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Fístula de artéria subclávia direita anômala com esôfago - hemorragia digestiva alta maciça secundária a intubação gástrica prolongada

RESUMO

A fístula de artéria subclávia direita anômala com o esôfago é uma complicação rara, mas potencialmente fatal. Pode estar associada a procedimentos como traqueostomia e intubação traqueal ou esofágica e originar hemorragia digestiva alta maciça, de difícil identificação e controle.

Um elevado índice de suspeição é essencial para o diagnóstico precoce e a melhoria do prognóstico.

Relatamos caso raro de doente que sobreviveu após intervenção cirúrgica emergente por hemorragia digestiva alta maciça secundária a fístula de artéria subclávia direita anômala com esôfago, após intubação gástrica prolongada.

Palavras-chave:
Artéria subclávia direita anômala; Hemorragia maciça; Intubação gástrica prolongada

ABSTRACT

Aberrant right subclavian artery-esophageal fistula is a rare but potentially fatal complication. It may be associated with procedures, such as tracheostomy and tracheal or esophageal intubation, and yields massive upper gastrointestinal bleeding difficult to identify and to control.

A high index of suspicion is essential for early diagnosis and better prognosis.

We report a rare case of a patient who survived after emergent surgical procedure for massive upper gastrointestinal bleeding secondary to aberrant right subclavian artery-esophageal fistula after prolonged intubation.

Keywords:
Aberrant right subclavian artery; Massive hemorrhage; Prolonged gastric intubation

Justificativa e objetivos

Artéria subclávia direita anômala é uma anomalia vascular congênita relativamente comum (incidência de 1% a 2%).11. Richardson JV, Doty DB, Rossi NP, et al. Operation of aortic arch anomalies. Ann Thorac Surg. 1981;31:426-32. A maioria dos doentes apresenta-se assintomaticos, tornando difícil a sua identificação precoce.

A presença de artéria subclávia direita anômala pode ter consequências devastadoras durante procedimentos como traqueostomia, intubação traqueal e correção cirúrgica de aneurismas torácicos22. Wienberger G, Randall PA, Parker FB, et al. Involvement of an aberrant right subclavian artery in dissection of thoracic aorta: diagnostic and therapeutic implications. AJR. 1977;129:653-5. ou durante intubação esofágica prolongada.33. Merchant FJ, Nichols RL, Bombeck CT. Unusual complication of nasogastric esophageal intubation - erosion into an aberrant right subclavian artery. J Cardiovasc Surg. 1977;18:147-50. Sondas gástricas podem causar erosão da parede esofágica com formação de fístula com a artéria anômala subjacente, o que origina hemorragia digestiva alta maciça de difícil identificação e controle.

Relato do caso

Doente do sexo masculino, 20 anos, internado em unidade de tratamento intensivo por traumatismo crânio-encefálico grave, traumatismo torácico e abdominal e fratura do membro inferior esquerdo, secundários a acidente automóvel. À entrada encontrava-se hemodinamicamente estável e com Escala de Coma de Glasgow de 4. Apresentava-se intubado orotraquealmente com tubo 7,5 com cuff e em ventilação mecânica. Apresentava também sonda nasogástrica em drenagem livre e sonda vesical.

Ao 22° dia de internamento, o doente mantinha-se sedado com midazolam e intubado para proteção da via aérea e ventilação mecânica, por não se apresentarem condições para ventilação espontânea. Encontrava-se hemodinamicamente estável e mantinha monitoração do débito urinário e sonda nasogástrica para nutrição entérica.

Subitamente desenvolveu quadro de hemorragia digestiva alta, com hematemeses significativas. Foi contatado gastroenterologista de urgência para endoscopia digestiva alta, que revelou: "Abundante quantidade de sangue e coágulos ao longo de todo o trajeto esofágico. O sangue vivo parece ter origem em nível esofágico alto. Toda a cavidade gástrica preenchida por volumoso coágulo, o mesmo sucedendo em nível duodenal". Por gravidade da hemorragia e impossibilidade de identificar a sua origem, foi submetido a intervenção cirúrgica de emergência.

À entrada no bloco operatório o doente apresentava-se em choque hipovolêmico, com hipotensão marcada e palidez intensa das mucosas, e apresentou queda de valores de hemoglobina de 12,3 g/dl para 6,8 g/dl.

