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Afonia após cirurgia do ombro: relato de caso

RESUMO

Relativamente a este relato de caso destacamos a sua singularidade, uma vez que não se encontram descritos na literatura, tanto ou quanto os autores puderam investigar, casos de afonia após uma anestesia combinada com bloqueio do plexo braquial via interescalénica (BPBI). Embora a rouquidão seja uma complicação frequente do BPBI, a afonia não o é. Desse modo, pensamos ser importante dar a conhecer o primeiro caso de afonia após o BPBI, que na opinião dos autores surgiu apenas por causa de uma lesão crônica do nervo laríngeo recorrente contralateral ao local do BPBI.

Palavras-chave:
Bloqueio; Plexo braquial interescalênico; Afonia; I-Gel; Engasgamento; Nervo laríngeo recorrente

ABSTRACT

In this case report we highlight the uniqueness of aphonia as, to the best of our knowledge, cases of aphonia related to interscalene brachial plexus block (IBPB) are not described in the literature. Although hoarseness is a common complication of IBPB, aphonia is not. Therefore, we think it is important to publicize the first case of aphonia after IBPB, which may have arisen only because of a recurrent laryngeal nerve chronic injury contralateral to the IBPB site.

Keywords:
Block; Interscalene brachial plexus; Aphonia; I-Gel; Choking; Recurrent laryngeal nerve

Justificativa e objetivo

A cirurgia do ombro constitui a principal indicação cirúrgica do bloqueio do plexo braquial via interescalénica (BPBI).11. Winnie AP. Interscalene brachial plexus block. Anesth Analg. 1970;49:455-66. Embora seja uma técnica segura e eficaz, não é isenta de complicações.2, 3-4

Atualmente, existe um interesse crescente no uso de ecografia para orientação de procedimentos anestésicos regionais, tais como bloqueios de nervos periféricos (BNP), mas a sua superioridade relativamente à neuroestimulação é ainda controversa.55. Abrahams M, Aziz MF, Fu RF, et al. Ultrasound guidance com- pared with electrical neurostimulation for peripheral nerve block: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. Br J Anaesth. 2009;102:408-17. Estudos recentes sugerem que a ecografia pode melhorar a eficácia do bloqueio dos nervos periféricos em comparação com a neuroestimulação. Contudo, não está comprovado que o seu uso possa diminuir o número de complicações, como a lesão nervosa ou a toxicidade sistêmica do anestésico local.55. Abrahams M, Aziz MF, Fu RF, et al. Ultrasound guidance com- pared with electrical neurostimulation for peripheral nerve block: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. Br J Anaesth. 2009;102:408-17.and66. Hebl J. Ultrasound-guided regional anesthesia and the pre- vention of neurologic injury: fact or fiction? Anesthesiology. 2008;108:186-8. O uso concomitante de ecografia e neuroestimulação é prática comum, segura e válida para os BNP.

Desde a década de 1990 que os dispositivos supraglóticos são usados frequentemente na abordagem e manutenção da via aérea em doentes submetidos a anestesia geral. É um dispositivo seguro, embora estejam descritas algumas complicações inerentes ao seu uso.77. Gatward JJ, Cook TM, Seller C. Evaluation of the size 4 i-gel airway in one hundred non-paralysed patients. Anaesthesia. 2008;63:1124-30.

O objetivo deste trabalho é a análise do primeiro caso de afonia descrito na literatura, que surgiu após anestesia combinada (BPBI e anestesia geral balanceada [AGB]), no contexto de artroscopia do ombro para correção da síndrome do manguito rotador.

Relato de caso

Doente do sexo feminino, 52 anos, 65 kg, proposta para cirurgia de correção artroscópica do manguito rotador do ombro direito. Antecedentes pessoais de hipertensão arterial medicada e controlada com losartan 50 mg dia, estado físico American Society of Anesthesiologists (ASA) II. Sem antecedentes cirúrgicos e/ou anestésicos relevantes. Exame físico e estudo pré-operatório (hemograma, bioquímica, estudo da coagulação e electrocardiograma) sem alterações.

