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Pessoas em situação de rua e as aldeias: drogas, marginalização social e território de cuidado

RESUMO

Objetivo:

reconhecer as aldeias como territórios de cuidado e resistência cotidiana à marginalização social.

Métodos:

estudo descritivo, de abordagem qualitativa, apoiado no referencial metodológico da etnografia inspirada na Antropologia Interpretativa. Pesquisa de campo de dois anos (do segundo semestre de 2015 ao primeiro semestre de 2017). Utilizou-se observação participante, entrevista semiestruturada com quatro interlocutores-privilegiados e diário de campo. A sistematização dos dados foi realizada durante todo o trabalho de campo.

Resultados:

divide-se em três categorias: Os interlocutores falam sobre a vida nas aldeias; As aldeias como dispositivo de cuidado; e As drogas nas aldeias.

Considerações finais:

os resultados revelam o desafio que é para a saúde e a enfermagem reconhecerem a necessidade de entender os contextos de vida urbana das pessoas em situação de rua. O enfermeiro necessita abranger elementos culturais em seus processos de trabalho, promovendo vínculo e compreensão dos modos de vida das pessoas em situação de rua.

Descritores:
Pessoas em Situação de Rua; Usuários de Drogas; Enfermagem Psiquiátrica; Antropologia Cultural; Marginalização Social

ABSTRACT

Objective:

to recognize villages as territories of care and daily resistance to social marginalization.

Methods:

a descriptive study with a qualitative approach based on the methodological framework of ethnography inspired by Interpretative Anthropology. Two-year field research (from the second half of 2015 to the first half of 2017). Participant observation and semi-structured interviews with four privileged interlocutors and a field diary have been used. Data systematization was carried out throughout field work.

Results:

three categories emerged: Interlocutors talking about their life in villages; Villages as a care device; and Drugs in villages.

Final considerations:

the results reveal the challenge for health and nursing to recognize the need to understand the contexts of urban life of homeless persons. Nurses need to include cultural elements in their work processes, promoting bonding and understanding the ways of life of homeless persons.

Descriptors:
Homeless Persons; Drug Users; Psychiatric Nursing; Anthropology, Cultural; Social Marginalization

RESUMEN

Objetivo:

reconocer a los pueblos como territorios de atención diaria y resistencia a la marginación social.

Métodos:

estudio descriptivo, con enfoque cualitativo, apoyado por el marco metodológico de la etnografía inspirado en la antropología interpretativa. Investigación de campo de dos años (desde la segunda mitad de 2015 hasta la primera mitad de 2017). Se utilizó observación participante, entrevistas semiestructuradas con cuatro interlocutores privilegiados y un diario de campo. La sistematización de los datos se realizó a lo largo del trabajo de campo.

Resultados:

se divide en tres categorías: Los interlocutores hablan de la vida en los pueblos; Los pueblos como dispositivo de cuidado; y Las drogas en los pueblos.

Consideraciones finales:

los resultados revelan el desafío para la salud y la enfermería de reconocer la necesidad de comprender los contextos de la vida urbana de las personas sin hogar. Las enfermeras deben incluir elementos culturales en sus procesos de trabajo, promoviendo lazos y la comprensión de las formas de vida de las personas sin hogar.

Descriptores:
Personas sin Hogar; Consumidores de Drogas; Enfermería Psiquiátrica; Antropología Cultural; Marginacion Social

INTRODUÇÃO

As pessoas em situação de rua constituem um grupo social heterogêneo que tem sido fortemente ligado à questão de uso de drogas e criminalidade. Suas principais características são a fragilização ou inexistência de vínculos familiares e moradia convencional regular, o trabalho informal e a vivência em áreas urbanas degradadas ou unidades de acolhimento para pernoite de modo provisório. Além disso, são consideradas grupos vulneráveis em virtude de sua condição socioeconômica, estigma, discriminação e violência (vulnerabilidade social), possuindo o direito a participação social reduzido, por enfrentar barreiras de acesso aos serviços de saúde, assistência social, escola e emprego (vulnerabilidade programática)(11 Xavier MP, Lima CF, Prado GAS, Oliveira TF. Pessoas em situação de rua: saúde, território e cuidado. Mnemosine [Internet]. 2019 [cited 2020 Mar 23];15(2):125-37. Available from: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/48320/32248
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
-22 Santos CS, Wanderbroocke ACNS, Tagliamento G. Senses of the psychosocial support network for homeless people Salud Soc. 2018;9(3):282-293. doi: 10.22199/S07187475.2018.0003.00006
https://doi.org/10.22199/S07187475.2018....
).

No Brasil, não existem dados oficiais sobre a população em situação de rua, entretanto há uma diversidade de estudos com metodologias diferentes para estimar o número de pessoas em situação de rua. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), por exemplo, utilizou os dados disponíveis no Censo do Sistema Único de Assistência Social, realizado em 1.924 cidades, para estimar a população em situação de rua em todos os municípios brasileiros, e computou que, no Brasil, existem 101.854 pessoas nessa situação; dois quintos (40,1%) habitam municípios com mais de 900 mil habitantes; mais de três quartos (77,02%) habitam municípios de grande porte, com mais de 100 mil habitantes; e 6.757 pessoas em situação de rua (6,63%) habitam os 3.919 municípios com até 10 mil habitantes33 Natalino MAC. Estimativa da população em situação de rua no Brasil. Texto para discussão. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA. Brasília: Ipea; 2016. 36 p.).

