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O medo do parto em tempo de pandemia do novo coronavírus

RESUMO

Objetivo:

Refletir acerca da forma como a pandemia do novo coronavírus desencadeou ou acentuou o medo do parto nas gestantes e afetou as práticas de assistência ao parto.

Métodos:

Análise reflexiva sobre as experiências de gravidez e parto de mulheres, durante a atual pandemia, sob o suporte das mais recentes evidências científicas e recomendações sobre o tema.

Resultados:

A gravidez e o parto são acontecimentos transformadores na vida das mulheres, mas, no decorrer da pandemia do novo coronavírus, o medo e a incerteza ganharam uma dimensão sem precedentes na forma negativa como muitas gestantes têm antecipado e experienciado o parto.

Considerações finais:

O período atual acentuou um problema crónico: um sistema paternalista das instituições de saúde na abordagem ao parto, adensado por níveis adicionais de medo nas gestantes. Nesse contexto, abordar o medo do parto significa não abdicar da promoção de experiências seguras e positivas de parto para as mulheres.

Descritores:
Gestantes; Medo; Parto Obstétrico; Infecções por Coronavírus; Pandemias

ABSTRACT

Objective:

Reflect on how the new coronavirus pandemic triggered or accentuated the fear of childbirth in pregnant women and affected childbirth care practices.

Methods:

Reflective analysis of women's pregnancy and childbirth experiences during the current pandemic, supported by the latest scientific evidence and recommendations on the topic.

Results:

Pregnancy and childbirth are life-changing events for women, but during the new coronavirus pandemic, fear and uncertainty have taken on an unprecedented dimension in the negative way that many pregnant women have anticipated and experienced childbirth.

Final considerations:

The current period has accentuated a chronic problem: a paternalistic system of health institutions in the approach to childbirth, dense with additional levels of fear in pregnant women. In this context, addressing the fear of childbirth means not giving up the promotion of safe and positive birth experiences for women.

Descriptors:
Pregnant Women; Fear; Delivery; Coronavirus Infections; Pandemics

RESUMEN

Objetivo:

Reflejar acerca de cómo la pandemia de COVID-19 desencadenó o acentuó el temor al parto en las embarazadas y afectó las prácticas de asistencia al parto.

Métodos:

Análisis reflexivo sobre las experiencias de embarazo y parto de mujeres, durante la actual pandemia, bajo el soporte de las más recientes evidencias científicas y recomendaciones sobre el tema.

Resultados:

El embarazo y el parto son acontecimientos transformadores en la vida de las mujeres, pero, en el curso del nuevo coronavirus, el temor y la incertidumbre ganaron una dimensión sin precedentes negativamente como muchas embarazadas han anticipado y experimentado el parto.

Consideraciones finales:

Actualmente acentuó un problema crónico: un sistema paternalista de las instituciones de salud en el abordaje al parto, adensado por niveles adicionales de temor en las embarazadas. Así, abordar el temor al parto significa no abdicar de la promoción de experiencias seguras y positivas del parto para las mujeres.

Descriptores:
Embarazadas; Temor; Parto Obstétrico; Infecciones por Coronavirus; Pandemias

INTRODUÇÃO

Em 31 dezembro de 2019, foi relatada, pela primeira vez, a doença do novo coronavírus (COVID-19), causada pelo vírus SARS-CoV-2. A World Health Organization (WHO) declarou, em 30 de janeiro de 2020, que o surto da doença COVID-19 constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) - o mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional. A virulência e elevada capacidade de transmissão do vírus SARS-CoV-2 surpreenderam epidemiologistas, infecciologistas, profissionais de saúde e decisores políticos, o que levou a WHO, em 11 de março de 2020, a declarar o estado de pandemia. À data, a COVID-19 afeta 216 países, áreas ou territórios no mundo(11 World Health Organization (WHO). Coronavirus disease (COVID-19) pandemic [Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019
https://www.who.int/emergencies/diseases...
). De acordo com dados da WHO, um relatório de 2 de agosto de 2020 nos informa que, até então, o mundo regista um total de 17.660.523 casos e 680.894 mortes, sendo que a Região das Américas regista 9.476.763 casos confirmados e 359.180 mortes; e a Região Europeia apresenta 3.375.535 casos confirmados e 213.284 mortes(22 World Health Organization (WHO). Coronavirus disease (COVID-19): Situation Report - 195 [Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200802-covid-19-sitrep-195.pdf?sfvrsn=5e5da0c5_2
https://www.who.int/docs/default-source/...
,33 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS). Folha informativa - COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). [Internet]. 2020 [cited 2020 August 2]. Available from: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875
https://www.paho.org/bra/index.php?optio...
). Na Região das Américas, os Estados Unidos lideram o ranking no número de casos totais (4.523.888) e de mortes (152.630), seguidos do Brasil com 2.662.485 casos e 92.475mortes(22 World Health Organization (WHO). Coronavirus disease (COVID-19): Situation Report - 195 [Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200802-covid-19-sitrep-195.pdf?sfvrsn=5e5da0c5_2
https://www.who.int/docs/default-source/...
). Em Portugal, à data de 2 de agosto, o registo de casos confirmados é de 51.310 e o de mortes é de 1.737(22 World Health Organization (WHO). Coronavirus disease (COVID-19): Situation Report - 195 [Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200802-covid-19-sitrep-195.pdf?sfvrsn=5e5da0c5_2
https://www.who.int/docs/default-source/...
). A permanente atualização dos dados epidemiológicos mostra como, pela primeira vez, estamos perante uma pandemia que está a acontecer em tempo real e na qual não há fronteiras que diluam a informação.

