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Conhecimento de gestores sobre a Política Nacional de Saúde Mental

RESUMO

Objetivo:

Identificar o conhecimento dos gestores de serviços de saúde mental sobre a política nacional de saúde mental.

Método:

Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada com 20 coordenadores, submetidos à entrevista estruturada. Os dados foram categorizados sob a análise temática, auxiliada pelo software ALCESTE.

Resultados:

Os resultados apontaram as seguintes categorias: De volta à sociedade: protagonismo e autonomia dos usuários; Equipe multiprofissional: atribuições e atividades; Estruturação da Rede de Atenção Psicossocial; Entraves que afetam o serviço; Distanciamento entre a política e a prática.

Considerações Finais:

Os gestores demonstraram conhecimento sobre os conceitos-chave para a efetiva construção da rede de atenção psicossocial a partir do protagonismo e autonomia dos usuários, das atribuições e atividades desempenhadas pela equipe multiprofissional, e das dificuldades em estruturar a rede de atenção psicossocial.

Descritores:
Saúde Mental; Serviços de Saúde Mental; Recursos Humanos em Saúde; Gestores de Saúde; Pesquisa em Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

Identify the knowledge of mental health service managers about the national mental health policy.

Method:

This is a qualitative study conducted with 20 coordinators, who were submitted to a structured interview. Data were categorized in a thematic analysis using ALCESTE software.

Results:

The results produced the following categories: Back to society: protagonism and autonomy of patients; Interprofessional team: assignments and activities; Structuring of a psychosocial care network; Challenges affecting the service; Distance between policy and practice.

Final Considerations:

Public managers demonstrated they are aware of the key concepts for effective structuring of a psychosocial care network based on patient protagonism and autonomy, the assignments and activities performed by interprofessional teams, and the challenges found while structuring a psychosocial care network.

Descriptors:
Mental Health; Mental Health Services; Health Workforce; Health Managers; Nursing Research

RESUMEN

Objetivo:

Verificar el conocimiento de los gestores de servicios de salud mental acerca de la política nacional de salud mental.

Método:

Investigación cualitativa, realizada con 20 coordinadores, sometidos a entrevista estructurada. Datos categorizados de acuerdo a análisis temático, con ayuda del software ALCESTE.

Resultados:

Los resultados determinaron las siguientes categorías: De vuelta a la sociedad: protagonismo y autonomía de los pacientes; Equipo multiprofesional: atribuciones y actividades; Estructuración de la Red de Atención Psicosocial: Trabas que afectan el servicio; Distancia entre la política y la práctica. Consideraciones Finales: Los gestores demostraron conocimientos sobre los conceptos clave para la efectiva construcción de la red de atención psicosocial a partir del protagonismo y la autonomía de los pacientes, de las atribuciones y actividades desempeñadas por el equipo multiprofesional, y de las dificultades para estructurar la red de atención psicosocial.

Descriptores:
Salud Mental; Servicios de Salud Mental; Fuerza Laboral en Salud; Gestores de Salud; Investigación en Enfermería

INTRODUÇÃO

Decorrida mais de uma década da firmação da lei que rege a saúde mental no Brasil, a Lei 10.216/2001(11 Ministério da Saúde (BR). Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2001 [cited 2018 Feb 22]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
), faz-se necessário compreender a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) em vigor no país, a partir das realidades de assistência dos serviços e do perfil de gestão à frente dessas políticas, na perspectiva da atenção psicossocial e na formação de redes.

A PNSM parte do processo de desinstitucionalização da assistência psiquiátrica para implantar e expandir o formato de atenção centrado na rede de serviços substitutivos, destacando-se o crescente número de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), além da redução considerável do número de leitos em hospitais psiquiátricos em todo o país(22 Silva G, Iglesias A, Dalbello-Araujo M, Badaro-Moreira MI. Practices of integral health care for people with mental suffering in primary health care. Psicol Ciênc Prof. 2017;37(2):404-17. doi: 10.1590/1982-3703001452015
https://doi.org/10.1590/1982-37030014520...
).

A criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no Brasil, instituída no ano de 2011, por meio de instrumentos legais e normativos, se propõe ampliar o acesso da população à atenção psicossocial e garantir a articulação entre os pontos de atenção à saúde mental, que incluem, além dos CAPSs, os ambulatórios, as residências terapêuticas, os leitos em hospitais gerais, dentre outros dispositivos que contribuem para a ressocialização e reinserção dos indivíduos na comunidade(33 Macedo JP, Abreu MM, Fontenele MG, Dimenstein M. The regionalization of mental health and new challenges of the Psychiatric Reform in Brazil. Saúde Soc. 2017;26(1):155-70. doi: 10.1590/s0104-12902017165827
https://doi.org/10.1590/s0104-1290201716...
-44 Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2011 [cited 2018 Feb 22]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
).

