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Mulheres que vivem em garimpos da fronteira franco-brasileira: desafios cotidianos

RESUMO

Objetivos:

descrever o cotidiano de mulheres brasileiras que exercem atividades laborais em garimpos.

Métodos:

estudo descritivo, qualitativo, com análise baseada na teoria do Interacionismo Simbólico. Foram realizadas observações não participantes, tessitura de diário de campo, formulário sociodemográfico, entrevistas não diretivas, gravadas e transcritas na íntegra com 19 mulheres que trabalham em áreas de garimpos na fronteira amazônica franco-brasileira.

Resultados:

duas categorias emergiram: Trajetórias de vidas: a lida das mulheres no garimpo; Mulher, mãe e garimpeira: as múltiplas facetas da desigualdade de gênero na fronteira amazônica.

Considerações Finais:

a avaliação das vivências cotidianas das mulheres no garimpo amazônico permitiu a detecção de suas necessidades de saúde, evidenciando a necessidade de direcionamento e efetivação de políticas públicas e sociais e práticas de saúde para a atenção integral à saúde dessas mulheres.

Descritores:
Mineração; Saúde na Fronteira; Saúde da Mulher; Atenção à; Saúde; Assistência Integral à; Saúde.

ABSTRACT

Objectives:

to describe the daily life of Brazilian women who work in mining.

Methods:

a descriptive, qualitative study, with analysis based on the theory of Symbolic Interactionism. Non-participant observations, field diary writing, sociodemographic form, non-directive interviews, recorded and transcribed in full, were carried out with 19 women who work in mining areas on the French-Brazilian Amazon border.

Results:

two categories emerged: Life trajectories: women’s work in mining; Woman, mother and prospector: the multiple facets of gender inequality on the Amazon border.

Final Considerations:

assessing the daily experiences of women in the Amazonian mines allowed identifying their health needs, evidencing the need to direct and implement public and social policies and health practices for comprehensive care of these women’s health.

Descriptors:
Mining; Border Health; Woman’s Health; Delivery of Health Care; Comprehensive Health Care.

RESUMEN

Objetivos:

describir el cotidiano de las mujeres brasileñas que trabajan en la minería.

Métodos:

estudio descriptivo, cualitativo, con análisis basado en la teoría del Interaccionismo Simbólico. Se realizaron observaciones no participantes, redacción de diario de campo, formulario sociodemográfico, entrevistas no directivas, grabadas y transcritas en su totalidad, con 19 mujeres que trabajan en áreas mineras en la frontera franco-brasileña amazónica.

Resultados:

surgieron dos categorías: Trayectorias de vida: el trabajo de las mujeres en la minería; Mujer, madre y prospectora: las múltiples facetas de la desigualdad de género en la frontera amazónica.

Consideraciones Finales:

la evaluación de las experiencias cotidianas de las mujeres en las minas amazónicas permitió detectar sus necesidades de salud, evidenciando la necesidad de orientar e implementar políticas públicas y sociales y prácticas de salud para el cuidado integral de la salud de estas mujeres.

Descriptores:
Minería; Salud Fronteriza; Salud de la Mujer; Atención a la Salud; Atención Integral de Salud.

INTRODUÇÃO

A fronteira entre Brasil e Guiana Francesa, território ultramarino da França, configura-se como uma das regiões brasileiras de mais difícil acesso, na qual as condições de saúde das mulheres são quase que completamente desconhecidas(11 Sarney J, Costa P. Amapá: a terra onde o Brasil começa. Senado Federal. 2004. 270p.). A descoberta do ouro nesta área, em 1855, modificou radicalmente a disposição populacional do entorno e das atividades que sustentam a região(11 Sarney J, Costa P. Amapá: a terra onde o Brasil começa. Senado Federal. 2004. 270p.). Ainda hoje, essa fronteira possui elevada concentração de minério de ouro, condição específica à atração de migrantes e que impulsiona a formação de garimpos na localidade(22 Douine M, Mosnier E, Le Hingrat Q, Charpentier C, Corlin F, Hureau L, et al. Illegal gold miners in French Guiana: a neglected population with poor health. BMC Public Health. 2017;18(Suppl 1):23. https://doi.org/10.1186/s12889-017-4557-4
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3 Silva Neto AS, Landim Neto FO. Conflitos socioambientais entre a comunidade da sede distrital de Vila Brasil, Oiapoque - Amapá e o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque: a fronteira franco brasileira em debate. Rev Eletrôn PRODEMA. 2017;11(Suppl-1). https://doi.org/10.22411/rede.v11i1.468
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-44 Franco VC, Peiter PC, Carvajal-Cortés JJ, Pereira RS, Gomes MSS, Mutis MCS. Complex malaria epidemiology in an international border area between Brazil and French Guiana: challenges for elimination. Trop Med Int Health. 2019;47:24. https://doi.org/10.1186/s41182-019-0150-0
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). Estima-se que há cerca de 8.000 garimpeiros e garimpeiras ilegais trabalhando em aproximadamente 600 locais de mineração de ouro na floresta amazônica francesa(55 Organisation mondiale de Protection de la Nature. Dossier de presse: l’orpaillage illégal en Guyane: fléau majeur pour la forêt, l’eau et la santé humaine [Internet]. 2008[cited 2019 Apr 24]. Available from: https://documentation.outremer.gouv.fr/Record.htm?idlist=1&record=19101265124919294479
https://documentation.outremer.gouv.fr/R...
). A localidade permite a continuidade da febre do ouro que dá origem a garimpos clandestinos, lugares onde os desvios são punidos com violência e onde meninas e mulheres são as mais vulneráveis(66 Mendes LMC. Prevenção do câncer de colo de útero em garimpeiras in: Mendes LMC. Promoção da saúde no contexto fronteiriço. Macapá: Unifap; 2018. 100p.-77 Freitas LJG. Mulheres no garimpo: vulnerabilidade do trabalho feminino na Amazônia. Appris; 2016. 225p.).

Nesse contexto, destaca-se a comunidade de Ilha Bela, um distrito entreposto entre Oiapoque e o garimpo do Sikini, em território francês, que atualmente funciona como principal ponto de apoio logístico à mineração. É o local onde brasileiros aportam para aguardar o momento oportuno de adentrar nos garimpos clandestinos da Amazônia Francesa(33 Silva Neto AS, Landim Neto FO. Conflitos socioambientais entre a comunidade da sede distrital de Vila Brasil, Oiapoque - Amapá e o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque: a fronteira franco brasileira em debate. Rev Eletrôn PRODEMA. 2017;11(Suppl-1). https://doi.org/10.22411/rede.v11i1.468
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). Ilha Bela é uma comunidade ribeirinha, cerceada pelas águas do médio rio Oiapoque, a cerca de oito horas de catraia (embarcação motorizada) da cidade de Oiapoque e que, mediante funcionamento, impulsionada por atividades de garimpagem, possui população flutuante(33 Silva Neto AS, Landim Neto FO. Conflitos socioambientais entre a comunidade da sede distrital de Vila Brasil, Oiapoque - Amapá e o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque: a fronteira franco brasileira em debate. Rev Eletrôn PRODEMA. 2017;11(Suppl-1). https://doi.org/10.22411/rede.v11i1.468
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). A região é caracterizada, ainda, por alta mobilidade da população, apesar do difícil acesso por questões logísticas, administrativas e de segurança(22 Douine M, Mosnier E, Le Hingrat Q, Charpentier C, Corlin F, Hureau L, et al. Illegal gold miners in French Guiana: a neglected population with poor health. BMC Public Health. 2017;18(Suppl 1):23. https://doi.org/10.1186/s12889-017-4557-4
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3 Silva Neto AS, Landim Neto FO. Conflitos socioambientais entre a comunidade da sede distrital de Vila Brasil, Oiapoque - Amapá e o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque: a fronteira franco brasileira em debate. Rev Eletrôn PRODEMA. 2017;11(Suppl-1). https://doi.org/10.22411/rede.v11i1.468
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-44 Franco VC, Peiter PC, Carvajal-Cortés JJ, Pereira RS, Gomes MSS, Mutis MCS. Complex malaria epidemiology in an international border area between Brazil and French Guiana: challenges for elimination. Trop Med Int Health. 2019;47:24. https://doi.org/10.1186/s41182-019-0150-0
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).