Nesse conjunto de elementos que caracterizam o contexto de vida das pessoas em situação de rua, estão as drogas. Pelo fato de ser altamente perceptível, através das condutas assistidas em cenas abertas de tráfico e consumo de drogas, o crack adquiriu uma magnitude importante para os meios de comunicação que enfatizam e ampliam a divulgação, por agregar o consumo abusivo dessa droga aos setores da juventude e dos pobres da sociedade, como a população em situação de rua, expandindo, assim, a condição de vulnerabilidade e a percepção de insegurança por segmentos dessa população44 Toledo L, Góngora A, Bastos, FIPM. À margem: uso de crack, desvio, criminalização e exclusão social - uma revisão narrativa. Ciênc Saúde Coletiva. 2017;22(1):31-42. doi: 10.1590/1413-81232017221.02852016
https://doi.org/10.1590/1413-81232017221...
).

No setor de saúde, as ações são caracterizadas como higienistas e assistencialistas. Não reconhecem e não compreendem a rua como um território cultural de poder e identidade. Por exemplo, as pessoas em situação de rua são associadas ao crime ou ainda ao modelo de doença, que vê a utilização das drogas como risco para a dependência, cabendo ao usuário requerer tratamento e reabilitação para uma doença biológica, cujo único instrumento possível seria a abstinência total para o alcance de um valor ético e moral. No entanto, o uso de drogas está associado à existência da subjetividade, desejos e identidades, não podendo ser avaliado somente seu efeito puramente biológico(55 Acioli ML, Santos MFS. Os usos de crack em um contexto de vulnerabilidade: representações e práticas sociais entre usuários. Psi.: Teor Pesq. 2016;32(3):e32326. doi: 10.1590/0102-3772e32326
https://doi.org/10.1590/0102-3772e32326...
-66 Teixeira MB, Ramôa ML, Engstrom E, Ribeiro JM. Tensions between approach paradigms in public policies on drugs: an analysis of Brazilian legislation in 2000-2016. Ciên Saúde Coletiva. 2017;22(5):1455-66. doi: 10.1590/1413-81232017225.32772016
https://doi.org/10.1590/1413-81232017225...
).

Como modo de resistência ao mundo social, que produz marginalização e políticas públicas deficitárias, as pessoas em situação rua, a partir de suas relações, constroem coletivos que lhes permitem transformar e reconfigurar cotidianamente a realidade social em que vivem, construindo um território de cuidado(77 Oliveira DM, Expedito AC, Aleixo MT, Carneiro NS, Jesus MCP, Merighi MAB. Needs, expectations and care production of people in street situation. Rev Bras Enferm. 2018;71(Suppl 6):2689-97. doi: 10.1590/0034-7167-2017-0612
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0...
). A rua, além de um espaço de morada, é o local onde essas pessoas realizam trabalhos informais, como guardadores de carro, descarregadores de carga, catadores de papel ou latinhas, entre outros. Além disso, é um território de afeto e proteção para superar as dificuldades da vivência com poucos recursos e os estigmas sofridos. Para elas, a rua não é um local tão ameaçador, pois nela desenvolvem suas relações, identidades e organizações sociais(88 Curvo DR, Matos ACV, Sousa WL, Paz ACA. Integralidade e clínica ampliada na promoção do direito à saúde das pessoas em situação de rua. Cad Bras Saúde Mental [Internet]. 2019 [cited 2019 Mar 14];10(25):58-82. Available from: http://incubadora.periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/5025/5204
http://incubadora.periodicos.ufsc.br/ind...
).

Nesse estudo, a rua é considerada um território, sendo definida pelo conceito de um espaço multidimensional de poder, não apenas o poder político, mas também o econômico, o simbólico, o cultural e o natural. Sendo um local de poder, as territorialidades são os movimentos e relações do indivíduo com seu espaço para controlar pessoas, fenômenos e relações marcando identidades culturais e apropriações simbólicas(99 Haesbaert R. O Território e a nova Des-territorialização do Estado. In: Dias LC, Ferrari M, (Org.). Territorialidades Humanas e Redes Sociais. Florianópolis: Insular; 2013. p. 19-37.).

Consideram-se os desafios emergentes da saúde e da enfermagem para o cuidado e políticas públicas que levem em conta as diversidades e culturas das pessoas em situação de rua; e a vulnerabilidade compreendida como multidimensional, dependendo de inúmeros fatores socioculturais e relações que não se limitam ao uso da droga(1010 Ayres JRCM. Prevenção de agravos, promoção da saúde e redução de vulnerabilidade. In: Clínica Médica/vol. 1. Barueri, SP: Manole; 2016.). Justifica-se a relevância desse tema, a fim de desconstruir o estigma que a população em situação de rua sofre ao ser reconhecida socialmente como usuários de drogas e criminosos, propondo, em contraposição, reconhecer que as aldeias devem ser assumidas como território de cuidado por meio do conhecimento dos modos e das experiências de vida das pessoas em situação de rua.

Diante da necessidade de investir em pesquisas que colaborem para a formação e qualificação de profissionais críticos capazes de problematizar a questão das pessoas em situação de rua e uso de drogas, considera-se essencial que esses temas não sejam desvinculados dos contextos das cidades e dos territórios de vida aos quais as pessoas em situação de rua criam suas histórias, suas relações e seus usos. A questão a seguir norteou a pesquisa: como as aldeias, a partir das pessoas em situação de rua e suas relações, constituem um território de cuidado e resistência à marginalização social?

OBJETIVO

Reconhecer as aldeias como territórios de cuidado e resistência cotidiana à marginalização social.

MÉTODO

Aspectos éticos

O projeto desta pesquisa foi aprovado em comitê de ética na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foram respeitados os preceitos ético-legais em pesquisas realizadas com seres humanos, de acordo com Resolução 466, de 12 de dezembro de 2012, que rege o direito de participação voluntária e desistência em qualquer momento da coleta de dados. Embasa-se também na Resolução 510, de 07 de abril de 2016, das Ciências Humanas e Sociais, que prevê especificidades em suas concepções e práticas de pesquisa.

