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A vulnerabilidade da família: reflexões acerca da condição humana

RESUMO

Objetivos:

refletir sobre a vulnerabilidade da família, utilizando como referência a obra Condição Humana, de Hannah Arendt, para melhor compreender a maneira como essa instituição tem sido estruturada no mundo atual.

Resultados:

a ruptura das relações assistenciais entre os membros da família representa uma situação de vulnerabilidade, que fragiliza a instituição familiar, levando à perda de sua capacidade de afirmação na sociedade. O apoio ao desenvolvimento de capacidades humanas nas famílias e no território proporciona o benefício de fortalecê-los para o enfrentamento das vulnerabilidades.

Conclusões:

a vulnerabilidade da família apresenta-se como um marco histórico, uma condição sobre a qual a instituição familiar foi construída e organizada enquanto propriedade de caráter público e privado, evidenciando a importância do desenvolvimento de um cuidado mais holístico e integral às pessoas, fundamentado em políticas públicas de saúde e assistência social.

Descritores:
Família; Vulnerabilidade; Condições Sociais; Promoção da Saúde; Assistência à Saúde Culturalmente Competente

ABSTRACT

Objectives:

to reflect about the vulnerability of the family, using the book The Human Condition by Hannah Arendt as reference, to better understand how this institution has been structured in today’s world.

Results:

the rupture of assistance relations among family members represents a situation of vulnerability that weakens the family institution, leading to the loss of the assertiveness in the society. Support for the development of human capabilities in families and in the territory provides the benefit of strengthening them to face of vulnerabilities.

Conclusions:

the vulnerability of the family presents itself as a historic milestone, condition on which the family institution was built and organized as a public and private property, putting in evidence the importance to develop a more holistic and integrate care to the people, based on health public policies and social assistance.

Descriptors:
Family; Vulnerability; Social Conditions; Health Promotion; Culturally Competent Care

RESUMEN

Objetivos:

reflejar sobre la vulnerabilidad de la familia, utilizando como referencia la obra Condición Humana, de Hannah Arendt, para mejor comprender la manera como esa institución ha sido estructurada en el mundo actual.

Resultados:

la ruptura de las relaciones asistenciales entre los miembros de la familia representa una situación de vulnerabilidad, que debilita la institución familiar, llevando a la pérdida de su capacidad de afirmación en la sociedad. El apoyo al desarrollo de capacidades humanas en las familias y en el territorio proporciona el beneficio de fortalecerlos para el enfrentamiento de las vulnerabilidades.

Conclusiones:

la vulnerabilidad de la familia se presenta como un marco histórico, una condición sobre la cual la institución familiar ha construida y organizada mientras propiedad de carácter público y privado, evidenciando la importancia del desarrollo de un cuidado más holístico e integral a las personas, fundamentado en políticas públicas de salud y asistencia social.

Descriptores:
Familia; Vulnerabilidad; Condiciones Sociales; Promoción de la Salud; Asistencia Sanitaria Culturalmente Competente

INTRODUÇÃO

A obrigação familiar reflete um senso de dever em apoiar, respeitar e prestar assistência aos membros da família. As expectativas implícitas e explícitas sobre essas obrigações geralmente servem como orientadores na forma pela qual as relações se estabelecem no ambiente familiar(11 Milan S, Wortel S. Family obligation values as a protective and vulnerability factor among low-income adolescent girls. J Youth Adolesc. 2014;44(6):1183-1193. doi: 10.1007/s10964-014-0206-8
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).

As políticas familiares tiveram maior visibilidade na última década devido às grandes transformações contemporâneas, relacionadas às formas de organização do trabalho e constituição da família, transições sociais, econômicas e urbanização, que refletiram diretamente na maneira como as relações ocorrem hoje em dia no ambiente familiar(22 Abrão KCL, Mioto RCT. [Family Policies: an introduction to contemporary debate]. Rev Katálysis. 2017;20(3):420-429. doi: 10.1590/1982-02592017v20n3p420 Portuguese.
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).

Apesar dos diversos avanços mundiais relacionados às políticas de proteção social, essas políticas públicas, no Brasil, no âmbito familiar, ainda estão voltadas ao seguro social e baseadas nos papéis do homem provedor do sustento da casa e da mulher cuidadora, reproduzindo o modelo de família “tradicional” do sistema patriarcal, que gera diversas formas de vulnerabilidade dentro do ambiente familiar. Esse modelo arcaico de organização tem ameaçado a estrutura e a qualidade das relações familiares, contribuindo para desavenças, abandono, ocorrência de violências e ameaças.

