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Uma perspectiva paradigmática visionária: mestrado profissional em enfermagem

RESUMO

Objetivo:

Refletir sobre os conceitos-chave da obra A estrutura das revoluções científicas e sua aplicabilidade no mestrado profissional em enfermagem.

Método:

Estudo teórico-reflexivo, que parte das concepções filosóficas e epistemológicas do filósofo Thomas Samuel Kuhn a fim de pensar sua aplicabilidade na mudança de paradigma dos cursos de pós-graduação stricto sensu em enfermagem. Buscou-se suporte nos principais conceitos de Kuhn: paradigma, anomalia, comunidade científica e revolução científica.

Resultados:

As proposições do referido filósofo se aplicam e ao mesmo tempo sustentam a reflexão teórica sobre o mestrado profissional, contribuindo para aclarar o que seria uma perspectiva paradigmática visionária na modalidade stricto sensu de mestrado em enfermagem.

Conclusão:

Por meio das proposições de Kuhn foi possível concluir que os programas de mestrado profissional em enfermagem são capazes de romper com o paradigma dominante, potencializando uma revolução científica no âmbito acadêmico.

Descritores:
Educação de Pós-Graduação em Enfermagem; Educação Profissionalizante; Desenvolvimento Tecnológico; Enfermagem; Programas de Pós-Graduação em Saúde

ABSTRACT

Objective:

To reflect on the key concepts of the book The Structure of Scientific Revolutions and its applicability in professional master's in nursing.

Method:

This is a theoretical-reflective study that uses the philosophical and epistemological conceptions of the philosopher Thomas Samuel Kuhn to consider its applicability on the paradigm shift of stricto sensu graduate courses in nursing. The main concepts of Kuhn were used as support: paradigm, anomaly, scientific community and scientific revolution.

Results:

The propositions of this philosopher are applied to and support the theoretical reflection on professional master's programs, contributing to clarify what would be a paradigmatic visionary perspective in stricto sensu master's models in nursing.

Conclusion:

From Kuhn's propositions it was possible to conclude that professional master's programs in nursing can break away from the dominant paradigm, strengthening a scientific revolution within the academia.

Descriptors:
Education, Nursing, Graduate; Education, Professional; Technological Development; Nursing; Health Postgraduate Programs

RESUMEN

Objetivo:

Reflexionar sobre los conceptos clave de la obra A estrutura das revoluções científicas y su aplicabilidad en el máster profesional en enfermería.

Método:

Estudio teórico-reflexivo que parte de las concepciones filosóficas y epistemológicas del filósofo Thomas Samuel Kuhn a fin de pensar su aplicabilidad en el cambio de paradigma de los cursos de postgrado stricto sensu en enfermería. Se buscó soporte en los principales conceptos de Kuhn: el paradigma, la anomalía, la comunidad científica y la revolución científica.

Resultados:

Las proposiciones del referido filósofo se aplican y al mismo tiempo sostienen la reflexión teórica sobre el máster profesional, contribuyendo a aclarar lo que sería una perspectiva paradigmática visionaria en la modalidad stricto sensu de maestría en enfermería.

Conclusión:

A través de las proposiciones de Kuhn se concluyó que los programas de maestría profesional en enfermería pueden romper con el paradigma dominante, potenciando una revolución científica en el ámbito académico.

Descriptores:
Educación de Posgrado en Enfermería; Educación Profesional; Desarrollo Tecnológico; Enfermería; Programas de Posgradoem Salud

INTRODUÇÃO

Thomas Samuel Kuhn, físico teórico, é considerado um dos mais influentes filósofos da ciência do século XX, reconhecido pela comunidade científica por seu destaque na epistemologia contemporânea e por suas contribuições no campo da filosofia e da história da ciência, principalmente após a publicação, em 1962, de sua obra A estrutura das revoluções científicas. Esta obra lhe rendeu o reconhecimento como um dos cientistas mais influentes da era contemporânea, pelos vários conceitos por ele delineados para descrever o desenvolvimento da ciência, entre os quais se destaca, nesta reflexão: paradigma, anomalia, comunidade científica e revolução científica.