Tipo de estudo e referencial teórico-metodológico

Trata-se de um estudo descritivo de abordagem qualitativa, apoiado no referencial metodológico da etnografia. O método etnográfico tem o objetivo de acessar muitas camadas interpretativas da vida social, visando uma compreensão ampla dos fenômenos através de um processo que visa abordar elementos macro e microestruturais(1111 Eckert C, Rocha ALC. Etnografia: saberes e práticas. In: Pinto CRJ, Guazzelli CAB(Org). Ciências Humanas: pesquisa e método. Porto Alegre: Editora da UFRGS; 2008. p. 09-24.).

A etnografia utilizada foi inspirada na Antropologia Interpretativa, que visa à análise densa dos resultados, buscando significados. A descrição densa vem ao encontro da capacidade de o pesquisador realizar vínculos, interagir conjuntamente com as emoções e preocupações do pesquisador em trabalhar essa realidade com sensibilidade(1212 Geertz C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC; 2008. 224 p.).

Procedimentos metodológicos

Cenário do estudo

Realizou-se uma pesquisa de campo, conhecendo a realidade da vida nas ruas, cuidado e uso de drogas em Porto Alegre (RS). Esta cidade tem uma população média estimada em 1.481.019 habitantes, e a área da unidade territorial é de 496.682 km2, sendo uma cidade de grande porte, com cidades médias próximas, denominadas de região metropolitana(1313 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010: população estimada [Internet]. IBGE; 2016 [cited 2019 Mar 13]. Available from: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/porto-alegre/panorama
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/po...
).

Fonte de dados

Ao longo do trabalho de campo, houve diferentes interlocutores oriundos dos espaços do Movimento Nacional da População de Rua, eventos, conferências e reuniões compartilhadas. Os que fizeram parte do acompanhamento etnográfico foram denominados interlocutores-privilegiados. Esses foram selecionados, propositalmente, através dos seguintes critérios de inclusão: estar ou ter morado/vivência na rua por pelo menos um ano; estar/ter utilizado drogas (álcool e outras drogas) por pelo menos um ano e ser maior de 18 anos. Para este artigo, foram utilizadas as informações oriundas das entrevistas e observações diretamente com os quatro interlocutores-privilegiados.

Coleta e organização dos dados

A coleta de dados ocorreu durante dois anos (no segundo semestre de 2015, em 2016 e no primeiro semestre de 2017). Este trabalho de campo foi composto pela observação das estruturas macrossociais através do Movimento Nacional da População de Rua, e das estruturas microssociais por meio das histórias e trajetórias individuais dos interlocutores. Relativo às estruturas microssociais, o processo foi "denominado acompanhamento etnográfico” revelando a relação e o vínculo entre pesquisador e interlocutor modificando os instrumentos conforme as particularidades dos interlocutores.

A observação participante ocorreu em todos os encontros, com os interlocutores da pesquisa, norteando a entrada em campo e a observação das interações no grupo. Cada visita de campo foi registrada detalhadamente na ferramenta diário de campo, que alicerçou as observações de campo, dando visibilidade à dinâmica e aos territórios vividos(1414 Monico L, Alferes V, Perreira P, Castro PA. A observação participante enquanto metodologia de investigação qualitativa. Atas Investigação qualitativa em ciências sociais. CIAIq [Internet]. 2017[cited 2020 Mar 23];(3). Available from: https://proceedings.ciaiq.org/index.php/ciaiq2017/article/view/1447
https://proceedings.ciaiq.org/index.php/...
-1515 Yin RK. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Série Métodos de Pesquisa. Editora Penso, 2016.).

A entrevista semiestruturada partia de um questionamento inicial: "Conte-me sobre sua história de vida”. A partir da narrativa, eram inseridos questionamentos que aprofundassem o objeto de pesquisa baseado nos seguintes temas: uso de drogas, relações, território, modos de vida e cuidado. Todas as entrevistas individuais foram gravadas, e somente foram feitas após haver vínculo entre pesquisadora e interlocutor.

A sistematização dos dados foi realizada durante todo o trabalho de campo. Na primeira etapa, realizou-se a organização inicial dos dados brutos da pesquisa, indicando caminhos e temas principais para serem discutidos na análise e interpretação dos resultados nas demais etapas(1515 Yin RK. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Série Métodos de Pesquisa. Editora Penso, 2016.).

Análise dos dados

Análise e interpretação dos resultados é o aprimoramento da sistematização, a fim de construir o produto final, que é o relatório de pesquisa(1515 Yin RK. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Série Métodos de Pesquisa. Editora Penso, 2016.). Nesse contexto, o trabalho de campo possui duas fases distintas: "o estando lá”, que revela a vivência do estar em campo; e o "estando aqui”, que reflete o afastamento do campo para realização da descrição densa do relatório final/etnografia(1212 Geertz C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC; 2008. 224 p.).

Na fase "estando lá”, realizou-se a coleta de dados utilizando os instrumentos de pesquisa, mapeando os territórios vividos, criando vínculos e compartilhando vivências, sendo que, para validar as interpretações abordadas no relatório final, a pesquisadora debatia com o interlocutor suas observações/interpretações que idealizava durante a pesquisa. No "estando aqui”, entende-se que a realidade apreendida precisa ser apresentada e que a descrição densa é uma análise aprofundada de todo o processo de pesquisa, e, para tal, necessita do isolamento do pesquisador do campo de pesquisa.