As mulheres também estão inseridas entre os trabalhadores que migram para as áreas de garimpos, e, por muito tempo, as questões inerentes à mulher no garimpo vêm sendo silenciadas e retratadas de forma apendicular às atividades de extração aurífera(77 Freitas LJG. Mulheres no garimpo: vulnerabilidade do trabalho feminino na Amazônia. Appris; 2016. 225p.). Para além de ser mulher em ambiente de garimpo, exacerbam-se as desigualdades de gênero, o estigma e a clandestinidade, associadas ao isolamento geográfico da região em questão, o que aumenta a vulnerabilidade das mulheres que exercem qualquer tipo de atividade nesses garimpos.

Evidências apontam a região de garimpagem como uma das mais perigosas para homens, mulheres e para a comunidade, devido a uma gama de perigos químicos, físicos, biológicos, biomecânicos e psicossociais, frequentemente resultando em rápido desenvolvimento de doenças e mortes prematuras(88 Stewart, A. G. Mining is bad for health: a voyage of discovery. Environ Geochem Health. 2020;42(4):1153-65. https://doi.org/10.1007/s10653-019-00367-7
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-99 Cossa H, Scheidegger R, Leuenberger A, Ammann P, Munguambe K, Utzinger J, Macete E, Winkler MS. Health studies in the context of artisanal and small-scale mining: a scoping review int. J. Environ. Res Public Health. 2021;18(4):1555. https://doi.org/10.3390/ijerph18041555
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). A intensa e desordenada mobilidade populacional transfronteiriça, associada à dificuldade de acesso à região pelas equipes de saúde e à persistente incursão de garimpeiros e garimpeiras na floresta, favorece a rápida disseminação de doenças(11 Sarney J, Costa P. Amapá: a terra onde o Brasil começa. Senado Federal. 2004. 270p.-22 Douine M, Mosnier E, Le Hingrat Q, Charpentier C, Corlin F, Hureau L, et al. Illegal gold miners in French Guiana: a neglected population with poor health. BMC Public Health. 2017;18(Suppl 1):23. https://doi.org/10.1186/s12889-017-4557-4
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,55 Organisation mondiale de Protection de la Nature. Dossier de presse: l’orpaillage illégal en Guyane: fléau majeur pour la forêt, l’eau et la santé humaine [Internet]. 2008[cited 2019 Apr 24]. Available from: https://documentation.outremer.gouv.fr/Record.htm?idlist=1&record=19101265124919294479
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6 Mendes LMC. Prevenção do câncer de colo de útero em garimpeiras in: Mendes LMC. Promoção da saúde no contexto fronteiriço. Macapá: Unifap; 2018. 100p.
-77 Freitas LJG. Mulheres no garimpo: vulnerabilidade do trabalho feminino na Amazônia. Appris; 2016. 225p.). Os problemas de saúde em potencial incluem influenza A(22 Douine M, Mosnier E, Le Hingrat Q, Charpentier C, Corlin F, Hureau L, et al. Illegal gold miners in French Guiana: a neglected population with poor health. BMC Public Health. 2017;18(Suppl 1):23. https://doi.org/10.1186/s12889-017-4557-4
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,1010 Mosnier E, Carvalho L, Mahamat A, Chappert J, Ledrans M, Ville M, et al. Épidémies multiples in camps d’orpaillement en forêt amazonienne (Guyane française) en 2013: quelles leçons pour l’accès aux soins et à prévention? Bol Epidemiol Hebdomadaire [Internet]. 2015[cited 2019 Apr 2019];11 (12):181-9. Available from: http://www.hal.inserm.fr/inserm-01422597/document
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), malária(22 Douine M, Mosnier E, Le Hingrat Q, Charpentier C, Corlin F, Hureau L, et al. Illegal gold miners in French Guiana: a neglected population with poor health. BMC Public Health. 2017;18(Suppl 1):23. https://doi.org/10.1186/s12889-017-4557-4
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,44 Franco VC, Peiter PC, Carvajal-Cortés JJ, Pereira RS, Gomes MSS, Mutis MCS. Complex malaria epidemiology in an international border area between Brazil and French Guiana: challenges for elimination. Trop Med Int Health. 2019;47:24. https://doi.org/10.1186/s41182-019-0150-0
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,1010 Mosnier E, Carvalho L, Mahamat A, Chappert J, Ledrans M, Ville M, et al. Épidémies multiples in camps d’orpaillement en forêt amazonienne (Guyane française) en 2013: quelles leçons pour l’accès aux soins et à prévention? Bol Epidemiol Hebdomadaire [Internet]. 2015[cited 2019 Apr 2019];11 (12):181-9. Available from: http://www.hal.inserm.fr/inserm-01422597/document
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), beribéri(22 Douine M, Mosnier E, Le Hingrat Q, Charpentier C, Corlin F, Hureau L, et al. Illegal gold miners in French Guiana: a neglected population with poor health. BMC Public Health. 2017;18(Suppl 1):23. https://doi.org/10.1186/s12889-017-4557-4
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,1010 Mosnier E, Carvalho L, Mahamat A, Chappert J, Ledrans M, Ville M, et al. Épidémies multiples in camps d’orpaillement en forêt amazonienne (Guyane française) en 2013: quelles leçons pour l’accès aux soins et à prévention? Bol Epidemiol Hebdomadaire [Internet]. 2015[cited 2019 Apr 2019];11 (12):181-9. Available from: http://www.hal.inserm.fr/inserm-01422597/document
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-1111 Niemetzky F, Mosnier E, Nacher M, J Stroot, Brousse P, Pommier de Santi V. Epidémie de Béri-Béri chez des orpailleurs en Guyane française. Bull Veille Sanit - Cire Antill-Guyane[Internet]. 2015[cited 2019 Apr 26];8(9):6. Available from: http://www.hal.inserm.fr/inserm-01423148/document
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), leishmaniose(22 Douine M, Mosnier E, Le Hingrat Q, Charpentier C, Corlin F, Hureau L, et al. Illegal gold miners in French Guiana: a neglected population with poor health. BMC Public Health. 2017;18(Suppl 1):23. https://doi.org/10.1186/s12889-017-4557-4
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), sífilis(22 Douine M, Mosnier E, Le Hingrat Q, Charpentier C, Corlin F, Hureau L, et al. Illegal gold miners in French Guiana: a neglected population with poor health. BMC Public Health. 2017;18(Suppl 1):23. https://doi.org/10.1186/s12889-017-4557-4
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,1010 Mosnier E, Carvalho L, Mahamat A, Chappert J, Ledrans M, Ville M, et al. Épidémies multiples in camps d’orpaillement en forêt amazonienne (Guyane française) en 2013: quelles leçons pour l’accès aux soins et à prévention? Bol Epidemiol Hebdomadaire [Internet]. 2015[cited 2019 Apr 2019];11 (12):181-9. Available from: http://www.hal.inserm.fr/inserm-01422597/document
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) e outras infecções. Além disso, os problemas podem ser ampliados pela combinação de locais remotos e ausência de serviços de saúde, o que normalmente impede tratamentos oportunos(1212 Schwartz FW, Lee S, Darrah TH. A review of health issues related to child labor and violence within artisanal and small-scale mining. Geohealth. 2021;1;5(2):e2020GH000326. https://doi.org/10.1029/2020GH000326
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). Ao adentrar a saúde das mulheres, o conhecimento atual é limitado(1313 Wilches-Gutierrez J, Documet P. What is known about sexual and reproductive health in Latin American and Caribbean mining contexts? a systematic scoping review. Public Health Rev. 2018;39(1). https://doi.org/10.1186/s40985-017-0078-z
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). As mulheres na área de garimpo constituem um grupo vulnerável, considerando a intersecção entre desigualdades de gênero, estigma, clandestinidade, associadas ao isolamento geográfico da região em questão. Esses fatores aumentam o risco das mulheres a agravos à saúde, como as infecções sexualmente transmissíveis (IST), gravidez indesejada, entre outras, que expõem fragilidades relacionadas ao âmbito de gênero e da saúde sexual e reprodutiva(55 Organisation mondiale de Protection de la Nature. Dossier de presse: l’orpaillage illégal en Guyane: fléau majeur pour la forêt, l’eau et la santé humaine [Internet]. 2008[cited 2019 Apr 24]. Available from: https://documentation.outremer.gouv.fr/Record.htm?idlist=1&record=19101265124919294479
https://documentation.outremer.gouv.fr/R...
,88 Stewart, A. G. Mining is bad for health: a voyage of discovery. Environ Geochem Health. 2020;42(4):1153-65. https://doi.org/10.1007/s10653-019-00367-7
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9 Cossa H, Scheidegger R, Leuenberger A, Ammann P, Munguambe K, Utzinger J, Macete E, Winkler MS. Health studies in the context of artisanal and small-scale mining: a scoping review int. J. Environ. Res Public Health. 2021;18(4):1555. https://doi.org/10.3390/ijerph18041555
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10 Mosnier E, Carvalho L, Mahamat A, Chappert J, Ledrans M, Ville M, et al. Épidémies multiples in camps d’orpaillement en forêt amazonienne (Guyane française) en 2013: quelles leçons pour l’accès aux soins et à prévention? Bol Epidemiol Hebdomadaire [Internet]. 2015[cited 2019 Apr 2019];11 (12):181-9. Available from: http://www.hal.inserm.fr/inserm-01422597/document
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11 Niemetzky F, Mosnier E, Nacher M, J Stroot, Brousse P, Pommier de Santi V. Epidémie de Béri-Béri chez des orpailleurs en Guyane française. Bull Veille Sanit - Cire Antill-Guyane[Internet]. 2015[cited 2019 Apr 26];8(9):6. Available from: http://www.hal.inserm.fr/inserm-01423148/document
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12 Schwartz FW, Lee S, Darrah TH. A review of health issues related to child labor and violence within artisanal and small-scale mining. Geohealth. 2021;1;5(2):e2020GH000326. https://doi.org/10.1029/2020GH000326
https://doi.org/10.1029/2020GH000326...

