Tendência dos transplantes e doações de órgãos e tecidos no Brasil: análise de séries temporais

RESUMO

Objetivos:

identificar a tendência temporal das taxas de doadores efetivos de órgãos e tecidos, de notificações e tipos de órgãos transplantados por milhão da população no Brasil.

Métodos:

estudo ecológico, de séries temporais, sobre notificações de doações de órgãos e transplantes. Os dados foram fornecidos pelo Registro Brasileiro de Transplantes e analisados por meio de regressão polinomial.

Resultados

detectou-se tendência crescente de potenciais doadores e doadores efetivos, com aumento médio ao ano de 2,33 e 0,92, respectivamente. A Região Sul apresentou a maior taxa de potenciais doadores (83,8) e doadores efetivos (34,1) e a Região Norte, a menor (20,2 e 3,9). A recusa familiar consistiu no principal impedimento para efetivar a doação.

Conclusões

os resultados demonstram tendência crescente de potenciais doadores e doadores efetivos em todo o Brasil, com destaque para a região Sul. Dentre os principais motivos para a não doação, destacam-se a recusa familiar e a contraindicação médica.

Descritores:
Transplante; Obtenção de Tecidos e Órgãos; Bases de Dados como Assunto; Epidemiologia; Brasil

ABSTRACT

Objectives:

to indentify the time trend of rates of organs and tissues effective donors, of reports and types of transplanted organs per million people of the Brazilian population.

Methods:

ecological study, of time series, about reports of organ donations and on transplants. The data were provided by the Registro Brasileiro de Transplantes and analyzed using polynomial regression.

Results

an increasing trend was found for potential donors and effective donors, with an average increase of 2.33 and 0.92 per year, respectively. The South Region had the highest rate of potential donors (83.8) and effective donors (34.1) and the North Region, the lowest rate (20.2 and 3.9). The family refusal was the main obstacle to accomplish the donation.

Conclusions

the results show an increasing trend of potential donors and effective donors throughout Brazil, with emphasis on the southern region of the country. Among the main reasons for non-donation, it is worth emphasizing family refusal and medical contraindication prescription.

Descriptors:
Transplant; Tissue and Organ Procurement; Databases as Topic; Epidemiology; Brazil

RESUMEN

Objetivos:

identificar la tendencia temporal de las tasas de donantes efectivos de órganos y tejidos, de notificaciones y tipos de órganos trasplantados por millón de población en Brasil.

Métodos:

estudio ecológico, de series temporales, sobre notificaciones de donaciones y trasplantes de órganos. Los datos fueron proporcionados por el Registro Brasileño de Trasplantes, analizados mediante regresión polinomial.

Resultados:

se detectó una tendencia creciente para donantes potenciales y donantes efectivos, con un incremento promedio de 2,33 y 0,92 por año. La Región Sur tuvo la tasa más alta de donantes potenciales (83,8) y donantes efectivos (34,1) y la Región Norte, la más baja (20,2 y 3,9). La negativa familiar fue el principal impedimento para efectuar la donación.

Conclusiones:

los resultados demuestran una tendencia creciente de donantes potenciales y donantes efectivos en todo Brasil, con énfasis en la Región Sur. Entre los principales motivos para no donar destacan el rechazo familiar y contraindicación médica.

Descriptores:
Trasplante; Obtención de Tejidos y Órganos; Bases de Datos como Asunto; Epidemiología; Brasil

INTRODUÇÃO

No Brasil os transplantes de órgãos vêm crescendo sistematicamente, entretanto, apesar de os números serem promissores, a alta demanda por órgãos faz com que os pacientes tenham que aguardar em uma fila de espera⁽¹⁾. Em 2017 houve cerca de 11 mil potenciais doadores, 3.415 doadores efetivos, ocorrendo cerca de 7.500 transplantes de órgãos. Entretanto, em 2018, a taxa de doadores efetivos aumentou somente 2,4%, alterando-se de 16,6 transplantes por milhão de população (pmp) em 2017 para 17,0 pmp em 2018. Essas taxas estavam 5,5% inferior ao previsto (18,0 pmp). No entanto, o aumento observado deve-se em 0,6% na taxa de notificação dos potenciais doadores e em 2,2% na taxa de efetivação da doação. Ainda, o acréscimo dos doadores falecidos foi de 0,7%, demonstrando que houve incremento no percentual de não utilização de órgãos de doadores falecidos⁽²⁾.