RESULTADOS

Neste artigo, abordam-se as seguintes categorias imersas na vivência entre pesquisadora/interlocutor: Os interlocutores-privilegiados, em que se apresentam características dos participantes da pesquisa; Os interlocutores falam sobre a vida nas aldeias, em que se aborda a comunidade na rua, composta por regras, relações e modos de vida das pessoas em situação de rua; As aldeias como dispositivo de cuidado, em que os participantes citam a dificuldade de acesso às redes formais de assistência, encontrando, nas comunidades na rua, seus territórios de cuidado; e As drogas nas aldeias, onde há relatos sobre como as drogas fazem parte dos modos de vida na aldeia e seus hábitos de vivência coletiva nesse espaço social.

Os interlocutores-privilegiados

João, 42 anos, negro, alto, reside em um abrigo para moradores de rua que possuem problemas de saúde, e sua experiência de rua é de 20 anos. Utiliza crack, maconha e álcool, sendo que seu desejo é sair das ruas e não utilizar mais drogas. Para tal, tem acesso à rede de assistência à saúde.

José, 38 anos, negro, estatura média, mora na rua há 13 ou 15 anos. Utiliza álcool e maconha. Diferentemente de João, seu desejo é continuar nas ruas.

Jorge, 48 anos, branco, magro, com uma vivência de rua de 10 anos. A principal droga utilizada é o álcool. Refere sentir-se bem morando na rua e gostaria de utilizar menos álcool.

Ronaldo, 39 anos, negro, vive há mais ou menos há 10 anos na rua. É universitário e mora em uma casa alugada com outros ex-moradores de rua. Utiliza crack, maconha e álcool, considerando essas utilizações "normais”. Refere que o uso de drogas não é o problema principal de sua vida.

Os interlocutores falam sobre a vida nas aldeias

Têm vários locais: têm praças, viadutos, lugares mais retirados, eu já morei em vários lugares. Antigamente, o pessoal te acolhia mais, hoje é diferente, tem que vir com o papel dos antecedentes criminais. Dependendo da sujeira que tu fez, eles não te deixam dormir na aldeia. A maioria das aldeias são organizadas, têm os caras que cozinham, os que colhem água, lenha. Quem faz a aldeia é quem mora, tem regras, ‘não entra no meu barraco’, blábláblá, tudo tem regra. Geralmente, quando dá algo e a gente conversa, e não deu certo, a gente pede pra se retirar. (José)

As aldeias funcionam assim: se tu não der jeito de nada, arrumar uma carne, um feijão, ou tu vai ter que fazer outra coisa, ou lavar louça, ver a lenha, arrumar, varrer, uns vão atrás da comida e outros arrumar as outras coisas. Onde a gente está, a gente faz. Tem o fogãozinho, têm as panelas deles [...]. (João)

É uma comunidade na rua, e tem que fazer as coisas, tu não vai comer se tu não fizer as coisas. Só come quem ajudou, aí quem chega depois só come se sobrar. Porque tem as leis da rua [...]. (João)

Quando a polícia vão retirar as pessoas da rua. Uma coisa é tu pegar uma pessoa, outra coisa é pegar cinco, dez. Já dá problema, se tem cinco, já estão mais preparados. É uma maneira de resistir também. (Ronaldo)

A gente se sente mais protegido quando são pessoas fixas. É bem legal porque a gente consegue se organizar na parte da alimentação, fica mais tranquilo nessa parte, um traz uma coisa, outro traz outra. (Jorge)

As aldeias como dispositivo de cuidado

Não tem vaga para todo mundo em albergue, quando eles vão dar jeito de atender? Não tem vaga pra todo mundo na assistência. Se pegar o dado de agora, as vagas não chegam em 600. São 1.000 e pouco, as pessoas, o que tu faz com os outros? A aldeia, a rua, é a opção. (Ronaldo)

Não têm dispositivos pra todo mundo, aí acaba se fazendo uns protocolos que quem acessa os abrigos são as pessoas que tem problema de saúde. Se tu tem como se proteger, o Estado não precisa te proteger. Não quer investir se o cara tem outras possibilidades. Querem te dar uma vassoura pra varrer ou um colete pra "cuidar” carro, ganhar umas moedinhas de quem acha que aquilo é trabalho ou te largar nesses galpões de reciclagem nas vilas. As pessoas falam muito no anarquismo, a figura que é mais anarquista é o morador de rua, mas ele nem sabe, ele nem tá aí pro Estado, faz as coisas no ritmo dele, no tempo dele, tem que ter uma baita organização na rua. Não é fácil. (Ronaldo)

Não é só a questão da droga. A galera da rua tem uma amizade. Esses dias fui lá na aldeia do Marcelo entregar uns negócios, e ele disse que se eu não tivesse onde ficar, podia ficar lá. De alguma forma, eles se protegem. (Ronaldo)

As drogas nas aldeias

Têm certas aldeias que usam drogas e outras que não... só a redução de danos, que é a maconha, no nosso ver. A pessoa que não usa droga não fica perto de drogado, se tu não usa droga, eles falam contigo "aqui a gente usa droga e a gente vai usar e tu não vai poder falar nada, porque quem tá aqui usa”. Ela não é expulsa, mas ela acaba saindo porque não vai se sentir bem naquele lugar. (João)

Usam, mas tudo bem controlado... o cara tem dinheiro pra usar droga todo dia, o cara também tem que ter dinheiro pra comer. E a gente come todos os dias, a gente cozinha de manhã e de tarde. São vinte e poucas pessoas, então tem que ser organizado. (José)

Tem uso da droga. Tipo, um colega tomava os remédios dele de manhã, porque quando tomava de tarde, ele fazia uso da química de tarde ou de noite. Faz quatro meses que ele não faz tratamento por virar a noite usando, aí passa o horário e não toma. Isso basicamente é por causa do uso excessivo da química ou acaba perdendo receita, medicação. Antes, tinha a enfermagem no POP, que guardava a medicação, independente do horário que tu fosse tomar tu pegavas, hoje não tem mais... se o outro visse na aldeia, até alcançava o remédio [...] a gente cuida um do outro na aldeia. (Jorge)

DISCUSSÃO

Jorge, João, José e Ronaldo citam as aldeias como local de organização, de amizade, de companheirismo e demarcação de espaço, ou seja, ali, as pessoas em situação de rua constroem seu território, perambulam pela cidade, mas retornam para esse lugar. Há a noção de modo de vida na rua, pois as aldeias são constituídas de territorialidades e rituais de pertencimento, como o uso das drogas, a vida coletiva e os territórios de proteção e afetividade. Observa-se, também, a existência de regras para a convivência.