13 Wilches-Gutierrez J, Documet P. What is known about sexual and reproductive health in Latin American and Caribbean mining contexts? a systematic scoping review. Public Health Rev. 2018;39(1). https://doi.org/10.1186/s40985-017-0078-z
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14 Lightfoot E, Maree M, Ananias J. Exploring the relationship between HIV and alcohol use in a remote Namibian mining community. Afr J AIDS Res. 2009;8:321-7. https://doi.org/10.2989/AJAR.2009.8.3.8.929
https://doi.org/10.2989/AJAR.2009.8.3.8....
-1515 Luis ST. Prevalence of HIV at the Kokoyo informal gold mining site: what lies behind the glitter of gold with regard to HIV epidemics in Mali? a community-based approach (the ANRS-12339 Sanu Gundo cross-sectional survey). BMJ Open. 2017;7(8):e016558. https://doi.org/10.1136/bmjopen-2017-016558
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).

Os estudos, em sua maioria, abordam a infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Adquirida (Aids), principalmente na África, e discutem aspectos epidemiológicos, como estado civil, uso de álcool e drogas, história de IST anteriores, parceria ou sexo entre garimpeiros, múltiplos parceiros sexuais, pagamento por sexo, sexo transacional e não uso consistente dos preservativos(99 Cossa H, Scheidegger R, Leuenberger A, Ammann P, Munguambe K, Utzinger J, Macete E, Winkler MS. Health studies in the context of artisanal and small-scale mining: a scoping review int. J. Environ. Res Public Health. 2021;18(4):1555. https://doi.org/10.3390/ijerph18041555
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,1414 Lightfoot E, Maree M, Ananias J. Exploring the relationship between HIV and alcohol use in a remote Namibian mining community. Afr J AIDS Res. 2009;8:321-7. https://doi.org/10.2989/AJAR.2009.8.3.8.929
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-1515 Luis ST. Prevalence of HIV at the Kokoyo informal gold mining site: what lies behind the glitter of gold with regard to HIV epidemics in Mali? a community-based approach (the ANRS-12339 Sanu Gundo cross-sectional survey). BMJ Open. 2017;7(8):e016558. https://doi.org/10.1136/bmjopen-2017-016558
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). Apenas alguns estudos de saúde investigaram especificamente grupos populacionais vulneráveis, como mulheres em idade reprodutiva e crianças(1616 Gonzalez DJX, Arain A, Fernandez LE. Mercury exposure, risk factors, and perceptions among women of childbearing age in an artisanal gold mining region of the Peruvian Amazon Environ Res. 2019;179(ptA):108786. https://doi.org/10.1016/j.envres.2019.108786
https://doi.org/10.1016/j.envres.2019.10...
-1717 Nyanza EC, Joseph M, Premji SS, Thomas DSK, Mannion C. Geophagy practices and the content of chemical elements in the soil eaten by pregnant women in artisanal and small scale gold mining communities in Tanzania. BMC Pregnancy Childbirth. 2014;14:144. https://doi.org/10.1186/1471-2393-14-144
https://doi.org/10.1186/1471-2393-14-144...
). Como é perceptível, ainda existem muitas lacunas quanto aos problemas que acometem brasileiras na área de garimpagem, especificamente na fronteira em questão(22 Douine M, Mosnier E, Le Hingrat Q, Charpentier C, Corlin F, Hureau L, et al. Illegal gold miners in French Guiana: a neglected population with poor health. BMC Public Health. 2017;18(Suppl 1):23. https://doi.org/10.1186/s12889-017-4557-4
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,1818 Sanna A, Hiwat H, Briolant S, Nacher M, Belleoud D, Le Tourneau FM, et al. Investigation of a possible malaria epidemic in an illegal gold mine in French Guiana: an original approach in the remote Amazonian forest. Malar J[internet].2019[cited 2021 sep 20]; 8):91. https://doi.org/10.1186/s12936-019-2721-2
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19 Hanf M, Bousser V, Parriault MC, Van-Melle A, Nouvellet ML, Adriouch L, Sebillotte CG, Couppie P, Nacher M. Knowled geoffree voluntary HIV testing centres andwillingnessto do a testamongmigrants in Cayenne, French Guiana. AIDS Care[internet]. 2011[cited 2021 sep 20]; 23(4):476-485. https://doi.org/10.1080/09540121.2010.525604
https://doi.org/10.1080/09540121.2010.52...
-2020 Miranda AE, Merçon-de-Vargas PR, Corbett CEP, Corbett JF, Dietze R. Perspectives on sexual and reproductive health among women in an ancient mining area in Brazil. Rev Panam Salud Publica. [Internet].2009[cited 2019 apr 29]; 25(2):157-61. Available from: https://scielosp.org/pdf/rpsp/2009.v25n2/157-161/en
https://scielosp.org/pdf/rpsp/2009.v25n2...
).

