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Abordagem alternativa para instabilidade autonômica no tétano muito grave: bloqueio do gânglio estrelado

Resumo

O tétano é uma doença aguda e fatal causada por Clostridium tetani. Um homem de 60 anos deu entrada em nosso hospital depois de ferir o polegar com uma faca. Após dez dias, deu entrada no hospital com espasmos abdominais; foi vacinado contra tétano e enviado para a unidade de terapia intensiva. Como apresentava dificuldade súbita na respiração, foi intubado. Foi iniciada uma infusão de midazolam, magnésio e esmolol. No dia seguinte, os espasmos musculares progrediram para o corpo todo. A infusão de midazolam foi substituída por propofol e vecurônio. No terceiro dia, foi adicionada morfina à infusão. No 16º dia, foi iniciada uma infusão de dexmedetomidina. No 20º dia, o bloqueio do gânglio estrelado guiado por ultrassom foi realizado para dessensibilizar a atividade simpática. O bloqueio foi feito três vezes em dez dias. No 30º dia, o paciente recuperou-se de um tétano muito grave. A base do tratamento de tétano é a sedação adequada. Nos últimos anos, os bloqueios neuraxiais provaram ser eficazes para o controle da hiperatividade simpática. O colapso circulatório continua a ser a principal causa de morte. O mecanismo não está claro, mas se acredita que a função alterada do miocárdio esteja relacionada com os níveis de catecolaminas mutáveis. O efeito do bloqueio do gânglio estrelado sobre o controle simpático e parassimpático do coração tem sido estudado desde o início da década de 1980. Recentemente, Scanlon et al. relataram o tratamento de um paciente com arritmia ventricular refratária a medicamentos com bloqueio bilateral do gânglio estrelado guiado por ultrassom. Em conclusão, o bloqueio do gânglio estrelado pode ser um método opcional quando a tempestade autonômica não pode ser controlada com agentes medicamentosos.

PALAVRAS-CHAVE
Bloqueio do gânglio estrelado; Tétano; Instabilidade autonômica; Unidade de Terapia Intensiva

Abstract

Tetanus is an acute and deadly disease caused by Clostridium tetani. A 60-year-old male came to hospital after he injured his thumb with a knife. Ten days later, he returned to hospital with abdominal spasms. He was vaccinated against tetanus and referred to intensive care unit. As he had sudden difficulty in respiration, he was entubated. Midazolam, magnesium and esmolol infusion were started. Next day, muscle spasms progressed all over his body. Midazolam infusion was replaced with propofol and vecuronium. At the third day, morphine infusion was added. At the 16th day, dexmedetomidine infusion was started. At the 20th day, ultrasound guided stellate ganglion block was performed to denervate sympathetic activity. The block was performed three times in a 10 days period. At the 30th, the patient recovered from very severe tetanus. The mainstay of tetanus treatment is adequate sedation. Neuroaxial blocks were proved to be effective for the control of sympathetic overactivity in recent years. Circulatory collapse remains to be the major cause of death. The mechanism is unclear but altered myocardial function is thought to be related to changeable catecholamine levels. The effect of stellate ganglion block on sympathetic and parasympathetic control of heart has been studied since the beginning of 1980s. Recently Scanlon et al. reported they treated a patient with medically refractory ventricular arrhythmias by ultrasound guided bilateral stellate ganglion block. In conclusion, stellate ganglion block can be an alternative method when the autonomic storm cannot be controlled with medical agents.

KEYWORDS
Sellate ganglion block; Tetanus; Autonomic instability; Intensive care unit

Introdução

O tétano é uma doença aguda e mortal causada pela neurotoxina do Clostridium tetani. Embora a prevenção seja possível com um programa de vacinação generalizado feito desde a infância até a idade adulta, o tétano continua a ser um problema potencialmente fatal nos países em desenvolvimento.11 Oladiran I, Meier DE, Ojelade AA, et al. Tetanus: continuing problem in the developing world. World J Surg. 2002;26:1282-5. A disfunção autonômica em estágios avançados é a causa mais significativa de morte; portanto, o controle das flutuações nos parâmetros hemodinâmicos é de vital importância.

Neste relato de caso, descrevemos a modalidade de tratamento incomum de um paciente com tétano generalizado de forma muito grave.

