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Volemia e transplante renal

O transplante renal é considerado o tratamento de escolha da insuficiência renal crônica terminal, apresentando maior sobrevida que a terapia dialítica.11 Associação Brasileira de Transplantes de órgãos. Registro Brasileiro de Transplantes, http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2019/RBT-2019-leitura.pdf (Acesso 28 maio de 2020).
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O Brasil é o segundo país do mundo em número absoluto de transplantes de rim, atrás apenas dos EUA, porém ocupa a trigésima posição em número de transplantes por milhão de habitantes. Em 2019, foram realizados no país mais de seis mil transplantes renais, a maioria proveniente de doadores falecidos. Apesar do número de procedimentos ser expressivo, a demanda brasileira é crescente, sendo que em dezembro do referido ano, mais de 25 mil pacientes aguardavam em lista de espera.

Nas últimas décadas, os avanços das terapias imunossupressoras e dos cuidados clínico-cirúrgicos resultaram em aumento da sobrevida do enxerto, porém a incidência de disfunção do enxerto permaneceu estável, o que é atribuído ao crescente uso de órgãos marginais.

O manejo hemodinâmico otimizado no período intraoperatório do transplante renal é associado a melhor sobrevida do órgão transplantado. Os pacientes com insuficiência renal crônica terminal tendem a oscilar entre os extremos da volemia, havendo uma faixa terapêutica estreita para a reposição volêmica. Enquanto a hipovolemia agrava a perfusão do enxerto renal, a hipervolemia pode provocar complicações relacionadas a sobrecarga volêmica. A reposição volêmica adequada reduz complicações perioperatórias, entretanto, não existe consenso em relação à estratégia hemodinâmica ideal.22 Snoeijs MG, Wiermans B, Christiaans MH, et al. Recipient hemodynamics during non-heart-beating donor kidney transplantation are major predictors of primary nonfunction. Am J Transplant. 2007;7:1158-66.

A estratégia volêmica tradicionalmente adotada consiste na infusão liberal de cristaloides guiada por medidas de Pressão Venosa Central (PVC) e Pressão Arterial Média (PAM). Os grandes volumes administrados pretendem preservar o fluxo sanguíneo renal, uma vez que os mecanismos de autorregulação do órgão desnervado estão comprometidos e valores de PAM acima de 80 mmHg são associados a menor incidência de necrose tubular aguda e disfunção precoce do enxerto.33 Jacob M, Chappell D, Becker BF. Regulation of blood flow and volume exchange across the microcirculation. Crit Care. 2016;20:319.

No final da década de 1980, Shoemaker et al. introduziram o conceito de supra otimização cardiovascular guiada por metas hemodinâmicas que, inicialmente, foi associado a maior sobrevida em pacientes de alto risco.4 Esse conceito foi aprimorado e avaliado por estudos clínicos ao longo de décadas, originando o conceito da Terapia Guiada por Metas Hemodinâmicas (TGMH).5

O emprego da TGMH na prática clínica envolve a adoção de um protocolo com base na interpretação de variáveis hemodinâmicas e na administração de fluidos e drogas vasoativas, em diferentes associações. Os protocolos de TGMH variam em relação ao tipo de fluido administrado (cristaloides e/ou coloides), às classes de drogas vasoativas empregadas (vasopressores e/ou ionotrópicos) e às variáveis hemodinâmicas utilizadas, obtidas por diferentes monitores cardiovasculares, como o doppler esofágico, a bioimpedância e os monitores de débito cardíaco, calibrados ou não.5

Os índices estáticos da pré-carga cardíaca, como a Pressão de Oclusão da Artéria Pulmonar (POAP), a PVC e o volume diastólico final global obtido pela termodiluição transpulmonar, não são capazes de predizer a volemia adequadamente. As medidas dinâmicas da pré-carga, como a Variação da Pressão de Pulso (VPP) e a Variação do Volume Sistólico (VVS), são capazes de predizer a fluidorresponsividade por meio da análise da interação cardiopulmonar deflagrada pela ventilação com pressão positiva, ou seja, são como testes da curva de Frank-Starling a beira-leito.64 Shoemaker WC, Appel PL, Kram HB, et al. Prospective trial of supranormal values of survivors as therapeutic goals in high-risk surgical patients. Chest. 1988;94:1176-86.,77 Chappell D, Jacob M, Hofmann-Kiefer K, Conzen P, Rehm M. A rational approach to perioperative fluid management. Anesthesiology. 2008;109:723-40.