Além disso, houve poucos avanços sociais em relação às formas de constituição familiar, prevalecendo o desenvolvimento de políticas baseadas em um modelo de família formado por pais biológicos, heterossexuais e com convivência marital, sem considerar outros aspectos para o planejamento das políticas de saúde e sociais. Percebe-se, ainda, que há mais responsabilização da família pelos problemas individuais — baseados em valores morais e sociais arcaicos e refletidos na sociedade — do que sua proteção de fato(33 Mioto RCT, Dal Prá KR. [Social services and family responsibility: contradictions of Brazilian social policy]. In: Anais do XIII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social - ENPESS [Internet]. 2012 [cited 29 Jan 2019];147-178. Available from: http://nisfaps.paginas.ufsc.br/files/2015/05/texto-9_capacita%C3%A7%C3%A3o-trabalho-com-familias_Mioto-servi%C3%A7os-sociais-e-familia.pdf Portuguese.
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-44 Mioto RCT. A centralidade da família na política de assistência social: contribuições para o debate. Rev Pol Públ[Internet]. 2015 [cited 29 Jan 2019];8(1):133-42. Available from: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/view/3756/1820
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).

Os princípios e diretrizes relacionados às políticas de assistência e promoção de assistência à saúde, que incorporam a preocupação em ter a família como foco da atuação profissional, decorrem de um longo acúmulo de experiências dirigidas à instituição familiar. No entanto, os problemas relacionados à vulnerabilidade da família apresentam diversos marcos históricos relacionados à maneira como a família e a sociedade foram estruturadas e organizadas, desde a Roma antiga.

Diante do exposto, este ensaio teórico tem como objetivo realizar uma reflexão sobre a vulnerabilidade da família, utilizando como referência a obra Condição Humana, de Hannah Arendt, para melhor compreender a maneira como essa instituição tem sido estruturada no mundo atual.

Conceituando a vulnerabilidade

A origem etimológica da palavra “vulnerabilidade” vem do termo latino vulnerabilis, derivado de vulnerare (ferir, lesar, prejudicar) e de -bĭlis (suscetível a)(55 Soulet MH. La vulnérabilité comme catégorie paradoxale de l'action publique : contribution à l'ouvrage la vulnérabilité sociale [Internet]. 2005 [cited 2019 Jan 29]. Available from: http://home.iscte-iul.pt/~apad/justica01/textos/politicas%20sociais/Soulet%20La%20vulnerabilite%20paradoxale.pdf
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).

A vulnerabilidade compreende uma relação dinâmica de interdependências entre pessoas e ambientes/contextos sociais, na qual se expressam valores biológicos, sociais e existenciais(66 Oviedo RAM, Czeresnia D. The concept of vulnerability and its biosocial nature. Interface (Botucatu). 2015;19(53):237-250. doi: 10.1590/1807-57622014.0436
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). É uma condição que acompanha o surgimento das esferas da vida privada e vida pública, cuja distinção, segundo Arendt, corresponde à existência e preservação da instituição familiar como espaço privado, que assegurava ao homem a condição de pertencimento e lhe permitia participar dos negócios do mundo(77 Arendt A. A condição humana. In: A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2007. 174 p.).

A obrigatoriedade era o que diferenciava o convívio entre as esferas familiar e pública, porque na esfera familiar o convívio era imposto pela dependência das relações humanas, necessárias à sobrevivência da espécie. Nesse cenário, a ruptura das relações assistenciais entre os membros da família representa uma situação de vulnerabilidade, que fragiliza a instituição familiar, levando à perda de sua capacidade de afirmação na sociedade(66 Oviedo RAM, Czeresnia D. The concept of vulnerability and its biosocial nature. Interface (Botucatu). 2015;19(53):237-250. doi: 10.1590/1807-57622014.0436
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-77 Arendt A. A condição humana. In: A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2007. 174 p.), pois alguém que não seja capaz de administrar sua própria casa, trabalho e recursos, com as exigências de autopropriedade (promoção, gerenciamento e proteção), é visto socialmente como um indivíduo prejudicado(55 Soulet MH. La vulnérabilité comme catégorie paradoxale de l'action publique : contribution à l'ouvrage la vulnérabilité sociale [Internet]. 2005 [cited 2019 Jan 29]. Available from: http://home.iscte-iul.pt/~apad/justica01/textos/politicas%20sociais/Soulet%20La%20vulnerabilite%20paradoxale.pdf
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).

