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Professional wellbeing work party da WFSA: é hora de refletir e agir em relação à saúde ocupacional do anestesiologista

EDITORIAL

Professional wellbeing work party da WFSA: é hora de refletir e agir em relação à saúde ocupacional do anestesiologista

A natureza e a intensidade do trabalho executado pelos anestesiologistas foram modificadas drasticamente nas últimas décadas. O advento de novas tecnologias expandiu o horizonte cirúrgico, além de ter permitido a intervenção de condições médicas mais desafiadoras. Associadas ao surgimento de casos mais difíceis, estão a pressão de uma crescente competitividade econômica e a necessidade de se fazer mais com uma força de trabalho reduzida. Toda essa transformação impactou o bem-estar ocupacional do anestesiologista. O bem-estar ocupacional é um reflexo da satisfação no trabalho, levando à melhora da qualidade de vida por completo. Encontrar uma solução saudável de integrar o trabalho em nossa vida de forma que proporcione equilíbrio e satisfação pessoal acarretará em maior bem-estar geral.

Estudos epidemiológicos atuais sobre a saúde ocupacional dos médicos estão focados principalmente na descoberta e na análise da prevalência de patologias somáticas e/ou psicológicas, tais como patologias degenerativas, cardiovasculares, tóxicas e infecciosas, cansaço e esgotamento, depressão e dependência química1,2. Por outro lado, é muito evidente o quão pouco tem sido feito em relação à prevenção desses problemas ocupacionais adversos e à manutenção contínua do bem-estar ocupacional dos médicos. A necessidade de prevenção é acentuada pelos crescentes riscos existentes para a saúde ocupacional de anestesiologistas, um grupo vulnerável, como é de conhecimento de todos.

Recentemente, na área de saúde ocupacional do anestesiologista, o conhecimento sobre os riscos de patologias somáticas e/ou psicológicas, agravadas pelo estresse da prática clínica, melhorou o diagnóstico, a prevenção e o gerenciamento dessas condições adversas3,4. Entretanto, ainda é muito importante que os anestesiologistas estejam cientes dos aspectos de sua prática que mais causam estresse, bem como saber como melhores condições de trabalho podem ser estabelecidas em prol da manutenção de sua saúde ocupacional. A necessidade de tais melhorias se torna mais evidente ao se levar em conta se sistemas de apoio para anestesiologistas com alguma deficiência foram estabelecidos pelas associações de defesa profissional, pelo estado ou por organizações governamentais.

UM EXEMPLO DE SISTEMA DE APOIO AO BEM-ESTAR CLÍNICO

Uma análise cuidadosa de informações relativas à saúde ocupacional do médico, particularmente do anestesiologista, leva a uma conclusão muito perturbadora, e até mesmo alarmante, de que tais sistemas de apoio são quase inexistentes. Informações fornecidas através de um sistema de apoio reconhecidamente competente, o Serviço de Saúde do Médico Canadense, durante o ano de 2002, podem ser norteadoras: o Programa de Saúde do Médico da OMA (Associação Médica de Ontário) é um serviço confidencial canadense que presta assistência ao médico que sofre de patologias ocupacionais (Figura 1). O Centro da Associação Médica Canadense para a Saúde e o Bem-Estar Ocupacional do Médico, uma instituição que conferiu mais credibilidade e eficácia às atividades e reivindicações da Associação Médica de Ontário, foi criado em 2000.


Dados epidemiológicos documentados pela Associação Médica de Ontário mostram um aumento no número de doenças psicopatológicas relacionadas à prática médica em comparação às patologias estritamente somáticas resultantes de problemas como infecções, irradiações, contaminações e inalações de gás.

Com base na atenção dispensada à saúde ocupacional e ao bem-estar do médico no Canadá, o Dr. Michael Myers, professor clínico de Psiquiatria na University of British Columbia, editou um livro, através da Associação Médica Canadense, alertando sobre os fatores de risco das patologias ocupacionais e arrecadando fundos para seu diagnóstico, tratamento e apoio no Canadá5. Certamente, essa é uma iniciativa a ser seguida por outras associações médicas.

RISCOS ESPECÍFICOS

Características atuais inerentes à prática clínica do anestesiologista podem resultar em certas correlações com patologias psicológicas. Os riscos emergentes de fadiga aguda e crônica e os elevados níveis de estresse ocupacional devem ser observados durante a prática clínica dos anestesiologistas, bem como nos programas de treinamento de residentes.