Em todo o mundo, a COVID-19 encontrou sistemas de saúde desprevenidos, com limitações na capacidade de resposta, o que originou uma necessidade de agir coletivamente, com urgência e sem precedentes na história dos últimos cem anos. De acordo com a fase de adaptação, diariamente se impõem novos desafios à Saúde Pública, aos Sistemas de saúde e à Segurança global, a serem superados com o auxílio de informações confiáveis, imparciais e baseadas na melhor evidência disponível.

Segundo as informações disponíveis até a data(33 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS). Folha informativa - COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). [Internet]. 2020 [cited 2020 August 2]. Available from: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875
https://www.paho.org/bra/index.php?optio...

4 Ministério da Saúde (BR). Coronavírus - COVID-19. [Internet]. 2020 [cited 2020 August 1]. Available from: https://coronavirus.saude.gov.br/.
https://coronavirus.saude.gov.br/...
-55 World Health Organization (WHO). Clinical management of COVID-19. [Internet]. 27 May 2020. [cited 2020 July 31]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/332196/WHO-2019-nCoV-clinical-2020.5-eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y
https://apps.who.int/iris/bitstream/hand...
), a via de transmissão pessoa a pessoa do novo coronavírus (SARS-CoV-2) ocorre por meio de gotículas respiratórias (expelidas durante a fala, tosse ou espirro) e também pelo contato directo com pessoas infetadas ou indirecto por meio das mãos, objetos ou superfícies contaminadas, de forma semelhante com que outros agentes patógenos respiratórios se espalham. Sendo limitadas as evidências relativamente a medicamentos ou estratégias de tratamento eficazes e sem nenhuma vacina disponível, a atual resposta à COVID-19 baseia-se em esforços para diminuir a disseminação do vírus e reduzir tanto quanto possível o número de mortes. Assim, além das precauções-padrão, devem ser implementadas por todos os serviços de saúde as precauções para contato, gotículas e aerossóis. Apoiando-se nesse conhecimento, têm sido destacados procedimentos fundamentais para evitar a transmissão, como a lavagem das mãos, a etiqueta respiratória e o distanciamento físico entre as pessoas(33 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS). Folha informativa - COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). [Internet]. 2020 [cited 2020 August 2]. Available from: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875
https://www.paho.org/bra/index.php?optio...
,44 Ministério da Saúde (BR). Coronavírus - COVID-19. [Internet]. 2020 [cited 2020 August 1]. Available from: https://coronavirus.saude.gov.br/.
https://coronavirus.saude.gov.br/...
). Contudo, os desafios que enfrentamos com a pandemia do novo coronavírus mais parecem a resolução do cubo de Rubik, fundamentalmente porque lidamos com um vírus acerca do qual o conhecimento científico, embora com avanços e a uma velocidade pouco comum, ainda é reduzido.

E neste estado caótico do mundo, as mulheres continuam a ter os seus filhos. Inicialmente, as gestantes não se constituíam como fator de risco à COVID-19, mas atualmente são incluídas nessa classificação. Embora o universo delas seja inferior, comparado ao dos pacientes em geral, é importante destacar que requerem cuidados especiais, na intenção de preservarmos as boas práticas obstétricas, ao mesmo tempo que protegemos o binômio mãe-filho da COVID-19. Ainda que existam muitos aspetos passíveis de discussão, este artigo pretende fazer uma reflexão sobre a forma como a pandemia do novo coronavírus afetou as expectativas das gestantes, ao desencadear ou acentuar o medo do parto, assim como as práticas de assistência ao parto, com embasamento nas mais recentes referências científicas.

Os resultados serão descritos em três categorias. Primeira categoria: abordagem à pandemia do novo coronavírus como uma fonte de medos para as gestantes; segunda categoria: reflexão sobre a relação entre medo do parto nas gestantes e as práticas obstétricas implementadas nas instituições ao longo da pandemia; terceira categoria: discussão sobre a intervenção das enfermeiras obstetras e/ou obstetrizes em gestantes com medo do parto na era da pandemia de COVID-19, com apresentação de uma proposta de estratégias que respondam ao desafio do medo do parto.

Nessa categorização há um eixo central estabelecido entre a opinião e a argumentação dos fatos, destacando o suporte científico sobre as formas de transmissão e de prevenção da infecção pelo novo coronavírus, que levou os órgãos oficiais a recomendações quanto às boas práticas obstétricas já consagradas, como: controle do acompanhante(s) durante o trabalho de parto, parto e pós-parto; recurso a intervenções obstétricas; critérios para o contato pele a pele, clampeamento do cordão umbilical e alojamento conjunto; cuidados com a amamentação; dentre outras que, inevitavelmente, se somaram no conjunto de sentimentos relacionados ao medo e insegurança das gestantes.

MÉTODOS

A metodologia fundamenta-se numa análise reflexiva sobre o medo do parto em gestantes e sobre as práticas de assistência ao parto, no decurso da pandemia do novo coronavírus. A análise terá como ponto de partida as experiências das mulheres e de enfermeiras obstetras/obstetrizes de diferentes instituições de saúde, transmitidas pessoalmente ou divulgadas pela comunicação social (p.ex., reportagens de televisão) e redes sociais (p.ex., testemunhos de experiências pessoais partilhados em grupos no Facebook e Twitter), as quais serão discutidas com embasamento científico das recomendações sobre os cuidados na gravidez, no trabalho de parto e parto e no pós-parto, durante a pandemia do novo coronavírus, e que foram publicadas por organizações de referência nacional e internacional até dia 2 de agosto de 2020.

