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Como traduzir o conhecimento científico à prática? Conceitos, modelos e aplicação

RESUMO

Objetivos:

apresentar o conceito de Tradução e Intercâmbio do Conhecimento tal como vem sendo utilizado na literatura internacional e, em particular, no Canadá. A seguir, descrever um renomado modelo conceitual para orientar a sua implementação, intitulado Ciclo do Conhecimento à Ação.

Resultados:

ilustramos a utilização do modelo no contexto do sistema municipal de atenção básica à saúde no sul do Brasil, na implementação de estratégias de manejo da dor durante a vacinação.

Conclusões:

nesta reflexão teórica, argumentamos sobre a importância de se traduzir o conhecimento científico aos diversos contextos de prática e criar oportunidades de intercâmbio com os usuários desse saber, como profissionais de saúde, gestores, formuladores de políticas públicas, pacientes, familiares e demais grupos de interesse, para promover equidade e qualidade dos cuidados no Sistema Único de Saúde.

Descritores:
Tradução do Conhecimento; Translação; Disseminação de Informação; Difusão; Competência Clínica

ABSTRACT

Objectives:

to present the concept of Knowledge Translation and Exchange as it has been used in the international literature and in Canada, particularly. Next, to describe a renowned conceptual model to guide its implementation, entitled Knowledge-to-Action Cycle.

Results:

we described the use of the model in the context of the municipal primary health care system in southern Brazil for the implementation of pain management strategies during vaccination.

Conclusions:

in this theoretical reflection, we argue that in order to promote health equity and quality of care in the Unified Health System (Brazilian SUS) it is important to translate scientific knowledge to various practice settings and create opportunities for exchange with users of this knowledge, such as health professionals, managers, policy makers, patients, family members and other stakeholders.

Descriptors:
Knowledge Translation; Translation; Information Dissemination; Diffusion; Clinical competence

RESUMEN

Objetivos:

presentar el concepto de Traducción e Intercambio de Conocimiento tal como se ha utilizado en la literatura internacional y, en particular, en Canadá. A continuación, describir un modelo conceptual reconocido para guiar su implementación, titulado Ciclo del Conocimiento a la Acción.

Resultados:

ilustramos el uso del modelo en el contexto del sistema municipal de atención primaria de salud en el sur de Brasil para implementar estrategias de manejo del dolor durante la vacunación.

Conclusiones:

en esta reflexión teórica, argumentamos sobre la importancia de traducir el conocimiento científico a los diversos contextos de práctica y de crear oportunidades de intercambio con los usuarios de este conocimiento, como profesionales sanitarios, gerentes, formuladores de políticas públicas, pacientes, familias y otros grupos de interés para promover la equidad y la calidad de los cuidados en el Sistema Único de Salud.

Descriptores:
Traducción del Conocimiento; Traducción; Diseminación de Información; Difusión; Competencia Clínica

INTRODUÇÃO

Internacionalmente, os sistemas de saúde lidam com o desafio constante de melhorar a qualidade dos cuidados e diminuir o risco de tratamentos inadequados ou insuficientes, enquanto se mantêm economicamente viáveis. Idealmente, além de dar respostas à crescente demanda por serviços de saúde de variada complexidade, deve-se avaliar a eficácia das intervenções, a relação de custo e benefício e a satisfação dos usuários nesse processo(11 Straus SE, Tetroe J, Graham ID. Knowledge Translation in Health Care: moving from evidence to practice. 2nd ed. Wiley Blackwell; 2015 406 p.).

Neste artigo, descrevemos os esforços feitos para aproximar a produção acadêmica dos que devem se beneficiar desse novo saber, superando o modelo universitário “torre de marfim”, com o intuito de facilitar um entendimento de tendências internacionais nessa área no Canadá e no Brasil. No Canadá, onde duas das autoras são acadêmicas, o Instituto Canadense de Pesquisa em Saúde (CIHR), agência nacional de fomento à pesquisa em saúde, criada em 2000, foi de fundamental importância na promoção do conceito de Tradução e Intercâmbio do Conhecimento para a prática profissional e políticas públicas.