Todos os aspectos da vida nas aldeias acima descritos são relacionados à cultura(1616 Santos JL. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense; 2017. 79 p), a qual reflete os caminhos dos grupos através de suas formas de organização social, modos de vida e simbolismos que demarcam suas relações. No caso de nossos interlocutores, a formação das aldeias é uma forma de tornar a rua um espaço vivido, a partir de afinidades com pessoas que têm modos de vida parecidos, criação de vínculos e rituais em comum, entre os quais está o uso de drogas.

Ao longo da história, a aldeia definiu o processo de relação do homem com o espaço, sendo parte das cidades. A aldeia é conceituada como uma pequena localidade, com poucos habitantes, sem autonomia administrativa, tratando-se de uma comunidade rural. Na história da humanidade, o homem viveu em aldeias no período neolítico, ao deixar de ser nômade, buscando melhores condições de vida para fecundidade, nutrição (a partir da agricultura) e proteção através dos grupos de pessoas1717 Sposito MEB. Capitalismo e urbanização. São Paulo: Contexto; 2018. 80 p.).

As aldeias dos interlocutores não são aldeias rurais, são comunidades na rua, ou seja, organizações grupais constituídas na cidade. Tratam-se de territórios de poder e de cuidado, aqui denominados de resistência cotidiana, pois são construídos com o intuito de superar as adversidades da marginalização social.

As pessoas em situação de rua compõem um segmento de fragilidade social extremamente heterogêneo, de elevado grau de miserabilidade e marginalização social, encontrando-se, assim, imersas em carências de oportunidades e condições de vulnerabilidades socioeconômicas. Na maioria das vezes, esses sujeitos perambulam pelas ruas, dormem em logradouros públicos e privados, sob o rigor do inverno ou no calor do verão(1818 Nonato DN, Raio RWG. Invisíveis Sociais: a negação do direito à cidade à população em situação de rua. Rev Dir Urban, Cid Alter. 2016;2(2):81-101. doi: 10.26668/IndexLawJournals/2525-989X/2016.v2i2.1321
https://doi.org/10.26668/IndexLawJournal...
). Por mais que a rua seja única alternativa frente aos contextos de ruptura social e políticas deficitárias, ela acaba sendo um meio de morada e trabalho, lugar de liberdade e prisão, de solidariedade e preconceitos, de sobrevivência e de resistência.

De acordo com o que foi observado nos depoimentos, o sistema de cuidado formal apresenta limitações, através de barreiras de acesso e insuficiência de albergues, abrigos e políticas de inclusão para essas pessoas, portanto, cabe o preparo de uma rede de cuidado na rua para dar-lhes sobrevivência. Há, também, dificuldade de compreensão do universo da rua por parte das instituições, transparecendo o descaso das políticas públicas que empurrando o grupo para a vida nas aldeias, nas ruas ou para a morte.

A vulnerabilidade, enquanto conceito, é tridimensional, tratando-se de questões individuais e relacionais dos sujeitos. Há a vulnerabilidade individual (características genéticas, físicas e psicológicas, intersubjetivas), a social (questões econômicas, gênero, raça, cultura) e a programática (o acesso às políticas, serviços, ações de cuidado)(1010 Ayres JRCM. Prevenção de agravos, promoção da saúde e redução de vulnerabilidade. In: Clínica Médica/vol. 1. Barueri, SP: Manole; 2016.). Observa-se, neste estudo, que, na prática, o grupo de pessoas em situação de rua aponta a complexidade de suas vidas nas ruas. Ao mesmo tempo, essas pessoas reconhecem suas fragilidades diante do sistema, das políticas que as estigmatizam e marginalizam, e as aldeias podem ser uma opção para não morrerem sozinhas nas ruas (o que não é somente positivo), pois há também suas opiniões e percepções de serem forças e resistências, ou seja, viver em coletividade nas aldeias pode diminuir suas vulnerabilidades individuais e sociais. Dessa forma, a construção de suas percepções sobre ser ou não "vulneráveis” não é estanque, não havendo um consenso de que estão em permanente "estado de vulnerabilidade”.

A população estudada habita as ruas e faz uso de álcool e outras drogas, mas não significa que esteja totalmente tomada por tais substâncias, sem nenhum controle sobre suas necessidades individuais e de saúde, e, por isso, estão passíveis de intervenção, seja da ordem da saúde ou social. Participando do cotidiano dos interlocutores foi possível perceber a multiplicidade dos usos que fazem desde o álcool até o crack e suas estratégias para obtê-los; aquisição de alimento e outros recursos de sobrevivência.

Assim, a droga surge na vida nas aldeias, mas não é o elemento principal, conforme declaram João e Ronaldo. João diz que há aldeias com seus "usos” e outras não, e Ronaldo revela que o mais importante nessa vida é a questão da amizade. Essas reflexões levam a perceber a complexidade do uso da droga na rua, que mostra um caráter coletivo e simbólico, não somente ligado à doença e ao crime.