Em 2019 foram registrados 11.399 potenciais doadores, cerca de 54,7 pmp, crescendo em 6% em relação ao ano anterior e 3.768 doadores efetivos (18,1 pmp), resultando em um aumento de 7%⁽³⁾. Em 2020, ano em que a pandemia por COVID-19, modificou o cenário mundial, ocasionando milhares de mortes, com consequências severas em diversos setores da sociedade; assim, o programa de doação e transplante brasileiro também será afetado. No entanto, esse reflexo negativo deverá ser observado apenas nos segundo e terceiro trimestres, porquanto a situação no país se agravou apenas no mês de março. Nesse sentido, entre janeiro e março de 2020, o número de potenciais doadores notificados foi 2.730 (52,0 pmp), semelhante ao mesmo período de 2019 (52,2 pmp), em que o número de doadores efetivos foi 965 (18,4 pmp), mostrando-se superior ao ano passado⁽⁴⁾.

No Brasil, em 2019, 37.946 pessoas aguardavam por um órgão, demostrando que existe um desequilíbrio no âmbito de doadores e receptores. Para minimizar o período de espera por um transplante, faz-se necessário investir em todo processo⁽⁵⁾. Vale ressaltar que a ampliação nas taxas de doadores efetivos observada, pode ser associada, em parte, aos esforços para notificar os potenciais doadores, no entanto a taxa de efetivação permaneceu inalterada. Desse modo, infere-se que as taxas de autorização familiar não se modificaram, tampouco reduziram-se as contraindicações⁽³⁾.

Desta forma, sabe-se que, para muitas pessoas, o transplante consiste na única alternativa terapêutica que lhes propiciará qualidade de vida. A doação de múltiplos órgãos, tecidos e células de um único doador falecido pode favorecer cerca de dez indivíduos receptores⁽⁶⁾. Contudo, apesar de, nos últimos anos, as taxas de doação terem aumentado em diversos países, há desproporção entre oferta e demanda por órgãos, sendo o número de doações efetivas inferior à quantidade de pessoas que aguardam por um transplante^(7-8).

Assim, a doação de órgãos, tecidos e células exige a habilidade dos serviços em transformar os potenciais doadores em doadores efetivos⁽⁹⁾. O potencial doador consiste no sujeito com diagnóstico de morte encefálica (ME) confirmada e que não possui contraindicações clínicas para efetivar o transplante, tornando-se doador efetivo apenas quando houver incisão cirúrgica, mediante autorização da família⁽¹⁰⁾.

Deste modo, a fila de espera por um transplante tem se ampliado, e a quantidade de potenciais doadores e doadores efetivos tem sido notificado às centrais de transplantes tem se reduzido, pois, embora exista um incentivo em massa à doação de órgãos por parte dos serviços de comunicação, existem outros determinantes, os quais dificultam a concretização dos transplantes. Assim, poucos estudos brasileiros abordam a temática de maneira abrangente, trabalhando de forma compartimentada e com regiões isoladas do país. Portanto, busca-se com este estudo produzir subsídios que fomentem mudanças nas ações governamentais que intentem o aprimorar a captação e transplante de órgãos, visto que há compilação e análise das informações de todos os estados brasileiros. Nessa perspectiva, esta pesquisa possui a seguinte questão: qual a tendência temporal das taxas de potenciais doadores, doadores efetivos, transplantes de córnea, rim, pâncreas, coração e pulmão, bem como os principais motivos para a não doação no Brasil nos últimos dez anos?

OBJETIVOS

Identificar a tendência temporal das taxas de doadores efetivos de órgãos e tecidos, de notificações e tipos de órgãos transplantados pmp no Brasil.