Essa condição traz sofrimento para diversos indivíduos devido às caracterizações pelas quais a sociedade tenta defini-los e pela forma com que os têm interpretado, se mostrando limitante na busca por conquistas pessoais. Segundo Marc-Henry Soulet(55 Soulet MH. La vulnérabilité comme catégorie paradoxale de l'action publique : contribution à l'ouvrage la vulnérabilité sociale [Internet]. 2005 [cited 2019 Jan 29]. Available from: http://home.iscte-iul.pt/~apad/justica01/textos/politicas%20sociais/Soulet%20La%20vulnerabilite%20paradoxale.pdf
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), o indivíduo sofre em sua condição social por ser uma pessoa limitada, desconfortável com as possibilidades que lhe são oferecidas.

Por outro lado, não necessariamente o ser humano vulnerável sofrerá danos, mas estará mais suscetível em razão de suas desvantagens para mobilidade social, que impedirão o alcance de níveis mais elevados de qualidade de vida, em razão da sua cidadania fragilizada. No entanto, essa pessoa pode receber apoio para ser capaz de promover mudanças em sua condição(55 Soulet MH. La vulnérabilité comme catégorie paradoxale de l'action publique : contribution à l'ouvrage la vulnérabilité sociale [Internet]. 2005 [cited 2019 Jan 29]. Available from: http://home.iscte-iul.pt/~apad/justica01/textos/politicas%20sociais/Soulet%20La%20vulnerabilite%20paradoxale.pdf
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).

A família como instituição de caráter público e privado

Segundo Hannah Arendt, nas antigas cidades gregas (pólis), dois tipos de esferas da existência humana foram consolidados: a pública e a privada.

O termo “público” está relacionado à ideia de acessibilidade, isto é, o que é público está acessível a todos ou pode ser visto e ouvido por todos. No entanto, há sentimentos/sensações que não podem ser expostos no espaço público, como o amor e a dor física, que não interessam à esfera pública e, logo, tornam-se assunto privado(77 Arendt A. A condição humana. In: A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2007. 174 p.).

Já viver na esfera privada, segundo Arendt, implicava se privar de ser visto e ouvido, em uma comunidade política na qual os indivíduos compartilham uma ação política em um espaço comum, a pólis. Assim, o privado está limitado ao interesse pessoal, que se restringe à preservação da sobrevivência biológica, familiar e domicilar(77 Arendt A. A condição humana. In: A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2007. 174 p.).

Não só na Roma antiga, mas em toda a Antiguidade Ocidental, o chamado pater familias (pai de família) reinava na casa em que a família morava, exercendo o poder absoluto sobre a mulher, filhos e escravos. A família era guiada pelo princípio da autoridade, e o chefe do âmbito familiar imperava, com poderes incontestes e despóticos(77 Arendt A. A condição humana. In: A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2007. 174 p.).

A manutenção individual da vida era tarefa do homem, e a sobrevivência da espécie ficava a cargo da mulher, funções consideradas naturais. Assim, o trabalho do homem para suprir de alimentos e o trabalho da mulher na procriação estavam submetidos à mesma urgência da vida. Portanto, a comunidade natural do lar decorria da necessidade. O princípio organizacional de divisão do trabalho era próprio da esfera pública e jamais poderia ocorrer na privacidade do lar(77 Arendt A. A condição humana. In: A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2007. 174 p.).

O lar era considerado um lugar sagrado. Assim, o que fez com que a pólis não violasse as vidas privadas dos seus cidadãos foi a crença de que, se não fosse dono de sua casa, o homem não poderia participar dos negócios do mundo, pois não havia um lugar que lhe pertencesse(77 Arendt A. A condição humana. In: A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2007. 174 p.).

A vulnerabilidade da família à luz da condição humana

As necessidades individuais de sobrevivência e de continuidade da espécie humana eram supridas no âmbito privado da família e, apesar de não lhe transformar a natureza, o surgimento da sociedade modificou a percepção acerca do espectro privado.

