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Rede intersetorial de atendimento às mulheres em situação de violência: trabalho artesanal construído pelas pessoas

RESUMO

Objetivos:

discutir os sentidos atribuídos por profissionais à construção da rede de atendimento às mulheres em situação de violência.

Métodos:

Pesquisa Convergente Assistencial desenvolvida com aplicação de grupo de convergência com 32 participantes de setores da saúde, assistência social ou segurança pública, em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Os dados foram produzidos durante dez encontros, pautados na metodologia da problematização, submetidos à análise de conteúdo temática e interpretados com o referencial de redes.

Resultados:

a construção da rede é um trabalho artesanal realizado pelas pessoas continuamente, permeado por vínculo, comunicação e parcerias entre os serviços e conhecimento dos processos de trabalho. As amarrações exigem movimento permanente.

Considerações Finais:

construir rede implica definir linhas que se entrelaçam; formar nós que criam conexões intersetoriais. Há necessidade de institucionalização dos processos por meio de protocolos de continuidade do cuidado, associados a um sistema de comunicação eficiente entre os setores.

Descritores:
Violência por Parceiro Íntimo; Violência de Gênero; Colaboração Intersetorial; Assistência Integral à Saúde; Enfermagem

ABSTRACT

Objectives:

to discuss the meanings attributed by professionals to the construction of the service network for women in situations of violence.

Methods:

Convergent Care Research developed with the application of a convergence group with 32 participants from the health, social assistance, or public security sectors, in Santa Maria, Rio Grande do Sul. The data was produced during ten meetings, based on the problematization methodology, and submitted to analysis of thematic content and interpreted with the referential of networks.

Results:

the construction of the network is an artisanal work carried out by people continuously, permeated by bonds, communication and partnerships between services and knowledge of work processes. Lashings require permanent movement.

Final Considerations:

building a network implies defining intertwining lines; form nodes that create cross-sector connections. There is a need to institutionalize processes through care continuity protocols, associated with an efficient communication system between sectors.

Descriptors:
Intimate Partner Violence; Gender-Based Violence; Intersectoral Collaboration; Comprehensive Health Care; Nursing

RESUMEN

Objetivos:

discutir los sentidos atribuidos por profesionales a construcción de la red de atención a mujeres en situación de violencia.

Métodos:

Investigación Convergente Asistencial desarrollada con aplicación de grupo de convergencia con 32 participantes de sectores de salud, asistencia social o seguridad pública, en Santa Maria, Rio Grande do Sul. Datos fueron producidos durante diez encuentros, pautados en la metodología de la problematización, sometidos al análisis de contenido temático e interpretados con el referencial de redes.

Resultados:

la construcción de la red es un trabajo artesanal realizado por personas continuamente, permeado por vínculo, comunicación y colaboraciones entre los servicios y conocimiento de los procesos de trabajo. Las amarraduras demandan movimiento permanente.

Consideraciones Finales:

construir red implica definir líneas que se entrelazan; formar nudos que crean conexiones intersectoriales. Hay necesidad de institucionalización de los procesos mediante protocolos de continuidad del cuidado, asociados a un sistema de comunicación eficiente entre los sectores.

Descriptores:
Violencia de Pareja; Violencia de Género; Colaboración Intersectorial; Atención Integral de Salud; Enfermería

INTRODUÇÃO

A violência de gênero consiste em um problema de saúde pública que viola os direitos humanos das mulheres e constitui um desafio para a equidade de gênero, contribuindo com a legitimação da dominação social embasada na compreensão das mulheres como seres inferiores(11 Saletti-Cuesta L, Ferioli A, Del Valle Martínez F, Viel E, Baudin V, Romero P, et al. El abordaje de la violencia de género desde la perspectiva de las comunidades del norte cordobés, Argentina. Cad Saude Publica. 2020;36(1):e00184418. https://doi.org/10.1590/0102-311x00184418
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). Ela apresenta alta prevalência mundial(22 World Health Organization. Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and nonpartner sexual violence [Internet]. Geneva: WHO; 2013[cited 2020 Jun 05]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/85239/9789241564625_eng.pdf;jsessionid=F0B2F121FE991C1A6B0124218AC6686B?sequence=1
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), graves consequências para a saúde, impactos sanitários, sociais e econômicos(33 Rojas Loría K, Fernández Sánchez A, Gutiérrez Rosado T. Barreras y facilitadores del abordaje de la violencia contra las mujeres: perspectivas profesionales entre Cataluña y Costa Rica. Poblac Salud en Mesoam. 2019; 17(1):1-26. https://doi.org/10.15517/psm.v17i1.37814
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).

Estima-se que, mundialmente, 30% das mulheres já vivenciaram alguma situação de violência física ou sexual em algum momento da sua vida(22 World Health Organization. Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and nonpartner sexual violence [Internet]. Geneva: WHO; 2013[cited 2020 Jun 05]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/85239/9789241564625_eng.pdf;jsessionid=F0B2F121FE991C1A6B0124218AC6686B?sequence=1
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). No Brasil, um inquérito nacional constatou crescimento no percentual de mulheres que afirmaram ter sofrido algum tipo de violência, que passou de 18%, em 2015, para 29%, em 2017. Os tipos mais citados foram: violência física (67%), psicológica (47%) e moral (6%) e sexual (15%)(44 Senado Federal (BR). Violência doméstica e familiar contra a mulher: pesquisa DataSenado [Internet]. Brasília, DF: SF; 2017[cited 2020 Jun 05]. Available from: https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/arquivos/aumenta-numero-de-mulheres-que-declaram-ter-sofrido-violencia
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).

A violência por parceiro íntimo (VPI) também está alicerçada nas desigualdades de gênero, que são um marcador de desigualdade social. Ancora-se em normas culturais e sociais amplamente difundidas que sustentam os papéis de gênero de homens e mulheres e são empregadas para justificar e normalizar a violência(55 Alsaleh A. Violence against Kuwaiti women. J Interpers Violence. 2020;13:886260520916280. https://doi.org/10.1177/0886260520916280
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). No Brasil, as políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres(66 Presidência da República (BR), Secretaria de Políticas para as Mulheres. Política nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres [Internet]. Brasília, DF: SPM; 2011[cited 2020 Jun 05]. Available from: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres
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-77 Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção à Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes [Internet]. Brasília, DF: MS; 2004[cited 2020 Jun 05]. (Série C. Projetos, programas e relatórios). Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nac_atencao_mulher.pdf
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) reconhecem gênero como determinante transversal, bem como a diversidade entre elas e suas diversas vulnerabilidades.