A medida da VPP é o índice dinâmico utilizado com maior frequência, apresentando excelente sensibilidade e especificidade quando abaixo de 9% e acima de 12%.77 Chappell D, Jacob M, Hofmann-Kiefer K, Conzen P, Rehm M. A rational approach to perioperative fluid management. Anesthesiology. 2008;109:723-40. Entretanto, valores intermediários apresentam menor acurácia na predição da volemia. Vale ressaltar que as limitações à sua utilização devem ser respeitadas, uma vez que seu valor preditivo depende da correta interpretação. Portanto, essa medida não deve ser adotada nas seguintes situações: ventilação espontânea, arritmias cardíacas, baixa complacência pulmonar, volume corrente menor que 8 mL/Kg, hipertensão intra-abdominal e falência de ventrículo direito.88 Monnet X, Marik PE, Teboul JL. Prediction of fluid responsiveness: an update. Ann Intensive Care. 2016;6:111.

O manejo anestésico das cirurgias de grande porte pretende reduzir riscos e otimizar desfechos. Portanto, a TGMH vem sendo utilizada com o objetivo de reduzir a morbimortalidade no perioperatório.77 Chappell D, Jacob M, Hofmann-Kiefer K, Conzen P, Rehm M. A rational approach to perioperative fluid management. Anesthesiology. 2008;109:723-40. Entretanto, os protocolos de TGMH são heterogêneos e o benefício clínico dessa estratégia ainda é controverso. Enquanto algumas meta-análises demonstram que a TGMH melhora a perfusão renal e reduz a morbimortalidade em cirurgias de grande porte,99 Sun Y, Chai F, Pan C, Romeiser JL, Gan TJ. Effect of perioperative goal directed hemodynamic therapy on postoperative recovery following major abdominal surgery-a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. Crit Care. 2017;21:141.,1010 Giglio M, Dalfino L, Puntillo F, Brienza N. Hemodynamic goal-directed therapy and postoperative kidney injury: an updated meta-analysis with trial sequential analysis. Crit Care. 2019;23:232. outras sugerem que o seu benefício é apenas marginal.1111 Pearse RM, Harrison DA, MacDonald N, et al. Effect of a perioperative, cardiac output-guided hemodynamic therapy algorithm on outcomes following major gastrointestinal surgery: a randomized clinical trial and systematic review. JAMA. 2014;311:2181-90.

Nesta edição 70(3) da BJAN, De Cassai A et al. avaliaram, por meio de estudo prospectivo e randomizado, a performance da TGMH no perioperatório de transplante renal de doador falecido. A estratégia volêmica guiada pela medida da VPP foi comparada à tradicional (10 mL.Kg-1.h-1), com resultados semelhantes em relação ao débito urinário ao final da cirurgia.1212 De Cassai A, et al. Reposição de volume orientada pela variação da pressão de pulso durante transplante renal: estudo randomizado controlado. Rev Bras Anestesio. 2020;70:194-201.

