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Carga de trabalho de profissionais da saúde e eventos adversos durante ventilação mecânica em unidades de terapia intensiva neonatal

Resumos

OBJETIVO: Investigar uma possível associação entre a carga de trabalho de profissionais da saúde e eventos adversos intermediários, tais como extubação acidental, obstrução do tubo endotraqueal e desconexão acidental do circuito do ventilador, durante ventilação mecânica neonatal em unidades neonatais de alto risco. MÉTODO: Este estudo de coorte prospectiva analisou os dados referentes a 543 recém-nascidos de unidades de terapia intensiva neonatal (UTINs) de São Luís (MA) por 6 meses, durante os quais 136 recém-nascidos foram submetidos a ventilação mecânica em 1.108 turnos e foram observados 4.554 vezes. RESULTADOS: Ocorreram eventos adversos 117 vezes durante esse período. As associações entre carga de trabalho e eventos adversos foram analisadas por meio de equações de estimação generalizada. As variáveis de ajuste foram: peso de nascimento, gênero, maternidade estudada, pontuação no índice de risco clínico para bebês (clinical risk index for babies) e demanda de cuidados, determinada pela escala desenvolvida pela Northern Neonatal Network. Quanto maior o número de recém-nascidos classificados de acordo com a demanda de cuidados (RCDCs) por enfermeiro e técnico em enfermagem, maior a probabilidade da ocorrência de eventos adversos intermediários relacionados à ventilação mecânica. Um número de RCDCs > 22 por enfermeiro [risco relativo (RR) = 2,86] e > 4,8 por enfermeiro auxiliar (RR = 3,41) esteve associado a uma maior prevalência de eventos adversos intermediários. CONCLUSÕES: A carga de trabalho dos profissionais de UTINs parece interferir nos resultados intermediários do cuidado neonatal e, portanto, deve ser levada em conta na avaliação dos desfechos na UTIN.

Terapia intensiva neonatal; carga de trabalho; ventilação artificial


OBJECTIVE: To investigate a possible association between the intensity of staff workload and intermediate adverse events, such as accidental extubation, obstruction of the endotracheal tube, and accidental disconnection of the ventilator circuit, during neonatal mechanical ventilation in high-risk neonatal units. METHOD: This prospective cohort study analyzed data of 543 newborns from public neonatal intensive care units (NICUs) in the city of São Luís, state of Maranhão, Northeastern Brazil, for 6 months, during which 136 newborns were submitted to mechanical ventilation in 1,108 shifts and were observed a total of 4,554 times. RESULTS: Adverse events occurred 117 times during this period. The associations between workload and adverse events were analyzed by means of generalized estimating equations. The adjustment variables were: birth weight, gender, maternity unit, Clinical Risk Index for Babies score, and care demand, the latter measured by the Northern Neonatal Network Scale. The larger the number of newborns classified by care demand (NCCD) per nurse and nursing technician, the more likely the occurrence of intermediate adverse events linked to mechanical ventilation. A number of NCCD > 22 per nurse (relative risk [RR] = 2.86) and > 4.8 per auxiliary nurse (RR = 3.41) was associated with a higher prevalence of intermediate adverse events. CONCLUSIONS: The workload of NICU professionals seems to interfere with the intermediate results of neonatal care and thus should be taken into consideration when evaluating NICU outcomes.

Neonatal intensive care; workload; artificial ventilation


ARTIGO ORIGINAL

Carga de trabalho de profissionais da saúde e eventos adversos durante ventilação mecânica em unidades de terapia intensiva neonatal

Fernando Lamy FilhoI; Antônio A. M. da SilvaII; José M. A. LopesIII; Zeni C. LamyII; Vanda M. F. SimõesIV; Alcione M. dos SantosV

IMD, PhD. Medicine III Department, Universidade Federal do Maranhão (UFMA), São Luís, MA

IIMD, PhD. Public Health Department, UFMA, São Luís, MA

IIIMD, PhD. Neonatology Department, Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Rio de Janeiro, RJ

IVMD, PhD. Medicine I Department, UFMA, São Luís, MA

VPhD. Public Health Department, UFMA, São Luís, MA

Correspondência Correspondência: Fernando Lamy Filho Departamento de Saúde Pública Rua Barão de Itapary, 155 CEP 65020-070 - São Luís, MA Tel.: 3301.9674, (98) 3301.9680 Fax: (98) 3301.9674 E-mail: lamyfilho@gmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Investigar uma possível associação entre a carga de trabalho de profissionais da saúde e eventos adversos intermediários, tais como extubação acidental, obstrução do tubo endotraqueal e desconexão acidental do circuito do ventilador, durante ventilação mecânica neonatal em unidades neonatais de alto risco.

