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A infecção parasitária protege contra a alergia?

EDITORIAIS

A infecção parasitária protege contra a alergia?

Ricardo U. SorensenI; Pierre SakaliII

IMD, Professor and Chairman, Department of Pediatrics, Health Science Center, Louisiana State University, New Orleans, LA, USA

IIMD, Fellow in Training, Allergy/Immunology Division, Health Science Center, Louisiana State University, New Orleans, LA, USA

A imunoglobulina E (IgE) tem um papel central na patogênese das reações de hipersensibilidade imediata devido a sua capacidade de se ligar especificamente a receptores IgE de alta afinidade em mastócitos ou basófilos pela cadeia alfa do receptor FC épsilon tipo I (Fc-épsilon RI-a)1. Além de sua capacidade de ativar mastócitos e basófilos, a IgE pode se ligar ao receptor IgE de baixa afinidade (CD23, ou Fc-épsilon RII) nas células B para ampliar as respostas imunes celulares e humorais na doença alérgica2.

A presença de concentrações de IgE de altas a moderadas tem sido associada a doença alérgica mediada por IgE, especialmente alergia alimentar e uma de suas principais manifestações, a dermatite atópica. Em recém-nascidos e lactentes jovens assintomáticos, as concentrações elevadas de IgE são um indicador da probabilidade de desenvolvimento de doença alérgica, além de serem um indicador prognóstico em adultos com certos tipos de doenças alérgicas crônicas. As concentrações séricas de IgE são altamente variáveis. Contudo, quando os níveis de IgE são comparados em indivíduos alérgicos e não alérgicos, a concentração média de IgE nos indivíduos alérgicos é sempre mais alta do que nos não alérgicos. Dados recentes sugerem que os mastócitos podem contribuir para as respostas inflamatórias mediadas pelos eosinófilos. Os mastócitos podem ser ativados por antígeno e imunoglobulina E via liberação de proteases, leucotrienos, mediadores de lipídios e histamina, contribuindo para a inflação do tecido e permitindo o recrutamento de eosinófilos para o tecido.

Concentrações elevadas de IgE também podem ser observadas em certas infecções, como HIV e hepatite crônica, em doenças de imunodeficiência que afetam os linfócitos T reguladores, na rara síndrome hiper-IgE, com infecções recorrentes, e em algumas doenças parasitárias.

Nas infecções parasitárias, o aumento das concentrações de IgE ocorre durante as fases metazoárias, com aparente associação entre níveis crescentes de invasão do tecido e níveis crescentes de IgE. Os parasitas mais comuns associados com o aumento dos níveis de IgE incluem a larva migrans visceral (Toxocara canis), capilaríase intestinal (Capillaria philippinensis), esquistossomose, ancilostomíase e equinococose.

O aumento nas concentrações de IgE resulta da produção tanto de IgE específica aos parasitas quanto de IgE inespecífica3,4. Um mecanismo proposto para explicar o aumento nos níveis totais de IgE é a secreção, por parasitas, de fatores que estimulam a produção de IL-4, levando ao aumento dos níveis de IgE5,6. Não está claro se o aumento na produção de IL-4 também pode promover a produção de IgE específica contra alérgenos comuns, porém é concebível que isso possa ocorrer, pelo menos em alguns pacientes. Quando a doença parasitária intestinal é tratada com sucesso por meio de drogas antiparasitas, observou-se que os níveis séricos de IgE diminuem consideravelmente com o tempo. Contudo, quando anticorpos IgE antiparasita coexistem com anticorpos IgE antialergênicos, o efeito da diminuição nos níveis de IgE antiparasita e IgE total sobre as manifestações da alergia respiratória é variável e ainda controverso.

A observação em países em desenvolvimento, com alta carga de infecções parasitárias, sugeriu um efeito protetor das infecções parasitárias contra as manifestações alérgicas mediadas pela IgE. Nesses países, a prevalência de doenças atópicas é muito menor do que nas nações industrializadas. As infecções parasitárias se correlacionam com a produção de interleucina 10 (IL 10) induzida por helmintos, que, por sua vez, foi inversamente associada a sensibilização alérgica. Esses achados sugerem que as propriedades antiinflamatórias da IL-10 induzida pela infecção por helmintos podem atenuar a resposta alergênica ou promover tolerância7. Essa relação inversa com sensibilidade reduzida ao teste cutâneo foi demonstrada em infecções por helmintos, entre eles ascaridíase, tricuríase e ancilostomíase8.

Também já foi postulado que os níveis elevados de IgE resultantes de infecções parasitárias saturam os receptores de IgE nos mastócitos, impedindo a ligação de quantidades suficientes de IgE específica contra os alérgenos para produzir testes cutâneos positivos para aeroalérgenos. Esse achado é consistente com as observações de Nielsen et al. de que a liberação de histamina por basófilos em pacientes infectados por Toxocara canis ou Ascaris suum está relacionada à proporção de IgE específica contra o parasita em relação à IgE sérica total. Na verdade, o estímulo de uma resposta policlonal intensa pela IgE pode ser um mecanismo pelo qual os parasitas tentam evitar os efeitos protetores dos anticorpos IgE parasita-específicos9.

A inibição de manifestações alérgicas em doenças parasitárias é reforçada ainda pelo aumento das manifestações de alergia depois do tratamento da doença parasitária, conforme relatam alguns autores.

