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Saúde indígena e enfermagem em Roraima na década de 1970

RESUMO

Objetivo:

Analisar as estratégias empreendidas pelo governo para sanar o problema da saúde em Boa Vista/Roraima.

Método:

Estudo na abordagem da micro-história, com fontes documentais oriundas de matéria jornalística da década de 1970, quando foram articulados, por meio da técnica de triangulação, textos, imagens e contexto, com análise na perspectiva da Teoria do Mundo Social.

Resultados:

Foi evidenciado que as estratégias empreendidas oriundas do governo ocorreram em prol da exploração de áreas isoladas em Roraima que demandaram processos de povoamento, construção de vilarejos e de uma rodovia para viabilizar a interligação do estado com demais regiões do Brasil, tendo por cortina de fumaça o efeito simbólico produzido pelas enfermeiras na saúde indígena.

Conclusão:

Houve manipulação governamental, quando o poder simbólico foi desvelado, fazendo ver e crer que a enfermagem precisa pautar os assuntos políticos ao invés de ser pautada.

Descritores:
Enfermagem; Saúde Indígena; História da Enfermagem; Enfermeira; Saúde

ABSTRACT

Objective:

To analyze the strategies undertaken by the government to address the health problem in Boa Vista/Roraima.

Method:

A study using the microhistory approach, with documentary sources from journalistic material of the 1970s through the triangulation technique: texts, images and context, with analysis from the perspective of the Social World Theory.

Results:

It was evidenced that the strategies undertaken by the government occurred in favor of the exploration of isolated areas in Roraima that demanded settlement processes, construction of villages and a highway to enable the interconnection of the state with other regions of Brazil, with a smoke screen symbolic effect produced by nurses on indigenous health.

Conclusion:

There was governmental manipulation, when the symbolic power was unveiled, making it possible to see and believe that nursing needs to guide political issues rather than being ruled.

Descriptors:
Nursing; Health of Indigenous Peoples; History of Nursing; Nurse; Health

RESUMEN

Objetivo:

Analizar las estrategias emprendidas por el gobierno para sanar el problema de la salud en Boa Vista / Roraima.

Método:

En el estudio de la micro-historia, con fuentes documentales oriundas de materia periodística de la década de 1970, cuando fueron articulados, por medio de la técnica de triangulación, textos, imágenes y contexto, con análisis en la perspectiva de la Teoría del Mundo Social.

Resultados:

Se evidenció que las estrategias emprendidas oriundas del gobierno ocurrieron en pro de la exploración de áreas aisladas en Roraima que demandaron procesos de poblamiento, construcción de aldeas y de una carretera para viabilizar la interconexión del estado con otras regiones de Brasil, teniendo por cortina de humo el efecto simbólico producido por las enfermeras en la salud indígena.

Conclusión:

Hubo manipulación gubernamental, cuando el poder simbólico fue desvelado, haciendo ver y creer que la enfermería necesita pautar los asuntos políticos en vez de ser pautada.

Descriptores:
Enfermería; Salud Indígena; Historia de la Enfermería; Enfermera; Salud

INTRODUÇÃO

Roraima está localizada na Região Norte do Brasil, a oeste do Meridiano de Greenwich, e é cortada pela Linha do Equador, sendo o estado mais setentrional da federação brasileira. Possui 1.922 quilômetros de fronteira com países sul-americanos, sendo a Venezuela a norte e noroeste e a República Cooperativa da Guiana a leste. Além disso, limita-se com os estados do Amazonas ao sul e oeste, e do Pará ao sudeste(11 Freitas A. Estudos Sociais - Roraima: geografia e história. São Paulo: Corprint Gráfica e Editora; 1998. 83 p.).

Os anos de 1970 foram marcados pelo contexto da ditatura militar com ampliação da infraestrutura do Estado, na qual houve a abertura da rodovia BR-174 que liga Boa Vista-RR a Manaus-AM, passando pela reserva indígena Waimiri-Atroari.