MÉTODO: Este estudo de coorte prospectiva analisou os dados referentes a 543 recém-nascidos de unidades de terapia intensiva neonatal (UTINs) de São Luís (MA) por 6 meses, durante os quais 136 recém-nascidos foram submetidos a ventilação mecânica em 1.108 turnos e foram observados 4.554 vezes.

RESULTADOS: Ocorreram eventos adversos 117 vezes durante esse período. As associações entre carga de trabalho e eventos adversos foram analisadas por meio de equações de estimação generalizada. As variáveis de ajuste foram: peso de nascimento, gênero, maternidade estudada, pontuação no índice de risco clínico para bebês (clinical risk index for babies) e demanda de cuidados, determinada pela escala desenvolvida pela Northern Neonatal Network. Quanto maior o número de recém-nascidos classificados de acordo com a demanda de cuidados (RCDCs) por enfermeiro e técnico em enfermagem, maior a probabilidade da ocorrência de eventos adversos intermediários relacionados à ventilação mecânica. Um número de RCDCs > 22 por enfermeiro [risco relativo (RR) = 2,86] e > 4,8 por enfermeiro auxiliar (RR = 3,41) esteve associado a uma maior prevalência de eventos adversos intermediários.

CONCLUSÕES: A carga de trabalho dos profissionais de UTINs parece interferir nos resultados intermediários do cuidado neonatal e, portanto, deve ser levada em conta na avaliação dos desfechos na UTIN.

Palavras-chave: Terapia intensiva neonatal, carga de trabalho, ventilação artificial.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To investigate a possible association between the intensity of staff workload and intermediate adverse events, such as accidental extubation, obstruction of the endotracheal tube, and accidental disconnection of the ventilator circuit, during neonatal mechanical ventilation in high-risk neonatal units.

METHOD: This prospective cohort study analyzed data of 543 newborns from public neonatal intensive care units (NICUs) in the city of São Luís, state of Maranhão, Northeastern Brazil, for 6 months, during which 136 newborns were submitted to mechanical ventilation in 1,108 shifts and were observed a total of 4,554 times.

RESULTS: Adverse events occurred 117 times during this period. The associations between workload and adverse events were analyzed by means of generalized estimating equations. The adjustment variables were: birth weight, gender, maternity unit, Clinical Risk Index for Babies score, and care demand, the latter measured by the Northern Neonatal Network Scale. The larger the number of newborns classified by care demand (NCCD) per nurse and nursing technician, the more likely the occurrence of intermediate adverse events linked to mechanical ventilation. A number of NCCD > 22 per nurse (relative risk [RR] = 2.86) and > 4.8 per auxiliary nurse (RR = 3.41) was associated with a higher prevalence of intermediate adverse events.

CONCLUSIONS: The workload of NICU professionals seems to interfere with the intermediate results of neonatal care and thus should be taken into consideration when evaluating NICU outcomes.

Keywords: Neonatal intensive care, workload, artificial ventilation.

Introdução

Desde a década de 1980, vários estudos têm investigado a relação entre carga excessiva de trabalho e a ocorrência de resultados neonatais adversos1-5. Muitos desses estudos investigaram a associação entre carga de trabalho em unidades de terapia intensiva neonatal (UTINs) e a ocorrência de eventos clínicos adversos, por exemplo, sepse, sequelas neurológicas e óbito6-11.

No entanto, quando tecnologias como a ventilação mecânica são utilizadas, a ocorrência de eventos adversos intermediários (EAIs), tais como extubação acidental, obstrução do tubo endotraqueal e desconexão acidental do circuito do ventilador pode exercer um papel fundamental no desencadeamento da cadeia de eventos.