É possível compreender, no transcorrer de sua obra, que o desenvolvimento da ciência se dá de maneira dinâmica e cíclica. Para o autor, o paradigma é, entre outras definições, uma representação de um padrão a ser seguido. Contudo, um único paradigma não é suficiente para elucidar todas as anomalias (problemas provenientes do campo da pesquisa). Nesse entendimento, cabe aos membros da comunidade científica apresentar novas proposições que, se aceitas, podem conduzir a um novo paradigma e, por consequência, a uma revolução cientifica no meio acadêmico(11 Kuhn TS. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva; 2011.).

Ao associar os conceitos de Kuhn com o ensino de enfermagem de pós-graduação stricto sensu no Brasil, observa-se que estes conceitos se enquadram desde a homologação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1961. Alguns tópicos desta lei eram passíveis de duplo entendimento, em especial os do artigo n° 69, carecendo a posteriori de maiores esclarecimentos por parte de militantes envolvidos com a área, tanto do ponto de vista acadêmico como administrativo, necessitando de uma conceituação mais precisa, de caráter mais operacional que doutrinário(22 Sucupira N. Antecedentes e primórdios da pós-graduação. Forum Educ. 1980; 4(4):3-18.).

Em 1965, solicitou-se a Newton Sucupira que tecesse algumas considerações sobre a LDB a fim de aclarar seus sentidos dúbios, resultando num parecer que estrutura as bases filosóficas da pós-graduação brasileira. De acordo com o documento, conhecido como Parecer Sucupira, não se pode pensar na ascensão de um país cujas bases de ensino e pesquisa estão fragilizadas e sem delineamento consistente. Por suas valiosas contribuições, Newton foi reconhecido como o pai da pós-graduação.

No parecer já era possível vislumbrar caminhos distintos para a implementação da pós-graduação no Brasil: o acadêmico e o profissional, evidenciados especialmente no seguinte trecho: “o seu objetivo imediato é, sem dúvida, proporcionar ao estudante aprofundamento do saber que lhe permita alcançar elevado padrão de competência científica ou técnico-profissional, impossível de adquirir no âmbito da graduação”(33 Almeida Jr A, Sucupira N, Salgado C, Barreto Filho J, Rocha e Silva M, Trigueiro D, et al. Parecer CFE nº 977/65, aprovado em 3 dez. 1965: definição dos cursos de pós-graduação. Rev Bras Educ [Internet]. 2005 [cited 2018 Feb 28];(30):162-73. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n30/a14n30.pdf
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).

Embora a perspectiva da criação de um mestrado profissional constasse na LDB e no Parecer Sucupira, redigidos por experts da área, os profissionais designados para a constituição desta modalidade de ensino na enfermagem, talvez por sua práxis profissional, deram preferência à formação de um curso estritamente acadêmico, cuja prioridade era a formação de mestres docentes, deixando no esquecimento a modalidade do ensino profissional.

Compreende-se que tanto a prática científica como a modalidade de ensino stricto sensu (mestrado profissional) estão alicerçadas em paradigmas, uma vez que os pesquisadores e seus orientandos pesquisam seus objetos de pesquisa a partir de um referencial teórico e de bases conceituais, com o objetivo de encontrar soluções aplicáveis aos problemas que emergem da práxis profissional.

Assim, mesmo reconhecendo que as teorias do filósofo Thomas Kuhn não estavam originalmente direcionadas às áreas das ciências da saúde e da educação, concebe-se que seus conceitos se aplicam ao delineamento do mestrado profissional em enfermagem, uma vez que esta modalidade de ensino encontra-se pautada no contexto histórico em que a pós-graduação brasileira, inclusive a de enfermagem, esteve inserida ao longo do tempo(44 Pinhão AO. A transição de paradigma na ciência e na educação: uma possível contribuição de Thomas Kuhn para a formação inicial de professores. Rev Educ Perspec [Internet]. 2017 [cited 2018 Feb 28]; 8(1):106-21. Available from: https://educacaoemperspectiva.ufv.br/index.php/ppgeufv/article/view/682/197
https://educacaoemperspectiva.ufv.br/ind...
).

Como a enfermagem está imersa nas especificações e particularidades do processo de construção diária do saber técnico-científico, o mestrado profissional vem ao encontro da necessidade de ruptura do antigo paradigma existente (mestrado acadêmico) e da necessidade de se criar uma verdadeira revolução científica no campo acadêmico.