Ressaltamos que a BR-174, atualmente, é conhecida por Manaus–Boa Vista. Trata-se de rodovia longitudinal que interliga Roraima e Amazonas à Venezuela, totalizando 974 quilômetros, com marcação nas cidades de Manaus e Pacaraima. A finalização da construção dessa rodovia aconteceu em 1998, no governo de Fernando Henrique Cardoso.

Em 1973, o Presidente da República Emílio Garrastazu Medici sancionou a Lei nº 6.001/1973, que regulava a situação jurídica dos índios e de suas comunidades, tendo por propósito preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional. Dois anos depois, foi instituído o Estatuto para Associação de Defesa do Índio (ADIBRA), criado com a finalidade de promover atividades culturais e assistenciais, para contribuir no encaminhamento do problema indígena(22 Estatuto para Associação Indígena. Jornal Boa Vista (RR). 1974 Mar 12: p.5 Ano II (col. 1).). Assim, na sequência dos dois anos, foi inaugurada a BR-174, tendo ao longo do trecho projetos de colonização.

A consequência em prol do desenvolvimento socioeconômico, político e governamental em Roraima foi inevitável. Observa-se, nesse cenário, o desequilíbrio do processo saúde-doença do povo indígena, o que conduziu a morte de muitos deles. Nessa perspectiva, tem-se a participação das enfermeiras convocadas pelo governo, no sentido de operacionalizarem o processo de cuidado aos índios, atendendo às intenções do governo em prol dos interesses políticos da época.

Em síntese, na esteira dos acontecimentos, apresentamos como aspecto problematizador a situação em que o governo, interessado em avançar para o interior do país, desencadeou uma série de ações de desapropriações, invasões e desmatamento em terras indígenas para atender aos empreendimentos ditos necessários ao desenvolvimento do Estado, que à época ocasionou diversos agravos à saúde da população indígena.

O estudo se justifica no sentido de ampliar a discussão sobre a temática da saúde indígena, bem como entender como os governantes à época usaram suas estratégias para promoverem o desenvolvimento de suas ações estatais.

OBJETIVO

Este trabalho objetiva analisar as estratégias empreendidas pelo governo para sanar o problema de saúde em Boa Vista/Roraima.

MÉTODO

Aspectos éticos

A pesquisa, por ter utilizado matérias jornalísticas, respeitou a Lei 9.610/1998, sobre direitos autorais em seus aspectos vigentes(33 Presidência da República (BR), Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos [Internet]. Diário Oficial da União: República Federativa do Brasil; 1998 [cited 2019 Mar 12] Feb 20. Seção 1: [about 14 screens]. Available from: http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/L9610.htm
http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/lei...
). A resolução nº 466/2012-CNS/MS não se aplica neste estudo, por se tratar de uma investigação com fontes jornalísticas e não envolver, diretamente, seres humanos.

Referencial teórico-metodológico

A teorização dos resultados foi balizada com as noções do sociólogo Pierre Bourdieu.

Tipo de estudo

Trata-se de estudo na perspectiva histórica, na abordagem da micro-história, baseado na análise documental.

Fontes de dados

As fontes documentais foram duas imagens publicadas em matéria do Jornal Boa Vista, referentes aos anos de 1973 e 1974, bem como literatura de aderência na História do Brasil, Roraima, Saúde e Enfermagem.

Coleta e organização dos dados

A coleta das fontes de análise ocorreu nos arquivos da Imprensa Oficial do Estado de Roraima, quando se optou na busca de notícias no Jornal Boa Vista, por se tratar do primeiro e único jornal que circulou de maneira contínua de 1973 até 1983, durante o regime da ditadura militar. A Imprensa Oficial do Território Federal de Roraima foi criada em 1973, através do Governador Tenente Coronel Hélio da Costa Campos em seu segundo mandato (1972 – 1974). Assim, foi fundado o “Jornal Boa Vista”, de propriedade do Governo, imprensa escrita que teve por finalidade publicizar o desenvolvimento, a integração e a segurança dos atos do Governo Federal aos cidadãos do Território(44 Andrade AJM. O jornal Boa Vista: porta-voz dos projetos desenvolvidos no Território de Roraima no período de 1973 a 1979. Boa Vista (RR): Universidade Federal de Roraima, Centro de Ciências Humanas, Coordenação do Curso de História; 2016. 104 p.).