A TGMH no contexto do transplante renal foi avaliada principalmente por estudos observacionais, como por exemplo, os trabalhos de Toyoda et al.1313 Toyoda D, Fukuda M, Iwasaki R, et al. The comparison between stroke volume variation and filling pressure as an estimate of right ventricular preload in patients undergoing renal transplantation. J Anesth. 2015;29:40-6. e Chin, J-H et al.,1414 Chin JH, Jun IG, Lee J, Seo H, Hwang GS, Kim YK. Can stroke volume variation be an alternative to central venous pressure in patients undergoing kidney transplantation?. Transplant Proc. 2014;46:3363-6. que demonstraram que a VVS é capaz de predizer a volemia durante o transplante renal. Estudos clínicos prospectivos analisaram a VVS como parte do protocolo da TGMH, obtendo resultados semelhantes à terapia convencional.1515 Corbella D, Toppin PJ, Ghanekar A, et al. Cardiac output-based fluid optimization for kidney transplant recipients: a proof-of-concept trial. Gestion optimisée des liquides basée sur le débit cardiaque chez les transplantés rénaux: un essai de preuve de concept. Can J Anaesth. 2018;65:873-83. A maioria dos estudos abordam a eficácia da TGMH nos transplantes com doador vivo, uma vez que o tempo de isquemia fria e a qualidade do enxerto renal podem interferir na resposta hemodinâmica do paciente, atuando como variável de confusão na avaliação do desfecho.

Os pacientes submetidos a transplante renal apresentam alterações fisiopatológicas decorrentes da IRC que podem interferir nas medidas hemodinâmicas em que a TGMH é baseada. A presença de fístula arteriovenosa provoca aumento da massa ventricular esquerda, do fluxo sanguíneo pulmonar e do débito cardíaco, o que pode interferir no cálculo estimado do volume sistólico.1616 Rao NN, Stokes MB, Rajwani A, et al. Effects of arteriovenous fistula ligation on cardiac structure and function in kidney transplant recipients. Circulation. 2019;139:2809-18. Ademais, o endurecimento e o remodelamento precoce do sistema arterial nesses pacientes podem influenciar a medida estimada do VS e afetar a medida da VPP, uma vez que altera a velocidade da propagação da onda de pulso.1717 London GM. Arterial stiffness in chronic kidney disease and end-stage renal disease. Blood Purif. 2018;45:154-8.

A disfunção do enxerto, cujo conceito é variável, pode não ser o melhor desfecho para avaliar a efetividade da TGMH, uma vez que fatores associados ao doador, ao receptor e à preservação do órgão interferem na sua incidência.1818 Yarlagadda SG, Coca SG, Garg AX, et al. Marked variation in the definition and diagnosis of delayed graft function: a systematic review. Nephrol Dial Transplant. 2008;23:2995-3003. A otimização hemodinâmica perioperatória reduz a incidência da hipoperfusão renal, que é apenas uma das causas associadas ao não funcionamento do rim transplantado. A oligúria perioperatória é uma resposta fisiológica ao estresse cirúrgico, não sendo preditor da fluido responsividade ou da função renal, como demonstrado por Eriksen e colaboradores em modelo porcino de transplante renal; portanto, o débito urinário pode não ser um desfecho adequado para avaliar a efetividade da TGMH.1919 Eriksen JK, Nielsen LH, Moeslund N, et al. Goal-directed fluid therapy does not improve early glomerular filtration rate in a porcine renal transplantation model. Anesth Analg. 2020;130:599-609.

A TGMH é uma estratégia de otimização individualizada cujo impacto na atenuação da mortalidade cirúrgica ainda é controverso. A utilização dessa estratégia durante o transplante renal encontra desafios relacionados às adaptações cardiovasculares próprias da doença renal crônica, que podem afetar a acurácia das medidas hemodinâmicas que guiam a ressuscitação volêmica desses pacientes.

O papel da TGMH no transplante renal ainda não está estabelecido, sendo necessários estudos clínicos bem delineados para determinar a sua influência na disfunção do enxerto e na incidência de complicações pós-operatórias. O expressivo número de transplantes renais no Brasil pode permitir a formação de uma rede de pesquisa para viabilizar a realização de estudos multicêntricos com poder suficiente para gerar conclusões robustas sobre o tema.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Set 2020
  • Data do Fascículo
    May-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    1 Jun 2020
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