Em uma pesquisa realizada em uma unidade de terapia intensiva pediátrica de um hospital infantil universitário, Marcin et al.12 observaram que uma proporção enfermeiro-paciente de 1:2 aumentou em 4,24 vezes a chance de extubação artificial, se comparada a uma proporção de 1:1. Veldman et al.13 encontraram uma média de 3,85 recém-nascidos por enfermeiro durante os turnos em que ocorreram EAIs (variação: 1,8-5,0 pacientes). Essa carga de trabalho era maior do que a média de 3 recém-nascidos por enfermeiro (variação: 1,6-6,0 recém-nascidos por enfermeiro) observada durante o período de estudo. Em um estudo de coorte prospectiva, Carvalho et al.14 demonstraram que, quanto maior o número de pacientes-dia ventilados, maior o risco de extubação artificial, e que isso foi provavelmente determinado pela maior necessidade de cuidados de enfermagem, ultrapassando a capacidade do serviço.

Neste estudo, o objetivo principal foi examinar a hipótese de uma possível associação entre a intensidade da carga de trabalho de profissionais da saúde e a ocorrência de três EAIs durante ventilação mecânica, considerados em conjunto, em UTINs da cidade São Luís (MA). Recentemente, o governo brasileiro tem se esforçado para reduzir a mortalidade neonatal, o principal componente da mortalidade infantil em nosso país15,16. Estudos como este podem contribuir significativamente para a concretização dessa meta.

Métodos

População

Este estudo de coorte prospectiva foi realizado em duas unidades neonatais públicas da cidade de São Luís (MA). Foram incluídos no estudo todos os recém-nascidos internados em ambas as unidades entre agosto de 1999 e fevereiro de 2000, de todas as idades gestacionais e pesos de nascimento, que receberam ventilação mecânica convencional. Foram excluídos os pacientes que estiveram hospitalizados por menos de 6 horas e os que foram reinternados no hospital. Todos os recém-nascidos foram intubados oralmente.

Unidades

Foram analisadas duas unidades de terapia intensiva: o Hospital Universitário Materno Infantil (HUMI) e a Maternidade Estadual Marly Sarney (MEMS). Em 2000, a UTIN do HUMI tinha 12 leitos de terapia intensiva e uma média de 14,5±5,08 pacientes/dia, com uma taxa média de ocupação de leitos de 120,8%. O número de internações variou de 600 a 700 por ano. Em 2000, estavam internados na UTIN da MEMS entre 40 e 45 recém-nascidos (6,6 a 7,5% dos partos realizados) por mês e quase 500 recém-nascidos por ano. Quinze leitos estavam disponíveis, com uma média de 12,95±4,08 pacientes/dia, chegando ao máximo de 19 em períodos de maior lotação. A taxa média de ocupação de leitos foi de 99,7%. A taxa de mortalidade foi de 10,8% na UTIN do HUMI e de 14,4% na UTIN da MEMS.

Características dos profissionais que trabalhavam nas UTINs

A categoria dos auxiliares de enfermagem consistia em indivíduos com qualificação de nível médio (isto é, sem diploma universitário), que eram responsáveis pelo trabalho prático de enfermagem, como venopunção, higiene do paciente, administração de medicamentos, controle dos aparelhos de infusão e verificação dos sinais vitais. Os enfermeiros possuíam qualificação de nível superior, e seu trabalho envolvia essencialmente supervisionar os auxiliares de enfermagem e gerenciar a infraestrutura da UTIN. Eles eram chamados pelos auxiliares de enfermagem sempre que necessário. Além disso, os enfermeiros verificavam o horário dos remédios e prescreviam procedimentos, entravam em contato com os familiares e com os especialistas médicos e verificavam materiais e equipamentos. Nem todos os enfermeiros eram especialistas em neonatologia. Os médicos tinham apenas funções clínicas, e todos eram especialistas em neonatologia. Apenas uma das duas unidades possuía médicos estagiários, que estiveram presentes em um número limitado de turnos.

Tamanho da amostra

Seria necessária uma amostra de 122 indivíduos para estimar um risco relativo de 2, com confiança de 95% e poder de 80%, supondo que o estudo apresentou uma correlação intra-sujeito de 0,5 e que cada indivíduo foi observado em seis ocasiões. Foram estudados 136 recém-nascidos durante um período de 6 meses.