RESULTADOS

A pandemia do novo coronavírus: uma fonte de medos para as gestantes

A gravidez e o parto são eventos fisiológicos transformadores da vida das mulheres. Muitas delas enfrentam preocupações, ansiedades e medos relacionados com o parto, embora os expressem de diferentes formas. Nas últimas décadas, o medo do parto tem permeado os discursos das mulheres e suas famílias, de profissionais de saúde e de decisores de políticas de saúde. E tem sido um campo de interesse para a investigação devido aos seus fatores preditivos e repercussões potencialmente negativas na saúde e no bem-estar das mulheres em idade reprodutiva(66 Dencker A, Nilsson C, Begley C, Jangsten E, Mollberg M, Patel H, et al. Causes and outcomes in studies of fear of childbirth: a systematic review. Women Birth. 2019;32(2):99-111. doi: 10.1016/j.wombi.2018.07.004
https://doi.org/10.1016/j.wombi.2018.07....
).

Como o vírus SARS-CoV-2 continua a se disseminar em todo o mundo, o gerenciamento pré-natal, a segurança fetal e o potencial de transmissão vertical são de interesse e preocupação significativos. A pandemia da doença COVID-19 surge como uma nova fonte de medo entre todas as gestantes e famílias porque parece acentuar: o significado do desconhecido e da imprevisibilidade do parto; a exposição ao perigo e à falta de segurança; a submissão aos protocolos das instituições de saúde, com a anulação da possibilidade de escolhas pessoais; a sensação de perda de controle na gravidez e no parto; e as incertezas em relação ao futuro. Vivemos num mundo vulnerável, e a vulnerabilidade é o centro dos medos e da luta pelas expectativas. Perante um período de crise, e confrontando-se com um momento da vida sem retorno, vemos as gestantes, os seus companheiros e famílias fazerem o luto de algumas das suas expectativas, quando perceberam que não poderiam frequentar sessões de preparação para o parto e parentalidade presenciais; que algumas das consultas do plano de vigilância da gravidez seriam anuladas ou realizadas através de plataformas digitais; algumas consultas presenciais aconteceriam, mas sem a possibilidade de a gestante ter uma pessoa a acompanhá-la; e que, após o nascimento, não poderiam estar reunidos em família.

Os últimos 30 anos de investigação têm-nos mostrado como é difícil definir "medo do parto", e os acontecimentos atuais vieram-nos mostrar como esse conceito pode ainda estar sujeito a mais escrutínio, vulnerabilidade e mutabilidade. Com a crise da COVID-19, o cerco à volta do conceito de medo do parto parece ter-se agravado.

Mas os desafios do medo do parto não param por aí.

O medo do parto e as práticas obstétricas na era COVID-19: entre lapsos científicos e éticos

Na prática clínica, parece haver uma associação do medo do parto em mulheres ao medo: das intervenções obstétricas; da perda de autonomia na tomada de decisão; dos aspetos estruturais do serviço de obstetrícia; do abandono durante o trabalho de parto e parto; bem como dos maustratos e violência pelos profissionais de saúde. Essas causas do medo do parto fazem parte de uma discussão atual sobre as práticas obstétricas e direitos das mulheres na gravidez e no parto.

Nesse contexto, que impacto terá a pandemia da COVID-19 no medo do parto e em que condições as mulheres estarão a parir? Em Portugal, no Brasil, assim como em outros países do mundo, os serviços de obstetrícia ficaram enfraquecidos e precisaram de se adaptar sob condições muito desafiadoras. Não menos inquietante é a maneira como as instituições de saúde escolheram para lidar com a situação no que concerne às práticas de assistência ao parto. Em nome dos planos de contingência à COVID-19, recuaram-se anos de boas práticas obstétricas, no que respeita à igualdade de acesso a cuidados no período perinatal de qualidade e à proteção de direitos previstos na lei e recomendados pelas mais relevantes organizações. Sem argumentos lógicos relacionados com a prevenção da transmissão da infecção, as práticas revisadas incluíram: proibição ou controle do(s) acompanhante(s) durante o trabalho de parto, parto e pós-parto; suspensão da presença de doulas; restrição absoluta de visitantes; recurso a intervenções obstétricas desnecessárias; critérios para contato pele a pele, clampeamento do cordão umbilical e alojamento conjunto; e cuidados na amamentação.

Na verdade, a pandemia da COVID-19 tem suscitado uma escalada de preocupações devido à suspensão do direito da mulher ao(s) acompanhante(s) durante o trabalho de parto, parto e pósparto, à realização de intervenções obstétricas desnecessárias, como induções com 39 ou 40 semanas de gestação e cesarianas, sem indicação clínica. São também relatadas situações em que o contato pele a pele, o alojamento conjunto e a amamentação foram desencorajados, em casos suspeitos ou confirmados de mulheres com diagnóstico de COVID-19, sob justificativa de serem práticas potencialmente inseguras.

As gestantes representam uma população única nos cuidados de saúde e, neste contexto de pandemia, respostas eficazes continuarão a depender de planos estratégicos que garantam cuidados seguros, equitativos, compassivos, respeitosos e baseados na evidência(55 World Health Organization (WHO). Clinical management of COVID-19. [Internet]. 27 May 2020. [cited 2020 July 31]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/332196/WHO-2019-nCoV-clinical-2020.5-eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y
https://apps.who.int/iris/bitstream/hand...
,77 Vivilaki VG, Asimaki E. Respectful midwifery care during the COVID-19 pandemic. Eur J Midwifery. 2020;4:1-2. doi: 10.18332/ejm/120070
https://doi.org/10.18332/ejm/120070...
-88 Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, Royal College of Midwives, Royal College of Paediatrics and Child Health, Public Health England and Public Health Scotland. Coronavirus (COVID-19) Infection and Pregnancy: Information for healthcare professionals Version 11[Internet]. 2020. [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.rcog.org.uk/globalassets/documents/guidelines/2020-07-24-coronavirus-covid-19-infection-in-pregnancy.pdf
https://www.rcog.org.uk/globalassets/doc...
). Desde o início da crise, a interpretação de quais estratégias estão associadas a cuidados seguros é causa de um forte debate entre aqueles que, de um lado, consideram que esta situação apenas veio mostrar a forma como muitos serviços de obstetrícia recorrem a práticas que descuram as orientações científicas e éticas e, de outro lado, aqueles que defendem práticas restritivas sob o argumento da proteção e da prevenção de danos evitáveis.