As buscas das notícias resultaram em duas imagens, tendo por critério a temática de saúde articulada à construção da rodovia BR-174 em Boa Vista. Mediante aplicação dos critérios, as matérias jornalísticas foram organizadas no sentido temporal, para circunstanciá-las, bem como foram submetidas às regras da crítica de autenticidade e credibilidade, internas e externas. Estas tiveram por finalidade agrupar os materiais fornecidos pelas fontes documentais e analisar os aspectos referentes ao conteúdo dos documentos, no sentido de buscar informações por meio da triangulação dos dados para construção da narrativa histórica(55 Porto F, Fernandes GF, González JS. Fontes históricas e ético-legais: possibilidades e inovações. Cult Cuid [Internet]. 2009 [cited 2019 Mar 12];25:43-53. Available from: https://doi.org/10.14198/cuid.2009.25.07
https://doi.org/10.14198/cuid.2009.25.07...
).

RESULTADOS

A primeira matéria jornalística, datada de 11/12/1973, apresenta as ações do Projeto Rondon ao mostrar atuação dos estudantes do campo da saúde, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), do Rio Grande do Sul, paralela à construção da rodovia BR-174. Já a segunda, datada de 10/11/1974, mostra aos leitores enfermeiras e secretário de saúde de Roraima em reunião, em virtude dos agravos à saúde das populações que habitavam o interior do estado em áreas isoladas e de difícil acesso.

Em síntese, as comunidades citadas nas matérias jornalísticas eram formadas por pequenos agricultores e garimpeiros oriundos das mais diferentes regiões do país, que foram atraídos pela extração de minérios, além da população indígena já existente na região. Nesse processo, identificou-se discurso para atender à demanda de melhoria e prevenção no campo da saúde, em virtude da aglutinação de pessoas.

DISCUSSÃO

Na década de 1970, no contexto de ditadura, os militares chegaram para ocupação da região Amazônica e, com isso, para a abertura de estradas pela Perimetral Norte. Para tanto, utilizaram recursos humanos para o desmatamento da floresta, quando passaram tratores e caminhões pelas terras indígenas, tendo dentre as diversas consequências a morte de centenas de índios Yanomami devido ao contato com o microrganismo do sarampo(66 Almeida A. Davi Kopenawa contra a 'Xawara' [Interview]. El País Brasil. 2014 Dez 28 [cited 2019 Mar 12]. Available from: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/26/politica/1419618934_407302.html
http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/...
).

Nesse cenário, a 10ª Delegacia Regional da FUNAI em Roraima estabeleceu a agrovila para tribos indígenas integradas à sociedade(77 FUNAI vai criar agrovila para Índio aculturado. Jornal Boa Vista (RR). 1973 Sept 22: p.8 Ano I (col. 1).). À época, as famílias receberam um lote de 50 hectares para cultivo. Ademais, ocorria a extração de petróleo e ouro em larga escala nas regiões do Tapajós, Serra Pelada e Roraima(88 Santos NPD. Políticas públicas, economia e poder: o Estado de Roraima entre 1970 e 2000. [Thesis] [Internet]. Belém: Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos; 2004 [cited 2019 Mar 12]. 271 p. Available from: https://www.bc.ufrr.br%2Findex.php%2Fteses-e-dissertacoes%3Fdownload%3D398%3Apoliticas-publicas-economia-e-poder-o-estado-de-roraima-entre-1970-e-2000&usg=AOvVaw1ATpTLCPPnoh44Fnu61dGN
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), o que potencializava a aglutinação de pessoas naquelas terras, mas com baixas condições de saúde.