Variáveis e coleta de dados

As principais características das crianças analisadas foram: peso de nascimento, definido como o peso do recém-nascido no momento do nascimento e medido em gramas; idade gestacional, calculada a partir do primeiro dia do último período menstrual normal relatado pela mãe e medida em semanas e dias; índice Apgar no 1° e no 5° minuto; e tempo de internação, medido em dias.

Os seguintes eventos foram considerados eventos adversos durante a ventilação mecânica: extubação acidental, obstrução do tubo endotraqueal e desconexão acidental do circuito do ventilador. A extubação acidental era observada quando o tubo endotraqueal ficou fora da traqueia; considerou-se que o tubo endotraqueal estava obstruído quando o médico foi obrigado a substituir o tubo endotraqueal bloqueado por um novo; e a desconexão acidental do circuito do ventilador consistiu na desconexão de qualquer parte do circuito de ventilação, exceto o tubo orotraqueal. Essas três variáveis foram escolhidas com base em estudos que demonstraram serem esses os eventos adversos mais frequentes na ventilação mecânica em uma UTIN pública brasileira17.

Os três eventos associados à ventilação mecânica foram analisados em conjunto devido à sua baixa frequência. As ocorrências desses eventos foram registradas após a confirmação do diagnóstico, efetuada por um médico ou enfermeiro. Esses dados foram obtidos diariamente em entrevistas com os auxiliares de enfermagem, que eram realizadas em três ocasiões: pela manhã, no final do turno da noite; no final do turno da manhã; e à noite, no final do turno da tarde. Estudantes de medicina treinados realizaram as entrevistas, supervisionados pelo coordenador da pesquisa. Os dados de cada paciente foram registrados em fichas individuais.

Os indicadores da carga de trabalho foram determinados dividindo-se o número de recém-nascidos presentes durante cada turno (classificados de acordo com o grau de dependência de cuidados) pelo número de profissionais em cada categoria. O ajuste para o grau de dependência de cuidados baseou-se na Northern Neonatal Network (NNN) Scale, desenvolvida e validada em 1993 pela NNN18, que classifica os recém-nascidos em duas categorias, uma categoria com alta demanda de cuidados (categoria A) e com baixa dependência de cuidados (categoria B). Todos os recém-nascidos que recebiam assistência ventilatória (inclusive cânula nasal) e os que recebiam 40% ou mais de oxigênio foram classificados na categoria A. Os recém-nascidos do grupo A necessitam do dobro de cuidados do que aqueles do grupo B. Assim, o número de recém-nascidos classificados de acordo com a demanda de cuidados (RCDCs) foi calculado somando-se o número de bebês do grupo B e o número de bebês do grupo A multiplicado por dois18.

No início de cada turno, o enfermeiro chefe coletava dados classificando os recém-nascidos de acordo com a NNN Scale. No final do turno, o mesmo enfermeiro também anotava o número de profissionais presentes em cada turno. Esses dois procedimentos eram realizados a cada 12 horas. Os seguintes indicadores de carga de trabalho foram determinados ao se obter o número de profissionais e de RCDCs em cada turno: número de RCDCs/número de auxiliares de enfermagem de plantão; número de RCDCs/número de enfermeiros de plantão; número de RCDCs/número de médicos de plantão; número de RCDCs por turno.

Métodos estatísticos

Foi utilizado o teste t de Student para comparação entre as características dos hospitais, no caso das variáveis com distribuição normal. Caso contrário, elas foram comparadas pelo teste não paramétrico de Mann-Whitney. Foram escolhidas equações de estimação generalizada (EEGs) para análise da associação entre carga de trabalho e eventos adversos durante ventilação mecânica19,20. EEGs são utilizadas para analisar dados longitudinais ou agrupados naturalmente de forma que as observações de um determinado indivíduo formem um cluster e estejam correlacionadas, mas aquelas pertencentes a diferentes indivíduos sejam consideradas independentes. Neste estudo, as observações foram realizadas no mesmo cluster em turnos diferentes. Assim, a unidade de análise não foi diferentes indivíduos em um único momento, mas vários indivíduos em diferentes momentos, aqui representados pelos turnos. O fato de terem sido realizadas múltiplas observações em cada indivíduo aumenta a capacidade do estudo de identificar diferenças estatisticamente significativas. Neste modelo, foram calculados a razão de taxa de incidência e seu respectivo intervalo de confiança de 95% (IC95%).

