Acessibilidade / Reportar erro

"Perda de fôlego" como causa de hipóxia e bradicardia pós-operatória em criança submetida à amigdalectomia

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

A crise de "perda de fôlego" ou de "interrupção respiratória" pode ser considerada uma causa de hipóxia na infância. É caracteriza pela presença de um fator desencadeante seguido por choro e apneia em expiração acompanhada de cianose ou palidez cutânea. A sequência de eventos pode incluir bradicardia, perda da consciência, alteração do tônus postural e até assistolia. Uma revisão da literatura evidenciou apenas dois relatos de apneia pós-operatória causada por "perda de fôlego".

RELATO DO CASO:

O presente artigo descreve um caso de criança com antecedente de crises de "perda de fôlego" não diagnosticadas antes da feitura de adenoamigdalectomia, mas que representaram a causa de episódios de hipoxemia e bradicardia no período pós-operatório.

CONCLUSÕES:

As crises de "perda de fôlego" devem ser consideradas como possível causa de hipóxia perioperatória em crianças, principalmente quando há história prévia sugestiva. Como alguns eventos podem ser acompanhados de bradicardia, perda da consciência, alteração do tônus postural e até assistolia, a observação em ambiente hospitalar deve ser considerada.

Palavras-chave:
Apneia; Perda de fôlego; Criança; Hipóxia; Bradicardia; Recuperação pós-anestésica

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

the "shortness of breath" or "breathing interruption" crisis can be considered a cause of hypoxia in childhood. It is characterized by the presence of a triggering factor followed by weeping and apnea in expiration accompanied by cyanosis or pallor. The sequence of events may include bradycardia, loss of consciousness, abnormal postural tone and even asystole. A review of the literature revealed only two reports of postoperative apnea caused by "shortness of breath".

CASE REPORT:

this article describes the case of a child with a history of "shortness of breath" undiagnosed before the adenotonsillectomy, but that represented the cause of episodes of hypoxemia and bradycardia in the postoperative period.

CONCLUSIONS:

the "shortness of breath" crisis should be considered as a possible cause of perioperative hypoxia in children, especially when there is a history suggestive of this problem. As some events may be accompanied by bradycardia, loss of consciousness, abnormal postural tone and even asystole, observation in a hospital setting should be considered.

Keywords:
Apnea; Loss of breath; Child; Hypoxia; Bradycardia; Postanesthesia recovery

Introdução

A crise de "perda de fôlego" ou de "interrupção respiratória" pode ser considerada uma causa de hipóxia na infância. É caracteriza pela presença de um fator desencadeante, como a ansiedade, o medo, a dor ou a frustração, seguido por choro e apneia em expiração acompanhada de cianose ou palidez cutânea. A sequência de eventos pode incluir bradicardia, perda da consciência, alteração do tônus postural e até assistolia.11. DiMarioJr FJ. Prospective study of children with cyan- otic and pallid breath-holding spells. Pediatrics. 2001;107: 265-9. and 22. Kelly AM, Porter CJ, McGoon MD, Espinosa RE, Osborn MJ, Hayes DL. Breath-holding spells associated with significant bradicardia: successful treatment with permanent pacemaker implantation.. Pediatrics 2001;108:698-702. Uma revisão da literatura evidenciou apenas dois relatos de apneia pós-operatória causada por "perda de fôlego".33. Hubbert CH. Post-operative apnoea caused by breath-holding spells. Can Anaesth Soc J. 1978;25:151-2. and 44. Chhabra A, Baidya D. Postoperative cyanotic breath-holding spells in a child with Worster-Drought syndrome. J Anesth. 2010;24:982-3.