Neste sentido, ao examinar a obra A estrutura das revoluções científicas, nos valemos das proposições de Thomas Kuhn quando ratifica que “as realizações científicas universalmente reconhecidas [...], durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”(11 Kuhn TS. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva; 2011.).

OBJETIVO

Refletir sobre os conceitos-chave da obra A estrutura das revoluções científicas – paradigma, anomalia, comunidade científica e revolução científica – e sua aplicabilidade no mestrado profissional em enfermagem.

MÉTODO

Trata-se de uma reflexão teórica, de perspectiva epistemológica e filosófica, sobre os pontos-chave da obra A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Samuel Kuhn(11 Kuhn TS. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva; 2011.).

O texto está organizado nas seguintes seções: “Um passeio pelos conceitos-chave de A estrutura das revoluções científicas: o conceito de paradigma; “Processos de uma revolução científica”; e “Uma perspectiva paradigmática visionária: mestrado profissional em enfermagem”.

UM PASSEIO PELOS CONCEITOS-CHAVE DE A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS: O CONCEITO DE PARADIGMA

A noção de paradigma está presente na linguística desde 1916, sendo anterior, portanto, ao livro de Kuhn, publicado em 1962. Porém, é a partir de seu uso como conceito central nessa obra que o termo se consagra no campo filosófico e epistemológico e se amplia para as mais diversas áreas de conhecimento, como economia, sociologia do trabalho, bioética, saúde pública, administração de saúde e biomedicina(55 Jacobina RR. The paradigm of historical epistemology: Thomas Kuhn's contribution. Hist Cienc Saude-Manguinhos[Internet]. 2000 [cited 2018 Feb 28]; 6(3):609-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702000000400006
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).

Apesar de haver cerca de 21 definições para o termo “paradigma” na referida obra, em momento algum Kuhn afirma que esta ou aquela definição seria a mais apropriada. Neste artigo, opta-se por enfatizar o conceito que tem correspondência com a transição do mestrado acadêmico para o profissional, qual seja: um modelo de mundo que compreende o conjunto de teorias que buscam explicar os fenômenos estudados. Pode-se dizer, portanto, que um paradigma é um conjunto de princípios cognitivos inconscientes e pressupostos que nos permitem interpretar o mundo(11 Kuhn TS. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva; 2011.).

Para o filósofo, a ciência em seu conjunto progride não no sentido em que as teorias sucessivas convergem para a verdade e se aproximam da realidade, mas no sentido de que as revoluções científicas representam transições para paradigmas melhores, que produzem soluções mais precisas para problemas sempre mais numerosos – neste caso específico, os problemas oriundos da prática profissional. A verdade assume como eficiente e proveitoso aquilo que resiste ao tempo e produz frutos, e as possibilidades de verdade de uma teoria vinculam-se às suas possibilidades de sucesso. Assim, a ineficácia acadêmica em responder aos problemas da prática profissional demonstra o distanciamento entre pesquisas acadêmicas e sua resolubilidade na prática – e demonstra, ainda, que o cuidado de enfermagem necessita de olhares diferenciados, que permitam diferentes interpretações.

Com base nesta assertiva é que se pode vincular as proposições de Kuhn com a transição dos cursos stricto sensu na enfermagem brasileira. Isso porque, a partir dessas proposições, pode-se olhar, sob várias óticas e contextualizações, para os paradigmas previamente consolidados pela comunidade científica (neste caso, o mestrado acadêmico) e apontar lacunas no conhecimento que atuam como molas propulsoras para a geração de novos paradigmas (o mestrado profissional). Segundo Kuhn, estes múltiplos olhares para uma anomalia (quebra-cabeça/enigma) nos aproximam ainda mais de uma verdade, mesmo que momentânea, evidenciando assim uma possível “revolução científica” que traz avanços na ciência, reiterando ou refutando os paradigmas passados(11 Kuhn TS. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva; 2011.).