Concorda-se, independentemente do efeito quantitativo de serviços, que ainda há uma frágil articulação com os serviços da comunidade e ausência de equipamentos na rede de atenção à saúde mental(55 Perez KV, Bottega CG, Merlo ARC. Analysis of occupation health and mental health policies: a proposal of articulation. Saúde Debate. 2017;41(spe2):287-97. doi: 10.1590/0103-11042017s224
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). Somem-se esses fatores com a precarização dos serviços e do atendimento destinado aos usuários, que, por sua vez, demonstram certa fragilização da rede na medida em que se reconhece o processo de concretização de um lado e, do outro, a premência em dar respostas às necessidades atuais da saúde mental diante das situações de crise e do número crescente de usuários de crack e outras drogas, na medida em que ambos requerem ações efetivas e eficazes(44 Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2011 [cited 2018 Feb 22]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
).

O momento de transição se reveste de complexidade por sua peculiaridade processual, na medida em que se garantem ações terapêuticas extramuros, o que remete à reorganização dos processos de trabalho, papéis e funções a partir da articulação entre os múltiplos atores e serviços envolvidos na RAPS, além de exigir do profissional uma visão abrangente dos aspectos políticos e sociais somados ao embasamento teórico para fundamentar a sua prática(55 Perez KV, Bottega CG, Merlo ARC. Analysis of occupation health and mental health policies: a proposal of articulation. Saúde Debate. 2017;41(spe2):287-97. doi: 10.1590/0103-11042017s224
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6 Alves HMC, Dourado LBR, Côrtes VNQ. A influência dos vínculos organizacionais na consolidação dos Centros de Atenção Psicossociais. Ciênc Saúde Colet. 2013;18(10):2965-75. doi: 10.1590/S1413-81232013001000021
https://doi.org/10.1590/S1413-8123201300...

7 Salles MM, Barros S. Inclusão social de pessoas com transtornos mentais: a construção de redes sociais na vida cotidiana. Ciênc Saúde Colet. 2013;18(7):2129-38. doi: 10.1590/S1413-81232013000700028
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-88 Machado JC, Cotta RMM, Soares JB. Reflections on the process of municipalization of healthcare policies: the issue of political and administrative discontinuity. Interface (Botucatu). 2015;19(52):159-70. doi: 10.1590/1807-57622013.1002
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).

Ante o exposto, perguntou-se: Qual o conhecimento dos coordenadores dos serviços de saúde mental dos municípios do interior do Rio Grande do Norte sobre a Política Nacional da Saúde Mental?

OBJETIVO

Identificar o conhecimento dos gestores de serviços de saúde mental sobre a Política Nacional de Saúde Mental.

MÉTODO

Aspectos éticos

Este estudo faz parte do projeto “Papeis e funções dos profissionais dos serviços e políticas de saúde mental no estado do Rio Grande do Norte”, foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CEP/UFRN) e aprovado por ele.

Ressalta-se que, para a efetivação do projeto com a posterior coleta dos dados, obtiveram-se as anuências da Coordenação de Saúde Mental do Estado do Rio Grande do Norte e dos Secretários de Saúde dos 27 municípios do interior do estado com Centros de Atenção Psicossocial.

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo descritivo, de natureza qualitativa, resultado de uma Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN.

Cenário do estudo

A pesquisa foi desenvolvida nos CAPSs do interior do Estado do Rio Grande do Norte (RN). A RAPS do RN é formada por 29 CAPSs, distribuídos em oito regiões de saúde.

Fonte de dados

Fizeram parte do estudo 19 municípios participantes da pesquisa, os quais dizem respeito a problemas inerentes aos pressupostos da RAPS. Coletaram-se os dados do coordenador estadual da Rede de Atenção Psicossocial e dos 19 coordenadores municipais de saúde mental dos municípios do interior do Estado do RN que compõem a RAPS, totalizando 20 participantes.

Após aquiescência dos participantes registrada nos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, procedeu-se às entrevistas, individualmente, com os coordenadores estaduais e municipais, as quais obedeceram a um roteiro estruturado com 10 questões abertas sobre o conhecimento deles a respeito das prioridades da saúde mental na política atual, da forma como se estruturam os serviços de saúde mental no atual sistema de assistência, das responsabilidades dos profissionais nos serviços de saúde mental e dos entraves que afetam tais serviços, entre outros assuntos abordados.

Incluíram-se, no estudo, todos os profissionais que se encaixavam no perfil de técnicos assistenciais. Excluíram-se os profissionais que estavam afastados, em férias ou em licença médica.

Coleta e organização dos dados

Os dados foram coletados no período de agosto a outubro de 2014.

Análise dos dados

Registraram-se as informações obtidas nessas entrevistas em gravador eletrônico, posteriormente transcritas, preparadas, formatadas em um corpus exigido para a submissão ao software Analyse Lexicale par Contexte d’un Ensemble de Segment de Texte (ALCESTE) e submetidas à análise de conteúdo na modalidade temática(99 Bardin L. Análise de conteúdo. 4ª ed. Lisboa: Edições 70; 2010.).

O procedimento de análise para formação de categorias geradoras de sentido dividiu-se em três momentos: 1- pré-análise, com a organização e leitura das transcrições, com a organização do corpus; 2- exploração do material em que o mesmo foi submetido ao ALCESTE e buscou-se codificar e agrupar as citações a partir de semelhanças de sentido; 3- análise e interpretação dos resultados obtidos, gerando categorias de discussão(99 Bardin L. Análise de conteúdo. 4ª ed. Lisboa: Edições 70; 2010.).