Em decorrência do investimento de quase duas décadas, houve uma readequação nos projetos de pesquisa e nas fórmulas de financiamento dos estudos, que devem estar alinhados às necessidades dos usuários finais ou grupos de interesse, definidos como pacientes, familiares e cuidadores, profissionais, gestores e formuladores de políticas públicas, buscando incremento da qualidade dos cuidados e diminuição de iniquidades em saúde. Tal processo sofreu críticas por causa da excessiva valorização de conhecimento aplicado e desvalorização de novos conceitos e ideias que não podem ser utilizados imediatamente, mas indubitavelmente mobilizou pesquisadores a considerarem a tradução de conhecimento e/ou o intercâmbio com usuários como fases dos projetos de pesquisa.

Dado o interesse em produzir conhecimento que melhore a qualidade dos serviços oferecidos no Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil e promova a relevância social da pesquisa financiada por órgãos públicos e realizada nas universidades federais e estaduais, este artigo tem por objetivo introduzir o conceito de tradução e intercâmbio do conhecimento, apresentar um modelo conceitual específico bem estabelecido chamado “Ciclo Do Conhecimento à Ação”(11 Straus SE, Tetroe J, Graham ID. Knowledge Translation in Health Care: moving from evidence to practice. 2nd ed. Wiley Blackwell; 2015 406 p.-22 Graham ID, Logan J, Harrison MB, Straus SE, Tetroe J, Caswell W, et al. Lost in knowledge translation: time for a map? J Contin Ed Health Prof. 2006; 26(1):13-24. doi: 10.1002/chp.47
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) e ilustrar a sua utilização no contexto clínico no sistema municipal de atenção básica à saúde no sul do Brasil.

TRADUÇÃO E INTERCÂMBIO DO CONHECIMENTO

Em português, a palavra tradução remete ao processo que permite ao nativo de uma língua comunicar-se em outra língua. Tal acepção foi usada no inglês no conceito de Tradução e Intercambio do Conhecimento (TIC) dado o entendimento de que a linguagem científica comumente não é acessível a usuários e profissionais do sistema de saúde. Assim, é necessária uma tradução para a utilização dos conhecimentos científicos.

Tradicionalmente, a tendência dos acadêmicos é de transferir ou difundir conhecimento, o que frequentemente significa publicar e apresentar os resultados dos estudos em eventos. O conceito proposto pelo Canadian Institutes of Health Research (CIHR)(11 Straus SE, Tetroe J, Graham ID. Knowledge Translation in Health Care: moving from evidence to practice. 2nd ed. Wiley Blackwell; 2015 406 p.) oferece uma proposta muito mais ambiciosa, pois propõe que o processo de TIC requer mudanças concretas. Assim a TIC é:

“Um processo dinâmico e iterativo que inclui a síntese, disseminação, o intercâmbio e aplicação ética e fundamentada do conhecimento para melhorar a saúde, fornecer serviços de saúde e produtos mais eficientes e fortalecer o sistema de cuidados de saúde”(11 Straus SE, Tetroe J, Graham ID. Knowledge Translation in Health Care: moving from evidence to practice. 2nd ed. Wiley Blackwell; 2015 406 p.).

Na literatura internacional, há muitos termos utilizados para descrever essa abordagem, mas no Canadá, o termo TIC é o mais frequentemente utilizado na área da saúde em função da adoção dessa terminologia pelo seu principal órgão de financiamento científico. Já na Inglaterra e EUA, têm sido utilizados os termos troca de conhecimentos, utilização de pesquisa e implementação. Esta variedade de nomenclatura tem suscitado confusão, pois muitas vezes, pesquisadoras/es utilizam os termos descolados de seus modelos conceituais e teóricos. Também há uma tendência de diferentes países utilizarem distintas terminologias relacionadas aos enfoques adotados por suas respectivas agências de fomento à pesquisa(33 Mckibbon KA, Lokker C, Wilczynski NL, Ciliska D, Dobbins M, Davis DA, et al. A cross sectional study of the number and frequency of terms used to refer to knowledge translation in a body of health literature in 2006: a Tower of Babel? Imp Sci. 2010; 5(16): 1-11. doi: 10.1186/1748-5908-5-16
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).