Esses argumentos corroboram com estudos etnográficos, que mostram que os usuários de drogas consideradas "pesadas” como o crack possuem suas práticas de autocuidado e autocontrole do uso, e também suas estratégias de sobrevivência na sociedade, como, por exemplo, o trabalho na rua que depende de seu esforço físico diário. Isso demonstra relações para além da dependência química, buscando ampliar a compreensão sobre tema, sendo necessário visualizar as variáveis sociais, contextuais e individuais, e não somente a uso da substância(1919 Raupp L, Adorno RCF. Psychotropic territories in the center of Porto Alegre city, Rio Grande do Sul, Brazil. Saúde soc. 2015; 24(3):803-15. doi: 10.1590/S0104-12902015127672.
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201512...
).

Este estudo acrescenta novos elementos para pensar sobre o processo de cuidado em drogas, reconhecendo o contexto da rua para se refletir sobre a cultura e a vivência dos grupos marginalizados. Isso é apontado nas narrativas dos interlocutores que demonstram viver o território da rua de modo intenso, ou seja, influenciam e são influenciados por ele. Isso porque, enquanto para o restante da sociedade a rua é percebida como um local de passagem entre suas casas, espaços de trabalho, de lazer, entre outros, para as pessoas em situação de rua, por existirem nela, influenciam esse território através da realização de todas as suas ações de vida, sejam as de organização social, de trabalho, lazer, convivência. Ao mesmo tempo, são influenciadas por ele, por não serem espaços de passagem, mas territórios relacionais, de cuidado e sobrevivência.

Ao reconhecer as influências sobre o território, entendem-se as aldeias como espaços vividos e transformados de maneira simbiótica (cultural, política, econômica), sendo um campo de dimensões vividas, espaços ordinários do cotidiano que, às vezes, nem se percebem os limites e as fronteiras entre diferentes possibilidades de construções territoriais(2020 Crestani AMZ. Revelando lugares e territórios urbanos: espacialidades urbanas e suas sobreposições na cidade contemporânea. Curitiba: Appris; 2014. 197 p.). Nesse sentido, os interlocutores apontam um território que promove o cuidado, por ser um dispositivo de encontro, lugar de desejos, sonhos e necessidades de uma vida melhor, abordando a proteção e relação criada entre os grupos através da coletividade, divisão de tarefas e responsabilidades, criação de vínculos de amizade. Além disso, o modo de vida na rua pode ser mais difícil quando vivido de forma individual, o que é abordado por um dos interlocutores: "Quando a polícia vão retirar as pessoas da rua. Uma coisa é tu pegar uma pessoa, outra coisa é pegar cinco, dez.”

O território (aldeia), enquanto "lugar de vida”, é também campo de resistências, onde pessoas estigmatizadas e expulsas da sociedade normalizada criam espaços de identificação, códigos, normas e estratégias de sobrevivência(2121 Abal YS, Gugelmin SÁ. Aproximações etnográficas em territórios marginais: as cenas abertas de uso do crack em Cuiabá. Civitas, Porto Alegre. 2019;19(1):78-194. doi: 10.15448/19847289.2019.1.30951.
https://doi.org/10.15448/19847289.2019.1...
). Esses grupos marginalizados e ocultos na sociedade permitem encontrar alternativas para o cuidado de si e do corpo, construindo laços e interações sociais que potencializam a troca de saberes sobre as drogas, sobre a rua, os prazeres, medos, direitos e a pertença(2222 Medeiros R, Silva C, Gonçalves L. Sujos, itinerantes e drogados: etnografia sobre vida na rua e uso de drogas. In: Anais. 5ª Reunião Equatorial de Antropologia e 14ª Reunião de Antropólogos do Norte-Nordeste, Maceió, 2015.).

A urbanização acelerada, juntamente com a força produtiva do proletariado e dos pobres, foi essencial para o desenvolvimento das cidades, criando a ideia de corpo enquanto força de trabalho, que é biológico e individual. Portanto, considerar todos os aspectos de suas necessidades individuais requer a adoção de um conceito de saúde mais amplo, capaz de ultrapassar a dimensão biológica, possibilitando a construção de estratégias de saúde que visem intervir nos problemas e nos determinantes relativos ao processo saúde-doença(2323 Paiva IKS, Lira CDG, Justino JMR, Miranda MGO, Saraiva AKM. Homeless people's right to health: reflections on the problems and components. Ciênc Saúde Coletiva. 2016;21(8):2595-606. doi: 10.1590/1413-81232015218.06892015.
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).

Compreender a vida, as escolhas e os problemas de saúde da população em situação de rua não resolve o problema da desigualdade e marginalização social; e tampouco a Constituição Federal, com seus artigos que fornecem direitos sociais, assegura para a população as políticas públicas mais universais e equânimes. Apesar de o Sistema Único de Saúde ser o marco mais importante das políticas públicas de saúde, as políticas específicas para a população em situação de rua devem ser construídas com base no princípio da integralidade por meio do fortalecimento da intersetorialidade.

A população em situação de rua apresenta condições sociais e de saúde bastante precárias, inclusive no que tange aos direitos sociais básicos e constitucionais. A falta de acesso ao mercado formal de trabalho, à educação, aos serviços de saúde e a outros serviços públicos favorece a construção de imagens negativas em relação a esses grupos sociais. A negação aos direitos e a produção de mais estigma, preconceito e marginalização produzem um círculo vicioso, e a superação depende de conseguir romper a barreira do conhecido assumindo atitudes de tolerância e de respeito às diferenças(2424 Abreu D, Oliveira WF. Atenção à saúde da população em situação de rua: um desafio para o Consultório na Rua e para o Sistema Único de Saúde. Cad. Saúde Pública 2017;33(2):e00196916. doi: 10.1590/0102-3611X00196916
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).