Desta forma, considerando os compromissos da Agenda 2030 e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, que têm, entre as metas prioritárias e políticas estabelecidas, a promoção da saúde da mulher e a igualdade de gênero(1616 Gonzalez DJX, Arain A, Fernandez LE. Mercury exposure, risk factors, and perceptions among women of childbearing age in an artisanal gold mining region of the Peruvian Amazon Environ Res. 2019;179(ptA):108786. https://doi.org/10.1016/j.envres.2019.108786
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), e compreendendo que os atores sociais ajuízam aspectos do momento da interação social dos grupos em que estão dispostos, como o ambiente de garimpagem, surgiu o interesse de realizar este estudo.

OBJETIVOS

Descrever o cotidiano de mulheres brasileiras que exercem atividades laborais em garimpos.

MÉTODOS

Aspectos éticos

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa. As participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) previamente ao início da coleta dos dados. Os depoimentos foram identificados por meio da letra E, em ordem numérica de entrevistas, para resguardar o anonimato.

Tipo de estudo e referencial teórico-metodológico

Trata-se de um estudo descritivo, com abordagem qualitativa, cujo processo de análise foi baseado no arcabouço referencial teórico do Interacionismo Simbólico (IS)(1717 Nyanza EC, Joseph M, Premji SS, Thomas DSK, Mannion C. Geophagy practices and the content of chemical elements in the soil eaten by pregnant women in artisanal and small scale gold mining communities in Tanzania. BMC Pregnancy Childbirth. 2014;14:144. https://doi.org/10.1186/1471-2393-14-144
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). A perspectiva teórica do IS pensa a relação social a partir do momento da interação, ou seja, as regras sociais da interação são dispostas no momento em que ela se dá e interferem no comportamento individual, influenciando na adesão às práticas de cuidados em saúde(2121 Goffman E. A representação do eu na vida cotidiana. Petropolis: Vozes, 1992. 306p.).

Procedimentos metodológicos

Foram utilizadas as diretrizes do Critério Consolidado de Relato de Pesquisa Qualitativa (COREQ). As participantes foram selecionadas mediante a técnica de snowball, por amostragem exponencial(2222 Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas [Internet]. 2014 [cited 2020 May 25];22(44):203-20. Available from: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/tematicas/article/view/10977
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), utilizada para alcançar grupos de difícil acesso. Foram elencados como critérios de inclusão ser brasileira, do sexo feminino e vivenciar a rotina de trabalho em garimpos clandestinos na referida fronteira. Todas as mulheres convidadas aceitaram participar da pesquisa(2323 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13th ed. São Paulo: Hucitec; 2014.). A imersão no campo durou 15 dias, e a coleta foi encerrada quando os dados começaram a se repetir, acusando saturação, e novos sentidos não eram mais adicionados. Ao total, foram incluídas e concederam entrevistas à pesquisa 20 mulheres. Uma participante foi excluída devido aos ruídos de catraias apresentados na gravação do áudio, o que impossibilitou a transcrição, uma vez que, no dia posterior à transcrição, a participante havia partido para o garimpo.

Anteriormente à coleta de dados, foi realizado um estudo-piloto para verificar a clareza, a compreensão e o ordenamento das questões norteadoras, bem como o melhor horário para abordagem. Não houve necessidade de adequações. Os dados coletados no estudo piloto foram excluídos da pesquisa. As participantes do estudo piloto também assinaram o TCLE.

Cenário do estudo

O recrutamento ocorreu em Ilha Bela, local de descanso dos garimpeiros da região(33 Silva Neto AS, Landim Neto FO. Conflitos socioambientais entre a comunidade da sede distrital de Vila Brasil, Oiapoque - Amapá e o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque: a fronteira franco brasileira em debate. Rev Eletrôn PRODEMA. 2017;11(Suppl-1). https://doi.org/10.22411/rede.v11i1.468
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). O recrutamento nesta área se justifica, porque as áreas de garimpo são acessíveis apenas através de voos permitidos pelas autoridades francesas ou de forma ilegal, através de longas viagens a pé e/ou canoa. Diante destas limitações logísticas e legais e da segurança da pesquisadora, optou-se pelo recrutamento na referida localidade. A coleta ocorreu em abril de 2018.

Coleta, organização e análise dos dados

O percurso para a coleta, organização e análise dos dados qualitativos, foi realizado em fases, sendo uma fase de observação, uma fase de entrevista e quatro fases de análise de dados. Foram utilizados quatro capacitadores para obtenção de dados: a) aplicação de um formulário sociodemográfico, elaborado pelas autoras; b) observação não participante, que toma como foco a comunicação simbólica dos participantes na sua interação social; c) registro em diário de campo; d) realização de entrevista não diretiva, em ambiente reservado, que ocorreu nos barrancos - como as mulheres referem-se às suas residências - feitos de madeira e telhado de amianto, com um único banheiro disposto para todos os transeuntes da ilha. Essas técnicas de coletas não foram fixas e se intercalaram entre si, ocorrendo de forma concomitante.

Na primeira fase da observação, uma das pesquisadoras entrou em contato com o líder comunitário de Ilha Bela, a fim de ter a inserção com a comunidade facilitada. Os dados foram escritos diariamente no diário de campo, simultaneamente à primeira fase de análise do que foi dito e observado, que envolve posturas, gestos, silêncios, risadas, choros, valores políticos, morais e religiosos. A escrita no diário de campo e a reflexão sobre a experiência vivenciada também ocorreram concomitantemente à transcrição na íntegra das entrevistas, o que possibilitou que o material bruto pudesse ser revisto e que fosse possível sanar dúvidas que surgissem durante as transcrições.