PROCESSOS DE UMA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA

De acordo com Kuhn, para a ocorrência de uma revolução científica, quatro momentos são cruciais(66 Kuhn TS. O caminho desde A Estrutura: ensaios filosóficos, com uma entrevista autobiográfica. São Paulo: Ed Unesp; 2006.). Para que ocorra o primeiro momento, denominado de “ciência normal”, é preciso haver um paradigma anterior, estabelecido e consolidado – no caso desta reflexão, o mestrado acadêmico. A pesquisa científica normal articula fenômenos e teorias fornecidas pelo paradigma. Esta fase é retratada pelo autor como um puzzle de natureza teórico-experimental, em que a investigação se baseia em anomalias que uma comunidade científica reconhece durante determinado período de tempo como fundamento para a sua prática posterior. Esta fase possui um significado importante, pois é nela que se pode ou não nascer um novo paradigma.

O segundo momento é denominado de “anomalia”. Nele se apresentam as situações que ultrapassam o controle da crise, isto é, os problemas – e, por que não dizer, os objetos de pesquisa? Atualmente, não se concebe que uma série de produções acadêmicas fique restrita a um grupo seleto, sem aplicabilidade para os problemas provenientes da práxis profissional.

No terceiro momento, denominado de “paradigma”, pode-se conceber uma rede de compromissos e adesões. É o paradigma que coordena e dirige as atividades de um grupo específico que nelas trabalham – neste caso, a comunidade científica. Para alguns pesquisadores mais revolucionários, a academia deve dialogar com a população em geral, e não apenas com um grupo distinto. Para eles, o paradigma vigente (mestrado acadêmico) já não é suficiente para atender às demandas oriundas da prática profissional, e o movimento, transcorrido por duas décadas, de implementação do mestrado profissional não vislumbrou a substituição de uma modalidade por outra, mas a integração entre elas.

O quarto momento é denominado de “revolução/movimento”. Muda-se a forma de olhar o real; abandona-se um paradigma anterior e se adota outro, concebido e defendido por uma comunidade científica. Para Kuhn, este momento é cíclico e dinâmico, uma vez que a ciência em si precisa acompanhar as transformações de seu tempo. Vale ressaltar que este ciclo poderá permanecer por certo tempo, até que outra anomalia seja concebida, gerando, assim, uma possível revolução no meio acadêmico.

Não há dúvida de que, para Kuhn, a ciência, em seu conjunto, progride, não no sentido de que as teorias sucessivas convergem para a verdade e se aproximam da realidade, mas no sentido de que as revoluções científicas constituem transições para paradigmas melhores e que produzem soluções mais precisas para problemas sempre mais numerosos, principalmente de natureza empírica. O ponto central da concepção de Kuhn é a teoria de que o desenvolvimento típico de uma disciplina científica se dá ao longo de um processo que pressupõe cinco fases(11 Kuhn TS. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva; 2011.).

Na primeira fase, a pré-paradigmática, esgota-se o campo das ideias, procurando responder os seguintes questionamentos sobre o paradigma a ser introduzido: quais fenômenos o novo paradigma deve estudar? Como esses fenômenos devem ser estudados? Em que base filosófica o paradigma está alicerçado? Em quais princípios teóricos o paradigma se fundamenta? De que maneira os princípios filosóficos e epistemológicos se inter-relacionam?

A fase pré-paradigmática é marcada por uma turbulência de pensamentos e uma divergência entre os próprios membros da comunidade científica, que já não aceita o paradigma anterior como “verdade” absoluta. Trazendo esta proposição para a reflexão, analisa-se que, durante quase quatro décadas, o mestrado acadêmico teve sua hegemonia no campo do saber da enfermagem.

Contudo, ao compreender que um único paradigma acadêmico não era suficiente para tentar responder todos os questionamentos, em especial aqueles provenientes da prática profissional, é que um grupo de pesquisadores/cientistas investiu na modalidade de mestrado profissional em enfermagem, possibilitando outras maneiras de fazer e conceber a pesquisa no meio acadêmico.

Frente a este novo dinamismo, houve a necessidade de redirecionar as reais contribuições que a pós-graduação poderia oferecer à ciência e ao mundo do trabalho. De posse destes questionamentos, foi projetada a modalidade de mestrado profissional com vistas a agregar valor não somente à academia, mas também aos profissionais e usuários que dependem de um serviço de qualidade. Esta integração entre academia e práxis possibilitou que estes profissionais, afastados dos bancos acadêmicos, transformassem os problemas oriundos de sua prática profissional em objetos de pesquisas e, por meio da reflexão epistemológica e filosófica, encontrassem ou viabilizassem possibilidades de resolução através de suas pesquisas, propondo algum tipo de produção tecnológica ao final delas.