Recentemente, o Professor Olli Meretoja publicou um artigo intitulado "Nós deveríamos trabalhar menos à noite"6. Ele concluiu que:

"Existe cada vez mais evidências de que o desempenho dos médicos é inferior se eles trabalharem em plantões excessivamente prolongados ou à noite. Esses padrões de trabalho diminuem a qualidade do atendimento e aumentam os gastos com despesas de assistência médica. Além disso, trabalhadores noturnos apresentam sérios riscos de saúde devido a seus turnos de trabalho não fisiológicos. Formas eficazes de se reduzirem as consequências gerais de fadiga e do trabalho noturno incluem minimizar a quantidade de trabalho conduzido no período noturno e estabelecer regras do número máximo de horas para cada turno de trabalho."

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No Brasil, o departamento ligado à abordagem de médicos dependentes químicos (Uniad) da Escola de Medicina de São Paulo apresentou uma recente casuística, mostrada na Tabela I, incluindo 57 anestesiologistas com evidências clínicas de drogadição. Os agentes mais frequentemente utilizados foram opioides (53%), benzodiazepínicos (30%) e álcool (23%). A dependência química, principalmente em relação às drogas opioides, aumenta significativamente a dificuldade na prestação de apoio e tratamento de reabilitação eficaz, principalmente devido ao alto risco de recaída e ao risco de morte por suicídio ou overdose. Outra dificuldade de reabilitação enfrentada pelos anestesiologistas dependentes de opioides é a disponibilidade relativamente maior e a facilidade de acesso a drogas na sala de operações, salas de recuperação e unidades de cuidados pós-operatórios.

A Tabela II mostra a frequência de comorbidades psiquiátricas entre os anestesiologistas com dependência química relacionados. Conforme fora assinalado anteriormente, existe uma relação entre patologias psicogênicas desenvolvidas durante a prática da anestesiologia (cansaço, depressão, esgotamento etc.) e a síndrome de dependência química. Durante o treinamento, o profissional médico deveria ser alertado em relação ao risco de morte decorrente do vício. Isso é válido principalmente para os residentes e estagiários, que apresentam risco acentuado de desenvolver dependência química. Recentemente, Collins e col. analisaram residentes americanos da área de anestesiologia por um período de 10 anos e concluíram que 70% dos residentes com dependência química conseguiam retornar à medicina após um programa de tratamento bem-sucedido7. Entretanto, somente 60% daqueles que retornaram à medicina conseguiram prosseguir com sucesso na anestesia e 9% tiveram morte prematura. Os autores concluíram que o residente de anestesiologia que desencadeia dependência química pode obter melhor resultado se escolher uma especialidade de menor risco.

O Prof. Francis Bonnet e seus colegas publicaram uma pesquisa de âmbito nacional sobre a incidência de dependência entre anestesiologistas franceses8. Eles documentaram que 11% dos anestesiologistas que responderam eram usuários ou dependentes de uma ou mais substâncias, com exceção do tabaco. As substâncias mais frequentemente usadas eram álcool (em 59% dos casos) e tranquilizantes/hipnóticos (em 41%). O aumento da idade fez crescer a incidência do consumo. Indivíduos dependentes mencionaram problemas no ambiente de trabalho que podem ter contribuído para o desenvolvimento de sua patologia.

A Síndrome de Burnout é uma condição médica bem definida, caracterizada por exaustão emocional, despersonalização e diminuição da realização pessoal9. A exaustão emocional representa o esgotamento emocional de um indivíduo e é considerada o traço inicial dessa síndrome, principalmente, por exigências de trabalho excessivas, conflitos pessoais em relacionamentos interpessoais, assim como a realização de deveres profissionais. A despersonalização é caracterizada por insensibilidade emocional do profissional da saúde. O aparecimento desse sintoma é essencial para o diagnóstico da Síndrome de Burnout, visto que os outros traços podem ser encontrados em casos depressivos em geral. Por fim, o sentimento de diminuição na realização pessoal (incompetência) revelou uma autoavaliação negativa associada à falta de satisfação e infelicidade no trabalho.

A Professora De Keyser, junto com seu grupo de trabalho constituído de psicólogos e anestesiologistas da Université de Liège na Bélgica, constatou alta incidência da Síndrome de Burnout em anestesiologistas belgas, especialmente jovens profissionais com menos de 30 anos10. Há uma preocupação especial em relação a residentes jovens, envolvidos em treinamento clínico educacional, em que a carga de trabalho e o estresse ocupacional são geralmente excessivos, algumas vezes devido à falta de experiência clínica. Além disso, alguns estagiários, infelizmente, trocam o consumo recreativo de agentes com potencial aditivo pelo abuso de substâncias geradoras de dependência química como uma forma de lidar com situações difíceis a que são submetidos. Eventualmente, a dependência química do profissional da saúde pode pôr em risco a segurança do paciente cirúrgico.

Outro fator que prejudica a segurança da prática anestésica é a presença de fadiga e de privação do sono em anestesiologistas. Há cada vez mais evidências de que o trabalho excessivo reduz a segurança e eleva a incidência de erros cometidos por anestesiologistas cansados, quando comparados aos colegas que estejam descansados11-14.