Vindo ao encontro disso, uma pesquisa que estudou os "territórios psicotrópicos” na cidade de Porto Alegre evidenciou que ações higienistas que expulsam pessoas em situação de rua dos territórios aumentam a dificuldade de acesso dos profissionais de saúde a essa população. Os efeitos dessas ações são claramente sentidos nos circuitos locais de uso e venda do crack, que se pulverizam para áreas contíguas de menor visibilidade. Como consequência, as equipes de saúde, principalmente as da atenção básica, têm dificuldade para desenvolver suas propostas de trabalho, por não conseguirem concentrar um número suficiente de pessoas para as ações pretendidas. Ademais, entre as estratégias de sobrevivência utilizadas pelos sujeitos observados, não houve relação direta entre usar crack e ser protagonista de atos violentos, associação do senso comum visualizada na sociedade(1919 Raupp L, Adorno RCF. Psychotropic territories in the center of Porto Alegre city, Rio Grande do Sul, Brazil. Saúde soc. 2015; 24(3):803-15. doi: 10.1590/S0104-12902015127672.
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).

Ressalta-se a importância de acolher a pessoa em situação de rua como sujeito de direitos e portador de uma trajetória de vida singular, e, assim, atender às suas demandas; considerar as necessidades impostas pela vida na rua, o estabelecimento de vínculo entre as pessoas em situação de rua e os atores envolvidos no cuidado, além da superação do distanciamento decorrente da discriminação social que dificulta a acessibilidade dessa população aos serviços de saúde2525 Hallais JAS, Barros NF. Street Outreach Offices: visibility, invisibility, and enhanced visibility. Cad Saúde Pública. 2015;31(7):1497-504. doi: 10.1590/0102-311X00143114
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).

Essas pessoas são claramente visíveis enquanto ocupantes de locais públicos, porém seus corpos se tornam invisíveis enquanto indivíduos, com sofrimentos causados pelas transformações contemporâneas, estranhamento e rejeição, como se não pertencessem àquele espaço(2626 Kubota H, Kohlen H, Clandinin DJ, Caine V. Recognizing the body as being political: Considering Arendt's concepts in the context of homelessness in Japan. J Contemp Ethnogr. 2018;48(2):287-305. doi: 10.1177/0891241618783840
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). Desse modo, não se olha para as pessoas nos espaços públicos, se olha para os espaços que unem as pessoas em situação de rua e suas práticas "condenáveis”, "terra de ninguém”, onde não há regras, onde, portanto, tudo pode acontecer, ou melhor, em "terra do crack”, onde nada de bom pode acontecer, visto que é um espaço onde o crack é o "soberano”2727 Silva S, Adorno RCF. Exposição e invisibilidade: as narrativas de usos e controles de drogas consideradas ilícitas. Bol Inst Saúde [Internet]. 2017 [cited 2019 Mar 5];18(1):83-99. Available from: http://www.saude.sp.gov.br/resources/instituto-de-saude/homepage/bis/bis_18_1_errata_pg_69.pdf.
http://www.saude.sp.gov.br/resources/ins...
).

Contudo, ao mostrar seus corpos marginalizados e desabrigados nesses locais públicos, eles se tornam atores políticos que revelam a injustiça escondida dentro da sociedade, bem como a necessidade de reconhecimento da pluralidade e complexidade dessas vidas humanas(2626 Kubota H, Kohlen H, Clandinin DJ, Caine V. Recognizing the body as being political: Considering Arendt's concepts in the context of homelessness in Japan. J Contemp Ethnogr. 2018;48(2):287-305. doi: 10.1177/0891241618783840
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). As vozes de Jorge, João, José e Ronaldo nos permitem ter contato com suas realidades e suas concepções como seres políticos que avaliam aspectos de suas existências e também as fragilidades de instituições que deveriam atendê-los. Observa-se que apesar de suas visibilidades por estarem e viverem a rua, ainda são invisíveis por uma sociedade, instituições e profissionais que não querem entender suas culturas diferenciadas. No entanto, ao se ouvir essas histórias de vida, anuncia-se, também, a outra face desse território, pois ainda existem grupos que, mesmo em meio à urbanização acelerada, propõem o modo de vida grupal/coletivo, como poder, sobrevivência e resistência cotidiana.

Apesar das contradições, a visibilidade de estar na rua é mantida com invisibilidade, pois as vozes e as histórias de vida dessas pessoas, muitas vezes, são silenciadas. Elas, ao serem ouvidas, mostram a outra face desse território, pois ainda vivem em grupos como um modo de sobrevivência e de resistência cotidiana.

A organização social desse grupo revela, além de um lugar de amizade, de percepção de si e do outro, de experiências, culturas e valores, um território que impõe regras e enfrentamento das vulnerabilidades. Essa organização pode ser diferente de outros grupos populacionais, o que gera o estigma e o estereótipo de "vagabundo”. No entanto, viver nas ruas requer maior organização social para a sobrevivência, o que significa que os ritmos das pessoas em situação de rua diferentes dos costumes da cidade são modos construídos e reconhecidos entre eles.

Há diferentes formas de território que podem ser vistas separadas ou em movimento. Há a política que remete a um território marcado e delimitado pelo poder do Estado. Há a econômica, que reflete um território como fonte de recursos, e da relação capital e trabalho. Há também a cultural, que aborda um espaço marcado de relações entre a comunidade ou o grupo social, sendo um espaço vivido e transformado pelos grupos sociais(2828 Haesbaert R. O Mito da Desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. 396 p.).

O território de resistência cotidiana da população de rua vai ao encontro da ideia que aborda um território de dimensões simbióticas (cultural, política, econômica). É um campo de dimensões vividas, espaços ordinários do cotidiano que, às vezes, nem se percebem os limites e fronteiras entre diferentes possibilidades de construções territoriais(2626 Kubota H, Kohlen H, Clandinin DJ, Caine V. Recognizing the body as being political: Considering Arendt's concepts in the context of homelessness in Japan. J Contemp Ethnogr. 2018;48(2):287-305. doi: 10.1177/0891241618783840
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).