A maneira pela qual a família foi sendo organizada e constituída no decorrer do tempo influenciou no modo com que essa instituição foi historicamente adquirindo significado, como um local de proteção e cuidado, sendo considerada o “centro de estruturação da sociedade”(77 Arendt A. A condição humana. In: A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2007. 174 p.-88 Carmo ME, Guizardi FL. The concept of vulnerability and its meanings for public policies in health and social welfare. Cad Saúde Pública. 2018;34(3):e00101417. doi: 10.1590/0102-311x00101417
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).

No entanto, quando as famílias escapam desse modelo, historicamente considerado padrão, e falham no desempenho de suas funções de proteção e cuidado de seus membros, carregando em seu interior fracassos como violências, alcoolismo e abandonos, são qualificadas socialmente como “famílias desestruturadas”, pois, na contemporaneidade, a família é responsabilizada pela proteção e pelo protagonismo do cuidado dos seus membros, abstendo o estado de sua responsabilidade(33 Mioto RCT, Dal Prá KR. [Social services and family responsibility: contradictions of Brazilian social policy]. In: Anais do XIII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social - ENPESS [Internet]. 2012 [cited 29 Jan 2019];147-178. Available from: http://nisfaps.paginas.ufsc.br/files/2015/05/texto-9_capacita%C3%A7%C3%A3o-trabalho-com-familias_Mioto-servi%C3%A7os-sociais-e-familia.pdf Portuguese.
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).

Na Antiguidade Ocidental, a família era considerada uma instituição pertencente à esfera pública. Porém, atualmente, questões que parecem não ser de interesse do Estado prevalecem na esfera privada do lar. Apesar de reconhecermos que ocorreram avanços na luta pela igualdade de gênero, por meios dos movimentos sociais, ainda presenciamos diversas práticas advindas do patriarcado, sob o qual o preconceito e a prática de violência estão enraizados.

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), entre os anos de 2007 e 2017, a taxa de feminicídio no Brasil aumentou 20,7%, passando de 3,9 para 4,7 mulheres assassinadas por grupo de 100 mil mulheres(99 Cerqueira DRC, Lima RS, Bueno S, Neme C, Ferreira H, Coelho D et al. Atlas da Violência 2019. IPEA. [Internet]. 2019 [cited 03 Jul 2020]. Available from: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf
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). Além disso, em 39,1% dos casos de violência praticada contra crianças e adolescentes, os pais são identificados como os principais agressores(1010 Ministério dos Direitos Humanos (BR). Secretaria Nacional de Proteção dos Direitos da Criança e Adolescente. Violência contra Crianças e Adolescentes: Análise de Cenários e Propostas de Políticas Públicas. [Internet]. Brasília: Ministério dos Direitos Humanos; 2018 [cited 03 Jul 2020] Available from: https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/crianca-e-adolescente/violencia-contra-criancas-e-adolescentes-analise-de-cenarios-e-propostas-de-politicas-publicas-2.pdf/@@download/file/violencia-contra-criancas-e-adolescentes-analise.pdf
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). Esse cenário demonstra: a existência de uma cultura familiar de opressão, submissão e violência na sociedade contemporânea; e a insuficiência das leis e políticas públicas para impedir que famílias sejam tragicamente acometidas por tamanhas vulnerabilidades.

No entanto, apesar da violência intrafamiliar se mostrar como um grave problema de saúde pública, gerando impactos negativos na vida e na saúde de milhares de pessoas em todo o mundo, há subnotificação de casos, que representa um desafio, pois a violência praticada dentro do ambiente familiar ainda é justificada por aspectos singulares e inaceitáveis, como o uso da violência para educar os filhos.

Ao pensarmos a família na esfera privada do lar, nos deparamos com as questões matrimoniais, que submetem milhares de mulheres à humilhação ou algum tipo de violência moral, sexual ou psicológica. Além disso, vivenciamos a ocorrência diária de centenas de óbitos de mulheres, vítimas de relações de posse e poder, a quem políticas e leis que deveriam proteger não se mostram, muitas vezes, efetivas diante da magnitude desse problema.