Desde março de 2020, houve um aumento exponencial de publicações na área da saúde materna e obstétrica. No entanto, muitas dúvidas permanecem sobre como se comporta o novo coronavírus em gestantes e recém-nascidos. É fundamental compreender que, perante as inúmeras possibilidades de questões de investigação sobre o tema, os estudos disponíveis são ainda escassos, foram realizados em amostras pequenas e carecem de desenhos de investigação mais robustos. Até ao momento, várias organizações de referência internacional se pronunciaram em documentos de orientação - entretanto submetidos a revisões - sobre os cuidados durante a gravidez, trabalho de parto, parto e pós-parto, nesta era COVID-19, como a World Health Organization(55 World Health Organization (WHO). Clinical management of COVID-19. [Internet]. 27 May 2020. [cited 2020 July 31]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/332196/WHO-2019-nCoV-clinical-2020.5-eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y
https://apps.who.int/iris/bitstream/hand...
), o Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG), Royal College of Midwives, Royal College of Paediatrics and Child Health, Public Health England and Public Health Scotland(88 Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, Royal College of Midwives, Royal College of Paediatrics and Child Health, Public Health England and Public Health Scotland. Coronavirus (COVID-19) Infection and Pregnancy: Information for healthcare professionals Version 11[Internet]. 2020. [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.rcog.org.uk/globalassets/documents/guidelines/2020-07-24-coronavirus-covid-19-infection-in-pregnancy.pdf
https://www.rcog.org.uk/globalassets/doc...
), o American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG)(99 American College of Obstetricians and Gynecologists. Novel Coronavirus 2019 (COVID-19): Practice Advisory [Internet]. 2020[cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.acog.org/clinical/clinical-guidance/practice-advisory/articles/2020/03/novel-coronavirus-2019
https://www.acog.org/clinical/clinical-g...
) e os Centers for Disease Control and Prevention(1010 Centers for Disease Control and Prevention (US). Coronavirus Disease 2019 (COVID-19): if you are pregnant, breastfeeding, or caring for young children [Internet]. 2020 [cited 2020 Jul 31]. Available from: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/need-extra-precautions/pregnancy-breastfeeding.html
https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-nco...
), entre outras.

Com base no conhecimento disponível à data, as gestantes podem estar numa situação de risco aumentado em relação à COVID-19 em comparação com as não gestantes(33 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS). Folha informativa - COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). [Internet]. 2020 [cited 2020 August 2]. Available from: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875
https://www.paho.org/bra/index.php?optio...
,88 Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, Royal College of Midwives, Royal College of Paediatrics and Child Health, Public Health England and Public Health Scotland. Coronavirus (COVID-19) Infection and Pregnancy: Information for healthcare professionals Version 11[Internet]. 2020. [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.rcog.org.uk/globalassets/documents/guidelines/2020-07-24-coronavirus-covid-19-infection-in-pregnancy.pdf
https://www.rcog.org.uk/globalassets/doc...

9 American College of Obstetricians and Gynecologists. Novel Coronavirus 2019 (COVID-19): Practice Advisory [Internet]. 2020[cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.acog.org/clinical/clinical-guidance/practice-advisory/articles/2020/03/novel-coronavirus-2019
https://www.acog.org/clinical/clinical-g...
-1010 Centers for Disease Control and Prevention (US). Coronavirus Disease 2019 (COVID-19): if you are pregnant, breastfeeding, or caring for young children [Internet]. 2020 [cited 2020 Jul 31]. Available from: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/need-extra-precautions/pregnancy-breastfeeding.html
https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-nco...
), sendo consideradas um grupo clinicamente vulnerável(88 Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, Royal College of Midwives, Royal College of Paediatrics and Child Health, Public Health England and Public Health Scotland. Coronavirus (COVID-19) Infection and Pregnancy: Information for healthcare professionals Version 11[Internet]. 2020. [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.rcog.org.uk/globalassets/documents/guidelines/2020-07-24-coronavirus-covid-19-infection-in-pregnancy.pdf
https://www.rcog.org.uk/globalassets/doc...
). Além disso, pode haver um maior risco de resultados adversos na gravidez entre as gestantes com COVID-19. Até ao momento, o vírus SARSCoV-2 não foi detetado nas secreções vaginais, na placenta ou no líquido amniótico, mas os dados são limitados. Ele foi encontrado em algumas amostras de leite materno, mas o risco de transmissão por ingestão não é evidente(88 Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, Royal College of Midwives, Royal College of Paediatrics and Child Health, Public Health England and Public Health Scotland. Coronavirus (COVID-19) Infection and Pregnancy: Information for healthcare professionals Version 11[Internet]. 2020. [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.rcog.org.uk/globalassets/documents/guidelines/2020-07-24-coronavirus-covid-19-infection-in-pregnancy.pdf
https://www.rcog.org.uk/globalassets/doc...

