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Desafios da pandemia na relação da saúde mental com o meio ambiente

Pensar sobre as relações da sociedade com o meio ambiente deveria estar implícito no nosso modo de viver e estar no mundo. Estamos diante de inúmeras limitações e impactos psicológicos, com desafios que nos impõe a contemplar e analisar determinados fenômenos presentes no cotidiano de qualquer ser vivente no contexto pandêmico.

A proposta neste texto é refletir sobre a fundamental articulação entre o homem, o meio e a saúde mental, a partir de três eixos: reflexões sobre o meio ambiente com toda envoltura sociocultural que independe da pandemia; considerações acerca do passivo de sofrimento psíquico analisando a vivência absoluta imersa nas tecnologias de comunicação/informação, abordando a ideologia felicista, abarcada neste processo; e, por fim, a dialética do ‘senhor-escravo’, para compreender os processos de trabalho e o sofrimento psíquico em uma conjuntura em que as relações econômicas e sociais se processam com imposição do trabalho remoto em muitos setores.

Primeiramente, é importante ressaltar que, no cenário da pandemia, é a fadiga e não a ociosidade traz que o sofrimento psíquico. Trata-se de um sintoma que escapa da perspectiva muscular, do campo físico, sendo uma sensação de cansaço que é subjetiva, oculta e que não sangra, razão pela qual é muito pouco valorizada pela sociedade contemporânea, sem letramento em termos de saúde mental. Transtornos mentais e sentimentos de sofrimento psíquico são insidiosos. Não há a possibilidade de o indivíduo dormir ‘normal’ e acordar ‘maluco’. Há indícios, sintomas e pronunciações, nem sempre reconhecidos socialmente com evidentes negligências e a não valorização das angústias humanas11 Loyola CMD. Mental health and psychiatric nursing: contributions to the resocialization of person in psychic suffering. Esc Anna Nery. 2017;21(3):e20170301. https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2017-0003-0001
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Sendo o meio ambiente tudo que nos rodeia, a vivência de telas e trabalho expõe uma exploração. De forma, muitas vezes, voluntária e apaixonada, nós nos exploramos e esse é um mal da sociedade neoliberal do rendimento. O esgotamento provém, muitas vezes, do imperativo interno de ‘ter que render cada vez mais’, situação ampliada pela pandemia. Há o constrangimento social, em termos da impossibilidade de acessar o outro e da falta quase que total de corporeidade, tão relevante para nós, seres relacionais que somos, especialmente ao considerar que as interações sociais são essenciais para a existência humana. Atualmente, a humanidade recorre às telas, às interações virtuais ora para acompanhar um movimento social irreversível ora para substituir de forma adoecida as relações, por vezes suspensas pelo contexto atual.

Posto está, portanto, um desafio, somado a uma certa ideologia felicista que foi construída por meio de uma promessa de sucesso individual. Há uma construção social perversa a qual considera que é uma opção não estar empregado, expondo, assim, uma realidade de trabalhadores altamente qualificados que se submetem a ocupações com condições laborais bastante adversas. Fica implícita a ideia que o trabalhador pode ser empresário de si mesmo e passa a assumir total responsabilidade pelo seu desempenho, exitoso ou não, excluindo a influência do meio nos indivíduos e grupos sociais. Essa edificação fez surgir a concepção de cognitariado, com alusão ao termo proletariado, referindo-se a um grupo social concebido por pessoas com alta formação acadêmica, mas com ocupações e ganhos salariais que não refletem seu nível de conhecimento. Tal conjuntura desperta a necessidade de contemplação e análise do meio ambiente, de forma a (re)pensar os processos de produção e a lógica imposta pela tecnologia, objetivando construir o cuidado em saúde mental a partir de uma outra concepção social.