As entrevistas foram realizadas pela autora principal deste artigo, enfermeira e docente de uma instituição de ensino superior brasileira, com experiência na condução e análise de pesquisa qualitativa. As mesmas foram gravadas na forma de áudio, com duração média de 45 minutos, a partir das seguintes questões disparadoras: fale-me um pouco sobre como chegou ao trabalho no garimpo e como é viver no garimpo, particularmente as partes que se referem a ser mulher neste lugar e quais locais busca quando precisa de assistência à saúde. Os dados sociodemográficos e da história sexual e reprodutiva foram coletados por meio de um formulário estruturado.

Com o material transcrito, iniciou-se a leitura reflexiva, que possibilitou a síntese dos dados, conforme a identificação de elementos comuns ou relacionados entre si em torno de um conceito capaz de representá-los. As categorizações foram realizadas manualmente por duas pesquisadoras. Um terceiro pesquisador foi consultado quando foram encontradas divergências na identificação das temáticas mais destacadas. Essa fase exigiu reflexão, análise crítica e criativa dos dados. Refletiu-se a temática com temas dispostos na literatura, sem a pretensão de esgotar a temática.

RESULTADOS

Entre as participantes, predominou a faixa etária entre 30 e 39 anos (7/36,84%). Referente à procedência, foi observado que as mulheres, em sua maioria, eram provenientes das regiões Norte (11/57,89%) e Nordeste (6/31,57%). As mulheres que se autodeclararam pretas e pardas (13/68,42%) formaram o grupo predominante, justaposto a um perfil de baixa escolaridade, em que mulheres que nunca foram alfabetizadas (6/31,57%) ou não possuíam o Ensino Fundamental I concluído (6/31,57%) formaram o grupo majoritário. No entanto, foi encontrada uma mulher que possuía ensino superior completo (1/5,26%). Algumas participantes referiram ser bilíngues e afirmaram compreender o francês, crèole falado em algumas localidades da Guiana Francesa, além do português (4/21,05%). Todas as mulheres referiram ser cisgênero, predominando mulheres heterossexuais (18/94,73%), com parceria fixa nos últimos três meses (12/63,15%), sobretudo com trabalhadores que exerciam atividade do garimpo na região (14/73,68%). O estado marital predominante foi o de união estável, em que as mulheres referiram ser “amigadas” (14/73,68%). O estabelecimento de parcerias íntimas com estrangeiros foi considerado pelas mesmas como um mecanismo de ascensão social na comunidade garimpeira.

A coitarca foi com idade inferior a 15 anos de idade (19/100%). Uma delas relatou que sua primeira relação sexual foi um estupro perpetrado pelo patrão, enquanto exercia a profissão de doméstica e babá antes de migrar para o trabalho no garimpo. Quanto à paridade, predominaram mulheres com filhos (17/89,47%). Destas, metade relatou ter vivenciado pelo menos um aborto espontâneo e/ou provocado (10/52,63%). Quanto às mulheres que realizaram o aborto, metade referiu tê-lo feito na Guiana Francesa (5/26,31%). Sobre a testagem rápida para IST, constatou-se que uma parcela expressiva das mulheres nunca realizou o exame (12/63,15%).

Quanto às profissões exercidas antes do processo migratório às regiões de garimpo, destacaram-se a atividade doméstica remunerada, pescadora, zeladora, dona de casa, professora, agricultora, vendedora, garçonete, carvoeira e profissional do sexo. As profissões exercidas no ambiente de garimpagem foram cozinheira, marreteira, doméstica, dona de casa, fretista (realiza o transporte de garimpeiros de Ilha Bela para os garimpos situados na Guiana Francesa através das catraias), garimpeira, cabeleireira. Durante a observação em campo, verificou-se que as atividades desempenhadas por estas mulheres nos garimpos podem designar tarefas que se assemelham àquelas realizadas em outros lugares, como também podem denotar outras configurações, a exemplo das atividades de garimpagem propriamente ditas. As atividades também são flexíveis entre estes ofícios. Uma cozinheira pode também desempenhar o papel de marreteira, ou outras funções, desde que no barranco já não haja alguém responsável por esta função.

As questões norteadoras conduziram as participantes a refletirem sobre os detalhes biográficos relacionados ao cotidiano de suas vidas e como é ser mulher em áreas de garimpagem a partir da interação com os pares, que dispararam duas temáticas. A primeira delas se refere à vida antes do garimpo, o que as levou ao garimpo e o que fazem para conseguir recursos para o autossustento no ambiente de garimpagem, denominada Trajetórias de vidas: a lida das mulheres no garimpo. A segunda se referiu aos recursos acionados por essas mulheres em cada uma das esferas que se interpelam e suas vidas como trabalhadoras do garimpo e mães, a qual categorizamos como Mulher, mãe e garimpeira: as múltiplas facetas da desigualdade de gênero na fronteira amazônica.

Trajetórias de vidas: a lida das mulheres no garimpo

A busca da mulher por trabalho no garimpo foi impulsionada pela perspectiva de mudança de vida, motivada, principalmente, por um relacionamento amoroso, tanto pelo convite do parceiro que já vivia no garimpo quanto como fuga de um relacionamento abusivo prévio. Também foram mencionados outros motivadores, como convite de amigos ou familiares e/ou um passado marcado por violência doméstica. A partir da tomada de decisão pelo trabalho no garimpo, as mulheres tiveram a opção de serem recrutadas mediante o custeio próprio do deslocamento ou mediante empréstimo ou adiantamento de pagamento, o que acarreta endividamento prévio ao trabalho no garimpo.

A vida da mulher no garimpo promove intensas transformações em seu cotidiano, considerando a ruptura com seu local de origem e a necessidade de acessar outros recursos internos e externos para atingir a categoria de mulher do garimpo. Essas mulheres se arriscam a ir ao trabalho em áreas clandestinas, ao vivenciar um contexto de extrema penúria. Paradoxalmente a ela, o garimpo se apresenta, inicialmente, como alternativa atrativa, possibilitando a esperança de enriquecimento repentino. No entanto, o dia a dia no garimpo lhe confere uma outra realidade, em que é necessário lançar mão de outras estratégias de sobrevivência. Esta questão contextualiza as precárias condições sociais, emocionais e estruturais das mulheres em atividade em garimpos, como cenário de tensões, disputas e relações de poder.

Eu já trabalhei nesses lugares tudo, já fui pro Tapajós, pra Cayenne, pro Suriname, pra França [Europa]. Foi um amigo do amigo do meu cunhado que pagou tudo [risos]. Ele tem umas máquinas no Suriname. É cheio de grana. Compra uns carro no Pará pra vender lá, num sabe? Mas vou te dizer, viu, fia? Mon Die, pro Suriname, eu num volto mais. Meu ex-marido que pagou minhas contas, se não fosse ele, até hoje eu tava lá, tinha que fazer programa pra pagar comida, roupa, casa! Chegaram aqui, mataram ele. (E3)

A violência física e simbólica foi um ponto transversal na vida das participantes do estudo, principalmente a violência perpetrada por parceria íntima, seja antes ou após a migração para o trabalho no garimpo. A violência perpetrada pelo Estado, mediante a condição de clandestinidade, também foi relatada.

