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O vivido de mulheres trans ou travestis no acesso aos serviços públicos de saúde

RESUMO

Objetivo:

compreender os sentidos de ser mulher trans ou travesti nos atendimentos realizados por profissionais de saúde do Sistema Único de Saúde.

Métodos:

pesquisa qualitativa, norteada pela fenomenologia de Heidegger, com 10 mulheres trans ou travestis residentes e usuárias do Sistema Único de Saúde de um município mineiro. Trabalho de campo foi realizado por entrevistas.

Resultados:

mulheres trans ou travestis reproduzem os padrões sociais construídos e aceitos ao feminino, sendo comum a busca pela hormonização e, havendo dificuldade em obterem a prescrição, recorrem à automedicação. A utilização e a aceitação do nome social pelos profissionais de saúde promovem seu reconhecimento. Mulheres trans ou travestis vivenciam cotidianamente o preconceito, não somente por profissionais, mas também pela suposição de diagnósticos por outros usuários.

Considerações finais:

a transfobia promove o afastamento dos serviços de saúde, por medo, vergonha, conhecimento sobre o despreparo dos profissionais, desencadeando adoecimento, exclusão social e violência.

Descritores:
Enfermagem; Transexualidade; Identidade de Gênero; Acesso aos Serviços de Saúde; Minorias Sexuais e de Gênero

ABSTRACT

Objective:

to understand the meanings of being a trans or transvestite woman in the care provided by Unified Health System health professionals.

Methods:

qualitative research, guided by Heidegger’s phenomenology, with 10 trans or transvestitewomen residing and using the Unified Health System in a municipality in Minas Gerais. Fieldwork was carried out by interviews.

Results:

trans or transvestitewomen reproduce the social patterns constructed and accepted by the female, with the search for hormonization being common, and, when it is difficult to obtain a prescription, they resort to self-medication. Social name use and acceptance by health professionals promote recognition. Trans or transvestitewomen experience prejudice on a daily basis, not only by professionals, but also because of the assumption of diagnoses by other users.

Final considerations:

transphobia promotes withdrawal from health services, due to fear, shame, knowledge about professionals’ unpreparedness, triggering illness, social exclusion and violence.

Descriptors:
Nursing; Transsexuality; Gender Identity; Health Services Accessibility; Sexual and Gender Minorities

RESUMEN

Objetivo:

comprender los significados de ser mujer trans o travesti en la atención brindada por profesionales de salud del Sistema Único de Salud.

Métodos:

investigación cualitativa, guiada por la fenomenología de Heidegger, con 10 mujeres trans o travestis residentes y usuarias del Sistema Único de Salud en un municipio de Minas Gerais. El trabajo de campo se llevó a cabo mediante entrevistas.

Resultados:

las mujeres trans o travestis reproducen los patrones sociales construidos y aceptados por la fémina, siendo común la búsqueda de la hormonalización y, cuando es difícil obtener una receta, recurren a la automedicación. El uso y aceptación del nombre social por parte de los profesionales de la salud promueve su reconocimiento. Las mujeres trans o travestis experimentan prejuicios a diario, no solo por parte de los profesionales, sino también por la asunción de diagnósticos por parte de otros usuarios.

Consideraciones finales:

la transfobia promueve el alejamiento de los servicios de salud, por miedo, vergüenza, conocimiento sobre la falta de preparación de los profesionales, desencadenando enfermedades, exclusión social y violencia.

Descriptores:
Enfermería; Transexualidad; Identidad de Género; Accesibilidad a los Servicios de Salud; Minorías Sexuales y de Género

INTRODUÇÃO

A orientação sexual de um indivíduo se relaciona ao sentido do desejo sexual, seja com pessoas do sexo oposto, do mesmo sexo ou por ambos. Já a identidade de gênero é entendida como um sentido de si mesmo como homem, mulher ou algo fora dessas categorias. O sexo biológico é marcado por questões fisiológicas e assignado ao nascimento, classificando os seres em masculinos ou femininos, machos e fêmeas(11 Winter S, Diamond M, Green J, Karasic D, Reed T, Whittle S, Wylie K. Transgender people: health at the margins of society. Lancet. 388(10042):390-400. https://doi.org/10.1016/s0140-6736(16)00683-8
https://doi.org/10.1016/s0140-6736(16)00...
).

O Conselho Federal de Medicina considera que mulheres transexuais são aquelas nascidas com o sexo masculino que se identificam como mulher, ou seja, a pessoa é psicologicamente de um sexo e anatomicamente de outro. Já a travesti é aquela que nasceu com um sexo, identificando-se e apresentando-se fenotipicamente no outro gênero, mas aceita sua genitália(22 Ministério da Saúde (BR). Transexualidade e travestilidade na saúde [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2015 [cited 2020 Aug 10]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/transexualidade_travestilidade_saude.pdf
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).

As categorias mulheres trans e travestis perpassam por discursos médico-psiquiátricos, porém é necessário que se agreguem parâmetros filosóficos, epistemológicos e sociais, visando à integralidade da assistência(33 Braz C, Brigeiro M, Uziel AP, Carrara S, Monteiro S. Palavras-chave e indexação científica: uma crítica da categorização das experiências trans na área da saúde. Cad Saúde Pública. 2019;35(10). https://doi.org/10.1590/0102-311x00097319
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).

