010JORGE, Marcelo Gonczarowska. As pinturas indianistas de Rodolfo Amoedo. Revista 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 2, abr. 2010. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/obras/ra_indianismo.htm. Acesso em: abr. 2023.
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, p. 119). Amoedo pinta uma mulher triste e perdida num mundo no qual não parece restar lugar para ela. Ela é uma ninfa que chora melancolicamente o seu não amor - no poema de Dias, a personagem lamenta por não travar enlace amoroso com guerreiro algum. Seu desamor é explicado pelo romancista em virtude de sua aparência de uma mulher quase branca, o que não desencadearia o desejo dos homens indígenas.

Marabá pode ser percebida como uma heroína nacional. No século XIX, principalmente a partir da independência, o indígena foi narrado e traçado como um símbolo do país. Richard Santiago Costa defende que o indígena foi visto como essencialmente brasileiro, pois sua chegada antecedeu a dos portugueses. Rodolfo de Amoedo recorre à literatura indianista justamente durante sua estada na Europa, tal qual fizera um dos seus mais notáveis professores na Aiba, Victor Meirelles. Sendo assim, pode-se afirmar que a partir dos pincéis de Meirelles e Amoedo o indígena heroico formador da nação recebe consistentes contornos (COSTA, 2008COSTA, Maria Edileuza da. Lindoia, Moema, Carolina, Iracema: mitos românticos da literatura brasileira. Interdisciplinar, ano 3, v. 7, n. 7, jul.-dez 2008, p.147-168.).

O cenário da obra é, da mesma forma, uma paisagem, como nas demais telas aqui analisadas. “Igualmente ele continua fiel na tradição da pastoral, mas essa contemplação do corpo feminino em torno da natureza passa para o segundo plano tendo um recorte extremamente focado no corpo” (BATISTA, 2010BATISTA, Stephanie Dahn. O corpo falante: narrativas e inscrições num corpo imaginário na pintura acadêmica do século XIX. R. Cient./FAP, Curitiba, v. 5, jan.-jun. 2010, p. 125-148., p. 143). Nossas jovens mulheres são apresentadas em meio à natureza, o que as qualifica não apenas como indígenas em seu ambiente por excelência, mas como ninfas.

Sobre seu exílio nos trópicos

Lindoia, Moema, Iracema e Marabá. Quatro personagens criadas pela literatura e feitas imagens pelas artes plásticas do século XIX e início do XX. José Maria de Medeiros, Victor Meirelles, Antônio Parreiras e Rodolfo Amoedo colaboraram para criar um imaginário dos indígenas como povo originário na história nacional. Essas ninfas românticas do indianismo contribuíram para compor uma visão idealizada que encobria as barbáries da colonização. Nossas belas e dolorosas ninfas, nas telas, lamentaram-se, sofreram e morreram por amor. Mas, em boa verdade, sabemos que não foi o amor não correspondido que as aniquilou, mas o processo sangrento que constituiu a colonização europeia nos trópicos.

As ninfas dos mares de cá, no século XIX, foram ninfas dolorosas. Podemos escrever que a situação se transformou em nosso século. Hoje, em 2023, as mulheres indígenas não constituem apenas imagens idealizadas em telas pintadas por homens brancos. Digamos que elas tomaram o pincel para si. Ao longo da escrita deste texto, uma artista esteve-me sempre em mente. Daiara Tukano (1982-) hoje apresenta a força e a potência de tantos outros nomes da Arte Indígena Contemporânea (AIC), artistas que compõem, mesmo que tardiamente, o atual cenário expositivo de artes em nosso país. Se as mudanças são visíveis, as permanências também o são. Daiara não foi descrita em versos de poemas épicos, nem em narrativas românticas, mas suas obras e sua vida estão sendo redigidas e analisadas em textos constituintes da história da arte brasileira. Essa artista também protagonizou uma relação amorosa, não com um jovem português, mas com outro destacado nome da AIC, Jaider Esbell (1979-2021), que nos deixou em 2021. E vem aí uma triste permanência. Nossa intensa ninfa Daiara Tukano continua a chorar - e chora por amor.

Referências

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  • AGAMBEN, Giorgio. Ninfas Valência: Pré-Textos, 2010.
  • ALENCAR, José. Iracema São Paulo: Publifolha, 1997.
  • AYALA, Walmir. Dicionário de pintores brasileiros Rio de Janeiro: Spala, 1986.
  • ARASSE, Daniel. História de pinturas Lisboa: KKYM , 2016.
  • ARASSE, Daniel. Nada se vê: seis ensaios sobre a pintura. São Paulo: Editora 34, 2019.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Ago 2023

Histórico

  • Recebido
    22 Fev 2023
  • Aceito
    11 Ago 2023
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