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Manejo anestésico de paciente pediátrico com displasia ectodérmica hipoidrótica submetido a cirurgia de emergência

As displasias ectodérmicas são condições raras, com uma tríade de hipotricose, anodontia e anidrose. Em revisão da literatura há apenas alguns relatos de manejo anestésico de pacientes com displasias ectodérmicas. Hipertermia é um risco muito sério que pode ocorrer por causa de defeito das glândulas sudoríparas. O presente caso envolve uma criança de 10 anos com displasia ectodérmica que se apresentou com abdome agudo e foi considerada para uma cirurgia de emergência. Nosso objetivo foi demonstrar o manejo bem-sucedido desse caso, com o uso de uma combinação de anestesia geral e peridural. É importante para o anestesiologista obter informações sobre essa síndrome, em caso de operações de emergência, pois pode evitar complicações graves e até salvar vidas.

Displasia ectodérmica; Anestesia regional; Abdome agudo


ABSTRACT

Ectodermal dysplasias are rare conditions with a triad of hypotrichosis, anodontia and anhidrosis. In literature review there have been only a few reports of anesthetic management of patients with ectodermal dysplasias. Hyperthermia is a very serious risk which may occur due to the defect of sweat glands. The present case involves a 10-year-old child with ectodermal dysplasia who presented with an acute abdomen and was considered for an emergency surgery. Our aim was to demonstrate the successful management of this case using a combination of general and epidural anesthesia. It is important for anesthesiologist to have information about this syndrome in case of emergency operations, since it can prevent serious complications and even save lives.

Ectodermal dysplasia; Regional anesthesia; Acute abdomen

Introdução

A displasia ectodérmica hipoidrótica (DEH) (síndrome de Christ-Siemens-Touraine) é uma condição ligada ao cromossomo X e a forma mais comum de displasia ectodérmica (DE). Nesse tipo de síndrome, os pacientes não têm glândulas sudoríparas ou elas são muito reduzidas. DEH tem a tríade característica de redução da quantidade de cabelo (hipotricose), ausência de glândulas sudoríparas (anidrose) e hipodontia.11. Pinheiro MF-MN. Ectodermal dysplasias: a clinical classification and a causal review. Am J Med Genet. 1994;53:153-62.

Os pacientes com DEH com frequência sofrem de infecções pulmonares e hipertermia em ambientes com temperaturas elevadas.22. Irvine AD. Towards a unified classification of the ectodermal dys-plasias: opportunities outweigh challenges. Am J Med Genet. 2009;149A:1970-2.

Relato de caso

Um menino de 10 anos com DEH apresentou-se em nosso departamento de cirurgia pediátrica de emergência com história de 12 horas de náusea e vômito associados à dor abdominal no quadrante inferior direito. O exame abdominal revelou sensibilidade no quadrante inferior direito com defesa à palpação e efeito rebote. Criança com a tríade característica de DEH (Figura 1 and Figura 2). As análises laboratoriais revelaram uma leucocitose leve de 13.400 células/mm33. Palit AIA. What syndrome is this? Pediatr Dermatol. 2006;23:396-8. . Todos os outros resultados laboratoriais mostraram valores normais. A história pregressa do paciente era significativa para DEH. O paciente não tinha história cirúrgica. O diagnóstico do paciente foi de apendicite e cirurgia de emergência foi planejada.

Figura 1
Dentição reduzida e em forma cônica (anodontia).

Figura 2
Cabelos esparsos (hipotricose).

A pré-medicação incluiu midazolam (0,15 mg/kg). O paciente foi transportado para o centro cirúrgico e monitores de rotina foram colocados. O exame pré-anestesia das vias aéreas revelou Mallampati classe-I nas posições sentada e em decúbito dorsal. Embora não houvesse suspeita de via aérea difícil, preparamos o equipamento, que incluiu diferentes tamanhos de tubos endotraqueais, máscaras laríngeas (ML), ML ProSeal e broncoscópio de fibra óptica.

Após a pré-oxigenação com oxigênio a 100%, a anestesia foi induzida com propofol (3 mg/kg) e fentanil (2 µg/kg). Após a ventilação, o bloqueio neuromuscular foi fornecido com rocurônio (1 m/kg). A visualização da laringe com laringoscópio Macintosh foi grau-I na classificação de Cormack-Lehane e a traqueia do paciente foi facilmente intubada. No início da operação, a temperatura corporal era de 36,0 °C e permaneceu em 36-36,5 °C durante a operação. Após a intubação, o paciente foi posicionado em decúbito lateral esquerdo e a pele preparada com polivinilpirrolidona-iodo. Um cateter epidural de calibre 18 foi posicionado sem dificuldade no nível do terceiro e do quarto interespaços lombares e, com a técnica de perda de resistência, uma dose teste de levobupivacaína (5 mg) foi administrada. Levobupivicaína a 0,125% (10 mL) foi infundida no espaço epidural. A anestesia foi mantida com propofol e analgesia epidural. A temperatura corporal foi continuamente monitorada. Não foi necessário repetir a dose de bloqueio neuromuscular.