A visibilidade e a apreensão desses conceitos, bem como sua aceitabilidade social, ainda são recentes. Pessoas trans são as que sofrem maior preconceito e discriminação no ambiente familiar e social e, por extensão, nos serviços de saúde, seja pela transfobia ou pela discriminação atrelada à pobreza, raça/cor, aparência física ou escassez de serviços de saúde específicos. Consequentemente, estar à margem do padrão heteronormativo ainda configura uma situação de risco em queviolações de direitos são cometidas com frequência e por motivações diversas(44 Rocon PC, Rodrigues A, Zamboni J, Pedrini MD. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Cienc Saude Colet. 2016;21(8):2517-25. https://doi.org/10.1590/1413-81232015218.14362015
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5 Silva GWS, Souza EFL, Sena RCF, Moura IBL, Sobreira MVS, Miranda FAN. Situações de violência contra travestis e transexuais em um município do nordeste brasileiro. Rev Gaúcha Enferm. 2016;37(2):e56407. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.02.56407
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-66 Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (BR). Relatório de Violência Homofóbica no Brasil: ano 2013 [Internet]. Brasília: 2016[cited 2020 Dec 20]. Available from: https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/RelatorioViolenciaHomofobicaBR2013.pdf
https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File...
).

Há um cenário de escravidão no qual as pessoas trans e travestis se encontram subjugadas a diferentes matizes representadas pela figura do Estado como aqueles que reproduzem as normativas sociais de comportamentos consideradas como apropriadas ou pseudonormais, golpeando-as, de todas as formas, através de uma política heteronormativa, excludente, totalitária e autoritária, fazendo-as se sentirem seres abjetos deste pensamento restritivo, sofrendo com o terrorismo moralista, discriminatório e estigmatizante de uma política social instaurada e validada que busca excluí-los socialmente dos espaços públicos(77 Morera JAC, Padilha MI. Social representations of sex and gender among trans people. Rev Bras Enferm. 2017;70(6):1235-43. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0581
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). Assim sendo, as mulheres trans e travestis, como fuga de atos de violência e discriminação, evitam transitar nos espaços públicos, como a rua, o mercado, a padaria, a farmácia, etc. Poucas frequentam escolas ou estão inseridas no mercado formal de trabalho e, frequentemente, deixam de procurar serviços de saúde, vivendo em uma condição de invisibilidade(88 Souza MH, Pereira PP. Health care: the transvestites of Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brazil. Texto Contexto Enferm. 2015;24(1):146-53. https://doi.org/10.1590/0104-07072015001920013
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-99 Pedra CB, Souza EC, Rodrigues RVA, Silva TSA. Políticas públicas para inserção social de travestis e transexuais: uma análise do programa “transcidadania”. REVICE [Internet]. 2018 [cited 2022 Feb 20];3(1). Available from: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revice/article/view/5091
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). Essa evasão, em especial do serviço de saúde, gera danos às pessoas trans.

Os profissionais de saúde devem disponibilizar apoio no que tange aos desafios emocionais relacionados à identidade de gênero, discutindo opções clínicas para afirmação de gênero, bem como apoio aos familiares, que também podem necessitar de cuidados de saúde(1010 Schuster MA, Reisner SL, Onorato SE. Beyond Bathrooms -meeting the health needs of transgender people. N Engl J Med. 2016;375(2):101-3. https://doi.org/10.1056/nejmp1605912
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).

Estudos apontam que pessoas trans descrevem o Sistema Único de Saúde (SUS) como um sistema compouca capacidade de prestar cuidados e atendimentos adequados, catalogando eventos discriminatórios e dificuldades frente ao uso e respeito ao nome social. Mesmo com políticas que garantam esse direito(44 Rocon PC, Rodrigues A, Zamboni J, Pedrini MD. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Cienc Saude Colet. 2016;21(8):2517-25. https://doi.org/10.1590/1413-81232015218.14362015
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,88 Souza MH, Pereira PP. Health care: the transvestites of Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brazil. Texto Contexto Enferm. 2015;24(1):146-53. https://doi.org/10.1590/0104-07072015001920013
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),elas continuam sendo apontadas como as que mais enfrentam dificuldades para acessar os serviços de saúde, da atenção básica à alta complexidade, dentre toda a população de lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros(77 Morera JAC, Padilha MI. Social representations of sex and gender among trans people. Rev Bras Enferm. 2017;70(6):1235-43. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0581
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,1111 Rocon PC. Acesso à saúde pela população trans no brasil: nas entrelinhas da revisão integrativa. Trabalho, Educação e Saúde. 2020;18(1):e0023469. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00234
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).

Ao direcionarmos o olhar para a especificidade do sentido imputo por aquela que se designa mulher trans ou travesti, espera-se contribuir para rupturas e fissuras no enquadramento reducionista, higienista e eugenista presentes na maioria dos serviços de saúde.

A perspectiva fenomenológica de Heidegger auxilia nesta compreensão,pois pesquisas utilizando a fenomenologia possibilitam aos profissionais da saúde dar sentido às suas vivências e atividades laborativas, propiciando que estes retomem a atenção e a reflexão sobre a realidade e o modo de ser com os outros no mundo do cuidado, no intento de um atendimento respeitoso, qualificado,comrespeito ao direito universal à saúde.