Quando se analisa pelo marcador de cor/etnia, percebe-se que a violência de gênero apresenta maior prevalência em mulheres negras (pardas e pretas). Em 2017, no Brasil, 66% das mulheres assassinadas eram negras. Isso evidencia a grande dificuldade do Estado brasileiro em garantir a universalidade de suas políticas públicas(88 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (BR). Atlas da violência: 2019 [Internet]. Brasília, DF: IPEA; 2019[cited 2020 Sep 17]. Available from: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019
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); e ressalta a importância de abordar a violência de gênero de modo interseccional, a fim de articular gênero com as diversas formas de opressão(99 D’Oliveira AF. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface (Botucatu). 2019;23:e190650. https://doi.org/10.1590/interface.190650
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). Acredita-se que reconhecer essa diversidade é fundamental para subsidiar o planejamento das ações em rede intersetorial, com base nos contextos de vida das mulheres que experienciam o evento de forma diferente.

Os impactos sociais e econômicos do problema estão relacionados com a diminuição da produtividade e do salário, o que afeta não só as mulheres nessa situação, mas também a economia do país tanto no setor público quanto no privado. No âmbito da saúde, há evidências de impactos biológicos, neurológicos, psicológicos e comportamentais para as mulheres que vivenciam a violência e para suas famílias, configurando fator de risco à saúde(33 Rojas Loría K, Fernández Sánchez A, Gutiérrez Rosado T. Barreras y facilitadores del abordaje de la violencia contra las mujeres: perspectivas profesionales entre Cataluña y Costa Rica. Poblac Salud en Mesoam. 2019; 17(1):1-26. https://doi.org/10.15517/psm.v17i1.37814
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). Algumas dessas consequências são os transtornos depressivos(1010 Damra JK, Abujilban S. Violence against women and its consequences on women’s reproductive health and depression: a Jordanian sample. J Interpers Violence. 2018;36(5-6):NP3044-NP3060. https://doi.org/10.1177/0886260518770649
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) e de ansiedade(1111 Antoniou E. Women's experiences of domestic violence during pregnancy: a qualitative research in Greece. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(19):7069. https://doi.org/10.3390/ijerph17197069
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), aborto(1111 Antoniou E. Women's experiences of domestic violence during pregnancy: a qualitative research in Greece. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(19):7069. https://doi.org/10.3390/ijerph17197069
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-1212 Grose RG, Chen JS, Roof KA, Rachel S, Yount KM. Sexual and reproductive health outcomes of violence against women and girls in lower-income countries: a review of reviews. J Sex Res. 2021;58(1):1-20. https://doi.org/10.1080/00224499.2019.1707466
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), infecções sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada/não planejada(1212 Grose RG, Chen JS, Roof KA, Rachel S, Yount KM. Sexual and reproductive health outcomes of violence against women and girls in lower-income countries: a review of reviews. J Sex Res. 2021;58(1):1-20. https://doi.org/10.1080/00224499.2019.1707466
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) e menor qualidade de vida(1313 Lucena KDT, Vianna RPT, Nascimento JA, Campos HFC, Oliveira ECT. Association between domestic violence and women’s quality of life. Rev Latino-Am Enfermagem. 2017;25:e2901. https://doi.org/10.1590/1518-8345.1535.2901
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); ainda, a baixa autoestima, o isolamento familiar e social(1414 Cañete-Lairla M, Gil-Lacruz M. Psychosocial variables associated with verbal abuse as a form of intimate partner violence against women in a Spanish sample. J Aggress Maltreat Trauma. 2017;27(3):237-55. https://doi.org/10.1080/10926771.2017.1320343
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), bem como o consumo de substâncias lícitas e ilícitas(22 World Health Organization. Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and nonpartner sexual violence [Internet]. Geneva: WHO; 2013[cited 2020 Jun 05]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/85239/9789241564625_eng.pdf;jsessionid=F0B2F121FE991C1A6B0124218AC6686B?sequence=1
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). A VPI também tem relação direta com menor bem-estar dos filhos(1515 Bui QN, Hoang TX, Le NTV. The effect of domestic violence against women on child welfare in Vietnam. Child Youth Serv Rev. 2018;94:709-19. https://doi.org/10.1016/j.childyouth.2018.09.024
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).

Assim, constata-se a complexidade e causalidade multifatorial do problema, requerendo ações para além da identificação e encaminhamentos(1616 Soares JSF, Lopes MJM. Experiências de mulheres em situação de violência em busca de atenção no setor saúde e na rede intersetorial. Interface (Botucatu). 2018;22(66):789-800. https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0835
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) e transcendendo as situações marcadas pelo paradigma biomédico que produz práticas de atenção fragmentadas e setorizadas. É preciso superar a atenção pontual a essas mulheres — em geral, focada nas marcas físicas da violência vivida. Há falta de seguimento dos casos, necessidade de atuação intersetorial em rede e de protocolos qualificadores dos atendimentos(33 Rojas Loría K, Fernández Sánchez A, Gutiérrez Rosado T. Barreras y facilitadores del abordaje de la violencia contra las mujeres: perspectivas profesionales entre Cataluña y Costa Rica. Poblac Salud en Mesoam. 2019; 17(1):1-26. https://doi.org/10.15517/psm.v17i1.37814
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,1717 Cortes LF, Padoin SMM, Kinalski DDF. Instrumentos para articulação da rede de atenção às mulheres em situação de violência: construção coletiva. Rev Gaucha Enferm. 2016;37(esp):e2016-0056. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.esp.2016-0056
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-1818 Arboit J, Padoin SMM, Vieira LB, Paula CC, Costa MC, Cortes LF. Health care for women in situations of violence: discoordination of network professionals. Rev Esc Enferm USP. 2017;51:e03207. https://doi.org/10.1590/s1980-220x2016113303207
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).

As demandas psicossociais e outras várias necessidades derivadas do desrespeito sistemático aos direitos humanos, à cidadania bem como a consequente alta vulnerabilidade dessas mulheres propiciam um conjunto de agravos. Nessa perspectiva, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres define “rede intersetorial de atendimento às mulheres em situação de violência” como o conjunto de ações e serviços de diferentes setores, em especial, assistência social, saúde, justiça e segurança pública, que visam à ampliação e melhoria da qualidade da atenção; identificação e encaminhamento adequado das mulheres; e à integralidade e humanização do atendimento. A Política propõe os eixos de prevenção; enfrentamento e combate; assistência; e garantia de direitos às mulheres. Preconiza ações que desconstruam as desigualdades; combatam as discriminações de gênero, a fim de interferir nos padrões culturais sexistas; promovam o empoderamento das mulheres; e garantam um atendimento qualificado(66 Presidência da República (BR), Secretaria de Políticas para as Mulheres. Política nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres [Internet]. Brasília, DF: SPM; 2011[cited 2020 Jun 05]. Available from: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres
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).

