Acessibilidade / Reportar erro

O arquivo aberto do modernismo paulista

The open archive of Paulista modernism

BOAVENTURA, Maria Eugenia. Couto de Barros: a elite nos bastidores do modernismo paulista. . Cotia, SP: Ateliê Editorial, Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2022
BOAVENTURA, Maria Eugenia. Couto de Barros: o filósofo da malta (textos modernistas). . Cotia, SP: Ateliê Editorial, Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2022

RESUMO

Couto de Barros: a elite nos bastidores do modernismo paulista, de Maria Eugenia Boaventura, e Couto de Barros: o filósofo da malta (textos modernistas), organizado pela mesma autora, recolocam em cena uma figura importante, embora pouco lembrada, do grupo que organizou a Semana de Arte Moderna e atuou de forma decisiva na reconfiguração das letras, da cultura e da vida institucional de São Paulo. Com acesso ao arquivo de Couto de Barros, preservado pela família, Boaventura reconstrói não só uma narrativa biográfica e histórico-literária, mas também a história material desse grupo. Esta resenha analisa a recuperação desse novo personagem, a metodologia utilizada e a arquitetura teórica implícita nessa pesquisa.

PALAVRAS-CHAVE
Maria Eugenia Boaventura; Antônio Carlos Couto de Barros; modernismo paulista; arquivo

ABSTRACT

Couto de Barros: a elite nos bastidores do modernismo paulista, by Maria Eugenia Boaventura, and Couto de Barros: o filósofo da malta (textos modernistas), edited by the same author, recover an important, although almost forgotten, member of the group that organized the Modern Art Week and played a decisive role in the reconfiguration of letters, culture and institutional life in São Paulo. With access to Couto de Barros archive, preserved by his family, Boaventura reconstructs not only a biographical and historical-literary narrative, but also the material history of this group. This review analyzes the recovery of this new character, Boaventura’s methodology and the theoretical architecture implicit in her research.

KEYWORDS
Maria Eugenia Boaventura; Antônio Carlos Couto de Barros; Paulista modernism; archive

Contribuindo de modo original para os estudos sobre o modernismo do ano do centenário da Semana de Arte Moderna, Maria Eugenia Boaventura nos apresenta em dois volumes os resultados até o momento de suas pesquisas sobre a obra e a vida de Antônio Carlos Couto de Barros. Em um deles, o estudo se aprofunda no acervo pessoal de Couto de Barros, complementado por outros arquivos públicos de modernistas paulistas, para dar feição adequada a essa figura e seu momento histórico. Em outro, faz a primeira reunião em livro de textos autorais de Couto de Barros, com foco nos ensaios publicados nos anos 1920, em que atua de modo constante na vida artística, cultural, social, econômica e política de São Paulo. Dada a amplitude do material trazido por Boaventura, essa resenha terá como objeto central o volume biográfico Couto de Barros: a elite nos bastidores do modernismo paulista, recorrendo, de modo complementar, quando necessário, ao volume de textos recolhidos2 2 As páginas citadas entre parênteses se referem a Couto de Barros: a elite nos bastidores do poder. Quando se referir a Couto de Barros: o filósofo da malta, será colocado “(filósofo, p.)”. . Antes de entrar mais detidamente na posição que essa obra ocupa nos intensos debates ocasionados pelo centenário da Semana de Arte Moderna, é preciso ressaltar a quantidade do material reproduzido, bem como a qualidade técnica de sua reprodução. Profusamente documentado, o livro é, ao mesmo tempo, biografia e fotobiografia, pela inestimável iconografia que acompanha o texto escrito. Pelo espaço reduzido e também pela concisão que se espera de uma resenha, não será possível fazer justiça a todo esse material, que será abordado aqui de maneira pontual, e não pela sua estrutura integrada ao texto expositivo. Para citar apenas o exemplo mais evidente da importância do que se reproduz, a pessoa que ler o texto verá, entre as páginas 105 e 136, a reprodução de um livro de contabilidade da revista Klaxon, organizado por Couto de Barros e Tácito de Almeida, com o histórico das cotas pagas, das assinaturas e das vendas desse periódico central do modernismo. Como a autora bem nota, a contabilidade desmente um lugar-comum histórico-literário de que Klaxon não circulava no espaço público e não tinha quem a lesse (p. 141).