Relato de caso

Paciente do sexo masculino, 60 anos, deu entrada no hospital com uma ferida no polegar esquerdo, causada por equipamento pontiagudo de construção. Após a limpeza da ferida, foi administrada uma dose única de penicilina. O paciente apresentou-se ao hospital com espasmos abdominais 10 dias depois, recebeu vacina contra o tétano e foi enviado para unidade de terapia intensiva. Na admissão, estava consciente e com orientação e cooperação intactas. Havia espasmos em suas costas, abdome e ao redor da boca, mas não havia rigidez muscular e também não apresentava dificuldade de abrir a boca. Seus sinais vitais estavam completamente estáveis e em intervalos normais. Foi colocado em um quarto escuro e isolado. Imunoglobulina tetânica e metronidazol foram administrados. A ferida foi desbridada. Após apenas 10 horas (h) de sua admissão, foram observadas hipertensão refratária e taquicardia. O paciente apresentou uma súbita dificuldade para respirar e, portanto, foi imediatamente intubado. Foram iniciadas injeções de midazolam e magnésio para a sedação. Como a hipertensão a e taquicardia persistiram, uma infusão de esmolol foi adicionada à terapia. No segundo dia, foram observadas flutuações nos parâmetros hemodinâmicos. Espasmos musculares progrediram por todo o corpo. A infusão de midazolam foi substituída por propofol e vecurônio. O paciente teve uma parada cardíaca e foi reanimado por 5 minutos (min). No terceiro dia, foi adicionada infusão de morfina à terapia. Apesar da sedação agressiva, as convulsões e os espasmos musculares continuaram a ser facilmente desencadeados. Planejamos sessões de plasmaférese para diminuir a carga bacteriana em sua corrente sanguínea. Após cada sessão, eram repetidas as doses de imunoglobulina tetânica e de antibióticos. No 10º dia, fizemos traqueostomia percutânea sem complicações. No 16º dia, a terapia com plasmaférese terminou e iniciamos infusão de dexmedetomidina para o controle de tempestades cardíacas. A dexmedetomidina conseguiu estabilizar os parâmetros hemodinâmicos por apenas dois dias. No 20º dia, foi feito bloqueio do gânglio estrelado guiado por ultrassom para bloquear a atividade simpática. Bupivacaína a 0,5% (5 mL) e solução isotônica (5 mL) foram aplicadas perpendicularmente à superfície anterior da sexta vértebra cervical com abordagem paratraqueal anterior. Duas horas mais tarde, houve aumento de 1,5 ºC na temperatura da mão esquerda e diminuição aproximada de 20% na frequência cardíaca. O procedimento foi repetido três vezes em 10 dias. No 30º dia, todos os medicamentos foram interrompidos para avaliação do estado mental. Não houve ocorrência de espasmos musculares ou convulsões. O paciente recuperou-se de um tétano grau IV.

Discussão

O pilar do tratamento de tétano é a sedação adequada. As benzodiazepinas são agonistas de GABA-A que indiretamente antagonizam o efeito da toxina tetânica.11 Oladiran I, Meier DE, Ojelade AA, et al. Tetanus: continuing problem in the developing world. World J Surg. 2002;26:1282-5. Portanto, a infusão de midazolam foi nossa primeira escolha no tratamento, mas, apesar de um protocolo agressivo de sedação com midazolam, propofol, magnésio, morfina e dexmedetomidina, respectivamente, não foi possível obter um resultado satisfatório.

O colapso circulatório, que é o resultado da instabilidade autonômica, continua a ser a principal causa de morte. Durante as tempestades autonômicas, observam-se flutuações que vão desde hipertensão e taquicardia até uma profunda depressão com hipotensão, bradicardia e queda da pressão venosa central. O mecanismo ainda não está claro, mas se acredita que a função alterada do miocárdio esteja relacionada com a elevação e a retração repentina dos níveis de catecolaminas. Nos últimos anos, os bloqueios epidural e espinal provaram ser efetivos no controle da hiperatividade simpática;22 Hassel B. Tetanus: pathophysiology, treatment, and the possibility of using botulinum toxin against tetanus-induced rigidity and spasms. Toxins. 2013;5:73-83. portanto, consideramos a aplicação de anestesia peridural. Porém, nosso paciente era obeso e suas convulsões e seus espasmos musculares eram fáceis de desencadear; então, seria difícil proporcionar uma posição adequada para o bloqueio peridural. Consequentemente, decidimos fazer o bloqueio do gânglio estrelado (BGE) para controlar a atividade simpática. O efeito do BGE sobre o controle simpático e parassimpático do coração tem sido estudado desde o início da década de 1980. Em 2008, Yoshimoto et al. estudaram os efeitos cardíacos da denervação do gânglio estrelado em ratos. Os autores mostraram que, após a ganglionectomia bilateral do gânglio estrelado ou procedimentos de denervação do gânglio estrelado, a frequência cardíaca de ratos diminuiu significativamente.33 Yoshimoto M, Wehrwein EA, Novotny M, et al. Effect of stellate ganglionectomy on basal cardiovascular function and responses to beta1-adrenoceptor blockade in the rat. Am J Physiol Heart Circ Physiol. 2008;295:H2447-54. É de amplo conhecimento que o BGE afeta o sistema nervoso tanto simpático quanto parassimpático com base no grau do bloqueio. Como a inervação simpática eferente do gânglio estrelado é primeiramente distribuída sobre o nodo sinusal do coração, não surpreende que possa resultar em alterações da frequência cardíaca. Em 2015, Scanlon et al. relataram o tratamento de um paciente com arritmias ventriculares refratárias a medicamentos com BGE bilateral guiado por ultrassom. Os autores declararam que o BGE forneceu bloqueio simpático que interrompeu a superatividade simpática, contribui para arritmias ventriculares e ajudou a controlar a tempestade elétrica ventricular.44 Scanlon MM, Gillespie SM, Schaff HV, et al. Urgent ultrasound-guided bilateral stellate ganglion blocks in a patient with medically refractory ventricular arrhythmias. Crit Care Med. 2015;43:e316-e318.