Em cenário árido de moradias simples, com telhados de palha e sem pavimentação adequada para os arredores, o governo traz à população Unidades Volantes doadas pelo Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL). A cena foi registrada no Jornal Boa Vista, quando é possível visualizar o veículo ao centro do texto fotográfico e ao redor a atuação da equipe com os moradores.

O texto articulado à Figura 1 da matéria jornalística retrata o atendimento em prol da saúde da população, com realização de exames laboratoriais e aplicação de medicações disponibilizadas pela Central de Medicamentos (CEME). A equipe de atendimento era composta por estagiários do último ano dos Cursos de Ciências Biomédicas: Enfermagem, Farmácia, Bioquímica, Medicina e Odontologia. Todos da equipe eram oriundos da Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, quando eles se inscreviam no Projeto Rondon.

Figura 1
Unidade Volante – atende aos bairros

A Universidade Federal de Santa Maria, criada em 1960, tinha no elenco para formação de bacharéis(99 Unidade Volante - atende aos bairros. Jornal Boa Vista (RR). 1973 Dez 11: p.6 Ano I (col.1).-1010 Saúde Pública terá impulso no decorrer deste ano - Resultado de 1974. Jornal Boa Vista (RR). 1975 Jan 19: p.4-5 Ano II (col. 2).) que, por meio do Projeto Rondon, desenvolviam ações em saúde no estado de Roraima. Isso implicava em campo de prática e ao mesmo tempo mostrava à sociedade o que os futuros profissionais poderiam fazer em prol da população.

Ressaltamos que os serviços prestados à saúde das populações indígenas eram assumidos pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), ligada ao Ministério da Justiça desde 1967, e por equipes volantes de saúde, nos moldes do Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (SUSA). Estas eram responsáveis pelo planejamento e execução das ações de saúde em áreas indígenas. As equipes eram compostas por auxiliares e/ou atendentes de enfermagem e prestavam serviço de atendimento de forma esporádica(1111 Ministério da Saúde (BR). Fundação Nacional de Saúde-FUNASA. Portaria n. 254 de 31 de janeiro de 2002. Aprovar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas [Internet]. Diário Oficial da União: República Federativa do Brasil; 2002 [cited 2019 Mar 12]. 06 Feb. Seção 1: [about 18 screens]. Available from: http://www.funasa.gov.br/site/wp-content/files_mf/Pm_254_2002.pdf
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). Com efeito, ter o órgão de proteção indígena aliançado com a justiça era uma estratégia que deixava transparecer a segurança à saúde da população, mas, também, a garantia da intervenção governamental em prol de seus interesses que visava a abertura de estradas.

A articulação da política para abertura de estradas, em Roraima, com retaguarda de ação do ensino no campo da saúde, pode ser compreendida como aliança simbólica(1212 Bourdieu P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense; 2004. 116 p.), para alcançar os interesses dos governantes estadual e federal. Para tanto, este deveria ser visto como uma das mais boas intenções políticas para com a população adstrita ao trazer melhores condições de saúde.

A aliança simbólica para atender ao efeito contou com o discurso de que se fazia necessário povoar áreas distantes e de difícil acesso do Estado de Roraima, pois, por consequência, na lógica governamental, teria o progresso e o desenvolvimento, em especial com a abertura da estrada. Com base nessa argumentação, a estratégia governamental foi promovida e desenvolvida pelo Estado, quando se mostrou a eficiência dos efeitos produzidos. Porém, por outro lado, a população, em contato com os indígenas, conduziu agravos à saúde inevitáveis.

Para se ter determinada ideia dos agravos à saúde indígena, 13% da população Yanomami, na década de 1970, morreu acometida por sarampo e infecções respiratórias(1313 Bruce A. Urihi A: a terra-floresta Yanomami. São Paulo: Instituto Socioambiental; 2009. 95 p.). Para tentar amenizar a situação, foram realizadas reuniões com o propósito de integrar os profissionais de saúde, tendo por objetivo assistir à população no interior do Estado, onde habitava a população indígena.