OBJETIVO

Compreender os sentidos de ser mulher trans ou travesti nos atendimentos realizados por profissionais de saúde do SUS.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Para garantir o anonimato, as participantes foram codificadas pelo termo PT, independentemente de se autodeclararem travestis ou transexuais. Atendendo à Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Referencial teórico-metodológico

Utilizou-se como alicerce teórico, metodológico e filosófico a Fenomenologia Heideggeriana(1212 Heidegger M. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Vozes; 2014.), com vistas a aproximarmos da compreensão do fenômeno de ser mulher trans ou travesti nos atendimentos realizados por profissionais do SUS, realizado em um município da Zona da Mata Mineira no ano de 2018.

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, no qual utilizamos a ferramenta COnsolidated criteria for REporting Qualitative research (COREQ) para direcionar, sustentar e orientar a metodologia do estudo(1313 Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care. 2007;19(6):349-57. https://doi.org/10.1093/intqhc/mzm042
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).

Procedimentos metodológicos

Para desvelar os sentidos de ser mulher trans ou travesti nos atendimentos realizados por profissionais de saúde do SUS, foram realizadas entrevistas com dez participantes, das quais seis se autodeclararam mulheres trans e quatro como travestis. Para inclusão neste estudo, foram utilizados como critérios residir no município, autodeclararem-se como mulher trans ou travesti, com idade igual ou superior a 18 anos, independentemente da cor, religião ou orientação sexual. Foram excluídas aquelas que não utilizavam ao menos um dos serviços de saúde do SUS disponíveis no município.

Antes de iniciarmos a pesquisa, foram realizadas entrevistas com duas mulheres trans, com a finalidade de adequar o roteiro de interlocução aos objetivos propostos. Este momento se configurou como uma estratégia metodológica que permitiu avaliar a aplicabilidade do roteiro da pesquisa antes de entrar em contato com as participantes delimitadas para o estudo, objetivando a elaboração da compreensão(1414 Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qual[Internet]. 2017 [cited 2021 Jan 10];5(7):1-12. Available from: https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/82/59
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).

Cenário do estudo

Município é pertencente ao estado de Minas Gerais, localizado na região Sudeste do estado, na mesorregião da Zona da Mata Mineira, com população estimada de 75.942 habitantes e Índice de Desenvolvimento Humano de 0,751(1515 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Índice de Desenvolvimento Humano Municipal - IDHM [Internet]. Brasília: IBGE; 2021[cited 2021 Jan 10]. Available from: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/cataguases/panorama
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).

Apresenta como instituições vinculadas ao SUS um hospital geral, 21 Unidades Básicas de Saúde com Estratégia Saúde da Família, uma policlínica que realiza atendimento de nível secundário em angiologia, cardiologia, dermatologia, fisioterapia, gastroenterologia, ginecologia, pneumologia, ortopedia, oftalmologia e urologia. As demais especialidades médicas que o município não disponibiliza são referenciadas para municípios como Juiz de Fora e Muriaé, entre outros. A rede municipal SUS conta ainda com laboratórios de análises clínicas, centro municipal para serviços em radiologia, centro municipal de vacinação, serviço de testagem e aconselhamento, centro de referência em oncologia e centro de especialidades odontológicas.

Fonte de dados

Para a seleção das participantes, optou-se pela utilização do método bola de neve, por se tratar de um método aplicável quando o objeto de estudo é composto por grupos de difícil acesso ou quando o estudo busca acessar assuntos privados. Por meio deste método, são formadas cadeias de referências, construídas a partir de pessoas que compartilham ou sabem de outras pessoas que possuem algumas características que são de interesse do estudo. Desta forma, o número de participantes pode aumentar a cada entrevista. Em relação aos inconvenientes, cabe citar a falta de controle sobre a constituição e número de participantes(1616 Bockorni BRS, Gomes AF. A amostragem em snowball (bola de neve) em uma pesquisa qualitativa no campo da administração. Rev Ciên Empres UNIPAR. 2021;22(1):105-17. https://doi.org/10.25110/receu.v22i1.8346
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-1717 Pucci VR, Machado RA, Cardano M, Kantorski LP, Weiller TH. Técnica da entrevista discursiva em pesquisa qualitativa: relato de experiência. Rev Enferm UFSM. 2020;10(e97):1-21. https://doi.org/10.5902/2179769241680
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).

Coleta e organização dos dados

Para obtenção dos relatos com as dez participantes incluídas, foi utilizada a entrevista fenomenológica, que se caracteriza por uma abordagem existencial, que tem por finalidade a narração do fenômeno por quem vive a facticidade existencial a ser desvelada. Os preconceitos e julgamentos do entrevistador foram colocados de lado, e a escuta se deu de forma atenta, o que possibilitou a aproximação com o ente que se encontrava à sua frente. Dessa forma, foi possível apreender os significados das vivências apresentados pelas falas no decorrer das narrativas(1818 Guerrero-Castañeda RF, Menezes TMO, Ojeda-Vargas MG. Características de la entrevista fenomenológica em investigación en enfermeira. Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(2):e67458. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.02.67458
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).