Relato do caso

Criança do sexo masculino, um ano e 11 meses de idade, avaliada em consulta pré-anestésica para a feitura de adenoamigdalectomia, não apresentava alterações sugestivas de doença sistêmica. Recebeu como medicação pré-anestésica midazolam (0,5 mg.kg-1) por via oral, 20 minutos antes do procedimento. Na sala de cirurgia foi monitorada com eletrocardiografia (DII), oximetria de pulso e pressão arterial não invasiva. Após administração por via inalatória da mistura de O2 e N2O a 60% e sevoflurano a 6% em máscara facial, foi feita a venóclise com cateter 24G seguida da indução anestésica com remifentanil em infusão contínua (0,5 µg.kg-1.min-1), propofol 3 mg.kg-1 e cisatracúrio 0,1 mg.kg-1. A intubação traqueal ocorreu sem intercorrências e um tubo de 4 mm com balonete foi inserido sem intercorrências. O paciente foi mantido com ventilação mecânica em sistema fechado com reabsorção de CO2 e a seguir foi acrescentada a monitoração do gás carbônico expirado (PETCO2). A anestesia foi mantida com infusão de remifentanil (0,3 µg.kg-1.min-1) e sevoflurano 1% a 1,5%. A cirurgia teve duração de 40 minutos, sem intercorrências. A criança apresentou um despertar tranquilo, aproximadamente 10 minutos após a interrupção da infusão dos agentes anestésicos. A analgesia pós-operatória foi feita com morfina (0,1 mg.kg-1) e dipirona (30 mg.kg-1). Enviada para a sala de recuperação pós-anestésica (SRPA), onde permaneceu com O2 em máscara facial e monitoração com oximetria de pulso. Durante a permanência no setor, após a agitação inicial esperada para os primeiros 30 minutos após o procedimento, a criança apresentou períodos de calma e de agitação, sem sangramento evidente e dor considerada de fraca a moderada intensidade. Aproximadamente três horas após a entrada na SRPA, apresentou quadro de cianose e hipertonia muscular que regrediu espontaneamente após alguns segundos. O episódio, caracterizado por apneia durante o choro, cianose, SpO2 70%, bradicardia (37 bpm) e perda de consciência, se repetiu após duas horas. Sem sinais de obstrução das vias aéreas, recebeu naloxona 0,4 mg por via venosa. No entanto, apresentou ainda dois episódios com as mesmas características, sempre durante crises de choro e após apneia durante a expiração. Foi então enviada para a Unidade de Terapia Intensiva, onde permaneceu por 12 horas. Nesse período apresentou algumas crises esporádicas de choro acompanhadas por diminuição da SpO2. O ecocardiograma e o eletrocardiograma avaliados durante a internação eram normais. Obteve alta para o quarto com diagnóstico de crises de "perda de fôlego". Segundo a mãe, desde os três meses de idade a criança apresentava crises caracterizadas por apneia durante o choro, acompanhada por cianose labial. Como os episódios eram pouco frequentes, não procurou ajuda médica. Uma semana após a cirurgia apresentou crise caracterizada por palidez e diminuição do tônus postural.

Discussão

O presente artigo descreve um caso de criança com antecedente de crises de "perda de fôlego" não diagnosticadas antes da feitura de adenoamigdalectomia, mas que representaram a causa de episódios de hipoxemia e bradicardia no período pós-operatório.

O diagnóstico de crises de "perda de fôlego" é baseado no relato de três ou mais episódios caracterizados pela presença de um fator desencadeante, como a ansiedade, o medo, a dor ou a frustração, seguidos por choro e apneia em expiração acompanhada de cianose ou palidez cutânea.11. DiMarioJr FJ. Prospective study of children with cyan- otic and pallid breath-holding spells. Pediatrics. 2001;107: 265-9. and 22. Kelly AM, Porter CJ, McGoon MD, Espinosa RE, Osborn MJ, Hayes DL. Breath-holding spells associated with significant bradicardia: successful treatment with permanent pacemaker implantation.. Pediatrics 2001;108:698-702. As crises de "perda de fôlego" podem ser consideradas eventos paroxísticos, não epilépticos e involuntários que podem ocorrer durante a infância.11. DiMarioJr FJ. Prospective study of children with cyan- otic and pallid breath-holding spells. Pediatrics. 2001;107: 265-9. A incidência de crianças com história de crises de "perda de fôlego" varia de 0,1% a 4,6%.11. DiMarioJr FJ. Prospective study of children with cyan- otic and pallid breath-holding spells. Pediatrics. 2001;107: 265-9. Tem sido demonstrada a existência de um traço autossômico dominante com penetrância reduzida em considerável proporção de pacientes.55. Di Mario Jr FJ, Sarfarazi M. Family pedigree analysis of chil- dren with severe breath-holding spells. J Pediatr. 1997;130: 646-51. Segundo Di Mário,11. DiMarioJr FJ. Prospective study of children with cyan- otic and pallid breath-holding spells. Pediatrics. 2001;107: 265-9. em estudo prospectivo de 95 crianças com história de crises de "perda de fôlego", em 34% dos casos diagnosticados havia algum membro próximo da família com antecedente de crises semelhantes, o que não foi observado no presente relato. Segundo a mãe da criança, os episódios foram inicialmente observados aos três meses de idade, mas como eram esporádicos, desencadeados por situações de medo ou ansiedade e com regressão espontânea, não houve encaminhamento para investigação diagnóstica. Dos casos avaliados por Di Mário, foram identificados 47 meninos e 48 meninas com história compatível com crises de "perda de fôlego", dos quais 49 eram caracterizados por cianose, 27 por palidez e 19 por ambos. Convulsões precipitadas pela hipóxia foram observadas em 15 e a síncope em 12 das 95 crianças. Em todos os casos o eletrocardiograma foi considerado normal, o que exclui o possível diagnóstico diferencial de prolongamento do intervalo QT. A maioria das crianças apresentou a primeira crise entre seis e 12 meses de idade, mas em 12% dos casos o primeiro episódio ocorreu antes. Segundo o estudo, em 5% das crianças as crises começaram quando ainda eram recém-nascidas.