Voltando, então, ao ano do centenário, é preciso entender que esse estudo vem a público em um momento conflagrado em torno do significado da Semana de Arte Moderna e do modernismo brasileiro como um todo. Nesse contexto, não foram poucas as vezes em que uma posição já tomada de antemão diante da Semana prescindia de um estudo aprofundado sobre o modernismo ou, ainda, que a parcialidade excessiva manipulou a imagem do modernismo para que ele pudesse se tornar o alvo ideal de um julgamento peremptório. Foram dois anos, 2021-2022, em que a ideia de contradição, seja do evento, do movimento ou de seus personagens, esteve em baixa, em contraste com a alta cotação das demandas reivindicatórias, apontando ausências e dando contorno forte aos marcadores sociais dos modernistas. Como praticamente todos os setores culturais organizados do país entraram na arena para emitir o seu juízo sobre a Semana, muitas vezes a impressão que se tinha era a de que Graça Aranha, Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Anita Malfatti, Guiomar Novaes, Ronald de Carvalho, Oswald de Andrade, Couto de Barros, Luís Aranha, Tácito de Almeida e Sérgio Milliet, entre outros, subiram ao palco do Theatro Municipal em fevereiro de 2022, e não há um século. Diante desse quadro, Boaventura estuda uma personagem que até agora foi conhecida sobretudo por esta passagem de Mário de Andrade (2002, p. 260-261)ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. em “O movimento modernista”:

E o filósofo da malta, Couto de Barros, pingando ilhas de consciência em nós, quando no meio da discussão, em geral limitada a bate-bocas de afirmações peremptórias, perguntava mansinho: Mas qual é o critério que você tem da palavra “essencial”? ou: Mas qual é o conceito que você tem do “belo horrível”?....

Como diz a autora, Couto de Barros “é o exemplo típico do intelectual situado, até agora, fora da história literária, mas cujas iniciativas interferiram na vida cultural paulista” (p. 81). É necessário, portanto, um espírito aberto a ambivalências e contradições para apreender um personagem que se move entre constrangimentos históricos e uma ampla margem de manobra, entre tomadas de posição absolutamente questionáveis e projetos públicos e institucionais de horizonte democrático. Afinal, como lidar com o fundador da Escola Livre de Sociologia, que, igualmente, se lamentava que os imigrantes vindos da Europa constituíssem “uma pobre gente semialfabetizada, quando não de todo analfabeta, tapada e grosseira” (filósofo, p. 166)? Ou, ainda, com um dos articuladores não só do modernismo mas também do Partido Democrático nos anos 1920 e que, na década seguinte, seria um separatista convicto (para deixar de sê-lo alguns anos depois)? A biografia expõe, então, tanto o lado “cancelável’ de Couto de Barros e da elite de que faz parte - racista, classista, separatista - quanto seu projeto cultural baseado em instituições públicas, em última instância, culturalmente inclusivas. Com esse intuito, Boaventura adota duas estratégias complementares, mas de pesos distintos, como veremos em momento posterior: a imersão no arquivo de Couto de Barros ‒ a “fantástica coleção (arquivo, biblioteca e obras de arte) preservada pela família” (p. 11) ‒ e “o registro neutro da descrição, explorando a rica iconografia e documentação recolhidas” (p. 11).

Acompanhamos, por conseguinte, no decorrer dos capítulos, a história familiar dos Couto de Barros, chegando de Portugal e se fixando em Campinas, juntando-se à elite cafeeira e, em parte, mudando-se para São Paulo. Nessa cidade, seguimos o percurso individual e geracional de Couto de Barros por instituições de ensino tradicionais como a Escola Modelo Caetano de Campos, o Colégio São Bento e a Faculdade de Direito, todas frequentadas por Couto de Barros, a que se podem acrescentar a Faculdade de Medicina e a Escola Polythenica como parte da rede de instituições de ensino e de formação da elite sociopolítica da cidade. Em paralelo, Couto de Barros participa, na década de 1910, da Liga Nacionalista e do Grêmio Literário Álvares de Azevedo, ensaiando, assim, as suas futuras atividades no Partido Democrático e no movimento modernista. Com base nessa sociabilidade, forma-se o grupo que promoverá a Semana de Arte Moderna, aqui vista a partir de seus bastidores. Na sequência do evento, Couto de Barros se empenha na gestão de Klaxon, cuja redação estava sediada na Rua Direita, 33, local do escritório de advocacia que compartilhava com Tácito de Almeida, “talvez o seu amigo mais próximo” (p. 56). Como já foi indicado, ambos guardaram um livro de contabilidade da revista, de valor histórico inestimável. Em 1924, o biografado estava em Paris, cidade em que busca estabelecer e consolidar os contatos artísticos e culturais do grupo de Klaxon, esforço em que colaboraram, de modo constante, Sérgio Milliet e o embaixador Sousa Dantas (p. 176).