A lógica do trabalho em rede tem sido considerada a melhor estratégia para o enfrentamento da problemática. Ela demanda um conjunto articulado de ações intersetoriais(11 Saletti-Cuesta L, Ferioli A, Del Valle Martínez F, Viel E, Baudin V, Romero P, et al. El abordaje de la violencia de género desde la perspectiva de las comunidades del norte cordobés, Argentina. Cad Saude Publica. 2020;36(1):e00184418. https://doi.org/10.1590/0102-311x00184418
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,1818 Arboit J, Padoin SMM, Vieira LB, Paula CC, Costa MC, Cortes LF. Health care for women in situations of violence: discoordination of network professionals. Rev Esc Enferm USP. 2017;51:e03207. https://doi.org/10.1590/s1980-220x2016113303207
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19 Menezes PRM, Lima IS, Correia MC, Souza SS, Erdmann LA, Gomes PN. Enfrentamento da violência contra a mulher: articulação intersetorial e atenção integral. Saude Soc. 2014;23(3):778-86. https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000300004
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20 Batista KBC, Schraiber LB, D’Oliveira AFPL. Gestores de saúde e o enfrentamento da violência de gênero contra as mulheres: as políticas públicas e sua implementação em São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica. 2018;34(8):e00140017. https://doi.org/10.1590/0102-311x00140017
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-2121 Aguiar JM, D’Oliveira AFPL, Schraiber LB. Mudanças históricas na rede intersetorial de serviços voltados à violência contra a mulher: São Paulo, Brasil. Interface (Botucatu). 2020;24:e190486. https://doi.org/10.1590/Interface.190486
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), no qual os serviços possam formar um todo integrado.

Nesse sentido, destacam-se estudos que abordam a rede de atendimento para o enfrentamento da violência contra as mulheres, especialmente a VPI, em sua conceituação, composição e articulação intersetorial(1717 Cortes LF, Padoin SMM, Kinalski DDF. Instrumentos para articulação da rede de atenção às mulheres em situação de violência: construção coletiva. Rev Gaucha Enferm. 2016;37(esp):e2016-0056. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.esp.2016-0056
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-1818 Arboit J, Padoin SMM, Vieira LB, Paula CC, Costa MC, Cortes LF. Health care for women in situations of violence: discoordination of network professionals. Rev Esc Enferm USP. 2017;51:e03207. https://doi.org/10.1590/s1980-220x2016113303207
https://doi.org/10.1590/s1980-220x201611...
,2121 Aguiar JM, D’Oliveira AFPL, Schraiber LB. Mudanças históricas na rede intersetorial de serviços voltados à violência contra a mulher: São Paulo, Brasil. Interface (Botucatu). 2020;24:e190486. https://doi.org/10.1590/Interface.190486
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-2222 Borth LC, Costa MC, Silva EB, Fontana DGR, Arboit J. Network to combat violence against rural women: articulation and communication of services. Rev Bras Enferm. 2018;71(suppl 3):1287-94. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0044
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). É composta pelo conjunto de serviços de diferentes setores, especialmente, assistência social, saúde, justiça e segurança pública, que visam à ampliação e melhoria da qualidade da atenção; identificação e ao encaminhamento adequado das mulheres(66 Presidência da República (BR), Secretaria de Políticas para as Mulheres. Política nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres [Internet]. Brasília, DF: SPM; 2011[cited 2020 Jun 05]. Available from: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres
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).

Dentre os múltiplos sentidos do termo “rede”, destaca-se aquele que alude à rede enquanto objeto, ou seja, uma continuidade de linhas que se cruzam e se entrelaçam, passando pelos nós e criando ligações entre eles, conexões. A rede se caracteriza pela absoluta dependência de todos os nós entre si(2323 Vermelho SC, Velho APM, Bertoncello V. On the concept of social networks and their researchers. Educ Pesqui. 2015;41(4):863-81. https://doi.org/10.1590/s1517-97022015041612
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). Neste estudo, adotou-se esta metáfora, que traz a imagem de linhas fortemente conectadas por “nós”, os serviços de atendimento — além do significado de rede atrelado à comunicação intersetorial, embasado na Política Nacional(66 Presidência da República (BR), Secretaria de Políticas para as Mulheres. Política nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres [Internet]. Brasília, DF: SPM; 2011[cited 2020 Jun 05]. Available from: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres
https://www12.senado.leg.br/instituciona...
).

Há que se considerar a necessidade de diálogo entre os profissionais dos diferentes setores para que a rede seja tecida pelos protagonistas das ações de enfrentamento à VPI. Com essa perspectiva e ancorando-se no referencial metodológico da Pesquisa Convergente Assistencial(2424 Trentini M, Paim L, Silva DMGV. The convergent care research method and its application in nursing practice. Texto Contexto Enferm. 2017;26(4):e1450017. https://doi.org/10.1590/0104-07072017001450017
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), esta investigação teve como questão de estudo: Quais os sentidos atribuídos por profissionais à construção da rede de atendimento às mulheres em situação de violência?

OBJETIVOS

Discutir os sentidos atribuídos por profissionais à construção da rede de atendimento às mulheres em situação de violência.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Para atender à exigência de preservar o anonimato das participantes, referida na Resolução nº 466/2012 que define normas para pesquisas com seres humanos no Brasil, os depoimentos foram codificados com a letra P seguida de um número e do serviço ao qual estavam vinculadas (p.ex., P1/Secretaria Municipal de Saúde). As sessões do grupo convergente foram audiogravadas, com duração aproximada de duas horas. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição.

Referencial teórico-metodológico e tipo de estudo

Pesquisa participante, de abordagem qualitativa, do tipo Pesquisa Convergente Assistencial (PCA). A PCA é um método que foi desenvolvido por pesquisadoras brasileiras da área da enfermagem, cuja essência está ligada à inserção do(a) pesquisador(a) no campo denominado de “imersibilidade”. Ele(a) estará participando de alguma forma da prática assistencial e envolvendo-se diretamente com o método de investigação, o que implica o compromisso de beneficiar o contexto assistencial durante o processo investigativo(2424 Trentini M, Paim L, Silva DMGV. The convergent care research method and its application in nursing practice. Texto Contexto Enferm. 2017;26(4):e1450017. https://doi.org/10.1590/0104-07072017001450017
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).