Para coleta das informações, utilizou-se a entrevista aberta, estabelecendo uma relação empática com a participante, objetivando desvelar o vivido do ser por meio da compreensão dos sentidos. Cada encontro durou em média 60 minutos, e foram realizadas no ambiente escolhido pelas entrevistadas (domicílio e ambiente de trabalho). O fato da escolha do ambiente de realização do encontro permitiu que as mulheres trans e travestis entrevistadas se sentissem à vontade durante o encontro. Foram utilizadas as seguintes questões: como você vive seu dia-dia sendo mulher trans ou travesti? Quando está com problema de saúde, onde você busca atendimento? O que você pensa sobre o atendimento à saúde que lhe é prestado?Você gostaria dedizer mais alguma coisa?

As entrevistas foram finalizadas a partir do momento em que o pesquisador não se deparou com nenhum elemento novo e o acréscimo de novas informações deixou de ser necessário, pois não alterou a compreensão do fenômeno estudado(1919 Nascimento LCN, Souza TV, Oliveira ICS, Moraes JRMM, Aguiar RCB, Silva LF. Theoretical saturation in qualitative research: an experience report in interview with schoolchildren. Rev Bras Enferm. 2018;71(1):228-33. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0616
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). Durante a coleta de informações, as falas das participantes foram gravadas em aparelho de áudio (gravador portátil). Também foi utilizado um diário de campo, que permitiu o registro dos comportamentos, da expressão corporal, das emoções expressadas, dos silêncios, das pausas na fala, dos olhares, das lágrimas, risos e gestos, que representa dimensão fenomenal(2020 Astolphi SM, Palacio FL, Lione ML. Pesquisa sobre uma doença fenomenológica não referencial sustentada de Martin Heidegger: subsídios ou cuidados. Av Enferm. 2018;36(2):230-7. https://doi.org/10.15446/av.enferm.v36n2.67179
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).

Análise dos dados

Os depoimentos foram analisados a partir de dois momentos metódicos em Heidegger(1212 Heidegger M. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Vozes; 2014.): a Compreensão Vaga e Mediana,visando à compreensão do sentido que funda a analítica existencial do ser-no-mundo. Desta forma, iniciou-se com a transcrição dos depoimentos das participantes, colocando os preconceitos em suspensão, buscando compreender o fenômeno, ou seja, o que se mostrava como modo de ser da depoente. O movimento analítico hermenêutico centrou-se em compreender os sentidos de ser mulher trans ou travesti nos atendimentos realizados por profissionais de saúde do SUS.

A análise dos depoimentos culminou em quatro unidades de significação (US), a saber: US1 - A construção e manutenção do feminino; US2 - A importância do nome social: ser reconhecido por quem se é; US3 - O preconceito presente nos serviços de saúde; e US4 - Aconselhamento por leigos e despreparo de profissionais de saúde: suas influências na automedicação.

Posteriormente, partindo das US e utilizando o movimento de intuição que é próprio do pesquisador, buscou-se a compreensão do sentido da experiência vivenciada pelo ser, abrindo o horizonte para se desvelar as facetas do fenômeno investigado.

RESULTADOS

Dentre as dez participantes, a idade das participantes variou entre 26 e 42 anos. Em relação à escolaridade, sete declararam ter cursado o ensino médio, e três, o ensino fundamental. Entre as participantes, seis se autodeclararam brancas, três, pretas, e uma, parda. No que diz respeito à situação no mercado de trabalho, apenas uma se declarou desempregada. Três se apresentaram como profissionais do sexo, duas afirmaram ser autônomas, uma, decoradora, duas, cabeleireiras, e uma, auxiliar de escritório. Quanto à renda familiar em salários mínimos, encontrou-se variação de um a cinco.

Somente uma das participantes afirmou ser casada, sendo as demais solteiras. A idade para início da construção feminina variou de 13 a 28 anos de idade. Em relação à presença de doenças e acompanhamento, uma afirmou problemas por varizes, e outra, por rinite, realizando acompanhamento no setor privado, uma vez que as especialidades médicas para estas condições não são oferecidas pela rede SUS do município. As duas entrevistadas que se autodeclararam como pessoas que convivem com o vírus da imunodeficiência humana afirmaram acompanhamento pelo serviço de atenção especializada do SUS. Uma delas, portadora de bradicardia, afirmou não realizar acompanhamento para o problema de saúde. Cinco negaram problemas de saúde.

Os resultados demonstraram que os sentidos de ser mulher trans ou travesti frente aos atendimentos realizados por profissionais de saúde do SUS perpassam por fatores que interferem na sua assistência.