Quadro 1
Nomenclatura em inglês e português de modelos de tradução do conhecimento científico a práticas na área da saúde

O uso do termo TIC pressupõe a consideração de muitas formas de conhecimento para que haja mudança na prática ou nas políticas, incluindo os dados de pesquisa, os dados do contexto local, as prioridades organizacionais, a cultura organizacional, a experiência e preferências dos pacientes e a disponibilidade dos recursos(11 Straus SE, Tetroe J, Graham ID. Knowledge Translation in Health Care: moving from evidence to practice. 2nd ed. Wiley Blackwell; 2015 406 p.). As estratégias de tradução do conhecimento variam conforme o direcionamento de audiência (como por exemplo, pesquisadores, clínicos ou formuladores de políticas públicas) e o tipo de conhecimento a ser traduzido(11 Straus SE, Tetroe J, Graham ID. Knowledge Translation in Health Care: moving from evidence to practice. 2nd ed. Wiley Blackwell; 2015 406 p.).

A razão de ser da TIC é levar os benefícios do conhecimento produzido ao maior número de pessoas e instituições possível, avaliando o impacto dessas intervenções tanto na perspectiva da promoção da saúde, quanto na da redução de danos e substituir ou eliminar ações terapêuticas que sejam comprovadamente ineficientes e dispendiosas. Portanto, trata-se de fomentar o acesso ao conhecimento e usufruir do benefício da excelência nos cuidados de saúde, sob uma ótica democrática e de equidade, de forma que todos os usuários do sistema de saúde recebam o melhor cuidado com o menor risco possível. Além disso, deve ser considerado que a maior parte das pesquisas é financiada com verbas públicas e cabe aos pesquisadores dar o retorno à sociedade do investimento feito em seus estudos. Quando a TIC se torna uma fase ou uma estratégia integrada aos estudos, esses podem ter uma duração mais longa, mas a TIC é financiada como parte dos mesmos.

Em relação à prática clínica, os estudos infelizmente apontam um número expressivo de profissionais de saúde que ainda não se sente confiante sobre suas habilidades para avaliar criticamente as evidências disponíveis em revisões sistemáticas, com insuficiente preparo na interpretação dos pressupostos da prática baseada em evidência(44 Squires JE, Estabrooks CA, Scott SD, Cummings GG, Hayduk L, Kang SH, et al. The influence of organizational context on the use of research by nurses in Canadian pediatric hospitals. BMC Health Serv Res [Internet]. 2013 [cited 2017 May 21];13(351):1. Available from: https://bmchealthservres.biomedcentral.com/articles/10.1186/1472-6963-13-351
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-55 Sackett DL, Rosenberg WM, Gray J, Haynes RB, Richardson WS. Evidence Based Medicine: What it is and what it isn’t. BMJ [Internet]. 1996 [cited 2018 Apr 14];312(7023):71-2. Available from: http://www.bmj.com/cgi/content/full/312/7023/71.
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). Também há dificuldades de acesso às bases de dados e outras fontes, como orientação de pessoal capacitado, associadas à falta de tradição em trabalho colaborativo com os pesquisadores. Mesmo as metodologias de estudos participativos e ação, de longa tradição na América Latina, ainda são pouco utilizadas no âmbito dos serviços de saúde. Quando utilizadas, são centradas na produção de novo saber contextualizado e comumente sem sintetizar e integrar conhecimentos prévios.

Em relação às atividades que envolvem o processo de TIC, há duas categorias que descrevem como e quando isso é realizado: a) Tradução do conhecimento ao término do projeto de pesquisa, que engloba o desenvolvimento e implementação de um plano para conscientizar os potenciais usuários desse saber sobre os resultados do projeto (tradução) e atividades que engajam grupos para a troca de ideias sobre a implementação dos resultados do estudo nos distintos contextos locais (intercâmbio); b) Tradução do conhecimento integrada, que é uma abordagem participativa para engajar usuários do conhecimento em todo o processo de pesquisa. Desse modo, haverá maior entendimento e interesse destes usuários em utilizar os resultados da pesquisa em seu processo de tomada de decisão(66 Gagliardi AR, Berta W, Kothari A, Boyko J, Urquhart R. Integrated knowledge translation (IKT) in health care: a scoping review. Imp Sci. 2016;11(38):1-12. doi: 10.1186/s13012-016-0399-1
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).