MÉTODOS

Aspectos éticos

A pesquisa respeitou as diretrizes disciplinadas pelo Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde, por meio da Resolução nº 466/12. Por tratar-se de dados de acesso público, recebeu liberação da avaliação do Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

Desenho, período e local do estudo

Estudo ecológico, constituído a partir de séries temporais, sobre as notificações de doações de órgãos e transplantes realizados no Brasil, no período de 2008 a 2017, disponíveis no Registro Brasileiro de Transplantes (RBT), de residentes no Brasil⁽¹¹⁾. Utilizou-se a Declaração de Fortalecimento do Relatório de Estudos Observacionais em Epidemiologia (STROBE)⁽¹²⁾ para nortear a metodologia do estudo.

Elegeu-se este período de estudo, por conter os registros mais completos e atuais disponíveis no RBT. Optou-se por utilizar a divisão do IBGE, a qual separa o país em cinco macrorregiões, as quais foram às unidades de análise: Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul⁽¹³⁾.

O RBT trata-se de uma plataforma da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) que disponibiliza dados sobre a doação e transplante de órgãos e tecidos no país à comunidade científica e à população. Disponibiliza dados de domínio público, os quais podem ser consultados por meio de quatro relatórios anuais, sendo três parciais e um completo ao final de cada ano. Para este estudo, utilizaram-se apenas os relatórios finais. As informações contidas nos relatórios se referem ao panorama mundial de transplantes, dados brasileiros de óbitos por ano em hospitais, potenciais doadores, doadores efetivos, transplantes de rim, fígado, coração, pâncreas, pulmão, medula óssea, ossos e córnea, lista de espera, transplantes pediátricos e motivos da não concretização da doação de órgãos e tecidos⁽¹¹⁾.

Procedimentos de coleta de dados

A coleta de dados na plataforma do RBT procedeu-se no mês de outubro de 2018. Com base nas informações disponíveis, os pesquisadores desenvolveram um instrumento para sistematizar a coleta de dados; para isso, construíram-se planilhas eletrônicas no programa Microsoft Office Excel 2013. Essas foram duplamente planilhadas, e as inconsistências, corrigidas. Inicialmente, realizou-se a organização dos dados brutos contendo os anos nas colunas e os estados nas linhas. Posteriormente, os dados foram compilados por macrorregiões. Esse processo foi reproduzido para as variáveis: potenciais doadores e doadores efetivos, transplantes de rim, fígado, coração, pâncreas, pulmão e córnea. Para o cálculo da taxa de transplante renal, foram somadas as taxas de doadores vivos e falecidos, e, para identificar os motivos para a não doação de órgãos e tecidos no Brasil, utilizaram-se as informações referentes à recusa familiar, parada cardíaca e contraindicação médica.

Análise dos resultados e estatística

As taxas de notificações de potenciais doadores e de doadores efetivos por ano foram calculadas pmp. Realizou o modelo de regressão linear polinomial para analisar a tendencia das taxas de notificação de potenciais doares e doadores efetivos. Consideraram-se as taxas de doadores efetivos como variável dependente (Y) e os anos de estudo como variável independente (X). Inicialmente, realizaram-se diagramas de dispersão, utilizando as séries atenuadas por meio do cálculo da média móvel de três pontos. Testaram-se os modelos de regressão linear simples, primeira ordem (y = β0 +/- β1X) e, caso o comportamento da série indicasse necessidade, modelos de segunda ordem (y = β0+/- β1X +/- β2X²). Não foi necessário empregar modelos de terceira ordem (y = β0+/- β1X +/- β2X² +/- β3X3). Determinou-se que o modelo polinomial mais adequado, foi aquele que obteve melhor significância estatística com coeficiente de determinação mais alto e resíduo sem vícios. Todas as análises foram conduzidas com auxílio do ambiente estatístico SPSS 20.1 (Statistical Package for the Social Sciences)^(14-15).