O fenômeno de entrelaçamento das ações assistenciais de pesquisa é chamado de “convergência”. Ele é resultado da existência complexa de movimentos de simultaneidade entre assistência e pesquisa, configurando-se uma “dança”, caracterizada por movimentos de aproximação e de afastamento que culminam em pontos de articulação, chamados de “espaços de superposição”(2424 Trentini M, Paim L, Silva DMGV. The convergent care research method and its application in nursing practice. Texto Contexto Enferm. 2017;26(4):e1450017. https://doi.org/10.1590/0104-07072017001450017
https://doi.org/10.1590/0104-07072017001...
). Neste estudo, a PCA foi utilizada como referencial metodológico em razão da possibilidade de desenvolver ações conjuntas de pesquisa e de assistência de modo a direcionar para a minimização de problemas e introdução de inovações nas práticas de atendimento às mulheres em situação de violência. O estudo foi norteado pelo “critérios consolidados para relato de pesquisa qualitativa” (COREQ).

Procedimentos metodológicos

Cenário do estudo

O estudo foi desenvolvido na cidade de Santa Maria, estado do Rio Grande do Sul, Região Sul do Brasil, no período de fevereiro a agosto de 2015. O espaço de discussão foi o Grupo de Trabalho Integrado de Enfrentamento às Violências (GTIEV), vinculado ao Observatório da Violência de um hospital de grande porte. O GTIEV é um espaço de diálogo sobre a assistência às pessoas em situação de violência, bem como sobre o funcionamento de cada serviço e composição de um trabalho integrado. É formado por profissionais de saúde, assistência social e segurança pública.

Fonte de dados

Foram realizados dez encontros, e participaram do estudo 32 pessoas, dentre as quais 3 eram acadêmicas dos cursos de Serviço Social ou Psicologia; e 29 eram profissionais: assistentes sociais, psicólogas, enfermeiras, técnica de enfermagem, farmacêutica, médica e policial. Os critérios de inclusão foram: ser integrante do GTIEV, podendo ser profissional ou acadêmico(a).

Coleta e organização dos dados

A produção de dados foi conduzida por meio da técnica de grupo convergente (GC)(2424 Trentini M, Paim L, Silva DMGV. The convergent care research method and its application in nursing practice. Texto Contexto Enferm. 2017;26(4):e1450017. https://doi.org/10.1590/0104-07072017001450017
https://doi.org/10.1590/0104-07072017001...
), aplicada com o objetivo de implementar ações na prática assistencial e fazer abstrações desta para construir conhecimentos acerca do tema em questão. Tal construção envolveu um processo de interação entre as participantes e a pesquisadora, permitindo assim a dialogicidade, atributo da PCA que permite a compreensão dos participantes da unidualidade entre assistência e pesquisa, sem descaracterizar cada uma delas em torno do mesmo fenômeno.

Os encontros do GC foram planejados e desenvolvidos tomando-se como referência a Metodologia da Problematização (MP), que é um método de ensino-aprendizagem cuja aplicação está embasada no Arco de Charles Maguerez. Fundamenta-se epistemologicamente na pedagogia libertadora de Paulo Freire e nos conceitos de “práxis” dos filósofos marxistas Karel Kosik e Adolfo Sánchez Vázquez. Tem como princípio a lógica do aprender a aprender e ponto de partida/chegada do estudo, um recorte da realidade concreta. Nessa realidade, busca-se reconhecer as relações entre teoria e prática no contexto estudado, para aprender com a realidade e intervir de modo a buscar soluções para os problemas reais(2525 Berbel NAN, Sánches Gamboa SA. A metodologia da problematização com o Arco de Maguerez: uma perspectiva teórica e epistemológica. Filos Educ. 2011;3(2):264-87. https://doi.org/10.20396/rfe.v3i2.8635462
https://doi.org/10.20396/rfe.v3i2.863546...
).

A MP aplicada ao estudo (Figura 1), divulgada em nosso estudo anterior, consistiu no cumprimento das cinco etapas: 1) Observação da realidade e definição do problema de estudo: a desarticulação das ações de atendimento às mulheres em situação de violência. Nesta etapa, as participantes falaram sobre suas compreensões acerca da rede, bem como sobre os aspectos facilitadores e limitadores para a formação de um cuidado em rede; 2) Reflexão sobre o problema e emersão dos pontos-chave: definiram-se os pontos a serem estudados no grupo, ou seja, as recomendações legais acerca do atendimento em rede e construção de fluxogramas de atendimento; 3) Teorização: foi realizada prática educativa, elaborada com o grupo, a respeito dos temas teorizados na etapa anterior; 4) Elaboração das hipóteses de solução para o problema elencado na etapa 1. As hipóteses definidas foram: a construção de um fluxograma de atendimento para guiar os serviços, bem como a criação de um instrumento para mediar a comunicação entre eles; 5) Aplicação à realidade em estudo: exercitar as soluções aprendidas. Foram construídos coletivamente dois produtos a fim de contribuir na construção da rede local de atenção às mulheres em situação de violência.

Figura 1
Etapas da Metodologia da Problematização com o Arco de Maguerez aplicadas no estudo em tela(2626 Cortes LF, Padoin SMM, Berbel NAN. Problematization methodology and convergent healthcare research: praxis proposal in research. Rev Bras Enferm. 2018;71(2):471-6. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0362
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0...
)

O encerramento dos encontros ocorreu quando foi compreendida a lógica interna do objeto de estudo, que mostrou os sentidos atribuídos pelas profissionais e estudantes à construção da rede de atendimento à mulher em situação de violência por meio da saturação de dados(2727 Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qual [Internet]. 2017[cited 2020 Jul 4];5(7):1-12. Available from: https://editora.sepq.org.br/index.php/rpq/article/view/82
https://editora.sepq.org.br/index.php/rp...
); e também quando foram construídas possíveis soluções para a desarticulação dos serviços de atendimento.

Análise dos dados

Para organização dos dados, os áudios foram transcritos e sistematizados e tratados pela análise de conteúdo temática(2828 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014.). Na fase de pré-análise, realizou-se a leitura flutuante para aproximação ao tema, seguida da fase de exploração do material para a captação dos núcleos de sentido a fim de agrupar as ideias por afinidade. Foram realizadas a codificação e a categorização dos achados. Os sentidos metafóricos atribuídos pelas participantes foram: a rede é construída pelas pessoas, por meio de um trabalho artesanal da costura de linhas e amarração de nós. Dessa forma, os núcleos de sentido compuseram a categoria temática apresentada neste artigo: “A construção da rede é feita pelas pessoas por meio de um trabalho artesanal e intersetorial”. A última fase consistiu no tratamento dos resultados e sua interpretação à luz da produção científica sobre redes de atenção.