A eficácia da TIC, seja integrada ou ao final de um estudo, varia muito(77 Greenhalgh T. What is this knowledge that we seek to "exchange"? Milbank Q. 2010;88(4):492-9. doi: 10.1111/j.1468-0009.2010. 00610.x
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). É preciso entender que estamos falando de projetos de grande complexidade. Na nossa experiência, fatores que não puderam ser antecipados podem gerar tensões e inclusive inviabilizar projetos, como relações de poder peculiares que caracterizam alguns grupos profissionais ou objetivos distintos entre pesquisadores e grupos de interesse para um mesmo projeto. Muitas vezes, a falta de preparo dos pesquisadores para manejar redes e grupos (já existentes e novos), conduzir processos com transparência e trabalhar simultaneamente com gestores, usuários e profissionais (entendendo hierarquias, mas não reproduzindo relações paternalistas ou discriminadoras) se torna a principal barreira para o sucesso dos projetos(77 Greenhalgh T. What is this knowledge that we seek to "exchange"? Milbank Q. 2010;88(4):492-9. doi: 10.1111/j.1468-0009.2010. 00610.x
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). No contexto brasileiro e ibero-americano, onde há pouca utilização de TIC, a formação de pesquisadores e o apoio financeiro para projetos com uma fase de TIC seriam os primeiros dois passos para fomentar o desenvolvimento dessa abordagem-ponte entre ciência e sociedade.

Dada essa realidade, para traduzir conhecimento para a prática clínica, os pesquisadores devem adotar um modelo que guie o processo e que seja compreendido pelos profissionais na linha de frente. Múltiplos modelos podem ser escolhidos para orientar a TIC, por exemplo, “Promoting Action on Research Implementation in Health Services” (PARIHS),Public Involvement Impact Assessment, CIHR Model of Knowledge Translation ou The Ottawa Model of Research Use. Dentre as opções disponíveis, um dos modelos conceituais frequentemente utilizado, atualmente adotado pela Organização Mundial da Saúde, é conhecido como“Knowledge-to-Action Cycle” (Ciclo do Conhecimento à Ação)(11 Straus SE, Tetroe J, Graham ID. Knowledge Translation in Health Care: moving from evidence to practice. 2nd ed. Wiley Blackwell; 2015 406 p.-22 Graham ID, Logan J, Harrison MB, Straus SE, Tetroe J, Caswell W, et al. Lost in knowledge translation: time for a map? J Contin Ed Health Prof. 2006; 26(1):13-24. doi: 10.1002/chp.47
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), descrito a seguir.

MODELO CICLO DO CONHECIMENTO À AÇÃO

O modelo conceitual denominado Ciclo do Conhecimento à Ação foi desenvolvido por Graham e colegas em 2006(22 Graham ID, Logan J, Harrison MB, Straus SE, Tetroe J, Caswell W, et al. Lost in knowledge translation: time for a map? J Contin Ed Health Prof. 2006; 26(1):13-24. doi: 10.1002/chp.47
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) a partir da revisão e agregação de mais de 60 teorias, quadros de referência e modelos de planejamento de ação. A abordagem proposta nesse modelo foi expandida em publicações posteriores, como ilustrado na Figura 2, e ele guiou estudos desenvolvidos por pesquisadores canadenses(88 Lang ES, Johnson D. How does "knowledge translation" affect my clinical practice? Can J Emerg Med. 2012;14(3):182-6. doi: 10.2310/8000.2012.110645
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).

Figura 1
Ciclo do Conhecimento à Ação

Este diagrama favorece a compreensão dos pesquisadores e usuários do conhecimento por ser acessível, como um mapa das fases do processo a serem seguidas na TIC, para tratar de uma questão específica, numa dada direção, em um contexto concreto(99 Field B, Booth A, Ilott I, Gerrish K. Using the Knowledge to Action Framework in practice: a citation analysis and systematic review. Imp Sci. 2014; 9(172):1-14. doi: 10.1186/s13012-014-0172-2
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).É essencial que os usuários finais (grupos de interesse) sejam incluídos ao longo de todo o processo para assegurar a relevância da TIC, considerando suas necessidades(11 Straus SE, Tetroe J, Graham ID. Knowledge Translation in Health Care: moving from evidence to practice. 2nd ed. Wiley Blackwell; 2015 406 p.).