RESULTADOS

No Brasil, de 2008 a 2017, registraram-se 83.431 potenciais doadores e 23.816 doações efetivas. Observou-se o aumento nas notificações de potenciais doadores e nas doações efetivas em todo o país. No ano de 2017 as Regiões Sul e Norte destacaram-se das demais, sendo a Região Sul com a maior taxa de potenciais doadores (83,8 pmp) e doadores efetivos (34,1 pmp) e a Região Norte com a menor taxa de potenciais doadores (20,2 pmp) e doadores efetivos (3,9 pmp) do país.

As taxas de potenciais doadores e de doadores efetivos se mantiveram crescentes no intervalo analisado (aumento médio anual de 2,33 e 0,97, respectivamente). A Região Sul apresentou aumento médio anual nas taxas de potenciais doadores (5,58 pmp, r²=0,99) e doadores efetivos (2,39 pmp, r²=0,98), superiores à média nacional (Tabela 1).

Tabela 1
Modelos de tendência das taxas de potenciais doadores e de doadores efetivos por milhão de população, segundo região, Brasil, 2008 a 2017

	β0	β1†	Coeficiente	p *	Tendência
Potenciais doadores
Brasil	41,91	2,33†	0,97	<0,001	↑
Centro-Oeste	46,77	2,66†	0,87	0,001	↑
Nordeste	33,82	2,38†	0,85	0,001	↑
Norte	16,42	2,56†	0,86	0,001	↑
Sudeste	48,35	1,19†	0,95	<0,001	↑
Sul	51,48	5,58†	0,99	<0,001	↑
Doadores efetivos
Brasil	11,85	0,92†	0,98	<0,001	↑
Centro-Oeste	6,93	0,78†	0,98	<0,001	↑
Nordeste	7,94	0,77†	0,92	<0,001	↑
Norte	2,45	0,39†	0,82	0,002	↑
Sudeste	14,97	0,63†	0,83	0,001	↑
Sul	18,27	2,39†	0,98	<0,001	↑

• Nota:
• ^*
  Nível de significância;
• ^†
  Aumento médio anual; ↑Tendência crescente.

Em relação aos órgãos e tecidos transplantados, verificou-se tendência crescente para o transplante de córnea nas Regiões Norte e Nordeste, com aumento médio de 2,33 (r²=0,92) e 2,21 (r²=0,72), respectivamente, e decrescente na Região Sudeste, com diminuição média de 2,18 ao ano (r²=0,95). O transplante de rim exibiu tendência crescente nas Regiões Nordeste e Sul, com aumento médio ao ano de 0,29 (r²=0,75) e 0,90 (r²=0,79), nesta ordem. Já o transplante de fígado se revelou crescente no Brasil, ressalvando-se a Região Nordeste, que, até o ano 2013, se mostrou crescente, com posterior declínio (aumento médio ao ano de 0,44; r²=0,95) (Tabela 2). No Brasil, o transplante de pâncreas exibiu tendência de queda (redução média de 0,03 ao ano; r²=0,90). Entretanto, a Região Sul mostrou aumento médio anual de 0,08 (r²=0,85). No que se refere às doações de coração, essas apresentaram tendência crescente em todo o país (aumento médio ao ano de 0,13; r²=0,90). Já os transplantes de pulmão demonstraram tendência crescente nas Regiões Sudeste e Sul (aumento médio de 0,04 e 0,01 ao ano, respectivamente) (Tabela 2).

Tabela 2
Modelos de tendência das taxas dos órgãos e tecidos transplantados por milhão de população, segundo região, Brasil, 2008 e 2017