Foi proposta anestesia combinada: BPBI sob sedação ligeira e AGB. Após a obtenção do consentimento informado, monitoração standard (eletrocardiograma, oximetria de pulso, pressões arteriais não invasivas) e suplemento de oxigênio via cânula nasal a 3 L/min, foi efetuada sedação com midazolan 2 mg IV e feito o BPBI: agulha Echoplex(r) Vygon 50 mm calibre 22G sob controle ecográfico (Sonosite M-Turbo(r)) e neuroestimulação (neuroestimulador Plexygon(r) 7501.31, Vygon). Após identificação ecográfica e por neuroestimulação do plexo braquial (contração dos músculos do antebraço, resposta motora até 0,36 mA, duração do pulso 0,1 msec e frequência 2 Hz), foi efetuada infiltração de 30 ml de ropivacaína 0,5%, sob visualização. Obteve-se bloqueio sensitivo grau 2 e EBM 1 (Escala de Bromage Modificada) ao fim de 20 minutos. Procedeu-se então à AGB: fentanil 2 ug/kg IV e propofol 2,5 mg/kg IV; introdução de dispositivo supraglótico I-Gel 4 sem intercorrências; manutenção com desflurano ET 6% em oxigênio/ar (40%/60%). Analgesia concomitante com paracetamol 1 gr IV e parecoxib 40 mg IV. A cirurgia durou 80 minutos. Não se verificaram complicações anestésicas ou cirúrgicas. Emergência da anestesia e remoção da I-Gel 4 sem complicações. Transporte para UPA em ventilação espontânea, sem sinais de dificuldade respiratória.

Na UPA (Unidade Pós-Anestésica), com a doente já bem acordada, constatou-se incapacidade para emitir sons associada a ptose, miose e enoftalmia. Efetuado o restante do exame neurológico, que não revelou outras alterações. Não se verificaram alterações hemodinâmicas ou respiratórias. O início da reversão dessa sintomatologia observou-se duas horas após a chegada à UPA e manteve-se a rouquidão. Transferência para a enfermaria do serviço de ortopedia sete horas após a BPBI com EBM 0 e rouquidão. No 1° DPO (Dia Pós-operatório) foi reavaliada pela UFDA (Unidade Funcional da Dor Aguda) e já apresentava reversão clínica completa das alterações neurológicas. Nessa consulta, foi efetuada revisão do quadro clínico apresentado nas primeiras horas do pós-operatório, com confirmação da ausência de transmissão/vocalização de sons e de qualquer outro sintoma neurológico associado. Alta hospitalar no 2° DPO.

Consulta de follow-up feita pela UFDA 30 dias após a alta: manutenção da ausência de alterações neurológicas e recuperação cirúrgica adequada. Efetuada exploração mais pormenorizada dos antecedentes pessoais com referência à história de engasgamento frequente com a saliva desde havia mais de 10 anos associada a rouquidão intermitente.

Discussão

Os autores não encontraram caso semelhante a esse descrito na literatura. A afonia (incapacidade total de emissão de sons) aparece na sequência da paralisia bilateral em abdução das cordas vocais. A inervação motora da musculatura das cordas vocais é da responsabildade do nervo laríngeo recorrente (NLR) ipsilateral. A lesão unilateral do NLR torna a corda vocal ipsilateral imóvel e aparece clinicamente uma disfonia ou rouquidão.88. Crumley R. Unilateral recurrent laryngeal nerve paralysis. J Voice. 1994;8:79-83. Se a lesão ou paralisia NLR for bilateral, ambas as cordas vocais ficam imóveis e desenvolve-se afonia.