O diagrama atual(11 Straus SE, Tetroe J, Graham ID. Knowledge Translation in Health Care: moving from evidence to practice. 2nd ed. Wiley Blackwell; 2015 406 p.) compreende dois componentes distintos, mas relacionados: (a) Criação do Conhecimento, cuja figura central mostra um funil (o modelo antigo mostrava um triângulo invertido) subdividido em três fases: averiguação do conhecimento existente (primeira geração do conhecimento: estudos primários), síntese (segunda geração do conhecimento: revisões sistemáticas de literatura) e ferramentas/produtos (terceira geração do conhecimento: protocolos de auxílio à decisão, diretrizes clínicas ou módulos educacionais); (b) Ciclo de Ação, que integra sete etapas inter-relacionadas, que influenciam umas às outras. Cada componente envolve várias fases sobrepostas que podem ser iterativas e as fases do conhecimento podem impactar nas fases de ação(99 Field B, Booth A, Ilott I, Gerrish K. Using the Knowledge to Action Framework in practice: a citation analysis and systematic review. Imp Sci. 2014; 9(172):1-14. doi: 10.1186/s13012-014-0172-2
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).

Assim, enquanto de modo geral, os pesquisadores trabalham mais intensamente na averiguação, síntese e criação de produtos, os grupos de interesse influenciam grandemente na parte abaixo do funil, que inclui a identificação do problema e determinação das lacunas entre o saber e fazer, a revisão e seleção do conhecimento que será utilizado.

As bordas do diâmetro do ciclo revelam asseis etapas centrais da TIC, uma vez que o problema, o conhecimento e a realidade foram considerados. Elas são: adaptação do conhecimento ao contexto local, avaliação de barreiras e facilitadores para o uso do conhecimento, seleção e adaptação para implementar intervenções, monitoramento do uso, avaliação do impacto e a manutenção do uso do conhecimento. Todo esse processo segue um curso não-linear, pois cada etapa está intimamente relacionada com a outra, permitindo uma movimentação fluida entre elas, ou seja, os pesquisadores e grupos de interesse podem utilizar as fases fora da sequência, dependendo do projeto.

O Ciclo de Ação descreve um processo de abordagem de ações planejadas e necessárias para aplicar o conhecimento na prática. O ponto de partida envolve um grupo ou indivíduo e identifica um problema que merece ser estudado. Uma vez identificada a sua relevância, o problema deve ser avaliado criticamente para determinar se ele é prioritário e de interesse para todos os envolvidos, o que pode ser feito em grupo, revisando e determinando a lacuna do conhecimento.

Na fase seguinte, de adaptar o conhecimento ao contexto local, busca-se conhecer as particularidades, os valores, o potencial de aceitação e a adequação desse conhecimento às circunstâncias de um contexto específico. A fase contempla avaliar barreiras e facilitadores para auxiliarna condução de intervenções focalizadas para lidar com a resistência e/ou promover a próxima fase, que envolve selecionar e planejar atividades para promover a conscientização e a implementação do conhecimento. Nesta fase, é sugerida a utilização de estratégias inovadoras, diferindo das estratégias habituais como publicações (difusão passiva), para incorporar o uso de materiais voltados à audiência e ao contexto (por exemplo, vídeos, lembretes, sessões educativas interativas, cafés científicos e mídia social).

A partir de então, o foco das etapas subsequentes é o monitoramento, avaliação e uso do conhecimento, para verificar o impacto da aplicação na saúde individual e/ou no sistema. Ou seja, se houve mudança e se foi bem-sucedida, em comparação com a situação anterior à proposta da TIC.

Finalmente, apresentada como fase de manutenção do uso do conhecimento, Graham et al.(22 Graham ID, Logan J, Harrison MB, Straus SE, Tetroe J, Caswell W, et al. Lost in knowledge translation: time for a map? J Contin Ed Health Prof. 2006; 26(1):13-24. doi: 10.1002/chp.47
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) sugerem um processo semelhante ao da fase inicial de avaliar as barreiras e facilitadores, mas com um enfoque diferente, voltado para avaliar os fatores que impedem ou promovem a manutenção da aplicação do conhecimento. Eles acrescentam que, para atingir a sustentabilidade, é necessário criar um sistema dinâmico de “feedback” conectando todas as fases da ação(22 Graham ID, Logan J, Harrison MB, Straus SE, Tetroe J, Caswell W, et al. Lost in knowledge translation: time for a map? J Contin Ed Health Prof. 2006; 26(1):13-24. doi: 10.1002/chp.47
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).

Esse modelo foi planejado para que os diversos grupos de interesse que colaboram com os pesquisadores possam trabalhar de modo sistemático, favorecendo a compreensão de cada uma das etapas, pois essas devem fazer sentido no mundo real, dadas as idiossincrasias relacionadas aos diversos contextos. Enquanto modelo conceitual, ele é facilmente adaptável a diferentes cenários de práticas de cuidados, seja na atenção básica, na atenção hospitalar ou em outras situações, como por exemplo, a orientação do processo de introdução da prática baseada em evidência no currículo de graduação de enfermagem.