Eu saí de Cayenne, aí, depois, eu fui trabalhar nas empresas que tem lá. Passei 3 dias fora de casa, quando cheguei, tinham arrombado minha casa e roubado quase tudo. Meteram fogo, aí eu desgostei. Tô sem nada, tô sem teto, sem chão [choro]. Passei 10 anos construindo uma casa e aí ele veio [ex-companheiro] e botou fogo. (E18)

A violência aqui também é bem complicada, como a gente tá distante, presencia muita coisa [...] a Rosa [nome fictício] foi agredida pelo esposo e ela contou pra nós, ela já tinha sido espancada outra vez. Ela quase morreu, aí os homem daqui pegaram ele, deram uma surra e expulsaram ele daqui. Ele teve que ir pro hospital. Ele era muito ruim pra ela, falava coisa pra deixar ela pra baixo. (E8)

Esses gendarmes [polícia francesa], se pegar a gente com ouro, tomam tudo. Assim, eles nunca fizeram nada comigo. Meu marido, eles já deixaram nu, aí revistaram tudo, aí devolveram só a roupa e bateram, bateram muito. (E6)

No garimpo, a mulher é desafiada a se adaptar para garantir sua sobrevivência e segurança e compreender as contratualidades estabelecidas no local, considerando a sua condição de vulnerabilidade, suas relações com seu corpo, sexualidade, bem como a subsistência dos filhos. Desta forma, outra presença significativa das performances acionadas por elas foi a categoria que interpelava a sexualidade, o trabalho e maternidade.

Mulher, mãe e garimpeira: as múltiplas facetas da desigualdade de gênero na fronteira franco-brasileira

Neste sentido, em relação à composição familiar, algumas mulheres declararam não terem filhos. No entanto, ao serem entrevistadas em dias posteriores, as mesmas responderam que haviam tido filhos, mas que estes moravam em outras localidades. Desta forma, observa-se que a maternidade surgiu como temática de difícil elaboração pelas mulheres para falarem de seus filhos. A vivência do luto pela morte precoce do filho frente à violência que circunscreve os garimpos é referenciada nas falas das mulheres. Os conflitos e mortes ocorridos nestes sítios costumam ser silenciados através de uma espécie de pacto de convivência.

Mataram no garimpo, porque meu filho trabalhou com esse sujeito e ele disse que meu filho não pagou [o ouro], tá entendendo? Matou. O irmão do cara que matou trabalhou com meu filho. Quando chamou meu filho pra resumir a conta [contar o grama de ouro], sei que botou meu filho de ladrão. Disse que tava faltando 950 gramas de ouro. Fizeram a casinha [tocaia] pra meu filho. Quando ele foi guardar [o ouro], botou ele de ladrão e matou. Aí, por isso ficou, porque não posso fazer nada, né? Só que mataram eles já em outro garimpo aí. (E1)

O relato das mulheres que possuem filhos revelou que há uma prática comum entre as mães que vivenciam a rotina de trabalhar nos garimpos da região de deixar os filhos na sede urbana. Sem redes familiares próximas ao município, essas mulheres confiam os cuidados dos filhos a terceiros, em troca de gramas de ouro. Outro contexto observado ao longo das entrevistas foi a preocupação com a exploração sexual infantil e a segurança dos filhos:

Eu não trago minha filha pra cá, deixo ela lá na cidade. No Oiapoque, ela tem como estudar, porque esses peão daqui, não presta, bate nas muié, quer roubar nossas coisas. Minha menina tem 9 anos, sabe? Tem uma senhora que cuida dela. Eu digo pra não deixar ela na rua, porque ninguém confia nesses homem. Depois que conseguem o que quer, não quer mais saber, né verdade? (E17)

Aqui, eu consigo tirar 2 mil real e dar uma condição de vida digna pros meus filhos em Oiapoque. (E6)

O ato sexual em troca de favores, a exemplo de carona aos garimpos, de presentes, como lingeries, alimentos, produtos de higiene, proteção, transporte, etc., são considerados naturais para as mulheres. O programa sexual, também conhecido como “ploc”, somente foi reconhecido mediante o pagamento em ouro ou dinheiro em troca do sexo. Nas áreas de garimpagem, custam em média 5 gramas de ouro, o que equivale a uma quantia aproximada de R$650,00.

Sobre o uso do preservativo, foi observada uma disposição melhorada para o autocuidado em saúde. No entanto, também se visualizou pouco poder de negociação com a parceria íntima. Apesar de verbalizarem a importância do uso consistente do preservativo, seu uso foi retratado de forma fortuita. Os relatos intersectam as dificuldades para negociação da utilização do preservativo:

A gente chamega de manhã pra eles levarem a mercadoria pra gente [risos]. Os homem daqui tudo quer favor, porque o programa é caro, né, fia?! O programa custa 5 grama na mão. (E4)

Fale com os homem daqui, porque eles não querem usar camisinha, não. E eu já ouvi falar que tem umas 10 pessoas aqui com aquela doença, né? [sussurrando AIDS]. (E8)

A minha primeira vez, eu usei preservativo, mas é que agora eu tô junta com uma pessoa, entendeu? Aí eu não uso. Eu sei que a gente não pode confiar em homem. Eu até gosto de camisinha, porque não fica aquela meladeira que dá nojo, mas a gente esquece, né? Quando vai vivendo junto, os homem daqui também não gosta de usar, viu? (E2)

DISCUSSÃO

Para discutir os resultados, fez-se necessário refletir sobre as interações sociais(1717 Nyanza EC, Joseph M, Premji SS, Thomas DSK, Mannion C. Geophagy practices and the content of chemical elements in the soil eaten by pregnant women in artisanal and small scale gold mining communities in Tanzania. BMC Pregnancy Childbirth. 2014;14:144. https://doi.org/10.1186/1471-2393-14-144
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) de mulheres em áreas de garimpo. Em diferentes momentos da interação, os atores sociais assumem diversos papéis, ensejados pelo contexto específico da garimpagem. Desta forma, buscou-se traçar um perfil sociodemográfico das mulheres em áreas de garimpo e, posteriormente, realizar uma problematização de como estas mulheres acionam as atividades de garimpagem como principal perspectiva de vida.