	2008-2012	2013-2017	β0	β1	Coeficiente	p *	Tendência
Córnea
Brasil	73,2	70,8	72,04	0,20||	0,03	0,659	-
Centro-Oeste	96,5	102,6	98,83	2,46†	0,30	0,160	-
Nordeste	44,3	54,9	48,53	2,21†	0,72	0,008	↑
Norte	19,6	31,0	24,20	2,33†	0,92	<0,001	↑
Sudeste	96,3	81,2	89,37	2,18†	0,95	<0,001	↓
Sul	79,9	78,0	80,46	0,12†	0,01	0,860	-
Rim**
Brasil	12,32	14,18	13,89	0,48†	0,98	<0,001	↑/↓
Centro-Oeste	6,34	6,65	6,58	0,02†	0,01	0,848	-
Nordeste	6,47	7,93	7,17	0,29†	0,75	0,005	↑
Norte	2,49	3,16	3,32	0,26†	0,92	0,001	↑/↓
Sudeste	16,96	18,77	18,64	0,46†	0,97	<0,001	↑/↓
Sul	18,6	23,1	20,59	0,90†	0,79	0,003	↑
Fígado
Brasil	7,5	9,3	8,24	0,34†	0,95	<0,001	↑
Centro-Oeste	0,6	4,4	2,06	0,78†	0,96	<0,001	↑
Nordeste	5,0	6,7	6,46	0,44†	0,95	<0,001	↑/↓
Norte	-	0,4	0,15	0,09†	0,88	<0,001	↑
Sudeste	10,8	11,7	11,24	0,14†	0,84	0,001	↑
Sul	10,3	15,2	11,99	0,95†	0,97	<0,001	↑
Pâncreas
Brasil	0,8	0,6	0,76	0,03‡	0,93	<0,001	↓
Centro-Oeste	0,1	0,1	0,10	0,01†	0,04	0,617	-
Nordeste	0,1	0,2	0,22	0,02†	0,93	0,001	↑/↓
Norte	-	-	-	-	-	-	-
Sudeste	1,6	1,0	1,34	0,13†	0,97	<0,001	↓
Sul	1,0	1,3	1,06	0,08†	0,85	0,001	↑
Coração
Brasil	1,0	1,6	1,24	0,1†	0,90	<0,001	↑
Centro-Oeste	0,6	2,3	1,29	0,33†	0,97	<0,001	↑
Nordeste	0,7	1,2	0,88	0,10†	0,92	<0,001	↑
Norte	-	-	-	-	-	-	-
Sudeste	1,4	2,2	1,70	0,15†	0,85	0,001	↑
Sul	1,3	1,9	1,40	0,15†	0,84	0,001	↑
Pulmão
Brasil	0,3	0,4	0,36	0,02†	0,93	<0,001	↑
Centro-Oeste	-	-	-	-	-	-	-
Nordeste	-	0,1	0,13	0,03†	0,89	0,002	↑/↓
Norte	-	-	-	-	-	-	-
Sudeste	0,3	0,5	0,37	0,04†	0,94	<0,001	↑
Sul	1,1	1,2	1,12	0,01†	0,58	0,050	↑

• Nota:
• ^*
  Nível de significância;
• ^**
  Soma dos doadores vivos e falecidos;
• ^†
  Aumento médio anual;
• ^‡
  Redução média anual; - constância; ↑tendência crescente; ↓tendência decrescente; ↑/↓tendência crescente/decrescente.

Quanto aos motivos para a não doação de órgãos, notou-se que a recusa familiar consistiu no principal impedimento para efetivar a doação em ambos os quinquênios analisados, com 34,54% entre 2008 e 2012 e 36,59% de 2013 a 2017. Observou-se diminuição das não doações por parada cardíaca, passando de 25,40% entre 2008 e 2012 para 18,00% entre 2013 e 2017. Já na Região Centro-Oeste, o motivo mais prevalente foi a presença de contraindicações médicas em ambos os períodos analisados (39,86% e 35,51%) (Tabela 3).

Tabela 3
Motivos para a não doação de órgãos, segundo regiões do Brasil, entre 2008 e 2017