RESULTADOS

O software ALCESTE gerou sete classes, as quais passaram por um processo de leitura flutuante, em sucessivas releituras, como forma de garantir a aproximação de sentido para definição das categorias de análise sobre o conhecimento dos gestores em relação à PNSM/RAPS. Dessa articulação de análise, definiram-se cinco categorias: De volta à sociedade: protagonismo e autonomia dos usuários; Equipe multiprofissional: atribuições e atividades; Estruturação da Rede de Atenção Psicossocial; Entraves que afetam o serviço; Distância entre política e prática.

Para melhor visualização da articulação entre as classes do ALCESTE e as categorias temáticas definidas, todos os dados foram objeto de discussão e reflexão no conjunto dos resultados, com base na literatura disponível sobre o tema, onde as falas dos sujeitos foram identificadas de acordo com o formato e identificação das variáveis e dos sujeitos utilizados no software ALCESTE, exemplificados como (*suj_01), sucessivamente, até o limite dos entrevistados do estudo.

De volta à sociedade: protagonismo e autonomia dos usuários

Os coordenadores da saúde mental dos municípios pesquisados evidenciaram ações e medidas de estímulo à autonomia dos usuários atendidos nos serviços, colocando-os como protagonistas de seu tratamento, respondendo às expectativas do que é preconizado no modelo de atenção psicossocial.

Os exemplos mencionados pelos entrevistados relacionam-se ao processo de reinserção na sociedade, à importância do processo de acolhimento aos usuários, à abertura e liberdade oferecidas pelos serviços, às formas de geração de renda e ao estímulo ao processo de ressocialização e autonomia do indivíduo.

[...] nós temos vários exemplos positivos, [...] nós temos uma família em tratamento aqui, um casal que estava morando na rua, que perdeu a guarda dos seis filhos por uso abusivo do crack e, em menos de oito meses de CAPS, nós já conseguimos, junto a eles e ao Conselho Tutelar, que três filhos voltassem, eles já estão com a guarda de três filhos e estão numa casinha que eles conseguiram através da ação social, os dois estão em abstinência controlada, um já voltou a trabalhar e [...] estão voltando pra sociedade. Essa reinserção serve de motivação pra gente e serve de motivação pros que estão aqui, mostrar que é possível. (*suj_11)

[...] o nosso objetivo aqui, o primeiro, seria esse acolhimento pra gente poder oferecer condições dele ter um tratamento digno, dele entender a questão dos direitos dele, ele entender que ele é capaz de tá na comunidade, sem ir parar num hospital psiquiátrico, e o segundo ponto seria a ressocialização, de fazer com que ele esteja apto a voltar pra sua vida, dentro da limitação que ele encontra [...]. (*suj_15)

[...] é a gente oferecer um ofício a mais pra eles quando saírem daqui, pra sociedade, eles tenham algo a oferecer pro custeio deles, da vida deles, dos familiares, então a gente desenvolve terapias aqui, artesanato com produtos reciclados pra que gerem renda pra eles. (*suj_19)

Essa porta é simbolicamente fechada, [...] ela é aberta pra quem quiser entrar a hora que achar que precisa entrar para buscar apoio. (*suj_11)

Equipe multiprofissional: atribuições e atividades

Entende-se que o gestor deva conhecer minimamente as atribuições de cada membro da equipe de saúde mental, e, a partir dessa compreensão, foram descritos o número e as atribuições individuais e coletivas das equipes de acordo com a realidade encontrada nos municípios.

Temos, na nossa unidade, uma médica psiquiatra, uma enfermeira, dois psicólogos, dois assistentes sociais, um farmacêutico, dois técnicos de enfermagem, um técnico de farmácia, um técnico de música, dois profissionais do setor administrativo/SAME e uma cozinheira. (*suj_03)

Evidenciou-se, nas falas dos gestores e do coordenador estadual, um certo conhecimento sobre o desenvolvimento de atividades minimamente compartilhadas ou em conjunto entre alguns profissionais, acrescido das atividades individuais comuns a todos ou de atividades específicas requeridas para cada categoria profissional, a exemplo do médico, como demonstrado a seguir:

[...] tem um outro todo que a equipe trabalha em conjunto, que são as oficinas [...]. (*suj_07)

[...] todos os profissionais que desenvolvem os trabalhos de grupos [...] também fazem escuta individual [...]. (*suj_15)

[...] o psiquiatra faz o atendimento individual, as consultas, é quem faz o receituário, faz atestados, troca medicação. (*suj_17)

Um desconhecimento sobre o papel do gestor, conforme evidenciado na fala que se segue, permitiu um posicionamento a partir de “achismos” e interpretações individuais de cada profissional, gerando descompromisso com os documentos ministeriais que regulamentam a RAPS:

Eu não digo que o diagnóstico é específico do profissional médico porque eu acho que o diagnóstico, ele é da equipe. Eu acho que o diagnóstico deve ser feito em equipe e na discussão coletiva. (*suj_01)

Então a gente tinha essa lacuna, a gente não sabia definir funções pra isso, a gente estava todo mundo chegando junto e aí foi feito pesquisa e foi elencado atribuições da equipe pra cada profissional e discutido com cada profissional o que é que cabia naquela área dele, porque a gente teve que adaptar à nossa realidade. (*suj_14)

Estruturação da Rede de Atenção Psicossocial

Como resposta à estruturação da Rede de Atenção Psicossocial, a maioria dos gestores apontou os itinerários dos serviços disponíveis no estado e o objetivo de trabalho dos mesmos.