A construção e manutenção do feminino

Evidenciou-se que a construção mental do feminino leva à criação do ser feminino, sendo completa (ou não) por transformações corporais. Padrões estéticos e de beleza, assim como o consumismo imposto pela sociedade, são valorizados e vistos como garantia da aceitação social do feminino, como expressos:

A hormonização, para mim, vai ser muito importante. Eu pesquisei muito antes de tomar essa decisão, tanto que só aos 36 anos eu comecei a me preparar pra tomar hormônio. (PT 01)

A sensação de tomar hormônio é a mesma de pisar dentro de casa e falar que agora eu sou mulher! É a dor do meu prazer! Eu me sinto completamente diferente, meu psicológico muda. Eu sinto a agulha entrando em mim e eume sinto feminina! Me revigora! Eu fico mais calma, fico muito mais emotiva. (PT 02)

Eu me vejo como uma mulher normal na sociedade, uma pessoa que não é julgada. Uma pessoa que as pessoas não ficam apontando o dedo, eu passo assim, despercebida, chego assim em qualquer lugar e as pessoas me tratam bem. Eu não sou uma pessoa vulgar! (PT04)

Em seus depoimentos, no que tange sobre como é ‘ser quem são’, as participantes externaram que pensam e agem como mulheres, conforme os padrões sociais construídos e aceitos, enfatizando atos referentes ao comportamento, tom de voz e submissão feminina, reproduzindo conceitos que apontam o ser feminino como delicado, submisso. Buscam manter os padrões femininos e passarem desapercebidas na sociedade como mulheres trans. Relacionam a hormonização como um dos marcadores para se tornarem mulheres, trazendo à tona a sensibilidade.

A importância do nome social: ser reconhecido por quem se é

O nome social emerge como uma grande conquista para as pessoas trans, deixando no passado a identificação com o sexo biológico designado ao nascimento e apresentando aos profissionais de saúde a identidade de gênero escolhida pelas mesmas, conforme fragmentos a seguir:

A melhor coisa que fiz foi usar o nome social! Melhor coisa que eu fiz no mundo!É prazeroso! Você ser reconhecida por quem você é! Ninguém sabe que eu tenho outro nome. (PT 02)

O atendimento do profissional enfermeiro, técnico [...] me atendiam como mulher [a chamavam pelo nome social]. Até porque eu não chego lá e dou o nome de batismo, eu falo que X [diz seu nome de batismo] é o nome do meu marido. (PT 03)

O nome social é muito importante, porque usar ele não me traz constrangimento. Cria um impacto? Que na hora que a gente entrega o cartão SUS, a pessoa acha que vai ler outro nome do que está ali. (PT 04)

Então, eu chego, eu converso numa boa e falo: “eu quero ser chamada pelo meu nome social, isso tem que ser respeitado”. (PT 05)

Já tive problema com nome, tanto que hoje consegui trocar o nome em todos os meus documentos. Eu passava muito constrangimento. O médico ficava chamando o nome masculino e eu falava: “tô aqui!” E ele continuava chamando, porque ele via ali uma mulher. Era constrangedor pra mim, pra ele e pro público. Foi aí que eu falei: “chega, isso está me incomodando muito!”. Mudei tudo... como se nascesse uma nova pessoa. (PT 07)

O nome social é tudo para mim! É difícil perceber que o X [diz seu nome de batismo] não existe mais? Agora sou outra pessoa! Meu nome é lindo... ai de quem me chamar pelo meu nome antigo! (PT 10)

A utilização e a aceitação do nome social pelos profissionais foram apontadas pelas participantes como fatores relevantes para aceitação do ser feminino, garantindo respeito e evitando situações constrangedoras ao utilizarem os serviços de saúde. O nome social auxilia na construção do reconhecimento do ser feminino e é apontado como uma das melhores atitudes por elas tomada.

Mesmo com a legislação vigente em todo território nacional, percebeu-se nos depoimentos que, por diversas vezes, a utilização da forma de tratamento deve ser solicitada pela usuária.

O preconceito presente nos serviços de saúde

Destaca-se que, por vezes, o preconceito individual ultrapassa os limites da ética e da moral profissional, materializando-se em atos preconceituosos, incluindo a transfobia, conforme os fragmentos:

Eu nem gosto de consultar aqui [referindo-se à Unidade Básica de Saúde]. As pessoas já vêm a gente aqui e vai falando... e a gente que é travesti, se procura um negócio de saúde, já falam que tá doente e as pessoas já pensam logo que é outra coisa. (PT 08)

Você só usa o básico [dos serviços de saúde oferecidos] [...]mas eu tive uma sensação ruim em um atendimento. Eu me abri com ele e parece que isso criou uma certa dificuldade. Ele usou de certo preconceito. (PT 09)

Não consigo entender como que profissional de saúde pode ser preconceituoso. Eu sei que vocês são gente, que têm defeito [...], mas eu também sou! É muito olhar [...] é muito pouco caso. Por isso que evito ir [nas Unidades Básicas de Saúde]. Não me sinto bem. Parece que tô muito doente. E a gente sabe que o povo acha logo que é aids. Eu vou pedir ajuda em um lugar assim? Onde o povo me olha torto? Tô fora! (PT 10)

Foi possível identificar que o preconceito faz parte do cotidiano das mulheres trans ao utilizarem os serviços de saúde, apontando que não somente os profissionais de saúde podem agir de forma desrespeitosa.

Situações de vivência de preconceito velado, através de olhares, suposição de diagnósticos por outros usuários e do preconceito vivido também emergiram nesta US.