Região e período	Recusa familiar	Parada cardíaca	Contraindicação médica	Outros
	n (%)	n (%)	n (%)	n (%)
Brasil
2008 - 2012	8771 (34,54)	6450 (25,40)	4599 (18,11)	5577 (21,96)
2013 - 2017	12156 (36,59)	5980 (18,00)	7068 (21,28)	8014 (24,13)
Centro-Oeste
2008 - 2012	533 (21,84)	561 (22,98)	973 (39,86)	374 (15,32)
2013 - 2017	1107 (32,81)	297 (8,80)	1198 (35,51)	772 (22,88)
Nordeste
2008 - 2012	2115 (36,62)	888 (1537)	1120 (19,39)	1653 (28,62)
2013 - 2017	3083 (38,24)	856 (10,62)	21,60 (26,79)	1963 (24,35)
Norte
2008 - 2012	314 (42,32)	114 (15,36)	175 (23,58)	139 (18,73)
2013 - 2017	563 (33,77)	113 (6,78)	307 (18,42)	684 (41,03)
Sudeste
2008 - 2012	3644 (29,68)	4024 (32,77)	1422 (11,58)	3188 (25,97)
2013 - 2017	5431 (36,70)	3488 (23,57)	1787 (12,08)	4093 (27,66)
Sul
2008 - 2012	1633 (44,91)	872 (23,98)	908 (24,97)	223 (6,13)
2013 - 2017	2606 (43,08)	1217 (20,12)	1707 (28,22)	519 (8,58)

DISCUSSÃO

O aumento das notificações de potenciais doadores e doadores efetivos se mostra consonante ao observado em outros países^(11,16). A Europa se destaca no cenário mundial, visto que, no ano de 2015, foram transplantados 32.707 órgãos. A Espanha e a Croácia apresentaram taxa de 40,2 doadores pmp, seguido pela Bélgica, com 31,6 doadores pmp, e Portugal, com 31,0 doadores pmp⁽¹⁶⁾. No mesmo ano, os Estados Unidos exibiram taxa de 28,2 doadores pmp e o Canadá, 19,0 doadores pmp⁽¹⁶⁾. O Brasil se encontra no segundo lugar em relação ao número de doadores efetivos sul-americanos, perdendo apenas para o Uruguai, que apresenta uma taxa de 16,8 doadores pmp⁽¹¹⁾.

Apesar de o país apresentar um programa de transplantes de órgãos, tecidos e células reconhecido mundialmente, devido a sua grande extensão territorial, há disparidades que incidem sobre as taxas de doações, tais como as condições socioeconômicas. As Regiões Sul e Sudeste concentram maiores áreas geoeconômicas, infraestrutura e transporte, dispondo de mais serviços de saúde e acesso à educação que as demais localidades⁽¹⁷⁾. Portanto, os serviços de saúde dessas regiões possivelmente detêm características que viabilizam a captação, a distribuição e o transplante de órgãos devido aos recursos e à densidade tecnológicas disponíveis, bem como o preparo e qualificação das equipes que atuam nesse seguimento.

Salienta-se que o Distrito Federal, Paraná, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina apresentaram mais do que 80 potenciais doadores pmp, e apenas Santa Catarina e Paraná atingiram taxas de concretização da doação acima de 40% e 40 pmp de doadores efetivos, com valores semelhantes aos encontrados em países desenvolvidos^(3,11,16). No tocante ao estado de Santa Catarina, os resultados podem se associar ao trabalho da Central de Transplantes, que sistematizou ferramentas para a organização do processo, a fim de padronizar a assistência, atribuir maior segurança e direcionar o atendimento ao paciente com ME, simplificando e otimizando o processo de doação e transplante^(11,18).

Nessa perspectiva, os governos estaduais de Santa Catarina e do Paraná investiram na educação permanente dos profissionais. A qualificação dos envolvidos é determinante para a redução das fragilidades do processo, ao suscitar profissionais de saúde críticos, reflexivos e problematizadores, tornando-os hábeis e sensíveis para lidar com os potenciais doadores e seus familiares^(10,19).

Além disso, o governo do estado do Paraná se vinculou ao Plano Nacional de Organizações de Procura de Órgãos (OPOs) como uma medida de incentivo ao desenvolvimento das ações relacionadas ao transplante. Isso contribuiu para agilizar o processo desde a notificação até o transplante efetivo, além de estabelecer o Programa de Apoio e Qualificação de Hospitais Públicos e Filantrópicos do SUS Paraná (HOSPSUS), cujo objetivo consiste em consolidar e aperfeiçoar a assistência hospitalar até 2020, financiando e incentivando os estabelecimentos de saúde a aderirem ao programa, inclusive no que tange as metas de captação e doação de órgãos e tecidos⁽²⁰⁾.