Como surge um paradigma? Na tentativa de clarificar este conceito foi utilizada uma história popular, de autor desconhecido, que representa exatamente o conceito de paradigma para a ciência normal:

Um grupo de cientistas colocou cinco macacos numa jaula, em cujo centro pôs uma escada e, sobre ela, um cacho de bananas. Quando um macaco subia a escada para apanhar as bananas, os cientistas lançavam um jato de água fria nos que estavam no chão. Depois de certo tempo, quando um macaco ia subir a escada, os outros o enchiam de pancada. Passado mais algum tempo, mais nenhum macaco subia a escada, apesar das tentações das bananas. Então, os cientistas substituíram um dos cinco macacos. A primeira coisa que o novo macaco fez foi subir a escada, sendo dela rapidamente retirado pelos outros, que lhe bateram. Depois de algumas surras, o novo integrante do grupo não subia mais a escada. Um segundo foi substituído, e o mesmo ocorreu, tendo o primeiro substituto participado, com entusiasmo, na surra ao novato. Um terceiro foi trocado, e repetiu-se o fato. Um quarto e, finalmente, o último dos veteranos foi substituído. Os cientistas ficaram, então, com um grupo de cinco macacos que, mesmo nunca tendo tomado banho frio, continuavam a bater naquele que tentasse chegar às bananas. Se fosse possível perguntar a algum deles por que batiam em quem tentasse subir a escada, com certeza a resposta seria: não sei, as coisas sempre foram assim por aqui(77 Freire OS, Soares A. Resumo comentado: a estrutura das revoluções científicas Thomas Kuhn[Internet]. Florianópolis: Instituto de Gestão de Mudanças Estratégicas Pessoais; 2010 [cited 2018 Jul 19]. Available from: http://www.igmep.com.br/artigos/2010/5/18/resumo-comentado-a-estrutura-das-revolucoes-cientificas-thomas-kuhn
http://www.igmep.com.br/artigos/2010/5/1...
).

Na segunda fase da sequência, denominada de “ciência normal”, os pensamentos já estão previamente clarificados pelos membros da comunidade científica, à qual é apresentada o paradigma a ser afirmado. Neste momento, uma determinada comunidade de pesquisadores se dá conta de que já não é possível realizar pesquisas limitadas às bibliotecas das universidades, apresentadas a um número muito restrito de ouvintes. Geralmente, nesta fase há uma turbulência dentro do grupo, uma vez que os mais ortodoxos hesitam em não ceder às convicções do novo paradigma. Porém, outra parcela, acreditando que ousar é uma possibilidade de romper com o paradigma atual, reafirma suas proposições, dando origem a outro grupo que se contrapõe ao paradigma anterior. No que se refere à reflexão apresentada, a modalidade de mestrado profissional vem a ser uma saída para estes idealizadores e, ao mesmo tempo, uma possibilidade de dar respostas aos problemas vigentes da práxis em todas as esferas em que atua o profissional enfermeiro.

Na terceira fase, crise/revolução, é quando se vislumbra a possibilidade de integração entre pesquisa e mundo do trabalho. No caso aqui abordado, presume-se que uma modalidade de ensino (mestrado profissional) vai ao encontro das necessidades atuais tanto do campo da pesquisa quanto do mundo do trabalho. Entretanto, tudo o que é novo traz insegurança, medo e desconforto. Por ser uma modalidade recente no âmbito da enfermagem, alguns pesquisadores mais tradicionais se esquivam, como nos primórdios do mestrado profissional, quando não havia critérios que o diferenciasse do mestrado acadêmico, gerando uma sensação de inviabilidade da proposta.