O perfil predominante foi o de mulheres maduras, nortistas e nordestinas, pretas/pardas e analfabetas funcionais, semelhante a outra casuística acerca de mulheres que têm o sustento da vida realizado em atividades circunscritas à garimpagem(77 Freitas LJG. Mulheres no garimpo: vulnerabilidade do trabalho feminino na Amazônia. Appris; 2016. 225p.). A biografia destas mulheres se entrecruza com o garimpo como única e, às vezes, última alternativa de modo de vida e de trabalho a que pudessem recorrer(77 Freitas LJG. Mulheres no garimpo: vulnerabilidade do trabalho feminino na Amazônia. Appris; 2016. 225p.,2424 Jenkins, K. Women, mining and development: an emerging research agenda. Extr Ind Soc. 2014;1(2):329-39. https://doi.org/10.1016/j.exis.2014.08.004
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), sob a motivação de adquirir melhores condições de vida(33 Silva Neto AS, Landim Neto FO. Conflitos socioambientais entre a comunidade da sede distrital de Vila Brasil, Oiapoque - Amapá e o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque: a fronteira franco brasileira em debate. Rev Eletrôn PRODEMA. 2017;11(Suppl-1). https://doi.org/10.22411/rede.v11i1.468
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). O agenciamento da força de trabalho envolve, muitas vezes, endividamento prévio ao início das atividades laborais, e os custos são pagos ao empregador posteriormente(22 Douine M, Mosnier E, Le Hingrat Q, Charpentier C, Corlin F, Hureau L, et al. Illegal gold miners in French Guiana: a neglected population with poor health. BMC Public Health. 2017;18(Suppl 1):23. https://doi.org/10.1186/s12889-017-4557-4
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).

Verifica-se que há trânsito em diferentes atividades laborais e acúmulo de funções e jornadas realizadas em busca de novas chances de vida, sendo necessário que se reinventem, assumindo diferentes papéis em cada contexto situacional vivenciado. Nos garimpos, assim como em outras formas de sociabilidade laboral(2525 Melcher EJG, Oliveira MHB, Carvalho RME. Violência doméstica e trabalho: percepções de mulheres assistidas em um Centro de Atendimento à Mulher. Saúde Debate. 2017;41(2):13-24. https://doi.org/10.1590/0103-11042017S202
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), as mulheres também recebem menos do que os homens, mesmo quando realizam atividades de elevado esforço físico(77 Freitas LJG. Mulheres no garimpo: vulnerabilidade do trabalho feminino na Amazônia. Appris; 2016. 225p.,2424 Jenkins, K. Women, mining and development: an emerging research agenda. Extr Ind Soc. 2014;1(2):329-39. https://doi.org/10.1016/j.exis.2014.08.004
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). Neste contexto situacional, existe um tensionamento, pois o estigma social vivenciado pelas mulheres em áreas de garimpo imputa-lhes uma condição de subalternidade, expressada pela dificuldade de ser aceita plenamente entre os demais trabalhadores do ouro, por sua condição de mulher. Assim, existe um tensionamento nas relações com os homens que trabalham em áreas de garimpo quando estas mulheres conseguem conquistar o espaço para realizarem as atividades entendidas como eminentemente masculinas, a exemplo do ato de procurar e encontrar ouro, tendo em vista que esta atividade é motivo de reconhecimento de poder na sociedade garimpeira(77 Freitas LJG. Mulheres no garimpo: vulnerabilidade do trabalho feminino na Amazônia. Appris; 2016. 225p.). Paulatinamente, estas mulheres assumem um novo papel de acordo com o contexto social vivenciado: o de mulher forte, corajosa e de sorte, pois ultrapassa a linha dos garimpeiros homens blefados, construindo assim um novo perfil.

Como descrito, no caso específico da garimpagem, observa-se que ao homem é atribuída a função de procurar o minério de ouro, enquanto que, às mulheres, são distribuídas atividades de manutenção da organização do ambiente. Nesta perspectiva, o processo de estigmatização vivenciado por estas mulheres está presente em quase todos os aspectos dos garimpos, pois atribui ao sexo feminino um local social menor, pejorativo e marginal, ao conferir às funções exercidas por homens no garimpo uma maior valoração social do que às funções exercidas pelas mulheres, impondo-lhes uma hierarquização masculina em detrimento ao feminino(2626 Sharma S, Suran R. Consideration of the determinants of women’s mental health in remote Australian mining towns. Austral J Rural Health. 2007;15:1-7. https://doi.org/10.1111/j.1440-1584.2007.00842.x
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), que corrobora para a perpetuação e naturalização de situações de violências de gênero.

Destaca-se, também, que, majoritariamente, as atividades exercidas pelas mulheres previamente ao garimpo e as exercidas atualmente convergem em trabalhos que se assemelham ao conceito de divisão sexual do trabalho(2525 Melcher EJG, Oliveira MHB, Carvalho RME. Violência doméstica e trabalho: percepções de mulheres assistidas em um Centro de Atendimento à Mulher. Saúde Debate. 2017;41(2):13-24. https://doi.org/10.1590/0103-11042017S202
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). A divisão sexual do trabalho é visualizada em diversas culturas e sociedades, que categorizam o que é trabalho para ser feito por homens e o que é trabalho para ser realizado por mulheres, em que, de forma materialista, predomina a vinculação dos homens à esfera produtiva, e das mulheres, à esfera reprodutiva e do cuidado(2525 Melcher EJG, Oliveira MHB, Carvalho RME. Violência doméstica e trabalho: percepções de mulheres assistidas em um Centro de Atendimento à Mulher. Saúde Debate. 2017;41(2):13-24. https://doi.org/10.1590/0103-11042017S202
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).

No presente estudo, observou-se que as parcerias íntimas foram referidas como forma majoritária de recrutamento para o trabalho. Outros estudos em áreas de garimpos realizados com mulheres corroboram esses achados(77 Freitas LJG. Mulheres no garimpo: vulnerabilidade do trabalho feminino na Amazônia. Appris; 2016. 225p.,2424 Jenkins, K. Women, mining and development: an emerging research agenda. Extr Ind Soc. 2014;1(2):329-39. https://doi.org/10.1016/j.exis.2014.08.004
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). As diferenças nos modos de recrutamento, impulsionado por parcerias afetivas, demonstram especificidades quando se trata do contexto eminentemente feminino. O isolamento geográfico e a árdua rotina de trabalho tornam difíceis a essas mulheres se relacionarem fora do ambiente do garimpo. Ainda neste sentido, salienta-se que as dívidas adquiridas previamente pelas mulheres assumem, algumas vezes, acordos que envolvem pagamento através do ato sexual.

A pobreza extrema e a insegurança alimentar podem se tornar determinantes às mulheres ao trabalho forçado e à exploração sexual em garimpos. Verifica-se que estas mulheres são expostas ao contexto de extrema penúria e podem se envolver em sexo transacional como uma fonte de renda e acesso a bens básicos de subsistência(2424 Jenkins, K. Women, mining and development: an emerging research agenda. Extr Ind Soc. 2014;1(2):329-39. https://doi.org/10.1016/j.exis.2014.08.004
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). Neste estudo, as mulheres demonstraram não perceber o sexo transacional como exploração sexual. Isso não significa dizer que não haja uma reflexão delas próprias sobre a sua condição de mulher no garimpo, contudo a problematização é elaborada a partir das concepções socioculturais locais ou ainda da fachada que assumem como mulheres do garimpo.

Mas essa mulher do garimpo também pode ser mãe, filha ou outra categoria que exija dela diferentes papéis no momento da interação, a partir de determinado contexto social no momento da interação. Isso enseja a importância de um plano de cuidados que considere os valores e aspectos culturais locais. Esse dado implica a necessidade de um plano que inclua acesso à informação para que essas mulheres possam compreender seus direitos e os dispositivos disponíveis pelo Estado, frente à sua profissão ser uma escolha e não única opção apresentada para seu sustento. A escolha só existe quando há acesso à informação e assistência do poder público.