Aconselhamento por leigos e despreparo de profissionais de saúde: suas influências na automedicação

As mulheres trans participantes destacam a importância de sua rede social para o auxílio na indicação do tratamento hormonal para a construção do verdadeiro corpo. A experiência pregressa de suas semelhantes revelou-se como indicativo de sucesso no tratamento. O desejo iminente de transformação conduz à automedicação e pode gerar evasão dos serviços de saúde como garantia para a conquista de suas aspirações. Em relação à enfermagem, uma participante salientou que acredita que a profissional se recusou a realizar a aplicação do medicamento por não ter a prescrição médica, o que poderia trazer problemas frente ao conselho de classe.

Eu fiz uma coisa errada, eu falei com um amigo meu, que trabalhava em uma farmácia, que eu pesquisei e descobri que as bichas estão tomando esse hormônio aqui, eu gostaria de saber se você faz meu processo de hormonização. Ele foi meu médico. Ele foi meu endocrinologista, ele que foi meu amigo, ele que foi tudo! (PT 02)

Quem me indicou o hormônio foram as próprias travestis! A gente não procura indicação médica, não. A gente toma por conta própria, porque a gente fica com vergonha de procurar atendimento. (PT 06)

Eu me hormonizei por conta própria. Não procurei os serviços de saúde, mas eu acho que deveria ter uma pessoa especializada pra gente conversar sobre essa área. Um médico especializado pra atender as trans. (PT 07)

Quem me passou o hormônio foram as amigas. A gente começa, se empolga, vai tomando, toma [...] compra na farmácia e toma. Não tem profissional que entende dessas coisas. Daqui um tempo, muda essas coisas e aqui vai ter alguém que entende disso. (PT 08)

Eu tomo hormônio por conta própria. Uma amiga minha me informou que já tomou, me recomendou e tá funcionando! Eu, muitas vezes, me aplico. Eu mesma aprendi e me aplico. Fico meio assim, mas eu faço o xizinho, vou do lado de fora e pum. Todo mundo se recusa a passar hormônio, parece que tem medo. Eu fui procurar informação, aí o doutor: “eu não vou passar”, aí o outro: “ah, não! Isso não é pra mim, eu não passo!”. A enfermeira que nos assiste tem dificuldade de aplicar na gente [devido à falta de prescrição médica], porque eu acho que ela fica com medo de prejudicar de alguma forma o registro no COREN [referindo-se ao Conselho Regional de Enfermagem][...] aí eu mesma faço. (PT 09)

Por vezes, a automedicação se dá pelo fato de elas se sentirem envergonhadas para procurar os serviços de saúde. Já outras apontam se depararem com o despreparo dos profissionais de saúde para a hormonização e que, por vezes, vivenciaram a recusa da prescrição dos hormônios por profissionais médicos. Revelam também que sentem a necessidade de que os profissionais de saúde busquem ampliar seus conhecimentos profissionais para atendimento desta demanda, destacando a necessidade de profissionais especializados para o atendimento.

DISCUSSÃO

Partindo da interpretação dos depoimentos das participantes, buscou-se o sentido que funda o movimento existencial do ser, direcionando o pesquisador para a análise interpretativa, a compreensão do sentido deste cotidiano velado, em uma análise hermenêutica sustentada pela obra “Ser e Tempo” de Martin Heidegger. A hermenêutica heideggeriana se dá pela compreensão dos significados e interpretação do sentido, que apresenta o ser humano em seus modos de ser no mundo, possibilitando a busca pela essência da presença em sua cotidianidade, que é, antes de tudo, o modo de ser da presença(1212 Heidegger M. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Vozes; 2014.).

O modo de ser das participantes se desvelou quando externaram aspectos que amparam a construção e a manutenção do feminino frente a padrões socialmente impostos, a importância da utilização e a aceitação do nome social por profissionais de saúde, suas experiências cotidianas ao usarem os serviços de saúde, ao deporem sobre a importância de suas redes sociais para o processo de transformação e o despreparo dos profissionais de saúde no amparo a esse anseio.

Vencer os padrões da cisnormatividade e construir sua própria identidade de gênero perpassam por etapas que se desvelam como facticidade, uma vez que elas não podem prever, evitar ou abster-se da realidade do desejo pela identificação no gênero feminino ou mesmo de adoecer e necessitar de atendimentos de saúde.

Em seus depoimentos, as participantes apontam que se enxergavam com identidade de gênero oposta àquela designada ao nascer desde a infância, ora já se sentindo femininas, ora não se identificando com grupos do gênero masculino. Estudo realizado com pessoas trans adultas revelou a consciência da sua identificação de gênero desde muito cedo, coincidindo com o período de suas vidas onde, sistematicamente, há a divisão das crianças entre meninos e meninas, seja no ambiente escolar ou no convívio social(2121 Saleiro SP. Diversidade de Género na Infância e Educação: contributos para uma Escola Sensível ao (Trans) Género. Exaequo. 2017;(36):149-65. https://doi.org/10.22355/exaequo.2017.36.09
https://doi.org/10.22355/exaequo.2017.36...
).

No cotidiano da transição para a identidade de gênero feminino, desvela-se que as entrevistadas são seres históricos, inacabadas e nessa temporalidade se realizam no presente, porém significam o passado e têm desejos e planos futuros. Em seus depoimentos, foi possível identificar que o processo de construção é constante e que as mesmasnão sabem apontar quando ele acabará.