RESULTADOS

Considerando que as participantes da PCA foram predominantemente do sexo feminino (31) e que a problemática da violência contra as mulheres está ancorada na construção desigual de gênero, optou-se por fazer referência às participantes no feminino. Destas, 3 eram acadêmicas dos cursos de Serviço Social ou Psicologia e 29 eram profissionais: assistentes sociais (5), psicólogas (6), enfermeiras (11), médicas (2), terapeuta ocupacional (1), farmacêutica (1), fonoaudióloga (1), técnica de enfermagem (1) e policial civil (1). Em relação ao nível de escolaridade, 23 possuíam pós-graduação, 5 haviam completado o ensino superior, 1 tinha curso técnico e 3 haviam completado o ensino médio. O tempo de atuação no setor variou de menos de 1 ano até mais de 20 anos. A seguir, está descrita a categoria temática resultante da análise de conteúdo temática.

A construção da rede é feita pelas pessoas por meio de um trabalho artesanal e intersetorial

As participantes discutiram no GC que a formação da rede apresenta um sentido metafórico de ser um trabalho artesanal construído pelas pessoas de modo contínuo e ancorado nas relações. Fizeram alusão à rede composta por linhas que necessitam ser costuradas e amarradas por meio do contato com as pessoas, os profissionais dos serviços de atendimento. Consideraram que, para ser possível realizar a articulação, há necessidade de formação de vínculo e parcerias entre os serviços.

Eu entendo rede […] que se faz com amarrações. E aí eu me lembro do Gastão [médico sanitarista]: ele fala de certo trabalho artesanal […] costurar é artesanato. (P4/Hospital)

A gente vai fazendo com o tempo essas relações profissionais com as pessoas […] isso pra mim é rede, mas é uma rede de pessoas de mãos dadas. De pessoas comprometidas […] é vínculo. […] É intersetorial […] a cultura; entra a justiça. (P5/ Hospital)

É esse comprometimento. […] Pra estabelecer rede, é pensar no cuidado e passar por todos os setores que têm a ver com aquele problema. (P3/Secretaria Estadual de Saúde)

A rede não está pronta, a gente é quem constrói. Nós somos os nós da rede. Então eu tenho que amarrar o meu nó com alguém. (P9/Secretaria Municipal de Saúde)

A construção de rede e de contatos que as participantes referem é sobre ir além do encaminhamento ao outro serviço e ter sempre um feedback. A rede deve ser permeada pela comunicação/conexão entre os serviços — seria a referência e contrarreferência —, o que requer conhecer o trabalho e o processo de trabalho desenvolvido em cada serviço.

Conhecer as pessoas, as instituições que elas trabalham, o que elas fazem, o que o meu trabalho tem a ver com o dela e se ela vai estar aberta pra receber o que eu tenho pra mandar [a demanda para o serviço]. (P5/ Hospital)

Os contatos são muito importantes […] porque o contato com as pessoas […] ter um canal dentro daquela instituição. (P8/Delegacia)

Tu faz uma referência e tu não tem a contrarreferência […]. Será que deu certo o encaminhamento que eu fiz? Eu acho que é importante a gente ter esse feedback, essa troca contínua. (P7/ Hospital)

Para a rede, precisa ter um instrumento formal, de auxílio, de contatos. (P4/Hospital)

Durante os encontros do grupo, as participantes citam os serviços como os nós de uma rede intersetorial que inclui a saúde, assistência social, educação, cultura, habitação, trabalho, infraestrutura, saneamento, polícia, justiça, dentre outros.

É intersetorial […] entra a cultura; a justiça. (P5/ Hospital)

O Centro de Referência Especializado em Assistência Social [CREAS], a educação […] muitas vezes, elas chegam na escola ou também a escola pode contribuir nessa compreensão do caso. E a Delegacia. (P1/Secretaria Municipal de Saúde)

Pra estabelecer rede, é pensar no cuidado e passar por todos os setores que têm a ver com aquele problema, porque todos tem o conhecimento que se afina. (P3/Secretaria Estadual de Saúde)

Vai pra além da saúde, vai para a habitação, planejamento, infraestrutura. (P4/Hospital)

Veio encaminhada [ambulatório do hospital] por profissional da nutrição […] depois foi feito contato com a rede em local próximo à residência […] o Centro de Referência em Assistência Social [CRAS] que seguiu o acompanhamento, mas pode ser o CREAS. (P6/Hospital)

DISCUSSÃO

Dentre os sentidos atribuídos pelas participantes à rede de atendimento às mulheres em situação de violência (VPI), destaca-se a rede pensada metaforicamente em alusão ao tecido, sendo composta por linhas a serem costuradas, amarradas. Refletindo-se sobre a imagem da rede como objeto, destaca-se uma continuidade de linhas que se cruzam e se entrelaçam; e, ao passar pelos nós, criam ligações entre eles, conexões. Essa dependência entre as linhas da rede e os nós constitui a sua própria essência. Não há rede sem linhas fortemente interconectadas. A rede se caracteriza pela absoluta dependência de todos os nós entre si(2323 Vermelho SC, Velho APM, Bertoncello V. On the concept of social networks and their researchers. Educ Pesqui. 2015;41(4):863-81. https://doi.org/10.1590/s1517-97022015041612
https://doi.org/10.1590/s1517-9702201504...
). Essa compreensão converge com o conceito de “rede de atendimento”(66 Presidência da República (BR), Secretaria de Políticas para as Mulheres. Política nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres [Internet]. Brasília, DF: SPM; 2011[cited 2020 Jun 05]. Available from: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres
https://www12.senado.leg.br/instituciona...
), em que os nós são os setores, reafirmando-se a importância da intersetorialidade(2929 Schraiber LB, D’Oliveira AFP, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência: da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Dig. 2012;12(3):237-54. https://doi.org/10.5565/rev/athenea/v12n3.1110
https://doi.org/10.5565/rev/athenea/v12n...
).

No entanto, a ação em rede não é dada apenas pela existência de um conjunto de serviços, pois desse modo poderá ser somente uma somatória de intervenções de serviços justapostos, sem que necessariamente ocorra a integração entre eles. Quando há justaposição, considera-se mais uma trama de serviços do que uma rede. Na rede, é necessária a existência de articulação entre as ações de cada serviço, sendo imprescindível a produção assistencial compartilhada com o objetivo de construir um projeto assistencial comum(2929 Schraiber LB, D’Oliveira AFP, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência: da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Dig. 2012;12(3):237-54. https://doi.org/10.5565/rev/athenea/v12n3.1110
https://doi.org/10.5565/rev/athenea/v12n...
).