UTILIZAÇÃO NO CONTEXTO CLÍNICO: APLICAÇÃO DO MODELO

O nosso exemplo é de TIC integrada para o manejo da dor em recém-nascidos e lactentes durante imunizações, estudo de duas das autoras deste artigo (ACV e DH), o qual vem sendo desenvolvido em parceria com a Secretaria de Saúde do Município de Pelotas, RS, desde janeiro de 2018. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (Parecer nº 2.437.042). O projeto foi concebido durante estágio de pós-doutorado de uma das autoras (ACV) na Universidade de Ottawa, considerando a inexistência de semelhante proposta no contexto brasileiro.

Nessa abordagem, a prioridade foi construir uma relação profissional de confiança e respeito, com a colaboração de todos os envolvidos. Em cada Unidade Básica de Saúde (UBS), foi formado um grupo de trabalho, com promoção do engajamento de enfermeiros e técnicos (líderes locais) em um processo flexível, considerando o contexto do grupo de interesse(11 Straus SE, Tetroe J, Graham ID. Knowledge Translation in Health Care: moving from evidence to practice. 2nd ed. Wiley Blackwell; 2015 406 p.).

A fim de ilustrar a utilização no contexto clínico, a seguir são descritas as fases do modelo conceitual Ciclo do Conhecimento à Ação, exemplificadas pelas ações desenvolvidas ora de modo simultâneo, ora alternadas ou de modo sequencial.

Identificação do Problema: identificação da ausência ou insuficiente manejo da dor causada pelas imunizações nas crianças de 0 a 12 meses, quando existem intervenções factíveis, eficientes e de baixo custo descritas na literatura científica, tais como: amamentação, contato pele a pele e uso das soluções adocicadas.

Determinar as lacunas: inicialmente, foram aplicados questionários para avaliar o conhecimento de enfermeiros e técnicos sobre as práticas de manejo da dor durante procedimentos dolorosos (estudo piloto). Os pais opinaram sobre a viabilidade dos procedimentos após assistirem vídeos, demonstrando as intervenções para redução da dor.

Selecionar o conhecimento: nessa fase, foram selecionadas as revisões sistemáticas atualizadas que respondiam ao problema identificado. Como nem sempre há síntese do conhecimento disponível para as distintas situações que demandam os problemas identificados, é necessário realizar uma revisão da literatura (revisão de escopo, revisão integrada ou revisão sistemática). No nosso caso, já havia revisões sistemáticas recentes e novas diretrizes das recomendações de mitigação da dor elaboradas por grupo de especialistas da OMS em setembro de 2015 (http://www.who.int/immunization/sage/en). Este conhecimento foi a base para a formação dos grupos de trabalho desenvolvidos nas três Unidades Básicas de Saúde.

Adaptação do Conhecimento ao Contexto Local: através de uma parceria com gestores da Secretaria de Saúde do município, membros da equipe de saúde foram observados enquanto trabalhavam nas salas de vacinação e os recursos disponíveis para utilização das recomendações foram avaliados (por exemplo, espaço físico, cadeiras para o posicionamento correto das mães e pais, disponibilidade das soluções adocicadas, bem como a receptividade dos grupos de interesse). O processo de trabalho com a participação de gestores, profissionais de saúde e representantes dos pais foi realizado nessa fase do modelo.

Avaliar Barreiras e Facilitadores: as principais barreiras encontradas foram o desconhecimento de diretrizes e protocolos, receio na implementação das medidas preconizadas por preocupação com a segurança das crianças e indisponibilidade das soluções adocicadas (sacarose e glicose). Como exemplo de fatores facilitadores, identificamos a receptividade da equipe para o aprendizado e o apoio dos gestores. Em termos de processo, os encontros ocorreram de acordo com a escala de reuniões previamente agendadas pelas equipes das três UBSs. Nestes, a pesquisadora principal compartilhou o conteúdo das diretrizes da OMS e do HELPinKIDS(1010 Taddio A, McMurtry CM, Shah V, Riddell RP, Chambers CT, Noel M, et al. Reducing pain during vaccine injections: Clinical practice guideline. Cmaj [Internet]. 2015 Sep [cited 2018 Jul 06];187(13):975-82. Available from: http://www.cmaj.ca/content/cmaj/187/13/975.full.pdf
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) durante os grupos de discussão, nos quais foram abordados os mitos e preocupações em relação às estratégias de manejo da dor.