Percebemos diferentes opiniões quando o assunto é inerente às concepções de saúde/doença referentes a transformações vividas pela população trans. Ainda presente, porém não hegemônico, o modelo biomédico, guiado por padrões anatômicos e fisiopatológicos, tende a se guiar pelo processo de medicalização, patologizando os corpos e as experiências vividas. Quando imergimos no vivido de quem passa pela transformação, percebemos que os processos se mostram distintos, em umabusca pela saúde, buscando o remodelamento da sua aparência corporal como potencial de vida, mediada por padrões e ideais de beleza.

Padrões estéticos apresentam grande importância na sociedade contemporânea. Do mesmo modo que pessoas cisgêneros investem em procedimentos estéticos para alcançarem seu desejo pessoal, a mulher trans que se constrói no feminino também o faz. Sendo os modelos de beleza mutáveis em nossa sociedade, a construção do corpo desejável também se torna constante, almejando sempre atingir os signos de beleza atuais(2222 Rocon PC, Zamboni J, Sodré F, Rodrigues A, Roseiro MCFB. (Trans) formações corporais: reflexões sobre saúde e beleza. Saude Soc 2017;26(2):521-32. https://doi.org/10.1590/s0104-12902017171907
https://doi.org/10.1590/s0104-1290201717...
).

Por estarem lançadas no mundo, mostram-se como seres femininos que se apresentam conforme padrões impostos pela sociedade. De acordo com os depoimentos, o ser feminino que é digno de respeito necessita apresentar características, como emotividade, sensibilidade, educação, não ser uma pessoa vulgar, ser digna, sem pelos, de voz fina, dócil e com mamas.

O preconceito contribui para consolidar o despreparo de profissionais de saúde para abordar temas, como a diversidade sexual, haja vista que não são ensinados, durante sua formação, a abordar a temática de maneira aberta e livre de preconceitos. Como fruto dessa formação, têm-se profissionais de saúde despreparados, proporcionando barreiras nas relações de produção do cuidado(2323 Santos JS, Silva RN, Ferreira MA. Health of the LGBTI+ population in primary health care and the insertion of nursing. Esc Anna Nery. 2019;23(4):e20190162. https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2019-0162
https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-20...
).

Ao desvelar seu cotidiano com a equipe de enfermagem no que diz respeito à administração do hormônio por via intramuscular, uma das participantes externou que, por não apresentar a prescrição médica, a enfermeira não está apta a realizar a administração, o que a leva a realizar o procedimento por conta própria, podendo acarretar danos à sua integridade física. A constituição de um espaço de atenção em saúde para mulheres trans e travestis éapontada como um elo para concretização da cidadania desta população, não garantido apenas pelo acesso ao setor da saúde, mas também pelas características da oferta, sua formalização, a manutenção e a institucionalização do cuidado a elas(2424 Lazcano CL, Toneli MJF. Producción de Sentidos sobre Asistencia Transespecífica en Salud, Derechos y Ciudadanía Trans Rev Psicol: Ciên Prof. 2022;42. https://doi.org/10.1590/1982-3703003230748
https://doi.org/10.1590/1982-37030032307...
).

É na cotidianidade que o ser humano é o protagonista da experiência vivida. Existindo na facticidade como ser-no-mundo,encontramo-nos sempre na referência de um contexto, dentro da cotidianidade, porque, como ocupação, o ser-no-mundo é “tomado pelo mundo que se ocupa”, entendendo o mundo como sendo um conjunto de referências no qual já se está inserido(1616 Bockorni BRS, Gomes AF. A amostragem em snowball (bola de neve) em uma pesquisa qualitativa no campo da administração. Rev Ciên Empres UNIPAR. 2021;22(1):105-17. https://doi.org/10.25110/receu.v22i1.8346
https://doi.org/10.25110/receu.v22i1.834...
).

Existindo em uma cotidianidade que ainda segrega, impõe padrões e comportamentos de normalidade e aceitação, o ser-aí pessoa trans é conduzido à inautenticidade, onde se identifica como diferente dos padrões heteronormativos e tenta ressignificar o feminino. As participantes externaram a importância de ser-com, em especial ao apontarem suas semelhantes na ocupação e pré-ocupação, ao indicarem as possibilidades para a construção do corpo desejado, e conforme expuseram há despreparo profissional para o alcance deste objetivo.

Mulheres trans vivenciam desrespeito à sua identidade de gênero durante o processo de acolhimento nas unidades de Atenção Primária à Saúde, bem como experimentam o despreparo dos profissionais de saúde em suprir determinadas demandas em seu atendimento, o que pode acarretar resistência de pessoas trans em buscarem serviços de saúde pelo receio da discriminação(2323 Santos JS, Silva RN, Ferreira MA. Health of the LGBTI+ population in primary health care and the insertion of nursing. Esc Anna Nery. 2019;23(4):e20190162. https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2019-0162
https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-20...
,2525 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2013 [cited 2020 Aug 20]. Availablefrom: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_lesbicas_gays.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
).