Foi submetido a anestesia geral balanceada com sevoflurano, fentanil e rocurônio, para proceder-se à intervenção cirúrgica. Iniciou-se transfusão maciça com o uso do rapid infusion system de soluções coloides, cristaloides e hemoderivados através de cateter venoso central colocado na veia femoral direita e dois cateteres G14 e G16 em ambos os membros superiores.

Durante a laparotomia exploradora e a gastrotomia anterior, não foi possível a identificação da origem da hemorragia. Contatou-se novamente o gastroenterologista para nova endoscopia, que identificou: "Úlcera com hemorragia abundante ao nível do esôfago proximal, a uma distância de 20 cm dos incisivos". Optou-se por encerramento provisório de gastrotomia e abdômen e realização de toracotomía exploradora posterolateral direita, que evidenciou fístula arterioesofágica. Pela necessidade de tratamento cirúrgico diferenciado para correção da fístula arterial, contatou-se cirurgião cardiotorácico.

Foi realizada toracotomia esquerda, com identificação de rotura controlada de artéria subclávia direita anômala. Fez-se retorracotomia direita com laqueação da artéria subclávia direita anômala, esofagorrafia e encerramento abdominal.

Para controle da hemorragia maciça foram administrados 18 U de concentrado eritrocitário, 16 U de plasma fresco congelado, dois pools de plaquetas, complexo protrombínico e fibrinogênio. Foram também administrados 500 ml de coloides e 1.500 ml de cristaloides.

A intervenção cirúrgica teve a duração de oito horas. Finalizada a cirurgia, o doente foi transportado para a unidade de terapia intensiva, intubado em ventilação mecânica e monitorado.

O doente sobreviveu, evoluiu favoravelmente e foi transferido para o Serviço de Cirurgia. Teve alta um mês e meio após esta ocorrência e foi seguido em consulta externa de cirurgia e de medicina física e reabilitação.

Discussão

A anomalia mais comum do arco aórtico é a artéria subclávia direita anômala, cuja incidência é de 1% a 2%.11. Richardson JV, Doty DB, Rossi NP, et al. Operation of aortic arch anomalies. Ann Thorac Surg. 1981;31:426-32. Existindo um predomínio no sexo feminino (65% a 72%).44. Easterbrook JS. Identification of aberrant right subclavian artery on MR images of the cervical spine. J Magn Reson Imaging. 1992;2:507-9. A artéria subclávia direita anômala forma um anel vascular incompleto, emergindo da aorta descendente e cruza obliquamente o mediastino em direção à axila direita. Em 80% dos casos encontra-se posteriormente ao esôfago (como ocorreu no caso clínico descrito), em 15% dos casos entre o esôfago e a traqueia e em 5% dos casos é anterior à traqueia.55. Miller RG, Robie DK, Davis SL, et al. Survival after aberrant right subclavian artery-esophageal fistula: case report and literature review. J Vasc Surg. 1996;24:271-5.

A maioria dos doentes apresentam-se assintomática. No entanto, uma pequena percentagem poderá manifestar sintomas gastrointestinais (disfagia) e, mais raramente, sintomas respiratórios podem estar presentes.66. Neto RC, Figueira A, Belassai E, et al. Hemorragia digestiva por fístula de artéria subclávia direita anômala com esôfago. Rev Ass Med Bras. 1998;44:149-51.

Na ocorrência de hemorragia por comunicação entre esôfago e artéria subclávia direita anômala é extremamente rara. Existem poucos casos relatados após intubação esofágica prolongada.33. Merchant FJ, Nichols RL, Bombeck CT. Unusual complication of nasogastric esophageal intubation - erosion into an aberrant right subclavian artery. J Cardiovasc Surg. 1977;18:147-50.and77. Belkin RI, Keller FS, Everts EC, et al. Aberrant right sub- clavian artery - esophageal fistula: a cause of overwhelming upper gastrointestinal hemorrage. Cardiovasc Intervent Radiol. 1984;7:87-9.

A proximidade anatômica dessa artéria anômala com o esôfago e eventualmente com a traqueia torna-a vulnerável à compressão extrínseca, quer por sondas gástricas, tubos traqueais ou condutos vasculares.55. Miller RG, Robie DK, Davis SL, et al. Survival after aberrant right subclavian artery-esophageal fistula: case report and literature review. J Vasc Surg. 1996;24:271-5.

A incidência relativamente elevada dessa anomalia e o uso comum de sondas gástricas em ambiente hospitalar tornam mais frequente a possibilidade de ocorrência dessa complicação.