O movimento de idas e vindas das mulheres nos serviços e a necessidade de feedback anunciado pelas participantes traduz a permanência de limites na assistência e indica a necessidade de qualificar a comunicação para formação de uma rede, que se articula de modo intersetorial tendo em vista a resolutividade da atenção às mulheres e suas famílias. As participantes reconhecem a necessidade de realização de um trabalho em rede intersetorial, o que está em consonância com outros estudos com profissionais das áreas da saúde, segurança, justiça e atenção psicossocial(2020 Batista KBC, Schraiber LB, D’Oliveira AFPL. Gestores de saúde e o enfrentamento da violência de gênero contra as mulheres: as políticas públicas e sua implementação em São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica. 2018;34(8):e00140017. https://doi.org/10.1590/0102-311x00140017
https://doi.org/10.1590/0102-311x0014001...
), os quais concebem essa rede como resultante da integração de setores e de serviços(1818 Arboit J, Padoin SMM, Vieira LB, Paula CC, Costa MC, Cortes LF. Health care for women in situations of violence: discoordination of network professionals. Rev Esc Enferm USP. 2017;51:e03207. https://doi.org/10.1590/s1980-220x2016113303207
https://doi.org/10.1590/s1980-220x201611...
,2222 Borth LC, Costa MC, Silva EB, Fontana DGR, Arboit J. Network to combat violence against rural women: articulation and communication of services. Rev Bras Enferm. 2018;71(suppl 3):1287-94. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0044
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0...
,2929 Schraiber LB, D’Oliveira AFP, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência: da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Dig. 2012;12(3):237-54. https://doi.org/10.5565/rev/athenea/v12n3.1110
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).

Estudo realizado com profissionais da APS demonstrou que estes compreendem a necessidade de interdisciplinaridade e de um trabalho intersetorial na atenção à saúde. Inclusive, quando o foco da atenção às mulheres se desenvolvia em âmbito rural, as participantes do estudo compreendiam a rede de enfrentamento como um trabalho em “conjunto”, partindo do envolvimento de diferentes setores(2222 Borth LC, Costa MC, Silva EB, Fontana DGR, Arboit J. Network to combat violence against rural women: articulation and communication of services. Rev Bras Enferm. 2018;71(suppl 3):1287-94. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0044
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).

A necessidade de contato entre os serviços foi expressa pelos participantes do estudo em tela, o que possibilitou inferir que o conhecimento sobre os outros serviços é parcial. Muitos ainda desconhecem o funcionamento dos serviços que compõem a rede de atendimento a essas mulheres, bem como a importância da articulação destes. A dinâmica de trabalho em rede pressupõe que os profissionais conheçam os serviços, suas competências e o papel da rede(2929 Schraiber LB, D’Oliveira AFP, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência: da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Dig. 2012;12(3):237-54. https://doi.org/10.5565/rev/athenea/v12n3.1110
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-3030 Vieira EM, Hasse M. Perceptions of professionals in an intersectorial network about the assistance of women in situation of violence. Interface (Botucatu). 2017;21(60):51-62. https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0357
https://doi.org/10.1590/1807-57622015.03...
).

Conhecer os outros nós da rede é se apropriar dos espaços. Esse conhecimento produz vínculo, cooperação e dá suporte para que sejam desenvolvidas ações de prevenção, notificação, registro, encaminhamento e acompanhamento das mulheres, favorecendo a continuidade da assistência e o aumento da credibilidade nos serviços(1919 Menezes PRM, Lima IS, Correia MC, Souza SS, Erdmann LA, Gomes PN. Enfrentamento da violência contra a mulher: articulação intersetorial e atenção integral. Saude Soc. 2014;23(3):778-86. https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000300004
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201400...
,3030 Vieira EM, Hasse M. Perceptions of professionals in an intersectorial network about the assistance of women in situation of violence. Interface (Botucatu). 2017;21(60):51-62. https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0357
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). Para profissionais de saúde, o conhecimento dos profissionais integrantes da rede é um facilitador do enfrentamento à VPI(33 Rojas Loría K, Fernández Sánchez A, Gutiérrez Rosado T. Barreras y facilitadores del abordaje de la violencia contra las mujeres: perspectivas profesionales entre Cataluña y Costa Rica. Poblac Salud en Mesoam. 2019; 17(1):1-26. https://doi.org/10.15517/psm.v17i1.37814
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). Quando compartilham entre si as atribuições de cada um, os procedimentos internos e externos, assim como horários de funcionamento dos serviços e sua localização, é que a continuidade da assistência pode ser efetivada(2929 Schraiber LB, D’Oliveira AFP, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência: da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Dig. 2012;12(3):237-54. https://doi.org/10.5565/rev/athenea/v12n3.1110
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-3030 Vieira EM, Hasse M. Perceptions of professionals in an intersectorial network about the assistance of women in situation of violence. Interface (Botucatu). 2017;21(60):51-62. https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0357
https://doi.org/10.1590/1807-57622015.03...
).

O desconhecimento por parte do profissional da função de determinado serviço pode evidenciar dificuldade para sua inclusão como uma alternativa de cuidado. Quando não se conhece o trabalho do outro, a realização de parcerias e compartilhamentos de projetos assistenciais comuns é comprometida(2121 Aguiar JM, D’Oliveira AFPL, Schraiber LB. Mudanças históricas na rede intersetorial de serviços voltados à violência contra a mulher: São Paulo, Brasil. Interface (Botucatu). 2020;24:e190486. https://doi.org/10.1590/Interface.190486
https://doi.org/10.1590/Interface.190486...
,3131 Bermudez KM, Siqueira-Batista R. “Many holes tied together with ropes”: the concept of network for mental health professionals. Saude Soc. 2017;26(4):904-19. https://doi.org/10.1590/s0104-12902017170298
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-3232 Bearzi PSS, Martins AB, Marchi RJ, Reser AR. Trilhas para o enfrentamento da violência contra a mulher. Rev Estud Fem. 2020;28(3):e60162. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n360162
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). Além disso, pode-se gerar isolamento e dificultar a rota crítica da mulher, uma vez que ela pode ser encaminhada a locais onde não encontrará respostas para sua necessidade. Reforça-se que, para existir integração intersetorial, o primeiro passo é a construção de um diálogo entre os serviços(2929 Schraiber LB, D’Oliveira AFP, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência: da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Dig. 2012;12(3):237-54. https://doi.org/10.5565/rev/athenea/v12n3.1110
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,3131 Bermudez KM, Siqueira-Batista R. “Many holes tied together with ropes”: the concept of network for mental health professionals. Saude Soc. 2017;26(4):904-19. https://doi.org/10.1590/s0104-12902017170298
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).