Apendicectomia foi feita em curso normal sem intercorrência dentro de 45 min. Após a conclusão do procedimento cirúrgico, o bloqueio neuromuscular residual foi revertido com sugamadex (1,00 mg) e a traqueia do paciente, extubada. O paciente recebeu alta do hospital dois dias após a operação.

Discussão

DEH é a forma mais frequente de DE. É uma síndrome rara, com uma incidência de aproximadamente 1:100.000.33. Palit AIA. What syndrome is this? Pediatr Dermatol. 2006;23:396-8. A hipertermia, por causa da transpiração inadequada, secundária à ausência parcial ou completa de glândulas sudoríparas, é comum na forma anidrótica e resulta em possibilidade de morte súbita na infância. A taxa de mortalidade relatada é de 10-54%.44. Clarke APD, Brown R, Harper PS. Clinical aspects of X-linked hypohidrotic ectodermal dysplasia. Arch Dis Child. 1987;62:989-96.

Os problemas relacionados à anestesia em uma pessoa com DEH incluem intubação traqueal potencialmente difícil por causa da falta de vários dentes e hipoplasia do seio maxilar. Além disso, a função respiratória deve ser avaliada por causa de infecções pulmonares recorrentes.55. Gordon CPLS. Multicore myopathy in a patient with anhidrotic ectodermal dysplasia. Can J Anaesth. 1992;39:966-8.

Em revisão da literatura nos bancos de dados PubMed, apenas alguns relatos foram encontrados sobre o manejo anestésico de pacientes com DEH.

Hotta et al. enfatizaram a hidratação das vias aéreas, a preparação para via aérea difícil e o acompanhamento da temperatura corporal em um relato de caso que mencionou o manejo da anestesia em cirurgia oftálmica de uma criança de 10 anos com DEH.66. Hotta MKT, Umemura N, Takino Y, et al. Anesthetic manage-ment of a patient with hypohidrotic ectodermal dysplasia. Masui. 2000;49:414-6. Sugi et al. também relataram um caso no qual usaram anestesia peridural para enxertos de pele e desbridamento em um paciente do sexo masculino de 20 anos com DEH.77. Sugi YHK, Suzuki Y, Shono S, et al. Anesthetic management of a patient with hypohidrotic ectodermal dysplasia. Masui. 1999;48:414-6. Docquier et al.88. Docquier MAVF, Prudhomme S, Rossillon R. Anesthesia in a child presenting a anhydrotic ectodermic dysplasia associ-ated with a multiminicore myopathy. Can J Anaesth. 2000;47: 449-53. adicionaram analgesia peridural lombar ao propofol usado em anestesia administrada por via intravenosa em um caso de cirurgia ortopédica eletiva de extremidade inferior em uma paciente de 8 anos com miopatia multiminicore e DE. Os autores relataram que essa combinação forneceu uma anestesia estável, sem complicações, e proporcionou excelente analgesia durante a operação e no período pós-operatório.

Até o momento, todos os casos relatados foram sobre cirurgias eletivas programadas e, portanto, houve tempo para a preparação. Em nosso caso, o paciente foi diagnosticado com abdome agudo na sala de emergência por um cirurgião pediátrico e, portanto, a situação era de emergência cirúrgica e o paciente foi diagnosticado com DEH durante a visita pré-anestésica, pouco antes da cirurgia. Dessa forma, não houve tempo suficiente para pesquisar ou obter mais informações sobre o DEH. O procedimento cirúrgico foi concluído com sucesso, sem qualquer complicação, por meio de analgesia epidural combinada com anestesia intravenosa. Acreditamos que as técnicas de anestesia regional podem ser muito úteis nesses casos. É importante observar a umidificação das vias aéreas e a intubação difícil. No centro cirúrgico, o material para via aérea difícil deve estar preparado. Anestésicos inalatórios halogenados e relaxantes musculares despolarizantes não foram usados. A temperatura corporal foi monitorada durante todo o processo.

Em conclusão, o DEH é um desafio para os anestesiologistas e médicos de cuidados críticos durante o período perioperatório. O risco de hipertermia maligna relacionado aos agentes anestésicos deve ser mantido em mente. Todos os anestesiologistas devem estar bem informados, caso não haja tempo para a preparação, e tomar decisões rápidas sobre o método mais adequado de anestesia em intervenções cirúrgicas de emergência, como trauma e abdome agudo.

References

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    Pinheiro MF-MN. Ectodermal dysplasias: a clinical classification and a causal review. Am J Med Genet. 1994;53:153-62.
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    Docquier MAVF, Prudhomme S, Rossillon R. Anesthesia in a child presenting a anhydrotic ectodermic dysplasia associ-ated with a multiminicore myopathy. Can J Anaesth. 2000;47: 449-53.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2013
  • Aceito
    31 Out 2013
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