A hemorragia causada por fístula esofágica e artéria subclávia direita anômala manifesta-se por hemorragia maciça súbita, com hematemese volumosa de sangue arterial vivo, seguida, frequentemente, de um período assintomático, de duração variável, e um período de hemorragia súbita e frequentemente fatal.33. Merchant FJ, Nichols RL, Bombeck CT. Unusual complication of nasogastric esophageal intubation - erosion into an aberrant right subclavian artery. J Cardiovasc Surg. 1977;18:147-50.and88. Rasslan S, Fava J, Mandia Neto J, et al. Hemorragia digestiva fatal por comunicação arterial com trato digestivo. Rev Ass Med Bras. 1981;27:131-4. Sinais clínicos como pré-cordialgia ou hemorragia sentinela, que estão presentes em 50% dos casos de fístula aortoesofágica, nessa situação raramente estão presentes.55. Miller RG, Robie DK, Davis SL, et al. Survival after aberrant right subclavian artery-esophageal fistula: case report and literature review. J Vasc Surg. 1996;24:271-5.

Quando da ocorrência da hemorragia maciça, a prioridade é assegurar e proteger a via aérea por intubação traqueal. Nesse doente tal não foi necessário, uma vez que já se encontrava intubado e em ventilação mecânica, fato que terá melhorado o seu prognóstico. Posteriormente a prioridade é o controle da hemorragia.

A endoscopia digestiva alta, quando feita precocemente, é essencial para o diagnóstico e a exclusão de outras potenciais causas de hemorragia digestiva. No entanto, a hemorragia maciça, na maioria dos casos, impede um exame endoscópio conclusivo. O diagnóstico da origem da hemorragia na maioria das vezes é feito no intraoperatório come uma laparotomia e/ou toracotomia exploradora, tal como aconteceu no presente caso clínico. Apenas o reconhecimento dessa situação permitirá o estabelecimento do tratamento cirúrgico imediato, com diminuição das repercussões hemodinâmicas consequentes à hemorragia maciça.

O prognóstico do doente depende do diagnóstico precoce e do estabelecimento de correção cirúrgica.55. Miller RG, Robie DK, Davis SL, et al. Survival after aberrant right subclavian artery-esophageal fistula: case report and literature review. J Vasc Surg. 1996;24:271-5.

A dificuldade diagnóstica de doentes com hemorragia maciça secundária a fístula entre artéria subclávia direita anômala e esôfago determina a elevada mortalidade dessa complicação.33. Merchant FJ, Nichols RL, Bombeck CT. Unusual complication of nasogastric esophageal intubation - erosion into an aberrant right subclavian artery. J Cardiovasc Surg. 1977;18:147-50.

Um elevado índice de suspeição é essencial para o diagnóstico precoce dessa situação.77. Belkin RI, Keller FS, Everts EC, et al. Aberrant right sub- clavian artery - esophageal fistula: a cause of overwhelming upper gastrointestinal hemorrage. Cardiovasc Intervent Radiol. 1984;7:87-9.

O relato do presente caso tem como objetivo sensibilizar os anestesiologistas para a presença dessa anomalia congênita, raramente identificada, mas potencialmente responsável por complicações graves e/ou fatais, associadas a atos tão simples como colocação de sondas gástricas ou tubos traqueais.

References

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    Easterbrook JS. Identification of aberrant right subclavian artery on MR images of the cervical spine. J Magn Reson Imaging. 1992;2:507-9.
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    Miller RG, Robie DK, Davis SL, et al. Survival after aberrant right subclavian artery-esophageal fistula: case report and literature review. J Vasc Surg. 1996;24:271-5.
  • 6
    Neto RC, Figueira A, Belassai E, et al. Hemorragia digestiva por fístula de artéria subclávia direita anômala com esôfago. Rev Ass Med Bras. 1998;44:149-51.
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    Belkin RI, Keller FS, Everts EC, et al. Aberrant right sub- clavian artery - esophageal fistula: a cause of overwhelming upper gastrointestinal hemorrage. Cardiovasc Intervent Radiol. 1984;7:87-9.
  • 8
    Rasslan S, Fava J, Mandia Neto J, et al. Hemorragia digestiva fatal por comunicação arterial com trato digestivo. Rev Ass Med Bras. 1981;27:131-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2013
  • Aceito
    25 Jul 2013
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