9 American College of Obstetricians and Gynecologists. Novel Coronavirus 2019 (COVID-19): Practice Advisory [Internet]. 2020[cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.acog.org/clinical/clinical-guidance/practice-advisory/articles/2020/03/novel-coronavirus-2019
https://www.acog.org/clinical/clinical-g...
-1010 Centers for Disease Control and Prevention (US). Coronavirus Disease 2019 (COVID-19): if you are pregnant, breastfeeding, or caring for young children [Internet]. 2020 [cited 2020 Jul 31]. Available from: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/need-extra-precautions/pregnancy-breastfeeding.html
https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-nco...
), por isso a amamentação é recomendada devido aos seus conhecidos benefícios(88 Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, Royal College of Midwives, Royal College of Paediatrics and Child Health, Public Health England and Public Health Scotland. Coronavirus (COVID-19) Infection and Pregnancy: Information for healthcare professionals Version 11[Internet]. 2020. [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.rcog.org.uk/globalassets/documents/guidelines/2020-07-24-coronavirus-covid-19-infection-in-pregnancy.pdf
https://www.rcog.org.uk/globalassets/doc...
). Entretanto, sabe-se que os recém-nascidos podem ser infetados com o vírus após contato próximo com uma pessoa infetada, e alguns recém-nascidos testaram positivo para o vírus logo após o nascimento. Contudo, não é sabido se a transmissão do vírus aconteceu antes, durante ou logo após o nascimento; assim, a transmissão vertical permanece na investigação como uma hipótese. Segundo fontes confiáveis, ainda não há dados consistentes sobre os riscos da COVID-19 para os recém-nascidos(88 Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, Royal College of Midwives, Royal College of Paediatrics and Child Health, Public Health England and Public Health Scotland. Coronavirus (COVID-19) Infection and Pregnancy: Information for healthcare professionals Version 11[Internet]. 2020. [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.rcog.org.uk/globalassets/documents/guidelines/2020-07-24-coronavirus-covid-19-infection-in-pregnancy.pdf
https://www.rcog.org.uk/globalassets/doc...

9 American College of Obstetricians and Gynecologists. Novel Coronavirus 2019 (COVID-19): Practice Advisory [Internet]. 2020[cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.acog.org/clinical/clinical-guidance/practice-advisory/articles/2020/03/novel-coronavirus-2019
https://www.acog.org/clinical/clinical-g...
-1010 Centers for Disease Control and Prevention (US). Coronavirus Disease 2019 (COVID-19): if you are pregnant, breastfeeding, or caring for young children [Internet]. 2020 [cited 2020 Jul 31]. Available from: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/need-extra-precautions/pregnancy-breastfeeding.html
https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-nco...
).

Em 18 de março, a WHO(55 World Health Organization (WHO). Clinical management of COVID-19. [Internet]. 27 May 2020. [cited 2020 July 31]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/332196/WHO-2019-nCoV-clinical-2020.5-eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y
https://apps.who.int/iris/bitstream/hand...
) transmitiu orientações específicas sobre os cuidados a ter no período de gravidez, parto e pós-parto em face da presença ou suspeita de infecção por SARSCoV2. Em relação ao parto, refere que qualquer mulher tem direito a uma experiência de parto segura e positiva, que inclui: ser tratada com respeito e dignidade; ter um acompanhante da sua escolha presente durante o parto; comunicação clara por parte da equipa de cuidados de saúde materna; estratégias apropriadas de alívio da dor; mobilidade no trabalho de parto, sempre que possível; e escolha da posição para a expulsão. Nessa publicação, a WHO(55 World Health Organization (WHO). Clinical management of COVID-19. [Internet]. 27 May 2020. [cited 2020 July 31]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/332196/WHO-2019-nCoV-clinical-2020.5-eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y
https://apps.who.int/iris/bitstream/hand...
) defende o contato pele a pele e o alojamento conjunto. Também estabelece que as mulheres com suspeita ou confirmação de COVID-19 podem amamentar e cuidar do seu recém-nascido, assegurando medidas de etiqueta respiratória, lavagem das mãos e desinfecção regular de superfícies. Em caso de agravamento da doença COVID-19 ou outras complicações, a mulher deve ser apoiada para fornecer leite materno ao seu bebê, de uma forma possível, disponível e aceitável para ela. Finalmente, a WHO(55 World Health Organization (WHO). Clinical management of COVID-19. [Internet]. 27 May 2020. [cited 2020 July 31]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/332196/WHO-2019-nCoV-clinical-2020.5-eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y
https://apps.who.int/iris/bitstream/hand...
) não promove a indução do trabalho de parto nem a realização de cesariana, sem indicação clínica.

Em 30 de março, a Direção Geral de Saúde (DGS)(1111 Direção Geral de Saúde (PT). COVID-19: Fase de Mitigação - Gravidez e Parto. Orientação nº 018/2020 (última atualização: 5 de junho de 2020)[Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://covid19.min-saude.pt/wp-content/uploads/2020/06/i026356.pdf
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), em Portugal, emitiu uma diretriz com as orientações para o acompanhamento da gravidez e atendimento ao parto para gestantes SARSCoV-2 positivas ou com suspeita. A DGS recomendou que ficasse ao critério de cada instituição de saúde a aplicação de algumas das medidas. Para além de se considerar que as recomendações estavam nos antípodas das diretivas da WHO, parece que aconteceu um erro de interpretação da diretiva por parte de algumas instituições de saúde, ao aplicarem algumas dessas medidas a todas as mulheres, independentemente de terem resultado positivo ou negativo ao vírus SARS-CoV-2. Mais tarde, a 5 de junho, o grupo de trabalho da DGS reformulou a diretriz com embasamento das evidências disponíveis à data e colaboração do Colégio de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica da Ordem dos Enfermeiros e do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos(1111 Direção Geral de Saúde (PT). COVID-19: Fase de Mitigação - Gravidez e Parto. Orientação nº 018/2020 (última atualização: 5 de junho de 2020)[Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://covid19.min-saude.pt/wp-content/uploads/2020/06/i026356.pdf
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).