Os resultados deste estudo demonstraram, também, disparidades entre as taxas de potenciais doadores e doadores efetivos em todas as regiões. Entre 2010 e 2017 as taxas de doadores efetivos foram incrementadas em 69%, transpondo-se de 9,9 doadores pmp para 16,7 doadores pmp, e a taxa de notificação de potenciais doadores aumentou 41%⁽¹¹⁾.

Apesar desse cenário significativo, há entraves que prejudicam a evolução dos transplantes no Brasil⁽⁹⁾. Destacam-se os aspectos logísticos e infraestrutura dos hospitais e do próprio Sistema Nacional de Transplantes (SNT). Porquanto, em algumas localidades, o acesso ao transporte aéreo para realizar o translado de órgãos e tecidos é limitado, além da indisponibilidade de equipes de captação e implantes.

No que tange à desproporção entre a demanda e a oferta de órgãos detectadas neste estudo, resultados semelhantes foram observados na literatura. Em 2017 o Brasil possuía uma demanda ponderada em 39.362 órgãos e tecidos (córnea, rim, coração, fígado e pulmão), entretanto apenas 23.742 foram transplantados desconsiderando a demanda por outros órgãos⁽¹¹⁾. Embora a taxa de doação de órgãos apresentada pela Espanha seja expressiva, o país possuía uma fila de espera para o transplante de, aproximadamente, 5.500 pessoas. De forma análoga, o Reino Unido possuía em torno de 7.000 pessoas aguardando por um transplante⁽²¹⁾. Concomitante à indisponibilidade de órgãos, inúmeros pacientes que já foram transplantados retornam à fila de espera. Nos Estados Unidos, 30% das pessoas que estão na lista de espera aguardam o segundo transplante e 18 morrem diariamente^(22-23).

Em relação às diferenças na tendência de órgãos transplantados entre as regiões detectadas neste estudo, o RBT identificou que, nos últimos dez anos, os transplantes hepáticos, cardíacos, renais e pulmonares foram incrementados em 85%, 100%, 71% e 67%, respectivamente. Segundo o relatório, os Estados de Mato Grosso e Sergipe não realizam transplantes de rim há anos, sendo que o Amapá, Roraima e Tocantins nunca executaram o procedimento⁽¹¹⁾.

Pesquisa realizada entre 2012 e 2014 observou que o Nordeste e o Sudeste apresentaram maior parcela de pacientes aguardando por transplante de córnea, sendo que o Sudeste atendeu em torno de 70% dessa demanda⁽²⁴⁾. Os resultados obtidos revelam que as Regiões Norte e Nordeste enfrentam dificuldades nos processos de captação e doação de córnea, as quais estão relacionadas à desestruturação de programas, baixa taxa de notificação, greves de funcionários, escassez de profissionais capacitados e infraestrutura hospitalar precária⁽²⁴⁾.

No que tange aos motivos para a não doação de órgãos, notou-se que a recusa familiar e a contraindicação médica foram as principais causas. Esses achados são consonantes ao encontrado na literatura nacional e internacional^(9-10,23). O consentimento da família sobre a doação de órgãos inclui diversos processos. Os familiares precisam lidar com uma situação estressante em que a tristeza se mistura com a tomada de decisão, sendo necessário lidar com as suas próprias crenças e atitudes sobre a doação de órgãos e os desejos evocados pelo ente falecido. Não obstante, tal situação media-se pela interação entre diferentes profissionais de saúde, cujo comportamento, cuidado, forma de apresentação e de solicitar a doação pode influenciar nos sentimentos dos familiares durante o luto e, consequentemente, em sua escolha⁽²⁵⁾.