A causa cirúrgica parece ser a menos provável, dado o tipo e o local da cirurgia. Das outras causas possíveis, os autores destacam: bloqueio NLR bilateralmente com ropivacaína; bloqueio NLR ipsilateral na presença de lesão prévia NLR contralateral; traumatismo/lesão em nível da laringe pelo dispositivo supraglótico I-Gel 4; evento neurológico no intraoperatório.

O exame neurológico efetuado na UPA, após constatação de afonia, não revelou quaisquer outras alterações; apenas bloqueio motor no membro superior do lado do BPBI. Salienta-se preservação dos músculos da mímica e da face, pupilas isofotorreativas e simétricas, o que torna pouco provável a ocorrência de evento neurológico intraoperatório.

Relativamente ao uso da I-Gel, as complicações descritas como mais frequentes são dor/inflamação na orofaringe e disfagia.99. Amini S, Khoshfetrat M. Comparison of the intersurgical solus laryngeal mask and the i-gel supralaryngeal device. Anaesthe- sia. 2010;65:805-9. Rene et al. relatam caso de lesão nervosa com a sua introdução. O principal nervo lesado é o lingual, responsável apenas pela inervação sensitiva da língua.1010. Renes SH, Zwart R, Scheffer GJ. Lingual nerve injury fol- lowing the use of an i-gel laryngeal mask. Anaesthesia. 2011;66:220-31. Não existem casos descritos na literatura de afonia com introdução desse tipo de dispositivo. No caso de máscara laríngea com cuff, existem descritos casos de rouquidão transitória por paralisia dos NLR. Jones et al. justificaram a rouquidão por hiperinsuflação do cuff, com compressão temporária dos NLR e das cordas vocais. 1111. Jones L, Hegab A. Recurrent laryngeal nerve palsy after laryn- geal mask airway insertion. Anaesthesia. 1996;51:171-2. Inomata et al. justificaram a rouquidão transitória por traumatismo das cordas vocais sequelar a hiperinsuflação do cuff da LMA, mas também colocam a possibilidade de traumatismo das cordas vocais pela laringoscopia efetuada previamente à colocação da respetiva LMA. 1212. Inomata S, Nishikawa T, Suga A, et al. Transient bilateral vocal cord paralysis after insertion of laryngeal mask airway. Anes- thesiology. 1995;82:787-8.

Na opinião dos autores, a afonia parece ter sido causada pelo BPBI. Embora o BPBI à direita não seja suficiente para causar afonia, uma vez que apenas poderá condicionar o bloqueio do NLR ipsilateral, com aparecimento de rouquidão ou disfonia (e não afonia) poder-se-ia pensar num extravasamento do anestésico local para o lado oposto do pescoço com bloqueio bilateral dos NLR. Contudo, o volume total de anestésico local usado e as estruturas anatômicas que o anestésico local teria de ultrapassar para atingir o NLR contralateral tornam essa hipótese pouco provável. Os autores não encontraram na literatura relatos de extravasamento contralateral de anestésico local após BPBI.

A referência a uma história de engasgamento fácil e rouquidão intermitente frequente, com evolução superior a dez anos, nunca valorizada pela doente, sugere a presença de paralisia unilateral de uma corda vocal, que impede o reflexo eficaz de proteção da via aérea e promove desenvolvimento de rouquidão intermitente frequente. A reversão do BPBI teve início aproximadamente duas horas após, tempo previsto de bloqueio das fibras nervosas motoras e para início de reversão da afonia. Esses dados permitem justificar a afonia como resultante de um BPBI à direita em doente com lesão crônica prévia do NLR à esquerda. A ausência de sinais de dificuldade respiratória faz supor que a paralisia das cordas vocais ocorreu em abdução, e não em adução, o que permitiu a ventilação espontânea.

Os autores consideram que a causa mais provável para a afonia transitória nessa doente foi o bloqueio temporário do NLR pela ropivacaína, na presença de lesão prévia unilateral do NLR contralateral.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2013
  • Aceito
    19 Set 2013
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