Nos garimpos, observa-se a existência de prostituição cujo programa sexual custa 5 gramas de ouro, e também verificam-se serviços sexuais aos homens em troca de sua assistência clandestina, em que mulheres recebem mantimentos para sua subsistência e proteção. Essa condição da mulher também foi observada em outras áreas de mineração informal na África do Sul e outros países da região amazônica(77 Freitas LJG. Mulheres no garimpo: vulnerabilidade do trabalho feminino na Amazônia. Appris; 2016. 225p.,2424 Jenkins, K. Women, mining and development: an emerging research agenda. Extr Ind Soc. 2014;1(2):329-39. https://doi.org/10.1016/j.exis.2014.08.004
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).

Sabe-se que a prática de sexo não seguro, principalmente nas regiões caracterizadas por iniquidade social e por reificadas formas de violências, expõe mulheres com pouca escolaridade ou nenhuma às IST. A literatura cataloga que, entre os fatores preditivos às IST entre migrantes precários na Guiana Francesa, incluem-se coitarca antes dos 16 anos, uso de álcool ou drogas antes do sexo e ter praticado sexo comercial recentemente(2727 Eubanks A, Parriault MC, Van Melle A, Basurko C, Adriouch L, Cropet C et al. Factors associated with sexual risk taking behavior by precarious urban migrants in French Guiana. BMC Int Health Hum Rights. 2018;18(1):24. https://doi.org/10.1186/s12914-018-0164-4
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).

Observa-se que, nestes garimpos, houve a referência às parcerias íntimas múltiplas e entre pessoas de nacionalidades diferentes, sugerindo a circulação de IST entre países. No rio Maroni, passagem para vários garimpos clandestinos, situado nas proximidades de Ilha Bela, hábitos de poliginia cultural são descritos na literatura e também correlatados neste estudo(2828 Cobat A1, Halfen S, Grémy I. Determinants of condom use and heterosexual multiple sexual partnership in French Antilles and French Guiana. Rev Epidemiol Sante Publique. 2008;56(3):143-57. https://doi.org/10.1016/j.respe.2008.03.118
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). O isolamento e a consequente diminuição da regulação comunitária, a pobreza e as questões relacionadas ao gênero se intersectam para aumentar a probabilidade de mulheres que vivem nesses sítios se envolverem em situações de vulnerabilidade na esfera sexual e reprodutiva.

A ausência de testagem de IST apresenta falhas eminentes na atenção à saúde sexual e reprodutiva das mulheres. Tais procedimentos fazem parte de protocolos e rotinas na atenção ginecológica, pré-natal e parto elencados pelo Ministério da Saúde(2929 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde sexual e saúde reprodutiva. Brasilia: Ministério da Saúde; 2013.). Ressalta-se que as condições de isolamento e reduzido acesso aos serviços de saúde foram demonstrados pelo número expressivo de mulheres sem acesso à testagem rápida.

Nesses espaços, onde pessoas vivem transitando entre fronteiras, escondidas nos interiores da Floresta Amazônica, as estratégias habituais de assistência à saúde sexual e reprodutiva não possuem eficácia. Destaca-se que a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher(2929 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde sexual e saúde reprodutiva. Brasilia: Ministério da Saúde; 2013.) e a Política Nacional dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos(3030 Ministério da Saúde (BR). Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos: uma prioridade do governo. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.) consideram a diversidade dos municípios e estados, que apresentam diferentes níveis de desenvolvimento e de organização dos seus sistemas locais de saúde e tipos de gestão. Além disso, incentivam a construção conjunta e de respeito à autonomia, enfatizando a importância do empoderamento das usuárias do Sistema Único de Saúde e sua participação nas instâncias de controle social.

Neste sentido, este estudo buscou dar voz a estas mulheres, para compreender sua interação com o grupo e com os serviços de saúde, para que, a partir das lacunas por elas explanadas e observadas, possa-se oferecer um cuidado em que elas consigam ter realmente adesão e acesso sustentado. As observações do estudo têm importantes consequências nas estratégias de comunicação e prevenção e são imprescindíveis ao planejamento de um cuidado pautado na equidade.

A assistência à saúde das mulheres em áreas remotas de garimpos pode ser melhorada por meio da oferta de serviços de saúde locais ou itinerantes que utilizem os sítios de descanso e de apoio, a exemplo de Ilha Bela, como estratégia de alcance a essas populações que exercem mobilidade pendular. Maiores esforços de inclusão social e de assistência pelo Estado brasileiro devem ser implementados. Observou-se a carência de informações sobre direitos sexuais e reprodutivos. A educação em saúde pode ser uma ferramenta poderosa para a atenuação de situações de desinformação e, portanto, maior vulnerabilidade.

Limitações do estudo

A coleta foi realizada no posto de descanso no lado brasileiro da fronteira, o que impossibilitou a observação da interação nas currutelas dos garimpos propriamente dita. No entanto, apesar dessas limitações referentes a questões de segurança mediante o contexto de clandestinidade das participantes, este estudo permitiu dar voz às mulheres que, por um longo período, estiveram silenciadas, à margem das políticas públicas do Estado.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou políticas públicas

A garantia do acesso universal e equitativo à saúde está diametralmente relacionada ao alcance e à utilização dos serviços de saúde que, no caso das colaboradoras, são violados por multifatores. Aprimorar o conhecimento sobre a saúde de mulheres que vivem em áreas remotas e de alto fluxo populacional é um dado importante para elaboração de um plano de cuidados transcultural e formulação e avaliação de políticas de proteção social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cotidiano das mulheres na região do garimpo amazônico é caracterizado por uma sobreposição de vulnerabilidades, no qual mulheres pretas e pardas e com baixa escolaridade promovem uma ruptura com seus locais de origem predominantemente nos estados da região Norte e Nordeste, impulsionadas aos trabalhos em garimpos da região fronteiriça por parcerias íntimas, na expectativa de melhores condições de vida. O garimpo apresenta um conjunto de normas e regras próprias, modos de sociabilidade pactuados, especificidades culturais, sendo um local de tensões, disputa de poder e hegemonicamente masculino, no qual a mulher é desafiada a performar papéis para sobreviver, com precária rede de apoio social, assumindo diversas fachadas no momento da interação.

A violência é expressa, silenciada e normatizada no cotidiano, em que conflitos e assassinatos são perenes, com a vivência do luto, a dor, o sofrimento e a solidão da mulher no garimpo amazônico. Os direitos sexuais e reprodutivos dessas mulheres são cotidianamente usurpados. O corpo feminino configura-se meio de subsistência, situações de exploração sexual, bem como o estabelecimento de múltiplas parcerias íntimas sem o uso consistente do preservativo. A avaliação das vivências cotidianas das mulheres no garimpo amazônico evidencia a necessidade de direcionamento e efetivação de políticas públicas e sociais e práticas de saúde para a atenção integral à saúde dessas mulheres.

AGRADECIMENTO

Às participantes do estudo, pela generosidade em compartilhar suas vivências.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Maria Itayra Padilha

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2021
  • Aceito
    17 Abr 2022
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