Na quarta fase, da “nova ciência”, os pressupostos do novo paradigma são aceitos pela comunidade científica e pelo senso comum. No caso do mestrado acadêmico, este ganho se deu com o reconhecimento da modalidade pela Portaria n° 080 de 16 de dezembro de 1998(88 Brasil. Ministério da Educação. Portaria n° 080 de 16 de Dezembro de 1998: dispõe sobre o reconhecimento dos mestrados profissionais e dá outras providências, 16 de dezembro de 1998 [cited 2018 Jul 19]. Available from: https://www.capes.gov.br/images/stories/download/legislacao/Portaria_CAPES_080_1998.pdf
https://www.capes.gov.br/images/stories/...
) e sua regulamentação via Portaria n° 17, de 28 de dezembro de 2009(99 Brasil. Ministério da Educação. Portaria normativa n° 17, de 28 de dezembro de 2009: dispõe sobre o mestrado profissional no âmbito da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de pessoal de Nível Superior - CAPES. Diário Oficial da União [Internet]. 29 de dezembro de 2009[cited 2018 Jan 11];6(3):609-30. Available from: http://www.capes.gov.br/images/stories/download/legislacao/PortariaNormativa_17MP.pdf
http://www.capes.gov.br/images/stories/d...
). Apesar de ser uma modalidade com apenas duas décadas, percebe-se um movimento, não só na enfermagem, mas em outras áreas de conhecimento e produção, para que o mestrado profissional seja, de fato, uma mudança de paradigma importante no final do século XX, capaz de se definir por seus próprios pressupostos, sem a influência do mestrado acadêmico.

A quinta fase, denominada de “nova crise/revolução”, é dinâmica e não estática. Talvez num futuro próximo outro tipo de modalidade acadêmica possa surgir dando início a uma nova crise e a uma nova revolução científica. Neste esquema conceitual, Kuhn ressalta que o movimento, ao longo da história, será dinâmico e contínuo. São essas inquietações constantes no âmbito acadêmico que fazem emergir, de tempos em tempos, um novo paradigma.

UMA PERSPECTIVA PARADIGMÁTICA VISIONÁRIA: MESTRADO PROFISSIONAL EM ENFERMAGEM

A construção de um produto novo, adaptado ou modificado, emerge para o cuidado de enfermagem imbuído de grande complexidade para a sua existência, posto que o perfil do profissional requisitado pelo mercado de trabalho se constrói dinamicamente, em função das transformações pelas quais passa o mundo contemporâneo. Nesta perspectiva, o caráter multidisciplinar, que caracteriza o serviço em saúde e a mutação do conhecimento científico, faz surgir novas e variadas demandas da sociedade para o sistema educacional, cabendo-lhe moldar-se num currículo que atenda ao mercado de trabalho em enfermagem.

Acredita-se que a vivência e o fazer – a práxis – desfia constantemente o pesquisador quanto à sua habilidade e imaginação; e este desafio é a mola propulsora para elucidar o enigma – a anomalia. Vale ressaltar que, em momento algum, os idealizadores do mestrado profissional o afirmaram como uma modalidade independente, uma vez que todo objeto de pesquisa precisa de contextualização filosófica e epistemológica. Assim, o mestrado profissional não visa dissociar, mas agregar novos conhecimentos. Ressalta-se, portanto, que não se pode apenas estudar os problemas oriundos da prática profissional; deve-se, a partir desses estudos, encontrar possíveis soluções traduzidas em variados tipos de produção tecnológica – e isso a enfermagem sabe fazer muito bem.

Neste ínterim, o mestrado profissional em enfermagem veio favorecer a produção de conhecimento dos profissionais com tempo de experiência profissional nas mais diversas áreas do saber, a partir das necessidades do cotidiano, alicerçados numa contextualização filosófica e não simplesmente empírica.

Quando se tem este movimento de mudança, isto é, de abandono do paradigma anterior e de concepção do paradigma atual, há uma probabilidade de a ciência avançar por meio de novos ou até mesmo antigos paradigmas. Geralmente é neste momento que podem proliferar teorias e pesquisas aleatórias e conflitantes, uma vez que o paradigma anterior (mestrado acadêmico) se encontra estabelecido. Todavia, uma vez que evoluímos neste campo de saber (mestrado profissional), observa-se que os delineamentos vão se tornando mais claros, conquistando, assim, mais adeptos que passam a perceber esta modalidade de ensino como uma possibilidade de integração das políticas do Sistema Único de Saúde(22 Sucupira N. Antecedentes e primórdios da pós-graduação. Forum Educ. 1980; 4(4):3-18.).