As quatro variáveis a seguir foram utilizadas para ajuste para fatores de confusão: gênero, pontuação no índice de risco clínico para bebês (clinical risk index for babies)21, peso de nascimento e maternidade estudada.

Como as variáveis relacionadas à carga de trabalho não estavam normalmente distribuídas, todas as variáveis foram divididas em quartis. O mesmo procedimento foi adotado para a variável peso de nascimento. O nível de significância utilizado neste estudo foi de 5% (p < 0,05). Cada carga de trabalho foi avaliada por meio de um modelo diferente devido à alta colinearidade entre elas. O valor p de tendência foi calculado pelo teste qui-quadrado de tendência.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HUMI, Universidade Federal do Maranhão.

Resultados

As variáveis peso de nascimento, idade gestacional e índice de Apgar no 5° minuto foram semelhantes nas populações de ambas as UTINs. Não houve diferenças significativas entre as maternidades quanto à distribuição entre os gêneros. No entanto, o índice de Apgar no 1° minuto e o tempo de hospitalização foram significativamente diferentes (Tabela 1).

Foram estudados 543 recém-nascidos durante um período de 6 meses; 136 deles foram submetidos a ventilação mecânica durante um total de 1.108 turnos, com 4.554 observações. Eventos adversos relacionados à ventilação mecânica ocorreram 117 vezes durante esse período. Os números de desconexões do circuito do ventilador, extubações acidentais e obstruções do tubo endotraqueal, expressos em porcentagens do número total de pacientes avaliados, foram de 9,98, 5,37 e 4,61%, respectivamente. A equipe em cada turno consistiu em 5,28 auxiliares de enfermagem, 1,45 enfermeiros e 3,54 médicos, em média.

A análise ajustada demonstrou uma associação entre o número de RCDCs por enfermeiro ou auxiliar de enfermagem e eventos adversos: quanto maior a proporção entre o número de RCDCs e o número de enfermeiros ou auxiliares de enfermagem, maior o risco de ocorrência de eventos adversos (valores p de tendência < 0,05). O número de RCDCs por médico não esteve associado a eventos adversos durante ventilação mecânica. No entanto, o número total de RCDCs esteve fortemente relacionado aos eventos adversos durante a ventilação neonatal. Quanto maior esse número, maior o risco de ocorrência de eventos adversos (valor p de tendência = 0,002) (Tabela 2).

Discussão

A hipótese de uma associação entre carga excessiva de trabalho e eventos adversos na ventilação mecânica neonatal foi confirmada neste estudo para a maioria dos indicadores de carga de trabalho. Esses resultados confirmam os achados de vários estudos que sugerem que uma carga excessiva de trabalho é um fator de risco para desfechos indesejáveis em UTINs e unidades de terapia intensiva para adultos4-6,22. Em países em desenvolvimento, muitos desfechos indesejáveis são precedidos por eventos adversos inesperados, tais como extubação acidental, obstrução do tubo endotraqueal e desconexão do circuito do ventilador. A taxa desses eventos adversos tem sido utilizada como um indicador da qualidade da assistência17.

Como esperado, a associação entre a maior proporção do número de RCDCs em relação ao número de auxiliares de enfermagem e um maior risco de eventos adversos foi confirmada neste estudo. Essa associação é plausível, pois se espera que, quanto maior o número de pacientes em observação, pior será a qualidade da assistência. Uma das maiores diferenças entre países desenvolvidos e em desenvolvimento talvez seja o número médio de recém-nascidos por enfermeiro ou auxiliar de enfermagem. No Brasil, algumas unidades chegam a apresentar níveis médios da ordem de 2,86 pacientes por auxiliar de enfermagem17, enquanto países desenvolvidos como o Reino Unido costumam apresentar níveis médios da ordem de 0,84 enfermeiro equivalente a tempo integral (ETI) por paciente (1,19 paciente por enfermeiro ETI)23 e 0,84-1,0 enfermeiro por paciente (1,0-1,19 paciente por enfermeiro)6. Marcin et al.12 observaram que uma proporção enfermeiro-paciente da ordem de 1:2 aumentou o risco de uma extubação acidental. Veldman et al.13 descobriram que o número médio de recém-nascidos por enfermeiro durante turnos em que ocorreram EAIs era maior do que a média observada durante o período de estudo. Finalmente, Carvalho et al.14 sugeriram que o risco de EAIs era provavelmente determinado pela maior necessidade de cuidados de enfermagem.