Diferente da noção de fragilidade, pode-se dizer que a vulnerabilidade e a resistência são conceitos que "caminham juntos”. A partir das situações de vulnerabilidade vivenciadas pelas pessoas, emergem estratégias de enfrentamento. Assim, as aldeias são uma forma de resistir às situações de vulnerabilidade decorrentes de ser uma pessoa em situação de rua, uma vez que reconfiguram um território visto como infértil, transformando-o em um território de cuidado(2929 Carmo ME, Guizard FL. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cad Saúde Pública. 2018;34(3):e00101417. doi: 10.1590/0102-311x00101417
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).

Assim, a ideia pode ser relacionada à noção de "comunitarismo” das minorias, sendo que a vida comunitária ocorre mais naturalmente quando é negado às pessoas o direito de fazerem parte do todo, da sociedade (assimilação). A elas resta o estigma e suas origens "alienígenas” de uma comunidade diferente das "normais”, sendo que, então, se reúnem para compartilhar essa mesma experiência de rejeição buscando abrigo na suposta "fraternidade” de um grupo nativo como opção(3030 Costa R. On a new concept of community: social networks, personal communities and collective intelligence. Interface. 2005;9(17):235-48. doi: 10.1590/S1414-32832005000200003
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).

Nesse sentido, é importante a diferenciação da noção de lugar e território. O primeiro remete à experiência do homem com o espaço, em que o espaço vem a significar cultura, valores. O segundo tem mais proximidade com a questão de poder e domínio, em que esse indivíduo, ou grupo, se vê identificado, seja pelos documentos, pelas regras de convivência, dominação do espaço de vida e convivência comum(2828 Haesbaert R. O Mito da Desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. 396 p.).

As aldeias são lugares e territórios, pois exprimem dimensões simbióticas de caráter subjetivo, cultural, político e de poder. A noção de afeto é uma superação também das adversidades e das violências institucionais do capitalismo. Os sujeitos precisam se organizar em redes na rua, com seus rituais e regras, para superar um sistema contrário a suas formas de vida. Nesses sistemas criados pelo grupo, a droga é um ritual comum e cultural.

Os dados etnográficos abordados neste artigo falam de pessoas com histórias de vida que refletem a importância de o profissional de saúde lançar seu olhar sobre o universo de marginalização e necessidades das populações de rua. Saber que existem as aldeias e entender os contextos das pessoas que as habitam pode contribuir com a sensibilização de profissionais da saúde e da enfermagem. Como apontado na fala de Jorge, ao indicar o enfermeiro como agente de cuidado, a simples ação de guardar as medicações estava de acordo com uma prática que diminuía os riscos das pessoas em situação de rua. Isso ajuda a entender a relevância de um trabalho centrado em elementos culturais, de acordo com os modos de vida, buscando a promoção da equidade, integralidade e humanização na saúde das pessoas em situação de rua.

Limitações do estudo

Em sua composição inicial, era interesse da pesquisadora, que além de participantes homens, que também houvesse a participação de mulheres como interlocutoras-privilegiadas, o que não foi possível. Entende-se que este fato ocorreu pela questão de gênero ser configurada de maior vulnerabilidade "na rua”. As pessoas em situação de rua são alvo de discriminação, porque o uso de drogas é uma prática ilícita e porque algumas pessoas em situação de rua possuem pendências judiciais e familiares. Assim, entende-se que as mulheres sofrem mais ainda com as questões expostas, e talvez seja o motivo para não aceitarem participar da pesquisa, tornando-se uma limitação não ouvir suas realidades sociais neste estudo.

Contribuições para a área da enfermagem

Este estudo poderá ampliar o debate das drogas e de diversidades sociais e vulnerabilidades para além de concepções hegemônicas centradas na dependência química e no biológico, ampliando a compreensão do cuidado para além do sintoma da doença, incluindo os modos de vida, as culturas, as relações sociais e os processos que implicam a criação e o desenvolvimento da sociedade. A partir dessa perspectiva, a enfermagem pode avançar para contribuir com a criação de políticas públicas, estratégias de trabalho e mudança de modelos de cuidado que considerem as subjetividades e as questões socioculturais na atenção em saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados deste artigo apontam como desafio para a saúde e a enfermagem o ato de reconhecer a necessidade de entender os contextos de vida urbana das pessoas em situação de rua. Isso porque, para o cuidado relacionado ao uso de drogas, é preciso conhecer a realidade de vida das pessoas, perceber seus territórios como espaços de identidades, culturas, poder e enfrentamento das vulnerabilidades, através do apoio mútuo construído pelo grupo.

O uso de drogas se caracteriza no coletivo, sendo um modo de vida e organização social que engloba histórias e relações sociais, desconstruindo o uso individual, que tem como consequência a dependência física da droga no organismo. A droga não é o elemento principal que norteia o viver na rua, pois fazem parte das situações de vida nas aldeias: a organização dos grupos para resistir à marginalização, o afeto, a amizade, a dificuldade de acesso aos programas, os serviços e as políticas.

Por fim, reflete-se sobre a importância da pesquisa qualitativa através da etnografia para conhecer e aprofundar temas complexos como a droga na rua podendo estabelecer vínculos e relações com os interlocutores para maior entendimento de suas realidades. Aponta-se, também, a necessidade de maiores estudos sociais e qualitativos na saúde que analisem a questão da droga e da rua para além de estigmas e concepções voltadas somente à doença.

  • FOMENTO
    Esta pesquisa foi financiada pela Coordenação de Apoio ao Pessoal de Nível Superior (CAPES) por meio de bolsa de doutorado no país.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    17 Jun 2019
  • Aceito
    10 Jun 2020
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