Hoje a política é a RAPS, que é um conjunto de setores para compor essa rede [...] tentando se estruturar [...] pra fazer atendimento a nível ambulatorial, urgência e emergência, [...] residência, [...]. (*suj_06)

[...] articulando atenção básica, urgência e emergência, leitos em hospital geral, os próprios serviços de atenção psicossocial [CAPS], então a ideia, nessa estruturação da rede, é articular esses serviços pra que eles funcionem de uma forma melhor pra que minimize esses vazios assistenciais. (*suj_01)

O modelo de assistência vigente preconizado pelo Ministério da Saúde prioriza a desospitalização e a reabilitação psicossocial nos Centros de Atenção Psicossocial [...]. (*suj_05)

Entraves que afetam o serviço

Os gestores enfocaram como principais entraves: os problemas estruturais dos serviços, em muitos momentos com espaço físico insuficiente para desenvolverem suas atividades; a falta de capacitação em saúde mental dos profissionais que trabalham nos serviços e ausência de educação permanente; pouca articulação da Rede de Atenção Psicossocial; presença ainda do estigma dificultando o processo de ressocialização dos usuários do CAPS.

[...] nós não conseguimos mais trabalhar bem nesse espaço. Então, é um espaço que não oferece uma estrutura boa pra o serviço. É um espaço pequeno, o número de profissionais também é um número pequeno, então isso acaba fazendo com que o serviço não ande muito bem. (*suj_10)

[...] profissionais que chegaram aqui, eles chegaram sem capacitação, a gente tem um recurso muito pouco, a gente não tem uma contrapartida, a gente não tem propostas a nível de estado que viabilize capacitação. (*suj_14)

[...] então o nosso maior entrave é financeiro, um outro entrave muito significativo são as nossas redes que não funcionam, o nosso hospital que é retaguarda, [...] eles se desresponsabilizam pelo paciente que chegou lá, então eles acionam o CAPS e a gente não tem de forma alguma como dar conta. (*suj_15)

Bem, eu acho que ainda, acho que o preconceito, o estigma, eu pelo menos percebo muito. A gente pode ir até um certo ponto, eu percebo que, quando você trata da questão do usuário de drogas, você até vê uma boa evolução daquele usuário, mas aí, quando você chega nessa parte de reintegrar, [...] A sociedade não tá preparada, você não encontra um emprego pra uma pessoa que tá fazendo tratamento, que esteja num CAPS. O próprio fato dele tá vindo ao CAPS, muitas pessoas aqui elas são taxadas na sociedade: “ah, é um louco”. (*suj_18)

Distanciamento entre a política e a prática

Evidenciou-se, nos relatos dos gestores participantes, uma opinião generalizada sobre o distanciamento entre a política e a legislação de saúde mental vigentes no país e o que os profissionais presenciam em seu cotidiano de assistência, algo transitório, ou em processo de transição, entre o que estava instituído e o que se instituiu a partir das políticas de saúde mental.

Às vezes o que tá lá no papel, na legislação, na política, não é o que acontece na prática. A prática, muitas vezes, é muito diferente da política que foi proposta, então eu vejo uma lacuna ainda muito grande. (*suj_06)

Percebo um distanciamento da interação entre legislação e políticas e a prática no momento de transição, pois a realidade, a vivência da saúde mental, precisa de um maior suporte, a desinstitucionalização hospitalocêntrica foi um avanço sim, mas precisamos de unidades de atendimento e suporte ao paciente que está em crise, as famílias necessitam deste suporte, os profissionais necessitam de suporte, de acompanhamento, de treinamento. (*suj_03)

Então, o estado, a Secretaria Municipal e a Secretaria Estadual de Saúde Mental, ela trabalha nisso, trabalha tentando ajustar isso aí pra ajudar na diminuição dos leitos, na superlotação, mas eu acredito que não vai conseguir. Não vai conseguir até que os CAPSs estejam estruturados fisicamente e humanamente, como deveria realmente estar. (*suj_10)

DISCUSSÃO

Medidas de estímulo ao protagonismo dos usuários atendidos nos serviços foram descritas pelos entrevistados, como preconizado no modelo de atenção psicossocial. O suporte oferecido pelas redes sociais, com apoio de diversos instrumentos, como o Conselho Tutelar e assistência social, é um aspecto fundamental para a inclusão social das pessoas com transtornos mentais ou com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas(1010 Ministério da Saúde (BR). Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre os direitos e deveres que dizem respeito aos participantes de pesquisa, à comunidade científica e ao Estado [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2012 [cited 2018 Feb 22]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
). O retorno dessas pessoas à sociedade tem fundamental importância no processo de reinclusão e ressocialização vivido por eles e os coloca de volta a um lugar perdido ou nunca antes vivenciado por eles na comunidade.

Exemplos de histórias bem-sucedidas podem aumentar a autoestima dos profissionais que trabalham nos serviços de saúde mental, além de servirem de motivação para os usuários próximos.