Vários autores, tais como Hamilton et al.3, demonstraram associações entre profissionais com carga de trabalho elevada e mortalidade neonatal elevada em UTINs do Reino Unido. Seus resultados demonstraram que, entre 173 recém-nascidos de muito baixo peso, o risco de sobrevida reduziu-se em 64% para cada criança a mais atendida por enfermeiro de plantão. Em nosso estudo, o risco da ocorrência de eventos adversos associados à ventilação mecânica duplicou quando o número médio de bebês por técnico de enfermagem era superior a 3,8, e triplicou quando essa proporção chegou a 4,8 bebês por técnico. Houve um efeito dose-resposta, com um valor p de tendência de menos de 0,05. Dessa forma, quanto maior o número de bebês supervisionados por técnico, maior a probabilidade da ocorrência de eventos adversos.

Um fenômeno semelhante tornou-se evidente quanto à variável número de RCDCs por enfermeiro. Nesse caso, quando o número de bebês era superior à média de 11 bebês por enfermeiro por turno, o risco de eventos adversos aumentou três vezes e meia. Um efeito dose-resposta também foi observado (valor p de tendência = 0,001). Tibby et al.22 demonstraram a importância de se ter um número adequado no pessoal de enfermagem disponível durante um turno ao estudarem fatores de risco para eventos adversos em UTINs pediátricas em Londres.

O número de RCDCs também demonstrou uma associação com eventos adversos. O risco desses eventos aumentou 2,95 vezes quando o número de bebês ultrapassou 24 por turno. Da mesma forma que com outros indicadores de carga de trabalho, também foi observada uma relação dose-resposta (valor p de tendência = 0,002). Tibby et al.22 também encontraram uma associação semelhante em uma UTIN pediátrica em Londres. Estudos realizados por Hamilton et al.3, Tarnow-Mordi et al.4, Tucker & the UK Neonatal Staffing Study Group6 e Tucker et al.23 parecem indicar que uma carga de trabalho maior está associada a um aumento na ocorrência de desfechos clínicos desfavoráveis relacionados à ventilação mecânica.

Neste estudo, não foi encontrada associação entre o número de RCDCs por médico e eventos adversos. Isso provavelmente ocorreu devido ao fato de esses profissionais exercerem um papel menos importante no monitoramento visual dos pacientes em ventilação mecânica, porque essa tarefa não é parte do seu trabalho.

Algumas limitações deste estudo devem ser apontadas. Uma delas se refere à época em que o estudo foi realizado. Entendemos que, embora os dados tenham sido coletados há quase 10 anos, os resultados ainda são válidos. Os achados esclarecem uma questão etiológica que provavelmente apresenta pouca variação ao longo do tempo. Podemos também afirmar que, embora a maioria das unidades neonatais brasileiras tenha incorporado novas tecnologias durante esse período, muitas ainda enfrentam problemas de pessoal, que podem ter impacto na carga de trabalho, especialmente em situações de superlotação na UTIN. Outra limitação do trabalho diz respeito à qualificação/treinamento de pessoal, particularmente da equipe de enfermagem. É possível que os resultados fossem diferentes se houvesse um treinamento mais elaborado, principalmente dos auxiliares de enfermagem. Na época, todos foram classificados como auxiliares de enfermagem, não técnicos em enfermagem.

Conclui-se que a presença de um número suficiente de enfermeiros e auxiliares de enfermagem por recém-nascidos por turno parece ser importante na redução dos eventos adversos relacionados à ventilação mecânica neonatal.

Artigo submetido em 01.06.11, aceito em 08.09.11.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.

Como citar este artigo: Lamy Filho F, da Silva AA, Lopes JM, Lamy ZC, Simões VM, dos Santos AM. Staff workload and adverse events during mechanical ventilation in neonatal intensive care units. J Pediatr (Rio J). 2011;87(6):487-92.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      01 Jun 2011
    • Aceito
      08 Set 2011
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