No presente número do Jornal de Pediatria, Medeiros et al. tratam da relação entre doenças alérgicas, inclusive rinite, dermatite atópica e especialmente asma, e as manifestações de Ascaris intestinal em uma população jovem no Norte do Brasil10. Um total de 101 pacientes do sexo masculino ou feminino com asma e/ou rinite alérgica, com idade entre 12 e 21 anos, foram selecionados para avaliação. Todos os pacientes apresentavam evidência de sensibilização por aeroalérgenos comprovada por altos níveis de anticorpos IgE específicos detectados in vitro ou por teste cutâneo. As infecções parasitárias foram avaliadas pela análise clássica de fezes e títulos de IgE específica anti-áscaris. Foi observada eosinofilia em quase 50% dos participantes, e a IgE anti-áscaris foi positiva em 73% dos indivíduos, embora o exame parasitológico das fezes tenha gerado resultados positivos em apenas 34% dos sujeitos do estudo.

Uma observação importante neste estudo foi a prevalência incomumente alta de infecção parasitária em uma coorte de paciente atópicos. Essa observação contrasta com a menor ocorrência de doenças atópicas relatada em áreas com alta prevalência de infecções parasitárias11,12. Embora diversos controles de interesse não tenham sido levados em conta neste estudo, o relato de Medeiros et al. sugere a necessidade de investigações adicionais sobre o papel real da infecção parasitária na doença alérgica para determinar se a infecção parasitária oferece de fato proteção contra as manifestações da doença alérgica ou se o desfecho da associação entre as duas doenças é mais dependente das condições locais de exposição e sensibilização na área do estudo, como discutem eloqüentemente os autores do relato.

Que conclusões podemos tirar do artigo de Medeiros et al. para o pediatra clínico?

Em termos de diagnóstico, os autores do estudo sugerem que a quantificação de IgE anti-áscaris pode ser mais útil do que o exame parasitológico de fezes em pacientes com alergia respiratória e altos níveis de IgE total, embora não se saiba exatamente por quanto tempo depois da erradicação do parasita os anticorpos IgE anti-áscaris persistem. Com certeza, a presença concomitante de eosinofilia sugere infestação parasitária ativa. Na presença de concentrações elevadas de IgE e eosinofilia em pacientes com manifestações alérgicas como dermatite atópica, rinite ou asma, com ou sem evidência de sensibilização da IgE a alérgenos alimentares ou inalantes, é preciso pesquisar ativamente e descartar a possibilidade de infestação parasitária. O estudo de Medeiros et al. mostra ainda que em pacientes com infestações parasitárias e sintomas alérgicos, a coexistência de anticorpos IgE específicos antiparasita e antialergênicos deve ser considerada e estudada.

Para o manejo da doença parasitária com alergia respiratória coexistente, o relato de Medeiros et al. sugere claramente que, pelo menos em algumas populações de pacientes, as infestações parasitárias e a elevação dos anticorpos IgE totais e específicos antiparasita não oferecem proteção significativa contra o desenvolvimento de alergia. Assim, o manejo adequado da infecção parasitária e das alergias respiratórias deve ser feito simultaneamente, como requerido, sem receio de que o tratamento de uma condição possa exacerbar a outra.

Referências

1. Turner H, Kinet JP. Signaling through the high affinity IgE receptor Fc epsilon RI. Nature. 1999;25:B24-30.

2. Delespesse G, Sarfati M, Wu C, Fournier S, Letellier M. The low affinity receptor for IgE. Immunol Rev. 1992;125:77-97.

3. Rosenberg EB, Whalen GE, Bennich H, Johansson SG . Increasing circulating IgE in a new parasitic disease: human intestinal capillariasis. N Engl J Med. 1970;283:1148-9.

4. Rosenberg EB, Polmar SH, Whalen GE. Increased circulating IgE in trichinosis. Ann Intern Med. 1971;75:575-8.

5. Dessaint JP, Capron M, Bout D. Quantitative determination of specific IgE antibodies to schistosome antigens and serum IgE levels in patients with schistosomiasis (S. mansoni or S. haematobium). Clin Exp Immunol. 1975;20:427.

6. Yamaoka KA, Kolb JP, Miyasaka N, Inuo G, Fujita K. Purified excretory-secretory component of filarial parasite enhances FcepsilonRII/CD23 expression on human splenic B and T cells and IgE synthesis while potentiating T-helper type 2-related cytokine generation from T cells. Immunology. 1994;81:507-12.

7. van den Biggelaar AHJ, van Ree R, Rodrigues LC. Decreased atopy in children infected with Schistosoma haematobium: a role for parasite-induced interleukin-10. Lancet. 2000;356:1723-7.

8. Cooper PJ, Chico ME, Rodrigues LC. Reduced risk of atopy among school-age children infected with geohelminth parasites in a rural area of the tropics. J Allergy Clin Immunol. 2003;111:995-1000.

9. Nielsen BW, Lind P, Hansen B, Reimert CM, Nansen P, Schiotz PO. Immune responses to nematode exoantigens: sensitizing antibodies and basophil histamine release. Allergy. 1994;49:427-35.

10. Medeiros D, Silva AR, Rizzo JA, Motta ME, de Oliveira FH, Sarinho ES. Total IgE level in respiratory allergy: study of patients at high risk for helminthic infection. J Pediatr (Rio J). 2006;82:255-9

11. Schafer T. Meyer T. Ring J. Wichmann HE. Heinrich J. Worm infestation and the negative association with eczema (atopic/nonatopic) and allergic sensitization. Allergy. 2005;60:1014-20.

12. Smits HH. Hartgers FC. Yazdanbakhsh M. Helminth infections: protection from atopic disorders. Curr Allergy & Asthma Rep. 2005;5:42-50.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2006
  • Data do Fascículo
    Ago 2006
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