As redes são formadas por pessoas e conexões entre elas, pois elas fazem parte das instituições; são laços e inexistem sem os profissionais. Desse modo, não é feita meramente de relações entre instituições de forma administrativa e burocrática(3030 Vieira EM, Hasse M. Perceptions of professionals in an intersectorial network about the assistance of women in situation of violence. Interface (Botucatu). 2017;21(60):51-62. https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0357
https://doi.org/10.1590/1807-57622015.03...
). Trabalhar em rede pressupõe comunhão de esforços, interação e a articulação entre os serviços envolvidos com a situação, desenvolvendo ações conjuntas(1919 Menezes PRM, Lima IS, Correia MC, Souza SS, Erdmann LA, Gomes PN. Enfrentamento da violência contra a mulher: articulação intersetorial e atenção integral. Saude Soc. 2014;23(3):778-86. https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000300004
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201400...
,2929 Schraiber LB, D’Oliveira AFP, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência: da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Dig. 2012;12(3):237-54. https://doi.org/10.5565/rev/athenea/v12n3.1110
https://doi.org/10.5565/rev/athenea/v12n...
). Porém, as mulheres que buscam atendimento profissional após vivenciarem alguma situação de violência mencionam a (des)articulação entre os serviços da rede(3333 Santos WJ, Freitas MIF. Weaknesses and potencialities of the healthcare network for women in situations of intimate partner violence. REME. 2017;21:e-1048. https://doi.org/10.5935/1415-2762.20170058
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-3434 Souza MAR, Peres AM, Fumincelli L, Lopes VJ, Mercês NNA, Wall ML. Women perception in situations of violence in formal support: scoping review. Esc Anna Nery. 2021;25(2):e20200087. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2020-0087
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).

A atenção é marcada pela desarticulação entre os serviços, e um grupo de trabalho permanente poderá ser um espaço potente e disparador desse movimento em rede. Assim, embora inseridas num cenário de fragmentação do cuidado, as participantes reconheceram potencialidades para a atuação em rede. No entanto, há precariedade de investimentos, e pouca é a visibilidade da violência contra as mulheres no âmbito dos serviços e na gestão das políticas públicas no cenário em questão.

Para promover a articulação intersetorial, as iniciativas provenientes da gestão são imprescindíveis, pois podem viabilizar a interação entre as mais diversas instituições. Vínculos contínuos são necessários, mediante, por exemplo, grupos de trabalho, espaços de encontros com representantes de diferentes serviços, que podem debater estratégias para o empoderamento das mulheres e enfrentamento da violência(1919 Menezes PRM, Lima IS, Correia MC, Souza SS, Erdmann LA, Gomes PN. Enfrentamento da violência contra a mulher: articulação intersetorial e atenção integral. Saude Soc. 2014;23(3):778-86. https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000300004
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). Para tal fim, as instituições demandam aporte adequado de recursos humanos, infraestrutura física, ambiente favorável que lhes permita formar espaços de comunicação intersetorial para delineamento e construção da rede, bem como flexibilidade de agendas para a mobilidade dos profissionais.

No presente estudo, as discussões foram permeadas pela complexidade percebida sobre o acompanhamento dos casos e pela compreensão deste como fator essencial, tendo em vista a continuidade da atenção às mulheres. Isso implica a efetividade de todas as etapas que a compõem: reconhecimento da violência por parte dos profissionais, atendimento adequado, encaminhamento, o interesse e a busca pelo retorno das referências(1919 Menezes PRM, Lima IS, Correia MC, Souza SS, Erdmann LA, Gomes PN. Enfrentamento da violência contra a mulher: articulação intersetorial e atenção integral. Saude Soc. 2014;23(3):778-86. https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000300004
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201400...
). Sendo assim, há necessidade de superar a porosidade entre os serviços(3535 Scott P, Nascimento FS, Cordeiro R, Nanes G. Redes de enfrentamento da violência contra mulheres no sertão de Pernambuco. Rev Estud Fem. 2016;24(3):851-70. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2016v24n3p851
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) e avançar para a construção da rede, trabalho permeado por amarrações/costuras.

Constata-se que as participantes tinham se apropriado do sentido do trabalho em rede para o enfrentamento da VPI. Destacaram a necessidade de se criarem espaços interdisciplinares, o que é essencial, porquanto esforços integrados de diferentes áreas podem viabilizar a cultura de trabalho e de comunicação intersetorial. Valorizaram as dimensões da escuta, do acolhimento e do vínculo no cuidado às mulheres para desenvolver a articulação em rede. Como dispositivos concretos de comunicação para se romperem barreiras institucionais, foram também destacados o estabelecimento do fluxograma de atenção, o contato, a comunicação falada e formalizada. Contudo, para além desses dispositivos, a atuação profissional precisa superar o referenciamento isolado, com um fim em si mesmo. Os fluxogramas podem direcionar a continuidade da atenção nos diferentes setores, associados a um sistema institucional de comunicação eficiente entre eles(1717 Cortes LF, Padoin SMM, Kinalski DDF. Instrumentos para articulação da rede de atenção às mulheres em situação de violência: construção coletiva. Rev Gaucha Enferm. 2016;37(esp):e2016-0056. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.esp.2016-0056
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).

Compreende-se a necessidade do senso de pertencimento dos serviços, questão que emergiu nas discussões apoiando-se na metáfora da rede representada na composição artesanal com base em nós, quando as participantes manifestaram ser parte dos nós dessa rede. Em uma rede, há vias de intersecção, e é preciso suporte, iniciativa e ação dialógica da gestão com os trabalhadores. O potencial do trabalho em rede relaciona-se com a qualidade das conexões e comunicações entre profissionais e serviços, conhecimento dos setores envolvidos e responsabilização dos profissionais tendo em vista uma atuação coletiva e compartilhada(2222 Borth LC, Costa MC, Silva EB, Fontana DGR, Arboit J. Network to combat violence against rural women: articulation and communication of services. Rev Bras Enferm. 2018;71(suppl 3):1287-94. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0044
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,2929 Schraiber LB, D’Oliveira AFP, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência: da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Dig. 2012;12(3):237-54. https://doi.org/10.5565/rev/athenea/v12n3.1110
https://doi.org/10.5565/rev/athenea/v12n...
).