O interesse em relação à saúde ocupacional do médico aumentou nas duas últimas décadas. Um dos primeiros trabalhos sobre o tópico foi publicado no BMJ e no Western J Med. Esses trabalhos enfatizaram que até 46% de todos os médicos canadenses apresentavam estágio avançado da Síndrome de Burnout15.

A realidade atual mostra, sem dúvida alguma, uma tendência exacerbada ao desenvolvimento de patologias somáticas e psicogênicas com uma etiologia ocupacional. Foram apresentadas possibilidades de desenvolvimento de atitudes que proteje a saúde mental e física do profissional da saúde. Uma opção de abordagem seria a criação de sistemas que apoiem a saúde do anestesiologista, estabelecendo políticas institucionais e governamentais para prevenir doenças ocupacionais. Essa premissa pode ser simplificada no título de um editorial do BMJ, redigido pelo Dr. Gavin Yamey: "Devemos nos afastar de um modelo de doença ocupacional e focar ações em um funcionamento positivo de trabalho, como forma de profilaxia (Occupational Wellbeing)"16.

A Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA) tem demonstrado interesse crescente em relação à saúde ocupacional do anestesiologista desde 2000. A SBA tenta entender, alertar e influenciar esse tipo de situação, que tem importância significativa na vida do anestesiologista. As ações desenvolvidas foram apoiadas pelo Comitê de Saúde Ocupacional dessa entidade e pela Federação Mundial de Sociedades de Anestesiologistas (WFSA, sigla em inglês), através de seu Professional Wellbeing Work Parte(PWWP/WFSA). O Comitê de Saúde Ocupacional da SBA desenvolveu uma pesquisa epidemiológica, em conjunto com a Prof. Isabelle Hansez, do Departamento de Psicologia do Trabalho da Université de Liège, na Bélgica, que objetivou avaliar o nível de estresse ocupacional e o grau de adaptabilidade às condições de trabalho dos residentes e de seus preceptores nos Programas de Treinamento em Anestesiologia ligados à própria SBA e ao Ministério de Educação. Os principais resultados desse trabalho estão resumidos na Tabela III (não publicado).

Na primavera de 2010, a PWWP da WFSA conduziu uma pesquisa envolvendo as 120 sociedades-membro dessa organização, utilizando um questionário que teve por objetivo identificar o nível de incidência de problemas de saúde ocupacional entre os membros de determinada sociedade e as abordagens utilizadas por essas sociedades para tratar da saúde ocupacional do anestesiologista.

Os resultados mostram que mais de 90% das Sociedades Nacionais consideraram a Síndrome de Burnout um problema evidente em seus membros associados, mas apenas 14% desenvolvem algum tipo de estratégia de enfrentamento dessa síndrome. O PWWP da WFSA organizou um simpósio especial sobre esse tópico para o próximo Congresso Mundial de Anestesiologistas em Buenos Aires, a ser realizado em 2012.

Jenny Firth-Cozens, assessora especial de modernização de áreas de pós-graduação, em um editorial do BMJ " Médicos, seu bem-estar e seu stress. Está na hora de ser proativo em relação ao stress - e preveni-lo", sintetiza nossos sentimentos em relação à atitude tomada quanto a situações de bem-estar ocupacional dos anestesiologistas17. Ela finaliza seu texto em uma frase: "O estresse está aqui para ficar e, quanto mais cedo aceitarmos que combatê-lo é algo natural, além de ser uma parte essencial da segurança do paciente, mais rápido a vida dos médicos e de seus pacientes irão melhorar."

As organizações envolvidas com a estruturação da educação e/ou da prática médica precisam entender que as consequências dos problemas de saúde ocupacional do médico e do residente não resultam apenas em mudanças preocupantes na saúde somática e psicológica do anestesiologista, mas também prejudicam a segurança das práticas médicas em relação ao anestesiologista e ao paciente, ao mesmo tempo em que elevam o custo da assistência médica.

Em conclusão, precisamos ser mais agressivos no que diz respeito à formatação da educação médica quanto aos riscos da saúde ocupacional do médico, especificamente dos anestesiologistas, os quais podem prejudicar sua saúde e seu bem-estar. Além disso, está muito bem documentado epidemiologicamente que tais riscos ao anestesiologista podem representar sérias consequências para a segurança do paciente. Políticas nacionais para prevenir e lidar com a síndrome de burnout e patologias afins nos profissionais da saúde também precisam ser desenvolvidas.

Gastão F. Duval Neto (Brasil)

Presidente da PWWP / WFSA

Membro do Comitê Executivo da WFSA

Membros do PWWP

Francis Bonet (França)

Steve Howard (EUA)

Pratyush Gupta (Índia)

Olli Meretoja (Finlândia)

Roger Moore (EUA)

Max-André Doppia (França)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2011
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