Selecionar, ajustar, implementar intervenções: o documento de mitigação da dor da OMS, publicado nos idiomas inglês e francês, foi traduzido para o português do Brasil por uma das autoras com a supervisão de professor nativo da língua inglesa, o que permitiu o acesso à informação. Também foram utilizados vídeos produzidos por uma das autoras (DH) (https://www.youtube.com/watch?v=2TyTPDghiXE) com áudio em português (traduzido por ACV), descrevendo as intervenções de manejo da dor em linguagem clara e acessível, dizendo aos pais, enfermeiros e técnicos como eles podem proceder durante a administração das vacinas. Adicionalmente, foram utilizados fluxogramas descrevendo detalhadamente como utilizar as intervenções, com fotos e texto claro, numa versão “amigável” e atraente.

Monitorar o uso do conhecimento: a observação direta das práticas adotadas e o feedback dos grupos de interesse (pais, enfermeiros e técnicos) têm revelado satisfação com o processo, que ainda está em fase de desenvolvimento.

Avaliar impacto: até o momento, os pais relataram satisfação e confiança para vacinar seus filhos nas três UBSs. Houve aumento da procura por mães, que mostraram interesse na amamentação para reduzir a dor. A avaliação do impacto será desenvolvida a seguir, para medira satisfação dos pais e profissionais das salas de vacina que utilizaram as estratégias.

Manter o uso: a partir dos grupos de discussão e dados de base coletados inicialmente, foi elaborado um material educativo (Módulo I) destinado aos enfermeiros e técnicos. A seguir, pretende-se elaborar material destinado aos pais. Na sequência de atividades, serão organizados “Cafés Científicos” com a participação da comunidade local, pesquisadores e gestores com o objetivo de atingir uma audiência ampla.

Em nível federal, uma das autoras (ACV) colaborou com a revisão do Manual de Normas e Procedimentos em Imunizações sob a coordenação do Programa Nacional de Imunização do Ministério da Saúde, com o objetivo de que estas medidas sejam incorporadas nas salas de vacinação de todo o país a médio prazo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto brasileiro, a possibilidade de se traduzir evidências científicas para a prática clínica e estabelecer intercâmbios com os grupos de interesse em seus diversos contextos, revela-se como um desafio, mas também uma possibilidade para incrementar a autonomia e visibilidade da enfermagem e demais grupos profissionais na área da saúde. Em parte, o sucesso destes projetos depende da utilização de modelos conceituais de TIC que melhor se ajustem ao contexto de cada estudo.

Entretanto, a experiência canadense revela vários elementos envolvidos nas relações de poder entre pesquisadores, grupos de interesse e o contexto organizacional, que podem facilitar ou dificultar a condução do processo e, consequentemente, o êxito da implementação.

Acrescido a isso, é fundamental reconhecer que no Brasil ainda é incipiente a parceria entre pesquisadores, profissionais, pacientes, familiares e instituições, os recursos financeiros públicos são escassos e o investimento em pesquisas desta natureza é baixo. Há ainda a necessidade de promover treinamento de pesquisadores e estudantes para desenvolver habilidades críticas de avaliação da qualidade das publicações cientificas para possível aplicação à pratica.

Em resumo, o objetivo comum da TIC guiada por modelos conceituais diversos é compreender, na perspectiva dos usuários do conhecimento, o que é eficaz e promove a equidade em saúde para a população, ao mesmo tempo em que repercute amplamente sobre o sistema de saúde em termos de excelência e sustentabilidade.

FOMENTO/AGRADECIMENTO

CAPES. Processo: 99999.007463/2015-04. Programa: 227. Pesquisa Pós-doutoral no Exterior. Ao Dr. Ian Graham, aos gestores, às enfermeiras e técnicas da UBSs da Secretaria de Saúde Pelotas (Bom Jesus, Simões Lopes e Puericultura), Amanda Riboriski e Valentina Gastaldo.

REFERENCES

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    » https://doi.org/10.1002/chp.47
  • 3
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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Aparecida Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Antonio José de Almeida Filho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2019
  • Aceito
    06 Out 2019
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