O acolhimento estabelecido pela equipe aos usuários vai além de um processo de triagem, tornando-se um processo de abertura e escuta, permitindo o estabelecimento de relações mais humanizadas e esclarecedoras com os usuários(1111 Romanini M, Guareschi PA, Roso A. O conceito de acolhimento em ato: reflexões a partir dos encontros com usuários e profissionais da rede. Saúde Debate. 2017;41(113):486-99. doi: 10.1590/0103-1104201711311
https://doi.org/10.1590/0103-11042017113...
). Os vínculos estabelecidos fortalecem a credibilidade dos profissionais, influenciando na resposta terapêutica da pessoa em sofrimento psíquico.

O processo de geração de renda pode ser visto, em seus diversos aspectos, como positivo na vida dos sujeitos que se beneficiam com ele. Em estudo realizado com usuários de serviços de saúde mental inseridos em projetos de geração de renda em municípios do interior de São Paulo observou-se, por meio dos relatos dos mesmos, o significado do trabalho como um meio de satisfação pessoal e promotor de possibilidades, uma ferramenta no processo de recuperação do indivíduo, um meio de combater o ócio, um potencializador de poder aquisitivo e independência, e um ampliador das relações sociais(1212 Lussi IAO, Morato GG. O significado do trabalho para usuários de serviços de saúde mental inseridos em projetos de geração de renda vinculados ou não ao movimento da economia solidária. Cad Ter Ocup UFSCar. 2012;20(3):369-80. doi: 10.4322/cto.2012.037
https://doi.org/10.4322/cto.2012.037...
).

Apesar de os gestores apontarem o protagonismo e a autonomia dos usuários como fundamentais no modelo de atenção psicossocial, nos resultados obtidos sobre a realidade relatada nos serviços investigados, constatou-se a inexistência de, pelo menos, um projeto específico de geração de renda vinculado ou não a algum movimento de economia solidária ou iniciativa individual dos serviços pesquisados. Nesse sentido, observou-se que há apenas estímulos pontuais em algumas ações e oficinas realizadas por alguns profissionais nos CAPSs, em atividades não atrativas para os usuários, e os que participavam delas demonstraram uma aproximação anterior com a atividade proposta. Esse achado merece uma reflexão ou inserção mais acentuada de programas ou pactuações com serviços da rede diante da importância que o trabalho exerce sobre a vida do ser humano na perspectiva de formação de redes territoriais.

Os participantes da pesquisa, motivados e estimulados durante a entrevista estruturada, responderam às questões sobre quais profissionais técnicos de nível médio e superior compunham as equipes que trabalhavam sob sua responsabilidade e sobre as atividades desenvolvidas nos serviços. Entende-se que o trabalho desenvolvido dentro de um CAPS necessita de horizontalidade profissional perpassando as relações com os usuários e que os conhecimentos advindos da interdisciplinaridade ampliem o trabalho desenvolvido pela equipe multiprofissional na busca de alcançar os objetivos desse serviço(1313 Cardoso MRO, Oliveira PTR, Piani PPF. Práticas de cuidado em saúde mental na voz dos usuários de um Centro de Atenção Psicossocial do estado do Pará. Saúde Debate. 2016;40(109):86-99. doi: 10.1590/0103-1104201610907
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).

Cabe ao CAPS, a partir da PNSM/RAPS, desenvolver uma rede de trabalho multiprofissional e interdisciplinar(1414 Maynart WHC, Albuquerque MCS, Brêda MZ, Jorge JS. Qualified listening and embracement in psychosocial care. Acta Paul Enferm. 2014;27(4):300-4. doi: 10.1590/1982-0194201400051
https://doi.org/10.1590/1982-01942014000...
). Nesse sentido, sabe-se que, para as profissões da área da saúde (médicos psiquiatras ou especialistas em saúde mental, enfermeiros, psicólogos e técnicos), o exercício profissional e o código de ética são específicos para cada categoria, o que, na perspectiva interdisciplinar, remete a uma agenda terapêutica de cada serviço, além do projeto terapêutico singular.

Evidenciou-se, no presente estudo, na maioria dos relatos dos gestores, a presença de equipe mínima necessária para o funcionamento do serviço, de acordo com o que rege a Portaria 336/2002, que regulamenta e estabelece as especificações de funcionamento de cada tipo de CAPS e normatiza o número de profissionais mínimos para que se garanta o atendimento aos usuários do serviço(1515 Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002. Estabelece que os Centros de Atenção Psicossocial poderão constituir-se nas seguintes modalidades de serviços: CAPS I, CAPS II e CAPS III, definidos por ordem crescente de porte/complexidade e abrangência populacional [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2002 [cited 2018 Feb 22]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2002/prt0336_19_02_2002.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
).