O habitus da população local teve por efeito social(1414 Bourdieu P. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus; 1996. 223 p.) o desiquilíbrio biológico, no corpo do ser humano, quando foi acometida por agravos à saúde. Isso foi ocasionado pela produção da prática estabelecida, em nome do “progresso e desenvolvimento” que o contexto apontava. Até o momento, podemos depreender que o discurso oficial era para atender a cultura dos cuidados da população, em especial dos indígenas, mas careceu de considerações relevantes dos habitus populacional pela imposição da realidade do grupo dominante.

A Figura 2 mostra a estratégia política, quando houve articulação do secretário de saúde e enfermeiras responsáveis pelos serviços de saúde em virtude do efeito social ocorrido. À época, mais uma vez, a imprensa não perdeu a oportunidade de registrar o momento, quando assinalou em matéria jornalística – texto e imagem – o sentido de ratificar a ação governamental.

Figura 2
Ação integrada de Saúde

Na cena retratada (Figura 2), é possível identificar que as pessoas se encontram organizadas em meios aos atributos de paisagens, tais como cadeiras, mesa ao centro com vários documentos sobre ela e ao fundo uma cortina. No arranjo fotográfico dos retratados, da esquerda para direita, visualizamos o Dr. Walter Bianchini, secretário de saúde do Estado, e as coordenadoras das equipes de saúde para controle das ações, as enfermeiras Florinda Molina, da Organização Panamericana de Saúde (OPS), Yolanda Chalfun, da Maternidade de Boa Vista e Cleusa de Lourdes Longhi, do setor de imunização da secretaria de saúde.

Dos retratados, destacamos as enfermeiras Florinda Molina e Cleusa de Lourdes Longhi(1616 Bourdieu P. Esboço de uma teoria da prática. In: Ortiz R editor. Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática; 1994. p.46-81.), trajando seus uniformes. Isso significa entendimento no campo simbólico, quando é possível identificar de onde elas falavam. Logo, é entender a crença da formatação de enquadramento do capital e o efeito simbólico do que era capaz de produzir para além das palavras, considerando a estética autorizada da imagem(1212 Bourdieu P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense; 2004. 116 p.).

Outro destaque na imagem é a hexis corporal dos retratados, com foco nos membros inferiores. O secretário de saúde encontra-se com os membros inferiores abertos, enquanto as enfermeiras estão com esses membros cruzados ou fechados. A leitura corporal aponta que o secretário de saúde, como pessoa pública, pode mostrar o seu poder, na representação do falo (in)visível socialmente, ao contrário delas, que precisam esconder/proteger no confinamento do corpo(1212 Bourdieu P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense; 2004. 116 p.). Essa cena é a dominação masculina em um dos seus aspectos, quando se mostra no corpo pelo habitus inculcado ao feminino e masculino, significando quem domina e determina o que deve e tem que acontecer(1212 Bourdieu P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense; 2004. 116 p.). Ademais, o corpo incorpora essas relações sociais, modelando-os pela hexis corporal, o que reflete nas posturas, disposições e relações do corpo, induzindo sua forma de pensar, agir e sentir no mundo social(1616 Bourdieu P. Esboço de uma teoria da prática. In: Ortiz R editor. Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática; 1994. p.46-81.).

Como podemos identificar, as enfermeiras retratadas iriam constituir duas colunas de sustentação para o plano estratégico a ser desenvolvido pelo governo: assistência materno-infantil e saúde pública, articuladas com a OPS. Elas foram agentes operacionais da política governamental, em andamento, o que evidenciava especial atenção à mulher e à criança, ao combater/prevenir as doenças com a medicalização e a imunização, em especial aos indígenas.