No Brasil, o Ministério da Saúde (MS) emitiu a nota técnica n. 9 - Recomendações para o trabalho de parto, parto e puerpério durante a pandemia da COVID-19(1212 Ministério da Saúde (BR). Nota Técnica No 9/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS. Recomendações para o trabalho de parto, parto e puerpério durante a pandemia da covid-19. [Internet]. 2020 [cited 2020 Jul 31]. Available from: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2020/04/SEI_MS-0014382931-Nota-Tecnica_9.4.2020_parto.pdf
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), com o objetivo de fornecer recomendações para os profissionais de saúde a par das evidências atuais, diante do cenário de risco da infecção, obedecendo ao comportamento da doença COVID-19 no território Brasileiro. Posteriormente, foi apresentada a nota técnica n. 12 - Infecção COVID-19 e os riscos às mulheres no ciclo gravídico-puerperal(1313 Ministério da Saúde (BR). Nota Técnica No 12/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS. Infecção COVID-19 e os riscos às mulheres no ciclo gravídico-puerperal[Internet]. 2020 [cited 2020 Jul 31]. Available from: https://central3.to.gov.br/arquivo/505116/
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), no intuito de expor para os gestores e profissionais de saúde as evidências disponíveis e contribuir para melhor compreensão acerca dos riscos às gestantes e puérperas, sugerindo assim medidas protetivas e com inclusão de um fluxograma de manejo clínico de gestantes, parturientes e puérperas no decorrer da pandemia de COVID-19.

É importante que as mulheres tenham pessoas de apoio confiáveis, incluindo profissionais de saúde e acompanhantes em seu redor, durante o trabalho de parto, parto e pós-parto(55 World Health Organization (WHO). Clinical management of COVID-19. [Internet]. 27 May 2020. [cited 2020 July 31]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/332196/WHO-2019-nCoV-clinical-2020.5-eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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,1111 Direção Geral de Saúde (PT). COVID-19: Fase de Mitigação - Gravidez e Parto. Orientação nº 018/2020 (última atualização: 5 de junho de 2020)[Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://covid19.min-saude.pt/wp-content/uploads/2020/06/i026356.pdf
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). A proibição ou restrições quanto à presença de acompanhantes, doulas e visitantes poderão minar a confiança das mulheres para o parto normal e afetar negativamente sua experiência de gravidez e parto(55 World Health Organization (WHO). Clinical management of COVID-19. [Internet]. 27 May 2020. [cited 2020 July 31]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/332196/WHO-2019-nCoV-clinical-2020.5-eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y
https://apps.who.int/iris/bitstream/hand...
,88 Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, Royal College of Midwives, Royal College of Paediatrics and Child Health, Public Health England and Public Health Scotland. Coronavirus (COVID-19) Infection and Pregnancy: Information for healthcare professionals Version 11[Internet]. 2020. [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.rcog.org.uk/globalassets/documents/guidelines/2020-07-24-coronavirus-covid-19-infection-in-pregnancy.pdf
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). Quando conseguirmos compreender o parto como um acontecimento único e irrepetível, provavelmente conseguiremos reconhecer a importância de proporcionar a cada mulher um apoio contínuo, consciente e respeitoso para que ela tenha uma experiência de parto positiva, independentemente do percurso clínico do seu trabalho de parto. Consideramos que este é um passo importante não apenas para a definição de saúde e bem-estar das mulheres, mas também para seus acompanhantes e família, cuja saúde mental tem sido afetada(88 Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, Royal College of Midwives, Royal College of Paediatrics and Child Health, Public Health England and Public Health Scotland. Coronavirus (COVID-19) Infection and Pregnancy: Information for healthcare professionals Version 11[Internet]. 2020. [cited 2020 Aug 2]. Available from: https://www.rcog.org.uk/globalassets/documents/guidelines/2020-07-24-coronavirus-covid-19-infection-in-pregnancy.pdf
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).

Ao contrário de muitas situações do passado, a informação nesta crise tem evoluído rapidamente. Conforme a ciência vai transmitindo dados, profissionais de saúde e sociedade civil exigem que as autoridades de saúde clarifiquem as diretivas. Mas isso não pode descurar os inúmeros estudos publicados antes da pandemia de COVID-19, que analisaram as associações entre as intervenções obstétricas e os desfechos obstétricos, fetais e infantis. Por exemplo, os riscos associados a induções de trabalho de parto e cesarianas desnecessárias estão comprovados, sobretudo nos indicadores de saúde materno-infantis de curto, médio e longo prazo, assim como na experiência de parto das mulheres.

Muitos dessas práticas têm trazido a público algumas realidades preocupantes, também relativas aos direitos das gestantes, parturientes e puérperas, que poderão estar a ser comprometidos devido a protocolos obstétricos inadequados. Entretanto, mesmo ao longo da pandemia, é necessário que as preocupações com a saúde pública sejam equilibradas com a necessidade de respeitar a autonomia, a escolha informada e as evidências(77 Vivilaki VG, Asimaki E. Respectful midwifery care during the COVID-19 pandemic. Eur J Midwifery. 2020;4:1-2. doi: 10.18332/ejm/120070
https://doi.org/10.18332/ejm/120070...
). Não procurar um equilíbrio entre a segurança dos cuidados e o respeito pelos direitos reprodutivos das mulheres é um erro. Nesse contexto, entendemos imprescindível esclarecer que o direito à autonomia e ao consentimento informado não foram revogados. Historicamente sabemos que, em tempos de crise, as necessidades das mulheres e das crianças foram altamente penalizadas. Nos dias de hoje, é dever das autoridades de saúde capacitar as mulheres, as famílias e os profissionais de saúde de informação adequada e contextualizada, reduzindo a incerteza e as desigualdades que se verificam entre as instituições. Dessa forma, num evento definidor da vida como o nascimento de um filho, é fundamental considerar o impacto dessa capacitação na saúde, nos direitos reprodutivos e na liberdade das mulheres, o que poderá ser profundamente sentido nas sociedades futuras.