Ressalta-se que a portaria não especifica quais são as atribuições de cada categoria profissional dentro do serviço, porém enfatiza que todos estão envolvidos desde o acolhimento até a alta, assim, favorecendo o sucesso da reintegração dos usuários nos grupos sociais(1414 Maynart WHC, Albuquerque MCS, Brêda MZ, Jorge JS. Qualified listening and embracement in psychosocial care. Acta Paul Enferm. 2014;27(4):300-4. doi: 10.1590/1982-0194201400051
https://doi.org/10.1590/1982-01942014000...
). Entende-se que, pelo perfil de trabalho realizado nos CAPSs, a partir de uma perspectiva multi e interdisciplinar, este seja um fator facilitador do processo de desenvolvimento terapêutico, reconhecendo-se também que cada profissional deve trazer, para sua prática, as atribuições e especificidades de sua formação técnica. Dessa forma, existem atividades comuns a todos os profissionais e atividades específicas realizadas de acordo com a competência ética e legal de cada categoria.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que se constata a ausência de delimitações técnicas da prática ou atuação profissional, as quais podem ocasionar lacunas assistenciais, confusão ou dúvida por parte dos profissionais nas atribuições específicas de cada categoria, evidencia-se como agravante o isolamento do conhecimento médico, dificultando a interação disciplinar como permuta de saberes e fazeres(1313 Cardoso MRO, Oliveira PTR, Piani PPF. Práticas de cuidado em saúde mental na voz dos usuários de um Centro de Atenção Psicossocial do estado do Pará. Saúde Debate. 2016;40(109):86-99. doi: 10.1590/0103-1104201610907
https://doi.org/10.1590/0103-11042016109...
).

No caleidoscópio da proposta psicossocial, sugere-se que o diagnóstico em saúde mental seja prioritariamente interdisciplinar, compreendendo essa interação profissional como um elemento importante da complexidade do projeto terapêutico individual de cada usuário(1616 Silva SN, Lima MG. Avaliação da estrutura dos Centros de Atenção Psicossocial da região do Médio Paraopeba, Minas Gerais. Epidemiol Serv Saúde. 2017;26(1):149-60. doi: 10.5123/s1679-49742017000100016
https://doi.org/10.5123/s1679-4974201700...
). Entretanto, identificou-se, na fala dos entrevistados do presente estudo, certa insegurança do profissional ao relatar sua opinião, até por limitação de habilidades e competências nos objetivos operacionais e doutrinários da RAPS, colocando-a apenas como um posicionamento próprio sem a devida convicção de que esteja fundamentado em um entendimento geral de política de saúde.

Entende-se que o cumprimento das normatizações específicas na condição de gestor se apresenta como uma questão sine qua non, tal exigência na escolha do gestor poderia diminuir ou evitar ações e práticas baseadas na opinião de cada profissional e padronizaria o atendimento dos CAPSs de acordo com o que se espera do serviço.

A Rede de Atenção Psicossocial tem como proposta ampliar o acesso à atenção psicossocial da população em geral, promovendo vínculo das pessoas com os pontos de atenção e qualificando o serviço de acordo com o cuidado, por meio do acolhimento, da atenção às urgências e do acompanhamento contínuo dos casos de pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde(44 Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2011 [cited 2018 Feb 22]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
,1414 Maynart WHC, Albuquerque MCS, Brêda MZ, Jorge JS. Qualified listening and embracement in psychosocial care. Acta Paul Enferm. 2014;27(4):300-4. doi: 10.1590/1982-0194201400051
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).

Nesse sentido, questionou-se a respeito das prioridades da atenção à saúde mental na política atual, ou seja, da busca para cumprir isso, por meio de uma missão única, guiada por objetivos comuns e por uma ação cooperativa e interdependente que implicam um contínuo de atenção nos níveis primário, secundário e terciário(1717 Eslabão AD, Coimbra VCC, Kantorski LP, Pinho LB, Santos EO. Mental health care network: the views of coordinators of the Family Health Strategy (FHS). Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(1):e60973. doi: 10.1590/1983-1447.2017.01.60973
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).

No presente estudo, observou-se uma superficialidade ou um tangenciamento que pode ser entendido também como pouca profundidade no conhecimento dos gestores a respeito das prioridades de atenção em saúde mental na atual política de assistência, restringindo, em sua maioria, o foco de seus relatos à existência do CAPS como algo rotineiro e acrítico. Em outro estudo, constatou-se o uso de estratégias díspares de descentralização e regionalização, com ênfase nos municípios (sistemas locais isolados), sem um enfoque regional e sistêmico, e um destaque tardio da regionalização na política nacional de saúde(1818 Almeida AB, Aciole GG. Gestão em rede e apoio institucional: caminhos na tessitura de redes em saúde mental no cenário regional do Sistema Único de Saúde (SUS). Interface (Botucatu). 2014;18(Suppl 1):971-81. doi: 10.1590/1807-57622013.0371
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).

Importantes questões que devem ser realizadas em equipe interdisciplinar sobre a prática psicossocial em saúde mental nos serviços substitutivos e que remetem à perspectiva do trabalho terapêutico e à relação de cooperação com o usuário, a família e a comunidade não foram abordadas pelos sujeitos(1616 Silva SN, Lima MG. Avaliação da estrutura dos Centros de Atenção Psicossocial da região do Médio Paraopeba, Minas Gerais. Epidemiol Serv Saúde. 2017;26(1):149-60. doi: 10.5123/s1679-49742017000100016
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).