Dentre os motivos para a recusa familiar, destacam-se as crenças religiosas, o receio quanto à violação/manipulação do corpo, a incompreensão quanto ao diagnóstico de ME, o desconhecimento do desejo do potencial doador e/ou a manifestação contrária a doação em vida, a insatisfação com o atendimento recebido, o tempo relacionado à logística que envolve a doação e o local inapropriado para conduzir a entrevista a família^(6-7). Ao compreender as razões que envolvem a recusa, pode-se produzir subsídios que contribuam para a elaboração de estratégias que favoreçam a doação de órgãos e tecidos⁽⁶⁾.

Nessa perspectiva, ressalta-se que os trabalhadores de saúde devem debater o assunto, por serem fundamentais para o processo e estarem próximos a família. Assim, apesar de a doação, a captação e o transplante de órgãos serem normatizados e regulamentados, as equipes possuem dificuldade para lidar com os anseios dos familiares⁽⁷⁾. A assistência às famílias que possuem entes queridos que foram diagnosticados com ME deve ser baseada no respeito, humanização e no acolhimento, atentando-se às necessidades dos familiares e permitindo-lhes espaço de escuta para manifestarem suas vivências e sentimentos, de modo que o bem-estar dos envolvidos seja tão ou mais importante que o consentimento para a doação^(26-28).

Outro ponto importante apontado pela literatura, ao lidar com as famílias, trata-se da experiência profissional, visto que até 80% das pessoas consentem a doação quando são abordadas por profissionais experientes e capacitados. Em contrapartida, apenas 35,5% assentem quando os mesmos são inexperientes^(21,24). Destaca-se o papel do enfermeiro por sua assistência ser pautada nas especificidades de cada família, criando vínculos de respeito e confiança, por meio da relação dialógica, atuando como cuidador, educador e facilitador para a doação⁽²⁸⁾.

Limitações do estudo

A pesquisa possui limitações, pois utiliza dados secundários provenientes do RBT, o qual é sujeito à subnotificação e à incompletude das informações. Nesse sentido, o RBT passou por melhorias em 2012, o qual foi acrescentado novos tópicos no questionário enviado às Centrais Estaduais de Transplantes, de maneira que alguns dados retroativos ao referido ano se encontram indisponíveis no sistema. Entretanto, apesar desses aspectos, o sistema vem sendo regulamentado e consolidado cada vez mais, além de permitir a melhora progressiva na doação e transplante de órgãos⁽¹¹⁾.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou políticas públicas

Acredita-se que os dados desta pesquisa possam fornecer subsídios para a monitoração e avaliação da situação de doações e transplantes de órgãos e tecidos no Brasil, além de reconhecer as principais barreiras para a sua efetivação. Portanto, produziram-se subsídios que podem auxiliar o poder público a nortear as políticas de saúde, ao concentrar os esforços nas regiões onde há baixa notificação ou menor relação entre potencial doador e doador efetivo, também em locais onde a recusa familiar é elevada. Destaca-se a importância de promover a qualificação dos profissionais envolvidos na captação e transplante de órgãos, especialmente os que conduzem a entrevista familiar, a fim de torná-los mais sensíveis aos sentimentos, experiências e anseios das famílias que estão vivenciando o luto e precisam tomar uma importante decisão. Esse certamente será fundamental para o consentimento da doação.

CONCLUSÕES

Entre os anos de 2008 e 2017 as notificações de potenciais doadores e de doadores efetivos apresentaram tendência crescente em todo o Brasil, com destaque para a Região Sul. Identificou-se, também, tendência crescente para o transplante de fígado e coração e disparidades na tendência para o transplante de córnea, rim, pâncreas e pulmão, entre as regiões do país. O principal motivo detectado para a não doação de órgãos e tecidos foi a recusa familiar. Sugerem-se estudos que possibilitem estratégias para promover melhorias no processo, no intuito de potencializar a captação de órgãos e minimizar as perdas, a fim de reduzir a lista de espera e, consequentemente, melhorar o prognóstico e a qualidade de vida dos receptores e seus familiares.

• FOMENTO
  Estudo desenvolvido com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES, bolsa de mestrado e doutorado) - Código de Financiamento 001.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho

EDITOR ASSOCIADO: Ana Fátima Fernandes

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  03 Mar 2021
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  26 Maio 2020
• Aceito
  17 Ago 2020