No caso relatado, possíveis diagnósticos diferenciais, como o efeito residual de opioides ou o edema no campo cirúrgico, foram descartados pela administração de naloxona e pela visualização direta da laringe. Embora a frequência das crises seja descrita como diária ou semanal, em algumas crianças o intervalo entre os episódios pode ser maior do que um mês. Os meninos parecem apresentar um pico de frequência mais precoce (13-18 meses) quando comparados às meninas (19 a 24 meses).11. DiMarioJr FJ. Prospective study of children with cyan- otic and pallid breath-holding spells. Pediatrics. 2001;107: 265-9. Segundo Bridge,66. Bridge EM, Livingston S, Tietze C. Breath-holding spells. Their relationship to syncope, convulsions, and other phenomena.. J Pediatr 1943;23:539-61. que acompanhou por nove anos 83 crianças com história de crises de "perda de fôlego", aproximadamente metade apresentou o último episódio aos quatro anos de idade.

A fisiopatologia da variante cianótica das crises de "perda de fôlego" provavelmente tem múltiplos fatores ainda não completamente conhecidos. Entre eles estão a hiperventilação (com consequente redução excessiva da PaCO2), a apneia e a redução do retorno venoso induzida pela manobra de Valsalva.77. Menezes MAS. Paroxysmal non-epileptic events.. J Pediatr 2002;78 Suppl. 1:S73-88. A perda da consciência parece ser resultado de alteração na regulação autonômica, pois tem sido demonstrado que essas crianças apresentam reflexo óculo-cardíaco exacerbado, o que pode ser responsável pela assistolia observada em 61% dos casos de crises de "perda de fôlego" acompanhada de palidez (também chamada de síncope cardioinibidora) e 25% das caracterizadas por cianose.22. Kelly AM, Porter CJ, McGoon MD, Espinosa RE, Osborn MJ, Hayes DL. Breath-holding spells associated with significant bradicardia: successful treatment with permanent pacemaker implantation.. Pediatrics 2001;108:698-702. and 88. Lombroso CT, Lerman P. Breath-holding spells (cyanotic and pallid infantile syncope).. Pediatrics 1967;39:563-81. Embora no caso relatado a frequência cardíaca tenha atingido valor abaixo de 40 bpm, a bradicardia associada às crises de "perda de fôlego" tem sido considerada grave quando há frequência cardíaca menor do que 20 bpm ou assistolia por mais de seis segundos.22. Kelly AM, Porter CJ, McGoon MD, Espinosa RE, Osborn MJ, Hayes DL. Breath-holding spells associated with significant bradicardia: successful treatment with permanent pacemaker implantation.. Pediatrics 2001;108:698-702. Quando sintomática, a bradicardia tem sido considerada indicação para a implantação de marcapasso.22. Kelly AM, Porter CJ, McGoon MD, Espinosa RE, Osborn MJ, Hayes DL. Breath-holding spells associated with significant bradicardia: successful treatment with permanent pacemaker implantation.. Pediatrics 2001;108:698-702. Não há tratamento específico para as crises de "perda de fôlego". Por ser um evento não epiléptico, não há resposta favorável após a administração de anticonvulsivantes.66. Bridge EM, Livingston S, Tietze C. Breath-holding spells. Their relationship to syncope, convulsions, and other phenomena.. J Pediatr 1943;23:539-61. É necessária a orientação adequada aos pais e, no caso das crianças submetidas à anestesia, esses autores acreditam que a observação em ambiente hospitalar por pelo menos 12 horas seja importante, pois se trata de um período em que há inúmeros possíveis fatores desencadeantes para as crises e não há como prever se haverá alterações hemodinâmicas ou perda da consciência nos eventos que ocorrerem no pós-operatório.

Concluindo, apesar de consideradas benignas, as crises de "perda de fôlego" devem ser analisadas como possível causa de hipóxia perioperatória em crianças, principalmente quando há história prévia sugestiva. Como alguns eventos podem ser acompanhados de bradicardia, perda da consciência, alteração do tônus postural e até assistolia, a observação em ambiente hospitalar deve ser considerada.

References

  • 1. DiMarioJr FJ. Prospective study of children with cyan- otic and pallid breath-holding spells. Pediatrics. 2001;107: 265-9.
  • 2. Kelly AM, Porter CJ, McGoon MD, Espinosa RE, Osborn MJ, Hayes DL. Breath-holding spells associated with significant bradicardia: successful treatment with permanent pacemaker implantation.. Pediatrics 2001;108:698-702.
  • 3. Hubbert CH. Post-operative apnoea caused by breath-holding spells. Can Anaesth Soc J. 1978;25:151-2.
  • 4. Chhabra A, Baidya D. Postoperative cyanotic breath-holding spells in a child with Worster-Drought syndrome. J Anesth. 2010;24:982-3.
  • 5. Di Mario Jr FJ, Sarfarazi M. Family pedigree analysis of chil- dren with severe breath-holding spells. J Pediatr. 1997;130: 646-51.
  • 6. Bridge EM, Livingston S, Tietze C. Breath-holding spells. Their relationship to syncope, convulsions, and other phenomena.. J Pediatr 1943;23:539-61.
  • 7. Menezes MAS. Paroxysmal non-epileptic events.. J Pediatr 2002;78 Suppl. 1:S73-88.
  • 8. Lombroso CT, Lerman P. Breath-holding spells (cyanotic and pallid infantile syncope).. Pediatrics 1967;39:563-81.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2015

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2012
  • Aceito
    22 Nov 2012
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org