Reconhece-se que o processo da Reforma Psiquiátrica brasileira, sua política e o modelo proposto de atenção psicossocial passam por um processo de metamorfose em que coexistem práticas arraigadas e um modelo hegemônico herdado da psiquiatria clássica que reforça, de um lado, o modelo biomédico e medicalizante, de outro, o redesenho de um campo novo, onde diversos atores interagem para desconstruir o modelo herdado e construir um modelo compartilhado de atenção à saúde mental. Por seu aspecto psicodinâmico, polissêmico e complexo, tal proposta demanda tempo para sua operacionalização, na medida em que os aspectos conceituais envolvidos possam estar suficientemente claros para os profissionais, usuários, familiares e gestores, em constante (re)construção.

Diante de uma gama de dificuldades enfrentadas pelos profissionais que trabalham na assistência em saúde mental, os gestores, entendidos como articuladores de saúde mental, deveriam exercer o papel de apoiador institucional(1414 Maynart WHC, Albuquerque MCS, Brêda MZ, Jorge JS. Qualified listening and embracement in psychosocial care. Acta Paul Enferm. 2014;27(4):300-4. doi: 10.1590/1982-0194201400051
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). Nesse sentido, há uma naturalização das práticas herdadas de processos históricos de cada uma das profissões implicadas na RPS e que se confrontam com os aspectos jurídicos e doutrinários da mesma.

No que diz respeito aos entraves que afetam os serviços de saúde mental, evidenciou-se, na presente pesquisa, uma insatisfação com o trabalho descrita a partir de uma estrutura física e de recursos humanos não condizentes com a prática assistencial em saúde mental ou até mesmo com a proposta de serviço substitutivo, em que aspectos subjetivos e singulares desses profissionais não foram devidamente aclarados e declarados. As condições alienantes ou deficientes de trabalho dificultam a percepção do servidor como sujeito do seu trabalho, como um corresponsável por uma assistência de qualidade(1919 Onocko-Campos R, Furtado JP, Trapé TL, Emerich BF, Surjus LTLS. Evaluation Indicators for the Psychosocial Care Centers Type III: results of a participatory design. Saúde Debate. 2017;41(spe):71-83. doi: 10.1590/0103-11042017s07
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).

Diretrizes ministeriais reforçam que os CAPSs poderão localizar-se dentro dos limites da área física de uma unidade hospitalar geral ou dentro do conjunto arquitetônico de instituições universitárias de saúde, desde que independentes de sua estrutura física, com acesso privativo e equipe profissional própria(1414 Maynart WHC, Albuquerque MCS, Brêda MZ, Jorge JS. Qualified listening and embracement in psychosocial care. Acta Paul Enferm. 2014;27(4):300-4. doi: 10.1590/1982-0194201400051
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). Essa condição imagética do hospital e seus modos de tratamento não asseguram a mudança da lógica. Não foi a estrutura física intramuros que não deu respostas à psiquiatria clássica, mas a atuação dos profissionais centrados num modelo excludente, alienante e hospitalocêntrico. Há um equívoco em atribuir ao espaço físico do hospital os efeitos deletérios da psiquiatria, respeitadas as proporções históricas, sociais e políticas de determinada época e o contexto social vigente.

Outro aspecto evidenciado nesta pesquisa foi o distanciamento entre a política e a prática. O movimento político que originou a Reforma Brasileira iniciou-se com a problematização do modelo manicomial e de sua articulação com o regime militar, na medida em que esse modelo funcionava como prática de exclusão e tortura de presos políticos(2020 Miranda L, Oliveira TFK, Santos CBT. Study of a Psychosocial Care Network: Paradoxes and effects of insecurity. Psicol Ciênc Prof. 2014;34(3):592-611. doi: 10.1590/1982-3703001662013
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). Somem-se os custos decorrentes do convênio com hospitais, clínicas, casas de repouso centrados na proposta da internação, e dos altos investimentos que remetem à crise do financiamento previdenciário do caso brasileiro.

A RPS encerra dimensões além do estabelecido, ou seja, da população, da estrutura operacional e do modelo de atenção à saúde, atingindo os aspectos econômicos e sociais do país, com grandes desafios para garantir uma rede solidária e cooperativa de saúde mental municipal e regional e novas formas de pensar e fazer saúde, respeitando os preceitos da Reforma Psiquiátrica(1616 Silva SN, Lima MG. Avaliação da estrutura dos Centros de Atenção Psicossocial da região do Médio Paraopeba, Minas Gerais. Epidemiol Serv Saúde. 2017;26(1):149-60. doi: 10.5123/s1679-49742017000100016
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).

Infere-se que há um aspecto lacunar na compreensão do modelo manicomial e sua estruturação e modelo de tratar a loucura, de uma forma geral, para um modelo aberto em que se trabalha com o conceito da responsabilização, desinstitucionalização e atenção psicossocial entre os atores envolvidos, com base numa dimensão territorial. Dito de outra forma, sair do confinamento do asilo/manicômio como espaço privado para um espaço público, aberto, participativo, democrático e cidadão proposto pelos CAPSs, esse movimento confere um certo distanciamento e imprecisão em compreender e conhecer o que se define como política, prática e legislação que regulam as ações de cada profissional no contexto da atenção psicossocial.