As amarrações entre os diferentes setores (saúde, desenvolvimento social, segurança pública e justiça) precisam ser efetivadas por meio de mecanismos de integração, como os grupos intersetoriais, o controle social e os movimentos de mulheres. No entanto, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres(66 Presidência da República (BR), Secretaria de Políticas para as Mulheres. Política nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres [Internet]. Brasília, DF: SPM; 2011[cited 2020 Jun 05]. Available from: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres
https://www12.senado.leg.br/instituciona...
) e o próprio Sistema Único de Saúde brasileiro, que preconizam a atenção em rede integrada, quase não propõem mecanismos concretos que indiquem como viabilizar essa atuação.

Na formação em saúde, pouco se desenvolvem espaços de aprendizagem e vivências de articulação com os demais setores. Estudos evidenciam que a própria temática da violência não é de fato abordada como integrante do campo profissional nessa área; e que, até mesmo quando há formações profissionais em saúde da mulher, não se tem garantia de aproximação ao tema. Há pouco conhecimento sobre a legislação, normas e protocolos de atendimento às mulheres em situação de violência(2020 Batista KBC, Schraiber LB, D’Oliveira AFPL. Gestores de saúde e o enfrentamento da violência de gênero contra as mulheres: as políticas públicas e sua implementação em São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica. 2018;34(8):e00140017. https://doi.org/10.1590/0102-311x00140017
https://doi.org/10.1590/0102-311x0014001...
). Isso é até compreensível já que o padrão de formação, em geral, é fragmentado, embasado no modelo biomédico, e quase não dialoga com a realidade social das mulheres. Tal fato culmina em grande dificuldade de manejar situações de fragilidade emocional e desproteção, questões subjetivas. Além disso, os profissionais conhecem pouco sobre os demais serviços de atendimento às mulheres(3636 Souza AAC, Cintra RB. Ethical conflicts and limitations of medical care for women victims of gender violence. Rev Bioet. 2018;26(1):77-86. https://doi.org/10.1590/1983-80422018261228
https://doi.org/10.1590/1983-80422018261...
).

Constata-se a urgência da inclusão do tema na formação em saúde e em serviço bem como nas demais áreas, com a finalidade de que ensino e serviço possam criar novas estratégias e ferramentas tecnológicas inovadoras que contribuam com a construção da rede de atendimento e com a concretização de ações afirmativas, mecanismos de comunicação e articulação intersetoriais coordenados pelos municípios. Reforça-se a importância de espaços coletivos e interdisciplinares serem incorporados no planejamento das políticas públicas de enfrentamento à VPI.

Limitações do estudo

A limitação desta pesquisa está na necessidade de inclusão de outros profissionais de diferentes setores que estejam envolvidos na atenção às mulheres em situação de violência por parceiro íntimo, visto que o estudo foi realizado com profissionais representantes dos serviços e de gestoras e estudantes que participavam deste GT. Os problemas de comunicação para articulação em rede exigem o aprofundamento de áreas de tecnologias da informação e comunicação.

Além disso, o estudo se limitou por não apresentar a trajetória das mulheres nas suas rotas críticas na busca por ajuda, uma vez que foi delimitado partindo da atuação dos profissionais dos serviços e da gestão. Aponta-se para uma lacuna a ser preenchida por novas pesquisas sobre o tema a fim de dar continuidade aos estudos acerca da rede de atendimento, pautando-se na dinâmica de vida das mulheres. Reconhecemos o caráter local da pesquisa, mas reiteramos que a imersibilidade e a dialogicidade como base na realidade do município, dos recursos, das potencialidades e das fragilidades para a construção de redes culminaram com a produção de dados de modo participativo e factível para se reconstruir o contexto da prática assistencial.

Contribuições para a área da Enfermagem, Saúde ou Política Pública

A violência contra as mulheres é um problema de saúde pública e uma violação aos direitos humanos. Sendo uma questão complexa, seu enfrentamento deve ocorrer por meio do trabalho em rede intersetorial, estando alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, propostos pela Agenda 30-30. O trabalho em rede está sendo aos poucos incorporado pelos profissionais da saúde, tendo em vista que a fragmentação do cuidado e os modelos hierárquicos de atenção ainda são predominantes no Brasil. Esse cenário exige a ampliação do cuidado (centrado nas demandas das mulheres) e das práticas acadêmicas e profissionais no âmbito da formação em saúde e em serviço.

Compreender os sentidos da rede para os profissionais contribui para se demarcarem os investimentos em educação permanente em saúde, já que profissionais dessa área, especialmente os de enfermagem, são agentes potenciais para a identificação e acolhimento de mulheres em situação de violência, podendo ser ativadores do trabalho interprofissional e em rede. Além disso, tal compreensão aponta a necessidade de investimentos em políticas intersetoriais para enfrentamento do problema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A metáfora da rede representa a construção da rede de atendimento às mulheres em situação de violência, composição que tem como essência a dimensão relacional, o que implica a definição de linhas que se entrelaçam e a formação de nós que criam conexões para a atuação ou para o trabalho intersetorial. A construção é um movimento permanente, uma vez que há necessidade de novas costuras e amarrações para que a rede seja recomposta, com base na mobilidade das pessoas nos setores e nas demandas singulares das mulheres.

Compreendemos que, para superar o modelo tradicional de atenção, é preciso reconhecer e fomentar a discussão da formação da rede in loco, nos serviços, visto que não há uma receita pronta para a construção desse trabalho. É fundamental manter a reflexão sobre o tema e incorporá-la ao cotidiano da formação de profissionais (transcendendo a área saúde). Há necessidade de utilização de mecanismos operacionais e tecnologias da informação para a continuidade do cuidado, de modo a contribuir com a dimensão assistencial de rede disposta nas políticas públicas que respaldam o tema.

São necessários fluxogramas para direcionar a continuidade do cuidado nos diferentes setores, associados à necessidade de mais espaços de articulação intersetorial e de um sistema institucional de comunicação eficiente entre os diferentes setores envolvidos. Isso implica superar a lacuna entre o que se pensa, o que é produzido e o que é preconizado pelas políticas públicas em termos de formação de rede.

MATERIAL SUPLEMENTAR

Dados depositados em Repositórios: Cortes LF. Mulheres em situação de violência: construção coletiva de instrumentos para a articulação do atendimento em rede [tese]. 2017 Jun 27 [cited 2021 Jan 15]. Manancial Repositório Digital da Universidade Federal de Santa Maria. Available from: https://repositorio.ufsm.br/handle/1/13674

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    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, bolsa de doutorado.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Fátima Helena Espírito Santo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2021
  • Aceito
    13 Set 2021
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