Trazendo estas considerações para o mestrado profissional em enfermagem e sua relação com seus objetos de pesquisa, pressupõe-se que este processo está em consonância com os conceitos-chaves (paradigma, anomalia, comunidade científica e revolução científica) de Thomas Kuhn, uma vez que esta modalidade de ensino pode fortalecer não apenas a enfermagem enquanto ciência, mas também a pós-graduação brasileira.

Pode-se considerar que, na enfermagem, uma anomalia é tudo aquilo que de certa forma incomoda ou inviabiliza o trabalho, uma vez que o objetivo é fazer que os processos sejam exequíveis em qualquer instância: organizacional, profissional ou assistencial. Nessa compreensão, o enfermeiro que atua em alguma destas áreas não vê a anomalia como uma ameaça, mas como consequência da complexidade de um fenômeno que pode e precisa ser investigado. É nesse movimento que um novo paradigma emerge: um determinado grupo, insatisfeito com o paradigma vigente, cria possibilidades de reflexão e discussão com os membros da comunidade científica(1010 Kuhn TS. A tensão essencial: estudos selecionados sobre tradição e mudança científica. São Paulo: Editora Unesp; 2011.).

Dadas essas singularidades, os mestrados profissionais em enfermagem devem realizar pesquisas baseadas em evidências (dissertações), que gerem produções tecnológicas que objetivem, por exemplo, a racionalização dos gastos públicos e privados e a incorporação e revisão de protocolos clínicos e assistenciais e de tecnologias em saúde, sempre numa perspectiva de clarificar seus benefícios e riscos para a saúde dos usuários, seu custo-efetividade e seu impacto para a organização dos serviços e para a saúde da população.

São várias as possibilidades de produtos a serem construídos ao final da dissertação de um mestrado profissional, mas é importante que estes produtos tecnológicos, independentemente do cenário em que sejam realizados (organizacional, assistencial ou educacional), tenham por norte as prioridades nacionais de pesquisa em enfermagem, resguardadas as particularidades de cada serviço e seus usuários. Nessa linha, a Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde e de Enfermagem é um excelente guia que, além de indicar as áreas que mais necessitam de atenção dos pesquisadores, fortalece a enfermagem enquanto ciência e a pós-graduação profissional.

Espera-se que, numa perspectiva visionária, o mestrado profissional em enfermagem consiga fortalecer seu próprio paradigma, uma vez que este vem sendo desenvolvido por enfermeiros que comungam de uma mesma filosofia profissional; por ora, a modalidade, apesar de seus avanços significativos, é ainda um paradigma emergente.

CONCLUSÃO

Antes de concluir nossa expedição reflexiva acerca dos conceitos-chave da obra A estrutura das revoluções científicas, retomamos os principais aspectos tratados.

Primeiro, abordamos os conceitos-chave da referida obra, enfatizando os termos “paradigma” e “anomalia”. No tópico “Processos de uma revolução científica”, nos debruçamos sobre a ciência normal, sobre as fases da mudança de paradigma e sobre o ponto central da concepção de Kuhn, segundo a qual o processo que se estabelece para a construção de uma teoria precisa estar alicerçado em uma disciplina científica. No terceiro tópico, “Uma perspectiva paradigmática visionária: mestrado profissional em enfermagem”, mostramos que o mestrado profissional, por requerer uma pesquisa aplicada, rompe com o paradigma anterior, que se ancora nas necessidades contemporâneas de se conceber e fazer pesquisa científica.

Pelo exposto, pôde-se analisar a modalidade de mestrado profissional com base nas proposições do filósofo Thomas Samuel Kuhn, tendo em vista que a sua teoria nos conduz a um estudo do cotidiano do mundo e, principalmente, da ciência como um produto dinâmico e cíclico. Desta maneira, acredita-se que suas conjecturas são aplicáveis ao contexto da mudança de paradigma do mestrado acadêmico para o mestrado profissional.

REFERENCES

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    Kuhn TS. A tensão essencial: estudos selecionados sobre tradição e mudança científica. São Paulo: Editora Unesp; 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2018
  • Aceito
    17 Maio 2018
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