Revelaram em suas falas que ainda há profissionais de saúde que não respeitam o nome social, mesmo que este tratamento seja garantido pela Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009(2525 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2013 [cited 2020 Aug 20]. Availablefrom: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_lesbicas_gays.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
), que assegura a utilização do nome de preferência do usuário (nome social) por todos os profissionais de saúde de esferas pública ou privada(2525 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2013 [cited 2020 Aug 20]. Availablefrom: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_lesbicas_gays.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
-2626 Merhi TETC. Transexualidade na atenção primária de saúde: um relato de experiência em uma unidade de uma cidade em Goiás. Braz J Develop. 2021;7(1):7074-82. https://doi.org/10.34117/bjdv7n1-479
https://doi.org/10.34117/bjdv7n1-479...
).

Estudos internacionais(2727 Kearns S, Kroll T, O'Shea D, Neff K .Experiences of trangender and non-binary youth accessing gender-affirming care: a systematic review and meta-enhograpy. Rev PLoS ONE. 2021;16(9): e0257194. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0257194
https://doi.org/10.1371/journal.pone.025...
-2828 Rosenberg S, Callander D, Holt M, Duck-Chong L, Pony M, Cornelisse V, et al. Cisgenderism and transphobia in sexual health care and associations with testing for HIV and other sexually transmitted infections: Findings from the Australian Trans & Gender Diverse Sexual Health Survey. PLoS ONE. 2021;16(7):e0253589. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0253589
https://doi.org/10.1371/journal.pone.025...
) apontam que indivíduos transgêneros e com diversidade de gênero enfrentam barreiras ao tentar acessar os cuidados de saúde, desde discriminação à falta de acesso e de profissionais experientes, indicando a necessidade de educação adicional para os profissionais de saúde, especialmente àqueles que prestam atenção primária, sobre como oferecer cuidados com conhecimento, afirmação e interseccionalidade.

O preconceito velado também foi percebido durante a análise dos depoimentos, pois as participantes revelaram que se sentem julgadas ao procurarem pelos serviços de saúde. Este pré-julgamento relaciona-se com doenças infectocontagiosas ou problemas de saúde considerados mais graves. Eliminar a transfobia nos cuidados de saúde sexual pode ajudar a melhorar o acesso a testes diagnósticos para reduzir as taxas de infecção e apoiar a saúde sexual geral e o bem-estar das mulheres trans e travestis(2828 Rosenberg S, Callander D, Holt M, Duck-Chong L, Pony M, Cornelisse V, et al. Cisgenderism and transphobia in sexual health care and associations with testing for HIV and other sexually transmitted infections: Findings from the Australian Trans & Gender Diverse Sexual Health Survey. PLoS ONE. 2021;16(7):e0253589. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0253589
https://doi.org/10.1371/journal.pone.025...
).

A transexualidade e a travestilidade são, sem dúvidas, experiências identitárias marcadas pelo intenso conflito com as normas sociais de gênero, sofrimento psíquico e experiências de violência decorrentes do preconceito e discriminação. Quando o preconceito e a discriminação são oriundos dos profissionais de saúde, daquele que se espera o acolhimento, certamente é ainda mais nocivo para o ente. Precisamos estar atentos às várias demandas que esta mulher trans nos traz quando chega nos serviços de saúde, sem nunca nos esquecermos de ver o outro como um ser único repleto de possibilidades, vivendo na facticidade da sua existência, que deve ser compreendida para ser respeitada.

Limitação do estudo

O presente estudo traz como limitação o fato de ter sido realizado com travestis e transexuais usuárias do sistema público de saúde de uma determinada região, o que pode não representar outras realidades. Não podemos nos esquecer também que os resultados aqui apresentados não podem ser generalizados, uma vez que desvelam um vivido singular que é único a ser-no-mundo.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou políticas públicas

A realização deste estudo aponta a necessidade de realização de novas pesquisas abordando os profissionais de saúde, para que se percebam quais as dificuldades vivenciadas pelos mesmos que possam vir a dificultar o atendimento de mulheres trans e travestis nos serviços de saúde, não deixando margem para omissões, acomodações ou alienação de nossa parte, visto a gravidade dos problemas por elas encontrados.

A compreensão destes sentidos desvela a necessidade da implantação de ações que busquem a educação formal e continuada dos profissionais de saúde que acolhem mulheres trans e travestis nos serviços de saúde, bem como rever a formação de tais profissionais, oferecendo aproximação com a temática desde sua formação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao compreender os sentidos de ser mulher trans ou travesti frente aos atendimentos do SUS, verifica-se que essas mulheres, na interação com os profissionais de saúde, deparam com atitudes preconceituosas advindas dos papéis sociais e estereótipos de gênero enraizados cultural e historicamente. Possivelmente, essas atitudes são perpetuadas, em decorrência aos padrões sociais, aos desconhecimentos destes profissionais quanto ao atendimento específico às necessidades dessas pessoas, aos preconceitos e à pouca familiarização com as políticas públicas referentes a esse grupo populacional. As mulheres trans ou travestis, diante dessas dificuldades, precisam seguir os padrões heteronormativos, ao buscar acolhimento nos serviços de saúde, tornando invisíveis suas reais necessidades.

MATERIAL SUPLEMENTAR

Dissertação de mestrado intitulada “O vivido de transexuais e travestis nos atendimentos à saúde: compreender para melhor assistir”, disponível em: https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/7809/1/guilhermesachetooliveira.pdf.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Maria Itayra Padilha

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2021
  • Aceito
    25 Maio 2022
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