Ao refletirmos sobre as políticas sociais familistas, observamos que ainda há divisão de papéis de gênero, no qual o homem possui a função de prover o sustento do lar e a mulher é a responsável pelo ambiente doméstico(33 Mioto RCT, Dal Prá KR. [Social services and family responsibility: contradictions of Brazilian social policy]. In: Anais do XIII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social - ENPESS [Internet]. 2012 [cited 29 Jan 2019];147-178. Available from: http://nisfaps.paginas.ufsc.br/files/2015/05/texto-9_capacita%C3%A7%C3%A3o-trabalho-com-familias_Mioto-servi%C3%A7os-sociais-e-familia.pdf Portuguese.
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-44 Mioto RCT. A centralidade da família na política de assistência social: contribuições para o debate. Rev Pol Públ[Internet]. 2015 [cited 29 Jan 2019];8(1):133-42. Available from: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/view/3756/1820
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). Apesar disso, nas últimas décadas, a mulher tem ocupado novos espaços, tornando-se representante e atuante na política, na sociedade e no mercado de trabalho, bem como protagonizando a luta por realizações pessoais, que favoreceram o surgimento de novas formas de organização familiar, como as famílias chefiadas por mulheres e monoparentais.

Embora seja competência do Estado garantir direitos e proporcionar condições para que a família cuide dos filhos, a aplicação de recursos públicos em assistência social está fortemente vinculada ao desenvolvimento econômico, recaindo exclusivamente sobre os familiares a responsabilidade de enfrentamento das vulnerabilidades da família e suas adversidades, podendo gerar sentimentos de sobrecarga, incapacidade e impotência(33 Mioto RCT, Dal Prá KR. [Social services and family responsibility: contradictions of Brazilian social policy]. In: Anais do XIII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social - ENPESS [Internet]. 2012 [cited 29 Jan 2019];147-178. Available from: http://nisfaps.paginas.ufsc.br/files/2015/05/texto-9_capacita%C3%A7%C3%A3o-trabalho-com-familias_Mioto-servi%C3%A7os-sociais-e-familia.pdf Portuguese.
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-44 Mioto RCT. A centralidade da família na política de assistência social: contribuições para o debate. Rev Pol Públ[Internet]. 2015 [cited 29 Jan 2019];8(1):133-42. Available from: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/view/3756/1820
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).

Nesse contexto, a vida familiar depende de condições que sejam satisfatórias para sua sustentação e para manutenção de vínculos, uma vez que situações de vulnerabilidade podem vir à tona sempre que a família se deparar com dificuldades para socializar e amparar seus membros. Além disso, dificuldades enfrentadas diariamente, como desemprego, falta de proteção social, falta de educação, saúde e moradia, violência, exclusão social, abandono e falta de saneamento básico, geram rupturas e desvinculações familiares e causam sofrimento individual e social(33 Mioto RCT, Dal Prá KR. [Social services and family responsibility: contradictions of Brazilian social policy]. In: Anais do XIII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social - ENPESS [Internet]. 2012 [cited 29 Jan 2019];147-178. Available from: http://nisfaps.paginas.ufsc.br/files/2015/05/texto-9_capacita%C3%A7%C3%A3o-trabalho-com-familias_Mioto-servi%C3%A7os-sociais-e-familia.pdf Portuguese.
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-44 Mioto RCT. A centralidade da família na política de assistência social: contribuições para o debate. Rev Pol Públ[Internet]. 2015 [cited 29 Jan 2019];8(1):133-42. Available from: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/view/3756/1820
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,66 Oviedo RAM, Czeresnia D. The concept of vulnerability and its biosocial nature. Interface (Botucatu). 2015;19(53):237-250. doi: 10.1590/1807-57622014.0436
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).

Segundo Arendt, o que torna o convívio em sociedade difícil de suportar não é o número de pessoas que nela habitam, mas a dificuldade de mantê-las juntas, se relacionando, ou de separá-las. No entanto, encontrar um vínculo suficientemente forte entre os homens para substituir o mundo foi uma estratégia utilizada por Santo Agostinho na antiga filosofia cristã, a fim de edificar a caridade e o amor sobre todas as relações humanas(77 Arendt A. A condição humana. In: A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2007. 174 p.). E tem sido essa a estratégia utilizada por diversas famílias, até os dias hodiernos, para conseguir enfrentar muitas situações de vulnerabilidade, depositando sobre si toda responsabilidade e carregando o peso de suas frustações, quando não conseguem responder, de forma positiva, às exigências que lhe são colocadas.