A valorização do trabalho feminino, por um lado, foi entendida como operacional, pois as profissionais estariam a cargo da supervisão do secretário. Isso implica que elas iriam ser posicionadas em segunda linha estratégica do processo decisório. Por outro lado, como enfermeiras e executoras, atuariam em nível operacional da política, o que permitiu acumular capital cultural, mesmo supervisionadas por um homem. Logo, nesse entendimento, elas não pautavam os interesses governamentais, mas eram pautadas, depreendendo que as regras do jogo estavam estabelecidas, quando cada um tinha seu lugar: dominante/secretário de saúde e dominado/enfermeiras.

Os interesses dos dominantes eram a expansão do estado de Roraima para terras ainda não exploradas e manipuladas pelo poder político e econômico da época. Isso se deve às inúmeras possibilidades de exploração propiciadas pela região amazônica, que despertava a cobiça dos mais diferentes segmentos da sociedade. Nesse cenário, observa-se o interesse pela construção de uma rodovia e por publicizar a preocupação, vista como estratégia de visibilidade para estabelecer a crença. Para tanto, quando ocorreu esse tipo de estratégia, as profissionais de saúde, possivelmente, foram manipuladas(1212 Bourdieu P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense; 2004. 116 p.), pois ao serem chamadas participariam dos interesses em jogo pelo poder simbólico instituído.

O poder simbólico é como uma magia que age sobre o outro pelo habitus dos agentes(1212 Bourdieu P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense; 2004. 116 p.). Nessa situação, as enfermeiras, segundo a matéria jornalística, iriam intermediar os ganhos simbólicos para os dominantes. Isso implicava em atender aos interesses governamentais, no tocante à sensibilização para a causa, desde que supervisionadas pelo secretário de saúde, o Dr. Walter Bianchini.

As enfermeiras ao serem supervisionadas teriam que aderir às estratégias de operacionalizar as ações de assistência materno-infantil e saúde pública, que imbricavam com a saúde pública. Tais ações eram entendidas como prioritárias ao feminino, repleto de representação com as práticas a serem valorizadas, para produzir o efeito simbólico esperado pelos dominantes.

A estratégia inculcada pelos dominantes era de estabelecer a troca simbólica(1212 Bourdieu P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense; 2004. 116 p.). Dito de outra maneira, ao chamá-las ocorriam as ações de intervenção de saúde na região. Assim sendo, valorizavam as práticas femininas, por meio da enfermagem, e faziam ver e crer à população a preocupação com a saúde, conseguindo, com isso, avançar na consecução dos projetos que representavam os interesses do Estado.

Como se pôde ler, os dominantes, por meio do jornal, evidenciavam preocupação pelas suas atitudes. Contudo, o não-dito era o efeito esperado para além do campo da saúde, o que entendemos se tratar da construção dos povoados em áreas isoladas, da construção da rodovia BR-174 (um dos principais empreendimentos do período), bem como de outros projetos de interesse governamental, cuja execução dependia da exploração das áreas ocupadas pelos povos indígenas.

Sabemos que o objetivo da construção da BR-174 era interligar Boa Vista/Roraima a Manaus/Amazônia, mas também ao restante do país, pois o tráfego era precário na parte sul de Roraima, quando o trânsito era predominantemente aéreo, o que gerava e apresentava severas restrições com necessidade de desenvolvimento. À época, em meio ao contexto, foi organizada uma operação pacificadora, considerando que os indígenas ao defenderem suas terras atacavam os funcionários do governo, por exemplo. Os conflitos reduziram de dois mil para seiscentos índios daquelas terras(1717 Rodrigues EP, Pinheiro ES. O desflorestamento ao longo da rodovia BR 174 (Manaus/AM- Boa Vista/RR). Uberlândia-MG, 2011. Soc Nat [Internet]. 2011 [cited 2019 Mar 12];23(3):513-28. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S1982-45132011000300011
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).