Agendamento de induções de trabalhos de parto e de cesarianas, sem motivo clínico; proibição ou restrição da presença do acompanhante no trabalho de parto e parto, sem motivo; proibição ou restrição do contacto pele a pele e amamentação, sem consentimento informado, independentemente do resultado à COVID-19, vão contra a filosofia e valores básicos da Enfermagem Obstétrica. O compartilhamento dessas realidades faz adensar a forma como a disciplina de Obstetrícia continua a rejeitar os resultados da evidência. Acreditamos que o respeito e o conhecimento da fisiologia do trabalho de parto são a base para cuidados de excelência, numa Obstetrícia moderna que, por vezes, se perde entre lapsos científicos e éticos.

Para evitar erros do passado, os profissionais de saúde têm o dever de garantir que os direitos das mulheres sejam respeitados em tempos de crise e que os serviços de saúde sigam práticas baseadas em evidências. Não podem ser esquecidas as lutas travadas para vencer esses direitos básicos. Como se justifica que se adotem medidas extremas sem enquadramento científico que as sustente? Porque tomamos decisões contrariando o que se sabe? Ao estarem a ser rejeitadas novas evidências ou dados, estaremos a falar do efeito de Semmelweiss em tempos de COVID-19? As respostas às questões não são fáceis. Percebemos que a incerteza global sobre a epidemiologia do vírus ou a própria inércia, conveniência e resistência à mudança de alguns decisores e também profissionais de saúde estão a sustentar práticas clínicas controversas, que ignoram as recomendações das autoridades de saúde e que desrespeitam os direitos das mulheres na gravidez e no parto. Na verdade, essas questões apenas vieram dar visibilidade a um problema que há muito caracteriza os serviços de obstetrícia nacionais e internacionais.

Pandemia do novo coronavírus: uma forma inédita de comemorar o Ano Internacional da Enfermeira Obstetra/Obstetriz

A World Health Organization num esforço conjunto com a International Confederation of Midwives, o International Council of Nurses, Nursing Now e o United Nations Population Fund estipularam que 2020 fosse o Ano Internacional da Enfermeira e da Enfermeira Obstetra/Obstetriz. Com a pandemia da COVID-19, todas as comemorações e eventos foram cancelados. Mas, se tinham como objetivo criar uma maior consciencialização e valoração pública do serviço prestado às pessoas por essas profissões, esse objetivo não ficou suspenso. Quiseram, as circunstâncias atuais, que o mundo percebesse o potencial dessas profissões e o quanto elas têm de conhecimento técnico-científico, de responsabilidade, de riscos, de resistência e de abnegação. Nenhuma comemoração ou evento conseguiriam tal impacto.

Na área dos cuidados de saúde materna e obstétrica, é essencial que, durante esses tempos desafiadores e de constante mudança, as enfermeiras obstetras e/ou obstetrizes se concentrem no dever de assistência às mulheres e famílias, enquanto impedem a propagação do vírus SARSCoV2. No centro dos esforços, devem estar cuidados seguros, sustentáveis e coordenados, que atendam às necessidades de proteção das mulheres e dos seus recém-nascidos. É importante garantir que as respostas à COVID-19 não reproduzam ou perpetuem práticas infundamentadas e discriminatórias, porque estas potenciam ainda mais a vulnerabilidade das mulheres gestantes.

Considerar as enfermeiras obstetras e/ou obstetrizes recursos valiosos, de todos os países, significa que também precisam de proteção para prestar os melhores cuidados a mulheres e recémnascidos, muitas vezes em circunstâncias difíceis. Ou seja, é indispensável garantir a segurança dos profissionais, com fornecimento de equipamento de proteção individual adequado. A doença COVID-19 mostrou-nos novamente como o mundo, mais do que nunca, necessita de um investimento proativo e robusto em recursos e infraestruturas de saúde pública. Por isso, consideramos que esta pandemia representa uma oportunidade e um apelo urgente para melhorar os sistemas de saúde, inclusive para as enfermeiras obstetras e/ou obstetrizes.

No contexto da discussão sobre os profissionais mais qualificados para a assistência à saúde da mulher, as enfermeiras obstetras e/ou obstetrizes são as principais cuidadoras e especialistas no parto normal. A promoção do parto normal está incluída no escopo das suas competências autónomas. Assim, devido ao seu papel crucial durante o período pré-natal, as enfermeiras obstetras e/ou obstetrizes podem facilitar o processo de redução do medo do parto e/ou apoiar na adoção de sentimentos positivos sobre o parto normal. O medo do parto indica a necessidade de as enfermeiras obstetras e/ou obstetrizes intervirem junto das mulheres para as ajudar a redefinir suas expectativas e níveis de confiança no seu potencial para parir, aprimorar seus conhecimentos sobre trabalho de parto e parto e capacitar para a tomada de decisões informadas, sendo que tais estratégias devem ser assumidas como chave para promover o parto normal e melhorar a qualidade da saúde reprodutiva das mulheres.