Segundo Mioto, os cuidados a serem proporcionados às famílias devem partir do princípio de que elas não são espaços de cuidados, e sim espaços a serem cuidados(33 Mioto RCT, Dal Prá KR. [Social services and family responsibility: contradictions of Brazilian social policy]. In: Anais do XIII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social - ENPESS [Internet]. 2012 [cited 29 Jan 2019];147-178. Available from: http://nisfaps.paginas.ufsc.br/files/2015/05/texto-9_capacita%C3%A7%C3%A3o-trabalho-com-familias_Mioto-servi%C3%A7os-sociais-e-familia.pdf Portuguese.
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). Nesse sentido, torna-se necessário problematizar e reformular os programas e políticas públicas de atendimento às famílias, de forma que promovam sua autonomia como instituição e garantam seus direitos constitucionais, cabendo ao Estado privilegiar a proteção social, promoção da saúde comunitária e familiar, assim como assegurar o acesso a serviços essenciais.

Cabe ressaltar que, segundo Arendt, o processo biológico do corpo humano está associado à atividade laboral, cujo desenvolvimento ou eventual declínio está ligado às necessidades vitais relacionadas à prática laboral. Portanto, tal processo biológico não está relacionado à sobrevivência da família, mas do indivíduo(77 Arendt A. A condição humana. In: A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2007. 174 p.).

Assim, para a caracterização do processo saúde-doença, a concepção dos determinantes sociais de saúde relacionados à vulnerabilidade e ao labor se contrapõe ao paradigma biológico e proporciona uma visão mais ampliada das ações e políticas de saúde, que incidem no cotidiano de vida das famílias e contribuem para a promoção da saúde. Nesse contexto, verifica-se que o apoio ao desenvolvimento de capacidades humanas nas famílias e no território proporciona o benefício de fortalecê-los para o enfrentamento de situações de vulnerabilidade(77 Arendt A. A condição humana. In: A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2007. 174 p.-88 Carmo ME, Guizardi FL. The concept of vulnerability and its meanings for public policies in health and social welfare. Cad Saúde Pública. 2018;34(3):e00101417. doi: 10.1590/0102-311x00101417
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).

Posto isto, considera-se urgente o desenvolvimento de um modelo de cuidado em saúde pública que englobe ações de promoção, prevenção e intervenção no âmbito familiar, dentro dos territórios ou das comunidades, com o objetivo de promover maior participação social, igualdade de gênero e prevenção da violência. Ou seja, torna-se imprescindível ultrapassar os espaços assistenciais, objetivando a abrangência do cuidado às comunidades, para além das dimensões de saúde, englobando as questões sociais e as dificuldades vivenciadas pelas famílias.

Essa abordagem pode ser realizada pelos profissionais de saúde para estimular a criação de espaços de apoio às famílias em situação de vulnerabilidade, garantindo autonomia, estabelecendo vínculos de confiança e formando agentes de mudança capazes de contribuir para a melhoria da assistência e modificação do paradigma atual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vulnerabilidade da família apresenta-se como um marco histórico, uma condição sobre a qual a instituição familiar foi construída e organizada enquanto propriedade de caráter público e privado, tal qual definida por Arendt.

O caráter privativo da esfera da casa, do lar e da família que originou essa vulnerabilidade, apesar de se perpetuar até hoje, não pode continuar a eximir o dever do Estado de proteger e promover maior igualdade de gênero, além de garantir os direitos sociais das famílias.

Diante de contextos de vulnerabilidade causados pela ruptura das relações assistenciais entre os membros da família, ocorre a fragilização da instituição familiar, que perde sua capacidade de afirmação na sociedade. Portanto, a vulnerabilidade da família evidencia a importância de um cuidado mais holístico e integral às pessoas, fundamentado em políticas públicas de saúde e assistência social.

Assim, é preciso fazer avançar políticas públicas e modelos de intervenções que fortaleçam as práticas organizacionais no âmbito familiar e que não visem apenas ao desenvolvimento econômico e educacional, mas assegurem a proteção social das famílias, estimulem as potencialidades humanas e fortaleçam os vínculos familiares e comunitários, levando em consideração as diversas formas de constituição familiar.

REFERENCES

Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Andrea Bernardes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2019
  • Aceito
    01 Set 2020
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