A preocupação dos políticos e responsáveis pelos indígenas era a inserção e manutenção de um povoado em território Roraimense pelo discurso. Essa estratégia foi entendida como de condescendência(1818 García FV. Pierre Bourdieu: la sociología como crítica de la razión. Barcelona: Montesinos; 2002. 252 p.), quando as palavras e atitudes apontaram para determinada ação, embora a intenção fosse outra, fazendo com que o dominante depositasse a crença do que está estabelecido na produção de sentido.

Na produção de sentido atribuída, entendemos ter havido preocupação dos políticos e responsáveis pelos indígenas em atender às demandas da saúde daquela população. Contudo, o discurso não são ações, mas intenções de sua materialidade. Nesse sentido, faz parte das atitudes dos dominantes sobre os dominados, deixando transparecer que era óbvio atender àquela necessidade, o que ratifica a “falsa consciência”(1919 Bourdieu P. O poder simbólico. Tomaz F, (Trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1989. 307 p.). Isso implicou em pensar que os responsáveis pelos índios passaram a compor o conjunto dos dominantes, o que foi entendido de forma inversa na análise, no entendimento que houve submissão deles mediante os interesses governamentais.

Limitações do estudo

A limitação do estudo na abrangência da temática, considerando o contexto amplo da década de 1970, limitada geograficamente no estado de Roraima, foi como analisar o mar por meio da amostra de sua gota ao microscópio, para identificar o que ocorreu no macro pelo micro. Nesse sentido, observou-se a articulação da construção da rodovia ao dito sobre a preocupação com a saúde, o que, como limitação, também se afina com a abordagem utilizada no estudo da micro-história.

Outra limitação é que os documentos analisados foram oriundos da mídia impressa governamental, o que significa se tratar de versão jornalística. Logo, cabe a ressalva que, ao publicarem suas matérias, direcionam os leitores para verem o que interessa, no sentido de (in)formar determinada opinião sobre o tema abordado(2020 Bourdieu P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1997. 144 p.).

Contribuições para a área da enfermagem

O estudo contribui para o entendimento da trajetória das políticas púbicas, do micro para o macro, direcionadas à saúde indígena, atualmente pautada nos diversos campos, como os da saúde, ensino, administração pública, antropologia e da história. Por outro lado, entendemos que a contribuição pode ter sido pequena na profundidade, mas relevante para o despertar de versões e interpretações sobre os fatos e acontecimentos ocorridos no passado, o que nos chama a atenção para o presente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O governo com a estratégia para a construção de uma rodovia na região, bem como para a exploração de áreas pouco povoadas, utilizou de ações no campo da saúde como cortina de fumaça para atingir seus objetivos. O campo da saúde foi o caminho e as enfermeiras foram as agentes da cortina de fumaça para estabelecer a crença.

A leitura da assertiva para alguns pode ser entendida como precipitada, mas cabe entendimento do que é ser pauta e ser pautada. Isso implica quando ocorre interesse governamental na enfermagem, quando se pensasse em dizer que protagonizamos as ações, sendo que na realidade somos agentes coadjuvantes dos interesses em jogo.

Entender como as ações e manipulações ocorrem significa ficarmos antenados nos interesses que se encontram em jogo. Neste, as ações valorativas são importantes, mas ao mesmo tempo são manipuladas pelo poder simbólico que as encobre.

Enfim, assertivas foram feitas como provocações acadêmicas para que a saúde indígena, no campo dessas políticas, possa ser (re)pensada como pauta, mas protagonizada pela Enfermagem.

FOMENTO / AGRADECIMENTO

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO; e Universidade Federal de Roraima – UFRR.

Nossa gratidão aos servidores do arquivo da Imprensa Oficial do Estado de Roraima.

REFERENCES

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    Freitas A. Estudos Sociais - Roraima: geografia e história. São Paulo: Corprint Gráfica e Editora; 1998. 83 p.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2017
  • Aceito
    27 Fev 2019
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