Nesse sentido, concorda-se que a RPS foi se construindo sem relação de hierarquia, por meio do método da roda sem ponta(1717 Eslabão AD, Coimbra VCC, Kantorski LP, Pinho LB, Santos EO. Mental health care network: the views of coordinators of the Family Health Strategy (FHS). Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(1):e60973. doi: 10.1590/1983-1447.2017.01.60973
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), diante das novas formas de gerir processos com apoio técnico, construção e fortalecimento do diálogo, dos vínculos pessoais, afetivos e institucionais, da valorização dos articuladores e trabalhadores, dentre outros(1818 Almeida AB, Aciole GG. Gestão em rede e apoio institucional: caminhos na tessitura de redes em saúde mental no cenário regional do Sistema Único de Saúde (SUS). Interface (Botucatu). 2014;18(Suppl 1):971-81. doi: 10.1590/1807-57622013.0371
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), ocasionando esse distanciamento em função daquilo que afetou o gestor, o trabalhador e o processo de trabalho na atenção psicossocial.

Os principais relatos dos gestores que participaram do presente estudo concentraram-se na ausência de um suporte além do CAPS para acolher a demanda de pessoas em sofrimento psíquico. Em muitas realidades, a existência de um CAPS em um município ou região é vista como o único responsável pelo cuidado a essas pessoas, fazendo com que os outros serviços que deveriam responder às expectativas de atendimento de atenção básica e alta complexidade não se vissem como parte do processo ou como integrantes da Rede de Atenção Psicossocial. Esse distanciamento ou lacuna parecem não reconhecer os momentos de crise dos transtornos mentais e comportamentais, mas o efeito (re)estruturante da RPS na oferta dos serviços e nos processos de trabalho implicados, numa perspectiva de uma produção de coletivos(1313 Cardoso MRO, Oliveira PTR, Piani PPF. Práticas de cuidado em saúde mental na voz dos usuários de um Centro de Atenção Psicossocial do estado do Pará. Saúde Debate. 2016;40(109):86-99. doi: 10.1590/0103-1104201610907
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).

Considera-se relevante a consciência dos profissionais sobre sua participação no processo de cuidado em saúde mental, seja nos serviços especializados seja nos serviços clínicos e de abrangência maior, como os hospitais gerais e a atenção básica (equipes e condições de trabalho). Em alguns casos, observa-se até um certo descrédito, nas falas dos sujeitos pesquisados, de que a política venha a ser realmente implantada em sua plenitude, diante das dificuldades que são encontradas hoje na assistência e na estrutura de organização da RAPS.

Concorda-se, todavia, que as reformulações da política de saúde mental abrangem a redefinição dos papéis profissionais dos técnicos envolvidos na assistência, num trabalho de equipe multidisciplinar, e que cabe a cada ator envolvido no processo o empenho em desenvolver uma assistência mais inclusiva que responda, de maneira mais coerente, aos fundamentos políticos e ideológicos da PNSM atualmente(2121 Prata NISS, Groisman D, Martins DA, Rabello ET, Mota FS, Jorge MA, et al. Saúde mental e atenção básica: território, violência e o desafio das abordagens psicossociais. Trab Educ Saúde. 2017;15(1):33-5. doi: 10.1590/1981-7746-sol00046
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).

Limitações do estudo

A limitação do estudo relaciona-se ao fato de a pesquisa ter sido realizada em um único estado brasileiro, o que não possibilita a generalização dos resultados encontrados na pesquisa, além do ano em que foi realizado o estudo e da atual política de saúde mental em contradição com o modelo psicossocial numa lógica de retorno ao modelo manicomial, resultante de uma hiância entre as políticas e práticas de enfrentamento ao uso abusivo de drogas e às práticas de atenção psicossocial. No entanto, não desqualifica as contribuições, nem é menos relevante diante das evidências encontradas e no pioneirismo e ineditismo do estado referentes à temática e seus desafios.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou política pública

Acredita-se que os achados dão uma visão global da rede de serviços de saúde mental no RN, tendo o CAPS como a porta de entrada, e da superação do modelo manicomial para um psicossocial, participativo, democrático e autônomo. Assim, assume-se o compromisso com estudo posterior e complementar, considerando, pois, esses achados como indicadores capazes de serem divulgados e publicados para se garantir, em princípio, uma discussão para superação das dificuldades e, consequentemente, (re)construir papéis e funções dos profissionais da equipe multiprofissional, em que se garanta uma agenda terapêutica a partir do projeto terapêutico singular, respeitadas as singularidades dos usuários, familiares e profissionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os gestores reconheceram as políticas e a formação da rede de atenção psicossocial ainda de forma conflitiva ou, em comparação, associada à prática no contexto dos CAPSs, um distanciamento entre o entendimento do que seja política e a sua prática na solução dos problemas de saúde mental, na perspectiva do território.

Os gestores demonstraram conhecimento sobre os conceitos-chave para a efetiva construção da rede de atenção psicossocial a partir do protagonismo e autonomia dos usuários, das atribuições e atividades desempenhadas pela equipe multiprofissional, e das dificuldades em estruturar a rede de atenção psicossocial.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Fátima Helena Espírito Santo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2018
  • Aceito
    27 Jul 2018
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