O fato de estarmos sendo hiperestimulados com informações nos impele ainda a desenvolver a ubiquidade e telepatia, atributos quase que exclusivos das divindades em tempos de outrora, na capacidade de estar presente em diversos lugares ou de se comunicar a distância, sabendo de tudo o que acontece no mundo por meio de ‘cliques’. No entanto, tais funções cognitivas implicam habilidades psíquicas que não estão plenamente desenvolvidas do ponto de vista evolutivo. Neste olhar, é possível que seja necessária uma reprogramação neurológica psíquica e relacional, de maneira a aprimorar o hardware do organismo, que está em fase de mutação bicultural em seus ‘terminais’. A lacuna entre o desenvolvimento dos processos evolutivos e os da era da tecnologia, diante da necessidade de estruturar a realidade, certamente produz sentimentos inerentes ao sofrimento psíquico, condição preocupante para o campo da saúde mental22 Berardi F. Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. São Paulo: Ubu Editora; 2020. 238 p..

Na sociedade contemporânea, os sujeitos são forçados a se render, trazendo a lógica dialética do ‘senhor-escravo’, na qual só é senhor se este usufruir dos bens produzidos pelo escravo. Seria o senhor o escravo do escravo? O pensamento lacaniano considera a constituição do senhor ou do escravo a partir do olhar do outro. No entanto, neste panorama de pandemia, não há outro, ou se há, assume outra configuração demandada pelo modo de viver pandêmico, em que as interações adquirem particularidades diferentes. A sociedade disciplinar está ferindo o sujeito, conforme já evidenciado por Foucault33 Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1979, pois o indivíduo é senhor e escravo do seu trabalho, aspecto bastante característico desse momento histórico-cultural que traz a sensação fictícia de liberdade.

No meio que vivemos, quem fracassa, fracassa por sua culpa já interiorizada e a somatória dessas vivências vai se constituindo em camadas de sofrimento, perda da subjetividade, incapacidade de dar sentido às experiências e atrofia da capacidade reflexiva. A velocidade das informações, atropeladas, muitas vezes, pelas inúmeras fake news, aliada à necessidade de produzir, açoitam-nos permanentemente, deixando ainda mais evidente a lógica da produção, antes externa, que passa a ser interiorizada em cada um de nós. O trabalho a distância faz com que as pessoas consigam mais tempo para explorar a si mesmo. O home office, tão naturalizado na pandemia, carece de estrutura temporal de corporeidade e evidencia ainda mais a falta da presença do outro. Na qualidade do humano, do ponto de vista psíquico, o que já vínhamos perdendo progressivamente está sendo agora radicalizada em função da virtualidade imposta pela pandemia. O fazer, diante dessa realidade que estamos submersos, esgota-nos, não dá prazer e pode ainda destruir o tecido social e a comunidade, com grandes impactos para a saúde mental das pessoas.

A pandemia, ora vivenciada em todo o planeta, potencializou uma transformação já iniciada, em que o mundo se encontra em uma grande quarentena, na qual a sobrevivência substituiu o prazer, o prazer de viver e a depressão em um sintoma da sociedade em cansaço, estresse, ansiedade com muitos indícios de sofrimento psíquico em grande parte das pessoas.

Para finalizar, fica a reflexão do indígena mineiro Ailton Krenak, ambientalista e filósofo:

A vida não é para ser útil. A vida é fruição. A vida é uma dança. Só que é uma dança cósmica e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária, a uma biografia. A vida é mais do que tudo isso. […]. Nós temos de ter coragem de ser radicalmente vivos. E não negociar sobrevivência, o pensamento vazio dos brancos que não conseguem conviver com a ideia de viver à toa, acham que o trabalho é a razão da existência, não podem parar e experimentar a vida como um dom e o mundo como um lugar maravilhoso ... ... por que insistimos em transformar a vida em uma coisa útil.(44 Krenak A. A vida não é útil. Editora Companhia das Letras. 2020. 128 p.)”?

E, assim, convidamos a persistir na teia de reflexão.

REFERENCES

  • 1
    Loyola CMD. Mental health and psychiatric nursing: contributions to the resocialization of person in psychic suffering. Esc Anna Nery. 2017;21(3):e20170301. https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2017-0003-0001
    » https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2017-0003-0001
  • 2
    Berardi F. Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. São Paulo: Ubu Editora; 2020. 238 p.
  • 3
    Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1979
  • 4
    Krenak A. A vida não é útil. Editora Companhia das Letras. 2020. 128 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2021
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