Desembaraçar a retórica baseada no medo da pandemia, no qual se incluiu o medo do parto, é algo que as enfermeiras obstetras e/ou obstetrizes procuram ultrapassar ao lado das mulheres e de suas famílias. O medo não pode ser mais perigoso que o novo coronavírus. O importante é colocar o medo no lugar dele e dar a possibilidade de surgirem outras emoções como a confiança, a segurança e a esperança.

No mundo, muitas enfermeiras obstetras e/ou obstetrizes trabalham nas suas instituições ou encontram-se envolvidas em iniciativas junto da comunidade, de forma individual ou coletiva. São inúmeros os exemplos na história que mostram como os tempos de vulnerabilidade podem ser fonte de competência, de criatividade e de integração diante de condições adversas. Na pandemia da febre espanhola, a Sra. JL Ackerson, parteira da sociedade de Filadélfia, usava o seu automóvel para servir de motorista do Fleet Hospital. Entretanto, na era COVID-19, abordagens inovadoras de assistência na gravidez e sessões de preparação para o parto e parentalidade (individual ou em grupo) estão a ser exploradas, e a tecnologia digital está a substituir os encontros presenciais.

Dessa forma, de acordo com a experiência clínica e científica, acreditamos ser necessário um conjunto de estratégias cognitivas, comportamentais e emocionais que respondam ao desafio do medo do parto em gestantes durante a pandemia de COVID-19. Essas estratégias não apenas ajudarão a superar o medo, mas também poderão ajudar a abordá-lo no decorrer da gravidez e até o momento do parto. Pela experiência atuando com as mulheres gestantes, parturientes e puérperas, bem como através de pesquisas sobre intervenções de alívio do medo do parto, acreditamos que o foco do apoio estará na capacidade de superação, no empoderamento e no sentido de competência das mulheres para o parto normal.Pelos motivos descritos anteriormente, construímos uma ferramenta de apoio que poderá ser fornecida pelas enfermeiras obstetras e/ou obstetrizes nos atendimentos pré-natais presenciais ou via on-line, a qual designamos por Caixa de primeiros socorros para gestantes com medo do parto, em tempo de pandemia do novo coronavírus (Figura 1).

Figura 1
Caixa de primeiros socorros para gestantes com medo do parto, em tempo de pandemia do novo coronavírus

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia do novo coronavírus e os protocolos implementados pelas instituições de saúde para impedir a transmissão do vírus SARS-CoV-2 vieram reconfigurar as expectativas das gestantes em relação ao parto, provocando níveis adicionais de medo, preocupação e incerteza. Uma leitura mais aprofundada sobre o constructo do medo do parto, neste período de crise sanitária, faz-nos equacionar uma correlação mais estreita das gestantes com sentimentos de angústia, impotência, insegurança e sensação de isolamento e de restrição. Na verdade, falamos de construções negativas que podem ter repercussões indesejadas na experiência da gravidez, parto, pós-parto e da própria maternidade. Provavelmente, muito do impacto da pandemia na saúde reprodutiva e bem-estar das mulheres e das famílias não será reconhecido, porque os efeitos verificados não serão apenas o resultado directo da infecção ou prevenção, mas também as consequências indirectas dos sistemas de saúde, devido à pressão dos protocolos hospitalares, das restrições na assistência e do redireccionamento de recursos.

A pandemia atual colocou à vista de todos um problema crónico: o sistema paternalista para com a abordagem ao parto, que subsiste em alguns países e em algumas regiões dentro do mesmo país, agudizado pelos dados científicos inconclusivos sobre o comportamento do vírus e cumprimento das medidas de proteção e uso de equipamentos de proteção. O acesso a cuidados de saúde respeitosos, inclusivos e de qualidade tem provado ser um direito desigual quando ocorrem práticas obstétricas disformes e desprovidas de validação científica das recomendações sobre o tema (WHO, MS, DGS, RCOG, ACOG), o que se tornou particularmente evidente ao longo dos últimos meses. Contudo, em várias instituições existem vozes dissonantes, a trabalhar com base na evidência e a tentar adaptar-se às circunstâncias, livres do medo e da inércia, como é o caso de muitas enfermeiras obstetras e/ou obstetrizes que pretendem proteger aqueles de quem cuidam: as mulheres/recém-nascidos e família.

Nos dias de hoje, muitas gestantes e seus companheiros, com medo do parto, têm feito chegar a sua "voz" aos profissionais de saúde, à comunicação social e às redes socias porque estão conscientes daquilo que sentem e das suas necessidades diante de um estado de vulnerabilidade, sob a forma de medos, que limita a sua experiência de gravidez, do parto e da maternidade. Falar sobre o medo do parto em tempos de pandemia do novo coronavírus significa contribuir para experiências de parto mais positivas para as mulheres, de acordo com obrigações científicas e éticas. E, quando nos referimos a experiências de parto positivas, falamos muito mais do que taxas de mortalidade/morbilidade, protocolos e intervenções clínicas. Falamos de satisfação, sentido de realização, saúde mental, empoderamento, qualidade de vida, consentimento, segurança, apoio, informação, proximidade e integridade, o que nos faz acreditar que abordamos questões importantes para a sociedade civil, profissionais de saúde e decisores institucionais e políticos.

Que do medo passemos à esperança.

"This is a time for prudence, not panic. Science, not stigma. Facts, not fear. - United Nations Secretary-General, António Guterres

  • FOMENTO
    Este artigo foi apoiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do CINTESIS, Unidade de I&D (referência UIDB / 4255/2020).

REFERENCES

Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Ana Fátima Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2020
  • Aceito
    22 Ago 2020
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