A norepinefrina tem efeitos cardioestimuladores conhecidos e mostrou ser depletada após a denervação do complexo do gânglio estrelado. Em estudo conduzido por Yoshimoto et al., o nível de catecolaminas, como norepinefrina, epinefrina e dopamina, diminuiu acentuadamente em todas as câmaras cardíacas de ratos após a ganglionectomia do estrelado. Esse resultado despertou a ideia de que os terminais nervosos simpáticos eram a sua fonte primária no coração.33 Yoshimoto M, Wehrwein EA, Novotny M, et al. Effect of stellate ganglionectomy on basal cardiovascular function and responses to beta1-adrenoceptor blockade in the rat. Am J Physiol Heart Circ Physiol. 2008;295:H2447-54. Embora esse não seja o mecanismo principal do corpo para controlar a liberação de catecolaminas, decidimos fazer o BGE como uma forma opcional de controlar as tempestades cardíacas.

A síndrome clínica do tétano é causada pela toxina tetanospasmina do Clostridium tetani. Quando a carga da toxina é alta, as toxinas entram na corrente sanguínea e ligam-se aos terminais nervosos em todo o corpo.22 Hassel B. Tetanus: pathophysiology, treatment, and the possibility of using botulinum toxin against tetanus-induced rigidity and spasms. Toxins. 2013;5:73-83. Como a toxina é internalizada e transportada intracelular via axonal para o corpo celular, a plasmaférese pode parecer ineficaz. Contudo em 2007, Rogalewski et al. relataram a melhoria de um paciente com encefalite desmielinizante avançada após vacina. O paciente havia recebido vacina ativa recombinante contra os vírus das hepatites A e B, difteria, tétano e antígeno de poliovírus no mesmo dia e melhorou com a ajuda de plasmaférese iniciada até três meses após o início dos sintomas.55 Rogalewski A, Kraus J, Hasselblatt M, et al. Improvement of advanced postvaccinal demyelinating encephalitis due to plasmapheresis. Neuropsychiatr Dis Treat. 2007;3:987-91. Planejamos cinco sessões de plasmaférese em nosso paciente, mas o resultado não foi eficaz o bastante para controlar a instabilidade autonômica.

Conclusão: o tétano é uma doença evitável que apresenta alta taxa de mortalidade. Os distúrbios autonômicos que envolvem o sistema cardiovascular são o maior problema em casos muito graves. O bloqueio do gânglio estrelado pode ser um método opcional quando a tempestade autonômica não pode ser controlada com agentes medicamentosos.

References

  • 1
    Oladiran I, Meier DE, Ojelade AA, et al. Tetanus: continuing problem in the developing world. World J Surg. 2002;26:1282-5.
  • 2
    Hassel B. Tetanus: pathophysiology, treatment, and the possibility of using botulinum toxin against tetanus-induced rigidity and spasms. Toxins. 2013;5:73-83.
  • 3
    Yoshimoto M, Wehrwein EA, Novotny M, et al. Effect of stellate ganglionectomy on basal cardiovascular function and responses to beta1-adrenoceptor blockade in the rat. Am J Physiol Heart Circ Physiol. 2008;295:H2447-54.
  • 4
    Scanlon MM, Gillespie SM, Schaff HV, et al. Urgent ultrasound-guided bilateral stellate ganglion blocks in a patient with medically refractory ventricular arrhythmias. Crit Care Med. 2015;43:e316-e318.
  • 5
    Rogalewski A, Kraus J, Hasselblatt M, et al. Improvement of advanced postvaccinal demyelinating encephalitis due to plasmapheresis. Neuropsychiatr Dis Treat. 2007;3:987-91.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    17 Jun 2016
  • Aceito
    13 Set 2016
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