Desde o levante tenentista de 1924, o investimento ‒ já presente na Semana de Arte Moderna ‒ de conferir centralidade cultural ao estado de São Paulo se intensifica em Couto de Barros e em parte de seu grupo. Esse “sentimento bairrista”, segundo a autora, irá compor a base ideológica da revista Terra Roxa e Outras Terras (1926), de que Couto de Barros será um dos diretores. Nesse mesmo ano, “estava envolvido nos bastidores” (p. 231) da fundação do Partido Democrático, com ênfase no papel exercido no jornal do partido, o Diário Nacional (1927), de cuja sociedade anônima foi “um dos principais acionistas” (p. 235).

Já o capítulo 11, Pro São Paulo Fiant Eximia, detalha a atuação de Couto de Barros na Revolução Constitucionalista de 1932. Integrando ativamente o lado paulista do conflito, bem como a maior parte dos modernistas, incluindo, por exemplo, Flávio de Carvalho (p. 272), Couto de Barros participa da Comissão de Imprensa e dirige o Jornal das Trincheiras (órgão da Revolução Constitucionalista), com Vivaldo Coaracy (p. 285). Interessante, nesse capítulo, é o detalhamento da inclinação separatista de Couto de Barros e seu círculo nesse momento: “Tudo indica que O Separatista tenha sido idealizado pelo grupo de escritores próximos a Couto de Barros, também um dos seus colaboradores: a mesma turma atuante na Liga de Defesa Paulista” (p. 290). Boaventura destaca ainda que esse jornal era impresso “sorrateiramente na Gráfica Irmãos Ferraz, onde foram publicados alguns livros modernistas” (p. 290) ‒ livros, acrescento, como Cobra Norato, de Raul Bopp, e Experiência n. 2, de Flávio de Carvalho, ambos de 1925ANDRADE, Mário de. A escrava que não é Isaura: (discurso sobre algumas tendências da poesia modernista). São Paulo: Livraria Lealdade, 1925.).

Voltando à biografia elaborada por Boaventura, pode-se dizer que ela se fundamenta, de modo empenhado, no esforço de Couto de Barros e dos demais modernistas de São Paulo para estabelecer uma base institucional sólida e pública para a arte e cultura que estavam construindo. A ideia de arquivo, então, é explorada em termos teóricos e práticos pela autora. No início do livro, ela já anuncia o propósito de “reconstruir a teia modernista” (p. 11) de Couto de Barros. Para isso, teve acesso ao acervo da família, “de onde se origina a quase totalidade do material aqui reproduzida” (p. 12). Na sequência, há uma descrição interessante da rede de arquivos do modernismo paulista, o que Boaventura chamará algumas páginas depois de “fantásticos acervos privados desses modernistas” (p. 77). No final do capítulo 3, “Amizades de aço”, pode-se observar o processo teórico e metodológico subjacente ao livro. Lidando com uma figura não apenas organizada mas também sistemática na fronteira da obsessão, Boaventura teve acesso a materiais de natureza diversa, de recibos de compras a cadernos de anotação de leitura, de fotografias a cardápios assinados de eventos e festas, de cartas a recortes de jornal, passando por cartões-postais, coleção de revistas e esboços de empreendimentos, como o Handbook of Brazilian studies (p. 324-327), publicado em 1949. O “material socioantropológico” (p. 73), nos termos de Boaventura, permite a escrita de uma história material (até mesmo contábil) do modernismo e da elite paulistana. Por conseguinte,

[...] consegue-se, por durante pelo menos trinta anos, traçar uma pequena história da circulação do livro no grupo, rastrear as preferências de leitura de um eclético intelectual de múltiplos afazeres (fazendeiro, advogado, empresário, professor, jornalista, escritor, historiador), e iluminar traços da sua personalidade, inserindo-a num contexto socioeconômico particular. (p. 75).

Ancorada, então, numa espécie de teoria do arquivo pessoal cujo desdobramento é sobretudo prático, a autora pôde dar coerência a esse material no contexto de um projeto artístico-cultural como o modernismo e político-econômico como o da elite paulistana da primeira metade do século passado. As iluminações possíveis desse tipo de estudo são incalculáveis e vão desde curiosidades a objetos de fascínio historiográfico, como os papéis timbrados para a correspondência de revistas como Klaxon, Terra Roxa... e Outras Terras e Revista de Antropofagia, passando pelos documentos muitas vezes clandestinos do separatismo paulista de 1932 e tendo no “livro de contabilidade” de Klaxon uma intersecção entre história literária, social e econômica. Aí se vê o circuito da elite paulistana que assinava a revista, as livrarias para onde os exemplares eram enviados e as cotas dos membros do grupo, com a descoberta documental de que, no interior de um círculo de pessoas assentadas em farta base patrimonial, o maior financiador da revista foi um assalariado como Mário de Andrade (p. 137-138).

E aqui retornamos, mais uma vez, ao “registro neutro” reivindicado pela autora, que é, segundo a proposta da biografia, equilibrado pela presença ou a perspectiva de Couto de Barros diante dos acontecimentos de que fez parte. Ainda assim, essa renúncia a controlar por um ponto de vista autoral a lógica do material disposto pode, no limite, levar a lacunas e, por vezes, a uma inflexão subjetiva implícita que, naturalmente, há de despontar aqui e ali. Não se fica sabendo por que razão Couto de Barros era o filósofo da malta. Recursos para formular essa questão não faltam ‒ talvez seja pelo culto do equilíbrio a partir de uma perspectiva modernista somada a uma inclinação para a anatomia do humor. De qualquer forma, Boaventura seria a pessoa mais equipada para transformar o comentário de Mário de Andrade em uma perspectiva analítica de fôlego. Como função autoral implícita, citaria a redução da revista Terra Roxa... e Outras Terras à sua pauta ideológica, o “sentimento bairrista” (p. 219) no capítulo 9, certamente preparando a passagem ao bairrismo mais eloquente dos dois capítulos que se seguem, mas deixando de lado a diversidade de contribuições e o alcance estético e crítico da revista. Por fim, justamente o capítulo 4, sobre a Semana de Arte Moderna, dá pouco destaque a Couto de Barros, o que é estranho do ponto de vista organizacional de uma biografia. São questões menores diante do resultado da pesquisa extensiva e intensiva trazida por Couto de Barros: a elite nos bastidores do modernismo paulista. O que fica é um conjunto de materiais novos, projetos constantes, a vida e o convívio de uma elite contraditória diante de alguns de seus momentos decisivos, com seu lado excludente, higienista, estendendo o seu preconceito até aos brancos pobres que importava da Europa, ao mesmo tempo que via na difusão institucional e pública da cultura um fator de desnivelamento social. Essa fratura a céu aberto é acompanhada pela perspectiva de um personagem, a bem dizer, novo da história do modernismo, o que demonstra que, ao contrário do que um julgamento moral faria crer, as pesquisas e as avaliações históricas do movimento modernista estão longe de ser esgotadas.

  • 2
    As páginas citadas entre parênteses se referem a Couto de Barros: a elite nos bastidores do poder. Quando se referir a Couto de Barros: o filósofo da malta, será colocado “(filósofo, p.)”.

Referências

  • ALMEIDA, Guilherme. Natalika Rio de Janeiro: Candeia Azul, 1924.
  • ANDRADE, Mário de. A escrava que não é Isaura: (discurso sobre algumas tendências da poesia modernista). São Paulo: Livraria Lealdade, 1925.
  • ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.
  • BOPP, Raul. Cobra Norato: nheengatu da margem esquerda do Amazonas. São Paulo: Irmãos Ferraz, 1931
  • CARVALHO, Flavio de. Experiência n. 2. São Paulo: Irmão Ferraz, 1931. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/2116 Acesso em: abr. 2023.
    » https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/2116
  • MORAES, Rubens Borba de. Domingo dos séculos Rio de Janeiro: Candeia Azul, 1924.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Ago 2023

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2023
  • Aceito
    13 Abr 2023
Instituto de Estudos Brasileiros Espaço Brasiliana, Av. Prof. Luciano Gualberto, 78 - Cidade Universitária, 05508-010 São Paulo/SP Brasil, Tel. (55 11) 3091-1149 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaieb@usp.br